O que estamos comendo?

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DOMINGO, 17 DE MARÇO DE 2013 - Carne de cavalo encontrada em produtos congelados na Europa provoca crise de confiança e levanta dúvidas sobre ingredientes usados na indústria alimentícia de todo o mundo Rebeka Figueiredo rebeka.fi[email protected] A pós os recentes es- cândalos sobre o uso de carne de ca- valo em produtos congelados no lugar de carne bovina, vendidos na União Europeia, dúvidas têm sido le- vantadas sobre o que a indús- tria alimentícia está colocando dentro de lasanhas, almônde- gas, hambúrgueres e outros pratos semiprontos vendidos em todo o mundo. A substituição da carne é apenas a “ponta do iceberg” do problema, segundo Car- los Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epi- demiológicas em Nutrição e Saúde da Faculdade de Saú- de Pública da Universidade de São Paulo. “A carne de cavalo mostra que a lógica é gastar o mínimo possível. Com aditivos para dar cor, cheiro e sabor, a indústria transforma qualquer coisa em produtos alimentícios, com longa durabilidade e lucros altíssimos”, alerta. Monteiro lembra que os pratos prontos, ou ultrapro- cessados, combinam dezenas de ingredientes, passam por vários fornecedores e muitas vezes são feitos com partes de animais que antes não eram usadas na alimentação devido à baixa qualidade. “Eles si- mulam alimentos, mas nunca serão saudáveis, não sabemos o que está sendo utilizado”, completa Carlos Monteiro. O escândalo europeu co- meçou em janeiro, quando a Irlanda anunciou a desco- berta de carne de cavalo em hambúrgueres vendidos no país e no Reino Unido como se fossem feitos de carne bo- vina. O caso já envolve cerca de 15 países. Dezenas de toneladas de produtos foram retiradas de supermercados e distri- O que estamos comendo A mistura pode ter sido feita para diminuir o custo. Não se sabe se foi de má-fé ou porque a rotulagem atual exige só a descrição dos principais ingredientes Roberto Arruda de Souza Lima, professor da Esalq/USP FOTOLIA ARTE: EDI EDSON 8 g eral

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DOMINGO, 17 DE MARÇO DE 2013 -

Carne de cavalo encontrada em produtos congelados na Europa provoca crise de confiança e levanta dúvidas sobre ingredientes usados na indústria alimentícia de todo o mundo

Rebeka Figueiredo

[email protected]

Após os recentes es-cândalos sobre o uso de carne de ca-valo em produtos

congelados no lugar de carne bovina, vendidos na União Europeia, dúvidas têm sido le-vantadas sobre o que a indús-tria alimentícia está colocando dentro de lasanhas, almônde-gas, hambúrgueres e outros pratos semiprontos vendidos em todo o mundo.

A substituição da carne é

apenas a “ponta do iceberg” do problema, segundo Car-los Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epi-demiológicas em Nutrição e Saúde da Faculdade de Saú-de Pública da Universidade de São Paulo. “A carne de cavalo mostra que a lógica é gastar o mínimo possível. Com aditivos para dar cor, cheiro e sabor, a indústria transforma qualquer coisa em produtos alimentícios, com longa durabilidade e lucros altíssimos”, alerta.

Monteiro lembra que os

pratos prontos, ou ultrapro-cessados, combinam dezenas de ingredientes, passam por vários fornecedores e muitas vezes são feitos com partes de animais que antes não eram usadas na alimentação devido à baixa qualidade. “Eles si-mulam alimentos, mas nunca serão saudáveis, não sabemos o que está sendo utilizado”, completa Carlos Monteiro.

O escândalo europeu co-meçou em janeiro, quando a Irlanda anunciou a desco-berta de carne de cavalo em hambúrgueres vendidos no

país e no Reino Unido como se fossem feitos de carne bo-vina. O caso já envolve cerca de 15 países.

Dezenas de toneladas de produtos foram retiradas de supermercados e distri-

O que estamos comendo

A mistura pode ter sido feita para diminuir o custo. Não se sabe se foi de má-fé ou porque a rotulagem atual exige só a descrição dos principais ingredientes

Roberto Arruda de Souza Lima, professor da Esalq/USP

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buidoras. Uma das princi-pais acusadas é uma empresa francesa, cuja licença sani-tária foi suspensa após sus-peitas de que teria vendido carne etiquetada como bovi-na, mesmo sabendo que era de cavalo. A carne teria sido comprada na Romênia, cor-retamente anunciada como equina.

“A Europa dificulta a im-portação de carne bovina e esse protecionismo determina altos custos, que inviabilizam a produção. Como não havia matéria-prima no mercado in-terno, a alternativa foi a fraude econômica”, acredita Antonio Jorge Camardelli, presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec).

Para Roberto Arruda de Souza Lima, professor da Esalq, escola de Agricultura ligada à USP, a disponibilida-de e o consumo de carne de cavalo na Europa podem ter facilitado o uso do ingrediente. “A mistura pode ter sido feita para diminuir o custo, não se sabe se foi de má-fé ou por-que a rotulagem atual exige só a descrição dos principais ingredientes. O problema é que a indústria não informou ao consumidor sobre a troca”, avalia. Lima acrescenta que a carne equina não traz riscos à saúde e custa entre 20% e 50% menos do que a bovina.

Camardelli garante que ca-sos como o da Europa nunca vão acontecer no Brasil por-

que a inspeção do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) é ri-gorosa. “Temos expectativa de que exportadores brasi-leiros ganhem espaço com o problema europeu, esta-mos prontos para atender à demanda com 100% de garantia de qualidade”. Em nota, o Mapa afirma que a fiscalização é feita dentro dos frigoríficos e que os produtos processados no Brasil pas-sam por exames periódicos. Além disso, todo produto de origem animal aprovado re-cebe o selo S.I.F. (Serviço de Inspeção Federal), que fica estampado no rótulo.

Desde o início da crise,

semanas. No caso das refeições congeladas, a queda nas vendas foi de 13%.

Para retomar a confiança dos consumidores, a Comissão Euro-peia pediu que os países do blo-co façam exames de DNA nos produtos a base de carne de boi e testes para detectar a eventual presença de fenilbutazona, anti--inflamatório que tornaria a car-

Com aditivos para dar cor, cheiro e sabor, a indústria transforma qualquer coisaem produtosalimentícios, com longa durabilidade e lucros altíssimos

Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas

Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da faculdade de Saúde

Pública da USP

ne de cavalo imprópria para consumo. Os resultados devem sair no dia 15 de abril. A agên-cia europeia de polícia, a Eu-ropol, vai coordenar as investi-gações criminais. O comissário encarregado da Saúde e dos Consumidores, Tonio Borg, so-licitou que a Comissão acelere medidas para que a rotulagem de produtos passe a indicar

CARNE EQUINA NÃO

OFERECE RISCO À

SAÚDE E CUSTA ATÉ

50% MENOS QUE

CARNE BOVINA, DIZ

PROFESSOR DA USP

o Ministério da Agricultura francês registrou queda de 5% na venda de alimentos congelados. Segundo estudo do Kantar Worldpanel (líder mundial em pesquisas sobre conhecimento e percepções do consumidor), as vendas de hambúrgueres congela-dos caíram 43% em super-mercados britânicos em 4

HAMBÚRGUER NO LIXO: Produção da empresa francesa Spanghero, acusada de vender carne de cavalo como se fosse bovina

CONGELADOS: Vendas de hambúrgueres caíram 43% em supermercados britânicos, indica estudo

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a origem da carne, e não ape-nas o tipo.

Além da Europa, um estu-do da Universidade de Stel-lenbosch revelou, no fim de fevereiro, que carnes de burro, búfalo e cabra foram vendi-das na África do Sul como se fossem carne bovina. De 139 amostras analisadas, 99 con-tinham traços de espécies não declaradas nas embalagens.

Risco à saúdeEm estudo publicado na

revista The Lancet em fevereiro, Carlos Monteiro e cientistas da Austrália, Nova Zelândia, Rei-no Unido e Tailândia afirmam que as corporações transnacio-

nais são as principais respon-sáveis pela epidemia de doen-ças não transmissíveis como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares devido ao aumento do consumo de álco-ol, tabaco e comidas e bebidas ultraprocessadas.

Segundo a pesquisa, a in-dústria de comidas prontas usa as mesmas estratégias das empresas de tabaco para conquistar novos mercados e modificar hábitos nutricionais da população, introduzindo produtos altamente calóricos e pouco nutritivos. O artigo defende que os governos regu-lem o mercado de alimentos ultraprocessados, com a taxa-ção de refrigerantes, biscoitos

e pratos prontos e semipron-tos. “Não somos contrários à indústria, mas as políticas pú-blicas devem facilitar o acesso a alimentos frescos e controlar a propaganda de produtos que produzem doenças”, explica Carlos Monteiro.

Gisela Savioli, nutricionista clínica funcional e autora do livro “Tudo posso, mas nem tudo me convém”, defende que a decisão sobre o que co-memos é mais importante para a saúde do que a genética. “As pessoas estão se alimentando mais de produtos com gluta-mato monossódico (que realça o sabor) e outros aditivos do que de comida de verdade. Em vez de se preocupar com a saúde,

elas vão gastar dinheiro para tratar doenças”, destaca.

A nutricionista recomen-da o consumo de alimentos frescos e orgânicos, a diver-sificação do cardápio e o pla-nejamento das compras. Já a equipe técnica da Embrapa Agroindústria de Alimentos diz que fraudes em alimentos são casos isolados. “As indús-trias de alimentos têm regula-mentos técnicos e legislações a seguir para que cada produto comercializado seja seguro”. Ainda de acordo com a Em-brapa, “não se pode atribuir os eventuais riscos do consu-mo inadequado ou excessivo de alimentos processados aos processos em si”.

PRODUTOS COM

ADITIVOS SÃO MAIS

CONSUMIDOS

QUE COMIDA DE

VERDADE, DIZ

NUTRICIONISTA

SEM AGROTÓXICO: Para uma alimentação saudável, nutricionista recomenda o consumo de alimentos frescos e orgânicos

COMPRA SAUDÁVEL: frutas e legumes frescos permitem a elaboração de um cardápio rico e diversificado, afirma autora do livro "tudo posso, mas nem tudo me convém"

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