O Quinze
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O Quinze, de Rachel de Queiroz
Análise
Publicado em 1930, o romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, renovou a ficção regionalista.
Possui cenas e episódios característicos da região, com a procissão de pedir chuva, são traços
descritivos da condição do retirante. O sentido reivindicatório, entretanto não traz soluções
prontas, preferindo apontar os males da região através de observação narrativa.
Em O Quinze, primeiro e mais popular romance de Rachel de Queiroz, a autora exprime
intensa preocupação social, apoiada, contudo, na análise psicológica das personagens,
especialmente o homem nordestino, sob pressão de forças atávicas que o impelem à aceitação
fatalista do destino. Há uma tomada de posição temática da seca, do coronelismo e dos
impulsos passionais, em que o psicológico se harmoniza com o social.
A obra apresenta a seca do nordeste e a fome como conseqüência, não trazendo ou tentando
dar uma lição, mas como imagem da vida.
Não percebe-se uma total separação entre ricos e pobres, e esta fusão é feita através da
personagem Conceição que pertence realmente aos dois mundos. Evitando assim o perigo dos
romances sociais na divisão entre "bons pobres" e "maus ricos", não condicionando inocentes
ou culpados.
Estrutura da obra
O título do livro evoca a terrível seca do Ceará de 1915. A própria família de Rachel foi
obrigada a fugir do Ceará: foi para o Rio de Janeiro, depois para Belém do Pará. Compõe-se de
26 capítulos, sem títulos, enumerados.
A classificação de O Quinze é, sem dúvida, de romance regionalista de temática social. Mas
com uma visão que foge ao clichê tradicional. Não há, na história, a divisão batida de \"pessoas
boas e pobres\" e de \"pessoas más e ricas\". A autora registrou no papel a sua emoção, sem
condicionar o romance a uma tese ou à preocupação de procurar inocentes e culpado pela
desgraça de cada um ou mesmo do grupo envolvido na história.
A história é recheada de amarguras. Bastaria a saga da família de Chico Bento para marcar o
romance com as cores negras da desgraça. A morte está por toda parte. Está no calvário da
família de retirantes, está em cada parada da caminhada fatigante, está no Campo de
Concentração. Morte de gente e de bichos.
A história de amor entre Vicente e Conceição poderia ser o lado bom e humano da história.
Não é. A falta de comunicação entre os dois, o desnível cultural que os separa constituem
ingredientes amargos para um desfecho infeliz. É como se a seca, responsável por tantos
infortúnios, fosse causadora de mais um: a impossibilidade de ser feliz para quem tem
consciência da miséria.
Romance de profundidade psicológica. A análise exterior dos personagens existe, mas sem
relevo especial dentro do livro. A autora vai soltando uma característica aqui, outra além, sem
interromper a narrativa para minúcias. O lado introspectivo, psicológico é uma constante em
toda a narrativa. Ao mesmo tempo em que o narrador informa as ações dos personagens,
introduz interrogações e dúvidas que teriam passado por sua cabeça, por seu espírito.
Tempo
A autora situa a história do romance no Ceará de 1915. O fato histórico importante da época
era a própria seca, obrigando os filhos da terra, principalmente do sertão, a migrarem para o
Amazonas ou para São Paulo, à procura de vida melhor. Não há avanços nem recuos. A história
é contada em linha reta, valorizando o presente, o cotidiano das pessoas. O passado é evocado
raramente, muito mais por Conceição. A passagem do tempo dentro do romance é marcada
de maneira tradicional, obedecendo à seqüência de início, meio e fim.
Cenário
O cenário do romance é o Ceará. Especificamente, a região de Quixadá, onde se situam as
fazendas de Dona Inácia (avó de Conceição), do Capitão (pai de Vicente) e de Dona Maroca
(patroa de Chico Bento).
Há também, em menor escala, o cenário urbano, destacando a capital, Fortaleza, para onde
migram os retirantes e onde mora Conceição.
Linguagem
O sucesso do livro está atrelado à simplicidade da linguagem (a mais difícil das virtudes
literárias!). Não há exibicionismo da autora no uso de palavreado erudito. Mesmo quando a
dona da palavra é uma professora (Conceição), o diálogo flui espontâneo, normal, cotidiano.
Sua linguagem é natural, direta, coloquial, simples, sóbria, condicionada ao assunto e á região,
própria da linguagem moderna brasileira. A estas características deve-se ao não
envelhecimento da obra, pois sua matéria está isenta do peso da idade. Em O Quinze, Rachel
usa o que lhe deu fama imediata: umalinguagem regionalista sem afetação, sem pretensão
literária e sem vínculo obrigatório a um falar específico (modismo comum na tendência
regionalista).
A sobriedade da construção, a nitidez das formas, a emoção sem grandiloqüência, a economia
de adjetivos são recursos perceptíveis em todo o livro.
Foco narrativo
O Quinze é romance narrado na terceira pessoa, ou seja, o narrador é a própria autora. O
narrador é onisciente. Estando fora da história, o narrador vai penetrando na intimidade dos
personagens como se fosse Deus. Sabe tudo sobre eles, por dentro e por fora. Conhece-lhes os
desejos e adivinha-lhes o pensamento.
Discurso livre indireto. Em vez de apresentar o personagem em sua fala própria, marcada pelas
aspas e pelos travessões (discurso direto), o narrador funde-se ao personagem, dando a
impressão de que os dois falam juntos. Isto faz com que o narrador penetre na vida do
personagem, no seu íntimo, adivinhando-lhe os anseios e dúvidas.
Personagens
Conceição - Não com os alunos, mas com a própria vida. Conceição é forte de espírito, culta,
humana e com idéias um tanto avançadas sobre a condição feminina. O único homem que lhe
despertou desejos é o primo Vicente. Conceição tem uma admiração antiga e especial pelo
rapaz, talvez porque ele é real, sem as falsidades comuns dos moços bem-educados. Ao
descobrir que ele não é tão puro, a admiração esfria, criando uma barreira intransponível para
a realização plena do seu amor. Tinha vocação para solteirona:"Conceição tinha vinte e dois
anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com
os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona". Conceição
sente-se realizada ao criar Duquinha, o afilhado que lhe doaram Chico Bento e Cordulina. É
uma realização íntima, preenchendo o vazio da decepção amorosa.
Vicente - Filho de fazendeiro rico, com condições de mandar os filhos para a escola, Vicente,
desde menino, quis ser vaqueiro. No início, isso causava tristeza e desgosto à família,
principalmente à mãe, Dona Idalina. Com o tempo, todos passaram a admirar o rapaz. Vicente
é o vaqueiro não-tradicional da região. Cuida do gado com um desvelo incomum, mas cuida do
que é seu, ao contrário dos outros (Chico Bento é o exemplo) que cuidam de gado alheio. Tem
boas condições financeiras, mas é humano em relação à família e aos empregados. Vicente
tinha dentes brancos com um ponto de ouro. Na intimidade, quando se põe a pensar na vida e
na felicidade, associa tais coisas à Conceição. Tem uma admiração superior por ela.
Gradualmente, à medida que vai notando a maneira fria com que ela passa a tratá-lo, Vicente
começa a descrer no amor e na possibilidade de casar e ser feliz.
Chico Bento - Chico Bento é o protótipo do vaqueiro pobre, cuidando do rebanho dos outros.
Ele é o vaqueiro de Dona Maroca, da fazenda das Aroeiras, na região de Quixadá. Ele e Vicente
são compadres e vizinhos. Como é peculiar da pobreza brasileira e nordestina, Chico Bento
tem a mulher (Cordulina) e cinco filhos, todos ainda pequenos. Pedro, o mais velho, tem doze
anos. Expulso pela seca e pela dona da fazenda, Chico Bento e família empreendem uma
caminhada desastrosa em direção a Fortaleza. Perde dois filhos no caminho: um morre
envenenado (Josias), o outro desaparece (Pedro). Antes de embarcar para São Paulo, é
obrigado a dar o mais novo (Duquinha) para a madrinha, Conceição. De Fortaleza, Chico Bento
e parte da família vão, de navio, para São Paulo. É o exílio forçado, é a esperança de vida
melhor e, quem sabe, de riqueza para quem só conheceu miséria no Ceará.
Cordulina - É a esposa de Chico Bento. Personifica a mulher submissa, analfabeta, sofredora,
com o destino atrelado ao destino do marido. É o exemplo da miséria como conseqüência da
falta de instrução.
Josias - Filho de Chico Bento e Cordulina, tem cerca de dez anos de idade. Comeu mandioca
crua e morreu envenenado na estrada.
Pedro - Filho de Chico Bento e Cordulina, é o mais velho, tem doze anos de idade.
Desapareceu quando o grupo ia chegando a Acarape.
Manuel (Duquinha) - É o filho caçula de Chico Bento e Cordulina; tem dois anos anos de idade.
Foi doado à madrinha, Conceição.
Paulo - Irmão mais velho de Vicente, ele é o orgulho dos pais (pelo menos no início). Estudou,
fez-se doutor (promotor) e casou-se na cidade com uma moça branca. Depois de casado,
passou a dedicar o seu tempo à família, quase não se interessando mais pelos pais e pelos
irmãos. Só então os pais deram valor a Vicente.
Mocinha - Irmã de Cordulina, ficou como empregada doméstica em Castro, na casa de sinhá
Eugênia. Arranjou um filho sem pai e tudo indica que vai viver da prostituição.
Lourdinha - Irmã mais velha de Vicente. Casou-se com Clóvis Garcia em Quixadá. No final, têm
uma filha, símbolo da felicidade que as pessoas simples e descomplicadas conseguem
conquistar.
Alice - Irmã mais nova de Vicente. Mora na fazenda com os pais e os irmãos.
Dona Inácia - Avó de Conceição, espécie de mãe, pois foi quem a criou depois que a mãe
verdadeira morreu. É dona da fazenda Logradouro, na região de Quixadá. Não aprova as idéias
liberais da neta, principalmente no que diz respeito a ficar solteirona.
Dona Idalina - Prima de Dona Inácia. Idalina é a mãe de Vicente, Paulo, Alice e Lourdinha. Vive
com o marido, Major, na fazenda perto de Quixadá.
Major - Fazendeiro rico na região de Quixadá. Entrega a administração da fazenda ao filho
Vicente. Orgulha-se de ter um filho doutor: o Paulo, promotor em uma cidade do interior do
Ceará.
Dona Maroca - Fazendeira, dona da fazenda Aroeiras na região de Quixadá. Na época da seca,
mandou o vaqueiro, Chico Bento, soltar o gado e procurar, por conta própria, meios para
sobreviver.
Mariinha Garcia - Moça bonita, de família rica, moradora de Quixadá. Com auxílio de
Lourdinha e Alice, faz tudo para conquistar Vicente, mas as tentativas resultam inúteis.
Luís Bezerra - Compadre de Chico Bento e Cordulina. Trabalhara também nas Aroeiras sob o
comando de Dona Maroca. Agora, é delegado em Acarape, povoado do interior do Ceará. Foi
ele quem conseguiu passagens de trem para que a família do compadre chegasse a Fortaleza.
Doninha - Esposa de Luís Bezerra, madrinha do Josias, o filho de Chico Bento que morreu
envenenado na estrada.
Zefinha - Filha do vaqueiro Zé Bernardo. Conceição, acreditando numa conversa que tivera
com Chiquinha Boa, acha que Vicente tem um caso com Zefinha.
Chiquinha Boa - Trabalhava na fazenda de Vicente. Na época da seca, achando que o governo
do Ceará estava ajudando os pobres que migravam para a capital, deixou a zona rural.
Enredo
A obra O Quinze aborda a seca de 1915, descreve alguns aspectos da vida do interior do Ceará
durante um dos períodos mais dramáticos que o povo atravessou. O enredo é interessante,
dramático, mostrando a realidade do Nordeste Brasileiro e se dá em dois planos.
No primeiro plano enfoca o vaqueiro Chico Bento e sua família, o outro a relação afetiva de
Vicente, rude proprietário e criador de gado, e Conceição, sua prima culta e professora.
Conceição é apresentada como uma moça que gosta de ler vários livros, inclusive de
tendências feministas e socialistas o que estranha a sua avó, Mãe Nácia que é representante
das velhas tradições. No período de férias, Conceição passava na fazenda da família, no
Logradouro, perto do Quixadá. Apesar de ter 22 anos, não dizia pensar em casar, mas sempre
se "engraçava" à seu primo Vicente. Ele era o proprietário que cuidava do gado, era rude e até
mesmo selvagem. Com o advento da seca, a família de Mãe Nácia decide ir para cidade e
deixar Vicente cuidando de tudo, resistindo. Trabalhava incessantemente para manter os
animais vivos. Conceição, trabalhava agora no campo de concentração onde ficavam alojados
os retirantes, e descobre que seu primo estava "de caso" com "uma caboclinha qualquer".
Enquanto ela se revolta, Mãe Nácia à consola dizendo:
"Minha filha, a vida é assim mesmo... Desde hoje que o mundo é mundo... Eu até acho os
homens de hoje melhores."
Vicente se encontra com Conceição e sem perceber confessa as temerosidades dela. Ela
começa a tratá-lo de modo indiferente. Vicente se ressente disso e não consegue entender a
razão. As irmã de Vicente armam um namoro entre ele e uma amiga, a Mariinha Garcia. Ele
porém se espanta ao "saber" que estava namorando, dizendo que apenas era solícito para
com ela e não tinha a menor intenção de comprometimento. Conceição percebe a diferença
de vida entre ela e seu primo e a quase impossibilidade de comunicação. A seca termina e eles
voltam para o Logradouro.
O segundo plano é, sem dúvida, a parte mais importante do livro. Apresenta a marcha trágica
e penosa do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus 5 filhos, representando os
retirantes. Ele é forçado a abandonar a fazenda onde trabalhara. Junta algum dinheiro, compra
mantimentos e uma burra para atravessar o sertão. Tinham o intuito de trabalhar no Norte,
extraindo borracha. No percurso, em momento de grande fome, Josias, o filho mais novo,
come mandioca crua, envenenando-se. Agonizou até a morte. O seu fim está bem descrito
nessa passagem:
"Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus
amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora.
Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à
sombra das mesma cruz."
Uma cena marcante na vida do vaqueiro foi a de matar uma cabra e depois descobrir que tinha
dono. Este o chamou de ladrão, e levou o resto da cabra para sua casa, dando-lhes apenas as
tripas para saciarem. Léguas após, Chico Bento dá falta do seu filho mais velho Pedro.
Chegando ao Aracape, lugar onde supunha que ele pudesse ser encontrado, avista um
compadre que era o delegado. Recebem alguns mantimentos mas não é possível encontrar o
filho. Ficam sabendo que o menino tinha fugido com comboeiros de cachaça. Notem:
"Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que
ficando com o pai?"
Ao chegarem no campo de concentração, são reconhecidos por Conceição, sua comadre. Ela
arranja um emprego para Chico Bento e passa a viver com um de seus filhos. Conseguem
também uma passagem de trem e viajam para São Paulo, desistindo de trabalhar com a
borracha.