O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

download O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

of 13

Transcript of O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    1/13

    PREFACIO A EDIC;AO INGLESA

    rre com Irequencia, esta pesquisa tarnbernsurgiu or acaso Passei parte do verao de 1962 em Deline.o Arquivo a Curia Episcopal daquela cidade preservaurn acervo de documentos inquisitoriais extremamenterico e, aquelaepoca, ainda inexplorado. Pesquisei os jul-gamentos de uma estranha seita de Friuli, cujos membrosos jufzes identificaram como Qfuxas..-e-curandeiros. Maistarde escrevi urn livro sobre eles (I benandantt: Stregone-ria e culti agrari tra Cinqaecento e Seicentoi, publicadoem 1966 e reimpresso em Turim, em 1979. Ao folhear urndos volumes roanuseritos dos julgamentos, deparei-me comuma sentenca extremamente longa. Uma das acusacoes Iei-tas a urn reu era a de que de sustentava que 0mundo ti -nha sua origem na putrefacao. Essa frase atraiu rmn a'Eiitiosidade n o mesm mstahte, mas eu estava a procurade outras coisas: bruxas, curandeiros, benandanti. Anoteio mirnero do processo. Nos anos que se seguiram aquela

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    2/13

    anotacao ressaltava periodicamente de meus papeis e sefazia presente em minha mem6ria. Em 1970 resolvi ten-tar entender que aquela declaracao poderia ter signifi-

    _- cado para a pessoa que a formulara. Durante esse tempot todoa unica coisa que "~b' -i1. et "respeito era o nome:J Domenico Scandel la, dito enocchio.Este livro narra sua hi 1 : o r i a . ._Gta as a urna farta do-

    cumentacao, temos condicoes de saber quais eram suasleituras e discussoes, pensamento e sentimentos: temo-res, esperancas, ironias, raivas, desesperos. De vci-emquando as on es, tao zlir:el:as;-0trazem-muito per to den6s: e urn homem como n6s, e um de n6s.-- - _ . . . _ _ _Mas e tambem urn lionrem1ffiiiti5'Cfierente de n6s.-f- 7 A reconstrucao anaHtica dessa diferenca torne -se neces-

    " 0 saria, a fim de podermos reconstruir a isionomia) parcial-..._., mente obscurecida, de sua cu1tura e ~ntex:t6..soc-iruno-qual

    '" rea se mo ou. Foi possfvel ras~a1'-G-CQ..,mplicadorelacio-"':2 namento de Menocchio com a cW.tura esc11f~'os livros (ou,) ' S # mais precisamente, ~gun~ dos f u : 9 s : ) ~ le~ e 0 modolcomo os leu. Emergiu aSSlIDurn filtro, urn CflVOque Me-i} nocchio inte~s conscienteme~te entre e~e e os tex~os,u-{\\-l obscures ou ilustres, que the cairam nas ~. Esse CflVO,e > por outro lado, pressupunha uma Cultura oral ue era pa- I Itrimenio nao apenas de Menocchio, mas-tafulSem de urn V

    vasto segmento da sociedade do seculo XVI. Em conse-qiiencia umainvestiga~io que, no infcio, girava em tornode mdivldu , sobretudo de urn indivlduo aparente-mente mum ou desembocando numa ~tese geral sabre a Cultura popular - e, mais precisamen-te, SUbrea CUltura camponesa ~ da Europa pre-industrial,numa era marcada pela difusao da imprensa e a ReformaProtestante, hem como pela repressao a esta Ultima nosparses cat6licOs'. Pode-se ligar essa hipotese aquilo que jl i

    v

    (tt 12

    foi proposto, em termos semelhantes, po~ -tin, e que e pOSSlVe!resurnir no termo ' circularidade":entre a cultura das classes dominantes e a das classes su-balternas eXlStIU, na Europa pre-industrial, urn relacio- C Y \ I inamento circular feito de influencias reciprocas, que semovia de baixo para cima, bern como de cima ara ba'(exatamente 0 oposto, portanto, do "conceito de absolutaautonomia e continuidade da cultura carnponesa" que mefoi atribufdo por certo critico).o Queijo e OJ Vermes pretende ser uma h'st6t~a, ~bern como urn e~jtn bistorko. Dirige-se, portanto, ao lei. h \ J,p-tor co~ bern como ao especialista. Provavelmente ape- ...J~ ~nas a ultimo leta as notas, que coloquei de proposito no~;i;v-\'fim de livro, sem referencias numericas, para nao atravan}v:.Scar a narrativa. Espero, porem, que ambos reconhecamnesse episodic urn fragme to eJ ercebido,__l2Ql:em_extta-ordinar~~ealldad!, parte obliterado, e que colocaimplicitamente uma seri de indagacoes para nossa pro-pria cultura e para n6s.

    13

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    3/13

    PREFACIO A EDI(:ifD lTAllANA

    LNo passado, podiam-se acusar os historiadores de

    querer conhecer somente as "ge~'. Hoje, eclare, nae e rnais assim, Cada vez,;als se interessam peloque seus predecessores haviam ocultado )deixado de ladeou simplesmente ignorado. "Quem construiu Tebas das

    as?" ~ perguntava,o "leiter operario" de Brecht.1 1 0 nos contam nada edreiros anoni-

    mos, mas a pergunta conserva todo seu peso,

    15

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    4/13

    A escassez de testemunhos sobre 0comportamento eatitudes das classes subalternas do passado e com certezao primeiro - mas nfio 0 unico - obstaculo contra 0 qualas pesquisas historicas do genero se chocam. Porem, euma regra que admite excecoes, Este livro conta a histo-ria de urn moleiro friulano - Domenico Seandella, co-nhecido por Menocehio - queimado por ordem do SantoOfieio, depois de uma vida transcorrida em total anoni-mato. A documentacao dos dois processos abertos contraele, distantes uinze anos urn 0 outro, nos da urn quadrorico de suas ideias e sennmentos, fantasias e aspiracoes.Outros documentos nos forneeem indicacoes sobre suasatividades econornicas, sobre a vida de seus filhos, Temostambem algumas paginas eseritas por ele mesmo e umalista parcial de suas leituras (sabia ler e escrever). Gos-tatiamos, e daro, de saber muitas outras eoisas sobreMe-nocchio. Mas 0 que temos em maos ja nos permite recons-truir urn fragmento do que se costuma denominar "cultura--as classes subalternas" ou ainda "cultura popular".- - - - &-\ ~3 ~\rv11jJ-~S ~ A existencia de desniveis culturais no interior das as-sim chamadas sociedaes civilizadas e 0 pressuposto dadisciplina que oi aos poucos se autodefinindo como fo1-clore, antropologia social, hist6ria das tradicoes popula-res, etnologia europeia, Todavia, 0 emprego do termo cul-turapara definir 0 conjunto dei!:titudes, c~, c~igosd~somportamen!9. pr6prios das ~ subalternas numcerto perfodo hist6rico e relativamente tardio e foi empres-

    16

    tado da a~ S6 atraves do conceito de"cultura pnmitiva" e que se chegou de faro a reconhecerque' aqueles indivfduos outrora definidos de forma pater-nalista como "camadas inferiores dos ovos . ~1izados"possuiam cultu;a.fr consciencia pesada do colonialismose uniu assim a consdencia esada da 0 ressao de classe.Dessa maneira 01 era a, pelo menos verDalmente, naoso a concepcao antiquada de foIdore como mera colecaode curidsi a es, mas tamEem a posi\ao de quem distin-guia nas id6ias, crencas, vis6es de mundo das classes =>balternas nada mais do que urn aciimulo desorganico de I. . . . . ! " 'fragmentos de ideias, crencas, visoes de mundo elabora- r1' ....os pe as classes -dominantes provavelmente v~rios se- ') ~Deulos antes. A essa.altn c me a diseussao sobre a re- 0:la~ entre a culru...radas..cl s subalternas e a das clas- - : f . - " r tses dominantes tLque_pD,ntO_Lprime.i:r-a-esta subordi- .ry. rnada a se nda? Em que medida, ao contrario, exprimeconteudos aocrneno em parte alternativos?E possivel 1falar em', laridad entre os dois niveis de cultura? ,_ , C" ": " , ,< 1 "' .. ,;as his tori adores s6 se aproximaram muito recente- c--IImente - e com certa desconfianca - desses tipos de (lJ'-problemas. Isso se deve em parte, sem diivida aIguma~~encia de, uma conce~ao aristocnitica dc;;..sultura." ' * ' Com muita freqiiencia ideias ou crencas originais sao eon-

    ~\" s,ideradas, por,defini\a, 0 , produ_to, < l a s classes su eriO~.("_.'_eJ ua difusao entre as classes subalternas urn ato mecanicoc.....e de escasso ou mesmo de nenhum interesse; co,mo se nao . a s : . '0

    IY'l' f - " _J -,' -,. \l bastasse, en atiza-se presuncosamente a ~ao ,a o .~. . J-jl "deforrnacao", que tais ideias ou crencas sofreram duran- \.. . J . . .-') te 0 processo de transmissao, Porem, a desconfianca dos C"o-

    :5 (f-i historiadores tern tambem urn outro motivo, mais imedia-'9 to, de ordem metodo16gi.ca e nao ideol6giea. Em compara-o \ao com os antrop610gos e estudiosos das tradicoes popula-

    17

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    5/13

    "..v res, os historiadores partern com urna grande desvantagem.Ainda hoje a cultura das classes subalternas e (e muitornais, se pensarmos nos seculos passados) pre ominante-mente oral, e os historiadoses niio podem se pOr a conver-~ coMas carnponeses do seculo XVI (alem disso, naose sabe se os compreenderiam). Precisam entao servir-sesabretudo de {antes escritas (e eventualmente ar ueolo-"?,%icas)que sao dupla~!e_indi!.etas: por serem es e,

    ~ ." em geral, de autoria de individuas, uns rnais outros me-~ If ~os, abertamenre ligados a cultura dominante. Isso signi-. Q _ f fica que as pensamentos, crencas, esperancas dos campo-

    neses e artesaos do passado chegam ate nos atraves de,\'~f intermediari a formam. E ;; que basta~ pa~a desenco~aiar, antecipadamente, as tentativas de pes-. . , P qUlsa nessa direcao.' 1 ! ' - z P Porern, os termos do problema mudam de formar('if radical ante a proposta de se estudar nao a "cultura p ro -

    duzida pelas classes populates", e sirn a "cultura impostaa s classes populares". Foi 0que Robert Man ou tentOu~l fazer, ha uns dez anos, cam base numa fonte ate aquele

    J \ G - . . r - . ~ memento pouco explorada: a literatura de cordel. isto e,\. falhetos baratos, impressos grosseiramente (almanaques,c~cei(as e remedies, narracoes de prodigies auvidas de santos), vendidos nas feiras au nos campos porambulantes. Mandrou, diante de uma lista dos principaistemas recorrentes, acaboupor formular uma conclusaot~ urn tanto quan @1:j5re ada. Essa literatura, par ele defi-nida coma de 'evasao" teria alimentado por seculos uma

    ~ ~visao de mundo banhada de fatalisma e determinisma, de- - - . \ c ; J maravilhaso e_misteriasQ, impe In0 que seus leitores to-J, .. / . ma.ssem conscieneia da prop.ria eand.ic;ao social e politics- e, portanto, desempenhanda, talvez conscientemente,

    uma func;ao reacionaria.- - - - - - = - - - - - - ~c \ eJV'V Pf . = . \ J L . .J . - - - - - . ._ 18 'tV"")J_,

    vV--' }e:A C-~. . _ ~ c_,., ...---0 rJ-- \ .. -1 "'1 ~ ~xON \ c .-v -- ~ . ' \ ~ . . ~ - - " r--l>( ~t . . . - 0 : : - .50 1 ,I c/'"" '"~~ ()~ - r . : : ~ ~ _ I . . . V .....r)/- . s- r y o - A).r- cr : Y-l~ .Todavia, Mandrou naa se limitou a~~msiderar a1- If ,,

    manaques e cancoes coma documentos de ~!WI Iitecamra ~deliberadamente enderet;ada ao pavo: Atraves de uma pas- o f , . :_ i Y - v 'sagem brusca e imotlVada, defIn1u-~~enquanto instru- q_v--,rnentos de umaacultutacao vitor~ como "reflexo o - e[ . . . ] d a visao d undo" das classes populares do . - ' -yr-'cien Regtme, atribuindo tacitamente a essas classes uma ~completa passividade cultural e ~ literatura de cordel umainflueneia desproporcionada, Mesmo sendo as tiragens,como se presume, consideraveis, e cam cada urn daquelesfolhetos sendo deeerto lido em voz alta, atingindo gran-des estratos de analfabetos, numa sociedade em que estesconstiruiam tres quartos da populacao, os eamponesesaptos a 1er eram com certeza uma pequena minoria. Iden-tificar a "culmra prodllz.ida pelas classes populares'La" tura....im .RQS1a~ ...p.QPl.lhltes", decifrar a fisio-nomia da cultura popular apenas atraves das maximas, dospreceitos e dos contos da Bibliotbeque bleue e absurdo.o atalho indicado por Mandrou para se superarem as di-ficuldades ligadas a reconstrucao de uma cultura oral nosleva na verdade ao ponto de partida. ..

    o mesmo atalho, embora com pressupostos muito V'diferentes, Ioi trilhado - com notavel ing~nuidad~ - par ~Genevieve BolleQ?e. Esta pesquisadora VlU na literatura "J,de cordel,~m vez do instrumento de uma (improvavel) f Paculturacao vitoriosa, a .e.xpressao espontan.ea (ainda mais w t . ~improvavel) de uma cultura 0 liar od in.aLe aut" ma,~:,permeada por valores...reli iosos Nessa religiao popular, . ; ; r "cancentrada na humanidade e pobreza de Cristo, teriam 7sido fundidos, de forma harmoniosa, 0 ~- \ I . enatural, omedo da marte e 0 impulso em direcao a vida, Va tolerancia as injusticas e~. gira-carrt.rra '0 ressao.Dessa maneua, e c aro, troca-se "literatura popular" por

    19

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    6/13

    . . - ,'( ~ ~o i 've.A - " ' 1 " ' q ffV' C \-dl ~).7l"j\ \ ~o.. c~~ C c 5 " : : , : , r

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    7/13

    \ 1Thompson sobre as charivari, por exemplo, que ilumina e-aspectos particulares ~dessacwtura. Mesmo uma documen- \}ta~aoexfgu~d_!_spersa e renitente ode, portanto, ser apro- ~veitada. f

    Contudo, 0 medo de cair no famigerado positivismo j.Jingenue, unido it exasperada consciencia da violencia ideo- plogica que pode estar oculta por tras da mais normal e, aprimeira vista, inocente operacao cognitiva, induz hoje

    L"J:J ~rnuitos historiad~:)fes a '0 at a crianca fora junto com a '::f\}'\ . ligua da bacia - ou, deixando-aelacioas metaforas a_- 'pV~ c tura popular junto com a documentacao que dela nos IJda uma imagem mais ou menos deformada. Depois de tet:::: :"criticado (nao sem razao) as pesquisas ja lembradas aqui0sobre a literatura de cordel, urn grupo de estudiosos che-gou a se perguntar se "a cultura popular existiria paraalem do gesto que a elimina", A pergunta e retorica e aresposta, obviamente, negativa. Esta especie de neopirro-nismo parece a primeira vista paradoxal, visto que portras dele encontram-se os estudos de Michel Foucault

    ~ quer dizer, alguem que com a maior autoridade, na His~) toire de la folie J chamou aatencao sobre as exclusoes, as

    y- proibicoes, os limites atraves dos quais nossa cultura seconstituiu historicamente. Mas, observando melhor, per-cebe-se que 0 paradoxo e s6 aparente. 0 que interessa

    o f'~ . . sobt:tudo a Foucault sao os estos os CJiterios .a ex-, ch::s~ os exclusos, urn pouco menos ..Em Histoire e la~ folte ja estava l}'lP lCl a,ao menos em parte, a trajetoriaque levaria Foucault a escrever Les mots et les cbosese L'archeotogi du sauoir. Tal trajet6ria foi muito possivel-mente acelera a pelas simples objecoes niilistas lancadasPOt Jacques D rrida contra a Histoire de la folie. Nao sepode falar da 1 ucura numa linguagem historicamente par-ticipante da razao ocidental e, portanto, do processo que le-

    6 : 1)

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    8/13

    estranhamento absolute, que na realidade e fruto da recusede analise e Interpretacao. As vitimas da exclusao socialtornam-se os depositaries do.unico discurso que repre-senta uma alternadva radical as ooentira_s da. sociedadec on stitu .fd a _ .. urn dlscurso que-passu p e t e r aelito e pelocanibafisfuo, que e encarnado indiferentemente nas me-morias redigidas POt Pierre. Riviere ou no seu matricidio.r; 1 -' I' ",,C urn popu 15000 as avessas, urn pu Ismo negro -mas assim mesmo populismo.f Q ~.5~ v-..J' t J - : : J

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    9/13

    e as de grupos de intelectuais dos mais refinados e conhe-cedores de seu tempo reprop6e com toda forca 0 problemada circularidade da cultura formulado por Bakhtin.

    7.Antes de analisar em que medida as confissdes de

    Menocehio nos ajudam .a precisar 0 problema, devemosnos perguntar que relevancia podem ter, num plano geral,as ideias e crencas de urn individuo iinico em rela~ao aosdo seu nlvel social. No momenta em que equipes inteirasde estudiosos se lancam a empresas imensas de hist6riaquantitativ~ das ideias ou de histori ligiosa serial, pro-por umi1nvestiga~ao capilar sob u. moleiro pode pa-reeer paradoxal ou absurdo, quase como 0 retorno ao tearmecanico numa era de teates automaticos, E sintomaticoque a possibilidade de uma investigacao como essa tenhasido deseartada antecipadamente por alguem como Fran-cois Furet, que defendia a ideia de que a reintegracao dasclasses inferiores na historia geral pode ocorrer apenas sobo signa do "num 0e do anonimato", atraves da demo-grafia e da sociologia, "um estu oquantitativo das socie-ades do passado". Embora na~ mais ignoradas, as classes~';j ~nferiores estariam da mesma forma condenadas a perms-- f : - . r eeerem "silenciosas".

    "' I.;) - - ? Porem, se a ocnmentacao nos oferece a oportunida-5 - ' : - > J. d: de reconst~~1tna0-sn:-~""S-m~ssasin istintas como tam-' 3 bern pe ahdades m.il iY.lOU3.1S seeia Osurdo descartar---L t estas Ul~o e um oDJetivo de pouca importancia

    estendef as classes rnais baixas 0 conceito historico de\

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    10/13

    "estatisticamente mais freqiiente" -, seja positivamente- porque permite circunscrever as possibilidades lateritesde algo (a cultura popular) que nos chega apenas atravesde documentos fragmentarios e deformados, provenientesquase todos de "~quivos da repressao".

    Com isto nao estamos querendo contrapor as pesqui-sas qualitativas as quantitativas, Simplesmente queremosfrisar que, no que toea as classes subalternas, 0 rigor de-monstrado pelas pesquisas ..9uantitativ~ nao pode deixarde lado (se quisermos, nao pode ain3a deixar de lado) 0tao deplorado impressionismo das ~alita~as. 0 chistede E. P. Thompson sobre 0 "grosseiro e insistente im-pressionismo do computador que repete a d n au se am umunico elemento, passando por cima de todos os dados do-cumentais para os quais nao foi programado", e literalmen.te verdadeiro, ja que 0 computador, como e 6hvio, naopensa, mas executa ordens. Por outro lado, so uma seriede pesquisas particulates, de grande folego, pode perrni-tir a elaboracao de urn programa articulado, a ser suhme-tido ao computador.rJ ' Vamos dar urn exemplo concreto. Nos ultimos anosforam concluidas varias pesquisas quantitativas sobre a. r . producao livreira francesa do seculo XVIII e sua difusao,- - - f com 0 justissimo prop6sito de"alargar 0 quadro da tradi-\ rf cional hist6ria das . id~ atraves do levantamento de uma

    ~ ~ enorme quantidade de titulos (quase 45 mil), sistematica-.. mente ignorados pelos estudiosos ate aquele momento.j S6 desse modo - comentou-se - poderemos avaliar a in-cidencia do elemento inerte, estatico, da producao livreira,e ao mesmo tempo entender 0significado de ruptura das" obras realmenre inovadoras. Urn estudioso italiano, Furio

    Diaz, fez algumas objecoes a essa abordagem: par urn lado,corre-se a risco de estar sempre descobrindo a 6bvio; por

    28

    outro, de se ater ao que, em termos hist6ticos, e engano-so. E deu um exemplo ironico: as camponeses francesesdo fim do seculo com eerteza nao assaltavam os castelosda nobreza porque tinham lido LIAnge Conducteur, masporque as "novas ideias mais ou menos implfcitas nasnoticias que ehegavam de Paris" iam ao eneontro de"interesses e [ 0 . 0 ] velhos raneores". E evidente que asegunda objecao (a outra e bern mais fundamentada) negade fato a existencia de uma cultura popular, como rambema utilidade das pesquisas sabre ideias e crencas das classessubalternas, repropondo a velha hist6ria das ideias do tipoexdusivamente elitista. Na verdade, a critica a set feitaas pesquisas quantitativas de hist6ria _ e outra:nao par serem pouco a eitas a elite e sim por ainda Q seremdemais. Elas partem do pressuposto de que nao 56 astextos como ate mesmo os tftulos, fornecem dados ine-, "quivocos. Ora, isso se torna cada vez menos verdadequanta mais 0 nivel dos leitores diminui. Os almanaques,cancoes, livros de piedade, vida de santos, tudo a queconstituia a vasto material da producao livreira, a n6ssurgem como estaticos, inertes, sempre iguais a simesmos.Mas como eram ljdos pdq ' ico de entao? Em uemedida a cultura redominantemente oral da ueles leito-res mter eria na rui.;ao do texto, modificando- de-l -0, e e ando mesmo a.a r naturezailferendas de Menocchio a suas : e O s nos dao urn exem-pia clare desse tipo delrcla.;ao com a texto, qual diverge

    ~or inteiro da dos leitores eu tos e hOJe. 'ais referenciasnos perrnitem medir a defasageIlb justamente hipotetizada. . - - - - -:::::..-:---'par Bolleme, entre as textos da literatura "popular" e a-modo como eram lidos por camponeses e artesaos, Noeaso de Menocehio a defasagem aparece com uma profun-didade decerto poueo comum. Porem, ainda uma vez, e

    29

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    11/13

    s : , " " ' ~ \ O J V ' - J .-predsamente essa sin&11~de que oferece indicacoespreciosas para pesquisas posteriores. No caso da hist6riaquantitativa das ideias, por exemplo, apenas a conscienciada va~iabilidade, rust6rica e social da ~.Q.Jejtgr po-deraornecer e maneira e etiva a remissaa ue umahistoria das ideias tambem qualitatioamente diversa.

    8.o A defasagem entre as textos lidos por Menocchio eo modo como ele os assimilou e os referiu aos inquisido-res indica que suas posicoes .nao sao redutlveis ou remis-slveis a urn ou u ro livro. Por urn lado, elas reentramnuma tradi_C3 ora nti iiissima; por outre, evocam umasene- rno s e aborados por grupos hereticos ,e J 6 t -a~ao humanist :. tolerancia, tendencia em reduzir a reli-

    gi a moralidade etc. Trata-se de uma dicotomia soaparente, que remete na verdade a uma cultura unitariaem que niio e possivel estabelecer recortes claros. Mesmoque Menocchio tenha entrado em contata, de ri18rleirarnais u menos me iada, com am ientes cu to fir-ma~6es em de esa a to eranci .. _ aesejrrde re-nova ao radical da sociedade apresentam urn t _r~1e nao parecem res ta 0 e ml u1ucia_s externas passiva-mente recebidas , As raizes de suas afirma Oes e desejos~stao .~~adas muito ? g e . lImn e ~ _ curo, qua.se10 ecifravel,

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    12/13

    vel escapar, como nao escapou Rabelais, a argumentacso~torna inaceitavel. Quem eram aqueles mal identificadosO"homens do seculo XVI"? Hurnanistas, rnercadores, ar -tesaos, camponeses? Gracas a nocao .interclassista de

    /"ment~lidade coletiva", os resultados de uma !nvestiga

  • 5/11/2018 O Queijo e Os Vermes - Carlo Ginzburg

    13/13

    za ao mais ou menos violenta das minorias e dos gruposdissidentes. 0 proprio Nienocrnlo ac3:'Eiouque11Ilaao.

    10.Dissemos que era impossivel efetuar recortes elatos

    na cultura de Menocchio. So com 0 born senso se pode iso-lar certos temas que, ja naquela epoca, convergiam comtendencies de uma parte da alta cuItura do seculo XVI e quese tornaram patrim6nio da cultura "progressista" dos se-culos seguintes: aspiracao a uma reforma radical da socie-dade, corrosao interna da religiao, tolerancia. Gracas atude isso, Menocchio estd inserido numa tenue, sinuosa,porem muito nitida linha de desenvolvimento que megaate n6s: podemos dizer que Menocchio e nosso antepas-. sado, mas e tambem urn fragmento perdido, que nos al-

    (/' cancou por acaso, de urn mundo obscuro, opaco, 0 qualn9f' 56 atraves de urn gesto arbitrario podemos Incorporar a' ( - , \ f nossa historia. Essa cultura foi destruida. Respeitar 0 re-

    {T '""' . siduo de indecifrabilidade que ha: nela e que resiste a~ i qualquer analise nao signiIica ceder ao fasdnio idiota doVi I{"exotico e do incompreensfvel. Significa apenas levar emconsideracao uma mutilacao historica da qual, em certo?V sentido, nos mesmos somos vitimas. "Nada do que aeon-

    \ teceu deve set perdido para a historia", Iembrava WalterBenJamm. as 56 a umanidade redimida 0 passado per-tence inteiramente". Redimida, isto e , liberada.

    34