O pyr de Aquiles e de Heitor - Otium Et Negotium 2007 93-100

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O TTTP DE AQUILES E DE HEITOR: UNIDADE VERSUS DISSEMELHANçA Pedro Braga Falcão CEC/U. LISBOA [email protected] Q uem é Aquiles; quem é Heitor? O seu canto é uno? A sua voz é uma mesma, que entoa o canto de um só herói, a "ideia" de herói? São sinónimos ou an- títese? Proponhamos aqui interrogações, baseadas nos dois seguintes excertos da Ilíada: (...) ó 6ap' eaôope 4>aí8i|j.os' "Eicrap VUKTL 9orf dTCÍXauTOs úrrüímcr \á\me Se x a ^K<Â a|iep8aXecü, TòV eeoro Trepi xpoí, Soià Se x e P CTL 8oup' ê'xev OUK ãv TLJ uiv epuraxoi ávrifiokrpaç vóacJH Geojy, ôT' eaáXTo iruXas' m>pi 5' ôaae ôeôrJEi. KeKXeTO Se Tpojeaaiv éXi£dn.evos KCLQ' óULXOV Teixos úrrep|3aíveiv TOL 8' ÒTpuvovn. TTíOOVTO- ai/roca 8' oi uèv Teixos wepPaaav, oi Se KOT' atrás TToir|Tàç eaexuiTO iruXas' Aavaoi 8' e<})òpr|9ev i/rjas dvà yXacjwpds, õuaSos 8' dXíaoros eTiíxOn. 7/zW*, XII, 462-471 (...) Então o magnífico Heitor, de aspecto semelhante ao da rápida noite, avançou. Luzia com as terríveis armas de bronze que lhe cingiam o corpo, trazendo na mão duas lanças. Ninguém conseguiria travá-lo, excepto um deus, quando ele transpôs a porta aqueia. Com fogo luziam seus olhos. Voltando-se para a multidão, exortou os Troianos a saltar os muros: e eles obedeceram a quem assim lhes exorta. Nesse mesmo instante galgam os muros, e precipitam-se sobre a sólida porta. Os Dánaos fogem então, aterrorizados, para as côncavas naus, e um clamor sem fim eleva-se. II 2/rfj 8' em Tdc}>pov khv dnò Teíxeoç, ou8' es Axctioi)s p.ícryeT0 - |JX|Tpòs ydp TnjKivfjy wTTÍ£eT' ét>eTprjv êVôa crràs rjua', dmTrepGe Se üaXXds AGrjuri 462 465 470 462 465 470 215 Otium et Negotium - As Antíteses na Antiguidade 93

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  • O TTTP DE AQUILES E DE HEITOR: U N I D A D E VERSUS D I S S E M E L H A N A

    Pedro Braga Falco CEC/U. LISBOA

    [email protected]

    Quem Aquiles; quem Heitor? O seu canto uno? A sua voz uma mesma, que entoa o canto de um s heri, a "ideia" de heri? So sinnimos ou an-ttese? Proponhamos aqui interrogaes, baseadas nos dois seguintes excertos da Ilada:

    (...) 6ap' eaope 4>a8i|j.os' "Eicrap VUKTL 9orf dTCXauTOs rrmcr \\me Se xa^ Kpi 5' aae erJEi. KeKXeTO Se Tpojeaaiv Xidn.evos KCLQ' ULXOV Teixos rrep|3aveiv TOL 8' Tpuvovn. TTOOVTO-ai/roca 8' oi uv Teixos wepPaaav, oi Se KOT' a t r s TToir|T eaexuiTO iruXas' Aavaoi 8' epov khv dn Texeo, ou8' es Axctioi)s p.cryeT0- |JX|Tps ydp TnjKivfjy wTTeT' t>eTprjv Va crrs rjua', dmTrepGe Se aXXds AGrjuri

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    Pedro Braga FalcoO de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhana, in Adriana Freire Nogueira (ed.), Otium et Negotium: Antteses na Antiguidade, Lisboa, Vega (2007), pp. 93-100

  • Pedro Braga Falco

    4>9yaT'- crrdp Tpeouiv ev dcrrreTOv cjpae Ku8oip.v. "Qs 8' T ' dpLOiXr) 4>wvf|, erre T ' Laxe o~dXmy oTv TrepiTTXo|ieVijjv 8r\ix>v TT 9up.opaicrreW, ais TT' dpLCrjXri 4>JI/T| yeVeT' AaK8ao. OI 8' ai? oiiv diov TTa xdXtceov AididSao, raaiv pv9T] 9up.- Tp KaXXTpLxe? iTrrror d'i|i 'xea TpTreov ooovro ydp dXyea 9i>|iq~-T|VLOXOL 8' eiciTXrfyev, enei L'8OV drauaTov mJp Seivv Trp Kec^ aXTf |j,ya9uVou riXeLOVos Saidp-evov T S 8aCe 9e YXauKOJTTL? 'A\\vr\. Tpi \iv rnp Taipou \ieyX L'axe 8105 'AxLXXeii, Tpi 8' eicuKTJ9r|aav Tpojes KXeiTo T' encoupoL-Ilada, XIII, 215-229

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    Traduo: Deteve-se ento [Aquiles] no fosso, dirigindo-se para as muralhas, 215 no se misturando com os Aqueus: honra assim as sensatas ordens da me. Detendo-se a gritou, e para longe brama tambm Palas Atena: Eleva-se j um clamor imenso junto dos troianos. Tal como a retumbante voz que o salpinx faz ressoar quando o inimigo quebrantador de nimo cerca a cidade, 220 assim era a retumbante voz do Ecida. Assim que ouviram o brnzeo brado do Ecida, a todos se lhes quebrantou o nimo: os cavalos de belas crinas puxam os seus carros para trs: prevem no seu nimo desgraas. Os cocheiros ficam estupefactos, ao verem o incessante fogo terrvel 225 que alumia a cabea do Peleida de grande nimo. Foi Atena, a deusa dos olhos garos, quem lha alumiou. Trs vezes gritou ingentemente o divino Aquiles sobre o fosso, trs vezes se atemorizaram os Troianos e seus ilustres aliados.

    A) Da unidade do gesto de Aquiles e Heitor. Temos nestes dois excertos, que ora apresentamos, descrito o gesto de dois heris Heitor e Aquiles. Ambos so os alicerces da esperana de vitria de Troianos e Aqueus. Aparte isto, atente-se que ambos os trechos representam a sada definitiva, no seu sentido etimolgico de "impor um fim", dos dois heris para o prlio. Tomemos Heitor. Se observarmos as consequncias do arrojo guerreiro que o de transpor a slida porta das muralhas dos Dnaos, veremos o porqu de dizermos que tal passo do canto XII representa a sada definitiva de Heitor para o combate. Seno vejamos: quais vo ser as conse-quncias de Heitor passar as amuradas aqueias? Primeiro que tudo, a grima entre os Aqueus. Segundo, a busca de auxlio em Aquiles. Terceiro, Aquiles envia Ptroclo. Quarto, Ptroclo morre. Quinto, a clera de Aquiles muda na direco de Heitor.

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  • O Uvp de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhana

    Sexto, Heitor morre. Ergo, o "incio da morte" de Heitor comea neste trecho. Mas tambm Aquiles sai definitivamente para o combate neste excerto. Aquiles

    WKU|iopos, e, ao lanar-se ao combate com tal cantada violncia, a sua morte do-brar com ele: este o ponto de viragem no canto de Aquiles, a partir deste gesto, o heri entra definitivamente no seu destino: vingar Ptroclo a soldo da prpria vida. O fortssimo com que ataca este seu acorde s pode levar a uma nica cadncia - a sua morte - nem poderia, a partir deste momento, deixar incompleta a sinfonia que assim comea; ou seja, a sua melodia comea aqui e na prpria aggica da pea seria impossvel interromp-la. No seria aqui o momento apropriado para discutir aquilo que sempre sentimos quando lemos este excerto no contexto global da Ilada: que estamos perante o clmax, o ponto culminante do crescendo musical que entoa o canto de Aquiles, que todavia no coincide com o clmax da violncia (talvez a barbrie junto a rio Escamandro), o que causa uma certa estranheza. Referimo-nos contudo a um clmax de fora potica, de sentido e de luminosidade.

    Procuremos agora encontrar pontos de encontro entre os dois excertos. De um ponto de vista de proporo aritmtica, repare-se nos seguintes cantos: XII-XVI-XVIII-XXII - vo passar-se exactamente quatro cantos desde da passagem de Hei-tor pelas muralhas at morte de Ptroclo, e outros tantos desde o blico aulido de Aquiles at morte de Heitor. Por outro lado, que reaco provocam os dois heris? Heitor, ao aparecer num imenso fulgor e ao exortar os troianos a transpor a porta aqueia, vai provocar um tumulto sem fim, duaSos 8' d\acn~o. Aquiles, ao bradar ingentemente e ao ser visto com uma coroa de fogo, vai igualmente pro-vocar um clamor incessante, daireTov icuSoifiv (XVIII, 218). Como so descritos os dois heris? Em ambos reside a fora do bronze: Heitor brilha com a luz do terrvel bronze \\me 8e ya\Kb)^ afiepaXq (XII, 463-464), e a voz do Ecida de bronze, OTTCX y^Ktov (XVIII, 222). Por outro lado, repare-se que ambos os he-ris surgem comparados a manifestaes da natureza: Heitor comparado presta noite l/mi Gcrrf (XII, 463) e a cabea de Aquiles luz com um fogo incessante, K0|j.aTOV mJp (XVIII, 225). A comparao de uma personagem com a "noite r-pida" inusitada nos textos homricos, como sublinha Willcock1: em toda a Ilada e Odisseia s h duas comparaes relativas noite: na Ilada I, 47, Apolo, trazendo a praga, vem como a noite para as naus gregas; na Odisseia, XI, 606, Hracles avana entre os fantasmas como a escura noite, com o arco pronto a disparar. Mas, como se v, nenhum delas to sugestiva como esta comparao relativa rpida noite, onde o adjectivo empresta celeridade prpria identificao de Hei-tor com a Noite. E quanto ao fogo incessante que rodeia a fronte de Aquiles, este uma imagem suficiente para causar pnico nos prprios cavalos e nos seus cocheiros repare-se que este verso formado quase somente por ps dactlicos, o que diz bem da reaco que provoca: um medo sbito, toste como a noite de Heitor. Temos ento Heitor e Aquiles, heris prximos na medida em que em ambos reside a fora

    ' M. M. Willcock, A Companion to the Iliad, The University of Chicago Press, Chicago-London, 1976, p. 143.

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  • Pedro Braga Falco

    da terra: a noite e o fogo. esta fora telrica da vrj e do mJp que, julgamos ns, aproxima os dois heris, e os torna agentes de um v unificador que os engloba: a prpria natureza. Por outro lado, ambos luzem com o fogo, TnJp. Os olhos de Heitor brilham com o fogo, Trupi 8' ooe erjei, e um fogo alumia a cabea de Aquiles.

    B) Da dissemelhana do gesto de Aquiles e de Heitor. Mas ser o mJp de Aquiles o mesmo que incendeia os olhos de Heitor? uma importante questo, especialmente se tomarmos mJp metaforicamente, isto , o fogo de alma, alento, arrojo mavrcio. Isto porque se analisarmos o trecho do canto XVIII podemos encontrar na imagem de Aquiles certos pormenores que no encontramos no do canto XII. Seno veja-mos: relativamente claro que a atitude guerreira dos dois heris diferente Aqui-les no se mistura com os Aqueus, nem os exorta ao combate, ao contrrio de Hei-tor. Repare-se que neste excerto s h referncia aos Aqueus para dizer precisamente que o heri no se mistura com ele; no do canto XII, pelo contrrio, h uma clara referncia ao povo troiano, que em conjunto passa as muralhas do Dnaos. Assim, Aquiles aparece s, e s, o que aparentemente lhe d um protagonismo diferente do de Heitor, que representa um povo e no um indivduo. Por outro lado, o clamor que se eleva num e noutro excerto de origem diferente. O dpaSo (XII, 471) que sobrevem no unicamente acirrado por Heitor, mas por ele e pelo seu povo. J o KUOLUOV (XVIII, 218) que se eleva aos cus pura e simples consequncia de todos verem a coroa de fogo inextinguvel de Aquiles. O Ecida s, no chefe nem pas-tor de tropas, o filho de Pramo, esse, o seu povo, o timoneiro e guia. Por outro lado, repare-se no carcter esttico de Aquiles, repetido em duas formas verbais do verbo l'crrr||jr cmr| (XVIII, 215) e or (XVIII, 217). Aquiles est parado, imvel, enquanto o primeiro verbo associado a Heitor eorope (XII, 462) - Heitor avana. Aquiles detm-se enquanto todos os troianos recuam, aterrorizados.

    J as consequncias do gesto de Aquiles parecem-nos ser diferentes: o terror que se experimenta no se vive s no mundo humano, como no fragmento do canto XII, mas tambm no mundo animal: os cavalos de belas crinas puxam os seus carros para trs, prevendo no seu nimo desgraas. A ideia de que um heri, pela simples viso, transmite tal terror que at os cavalos se arreceiam , sem dvida, mais superlativa do que o 'simples' medo dos Aqueus ao verem Heitor e o seu povo renhir com eles, no final do canto XII. Alis, se continussemos a ler para alm do verso 229 do canto XVIII, verificaramos que doze dos melhores troianos morreram pela sua prpria mo, matando-se com as suas armas involuntariamente quando tentavam fugir atabalhoadamente (XVIII, 230-231): e isto tudo s simples viso do filho de Peleu.

    Mais h mais evidncias deste carcter bem mais superlativo do comportamen-to de Aquiles em relao ao de Heitor. Repare-se que no texto do canto XVIII aparece repetida quatro vezes em apenas quinze versos a palavra Gipo compos-tos dela, algo a que tentmos ser sensveis na nossa traduo, repetindo a palavra "nimo". A repetio deste vocbulo d uma obriga-nos a visualizar e a ouvir (sim, porque um terror que se ouve) o pavor troiano ao ver o filho de Ttis - um terror

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  • O Ylvo de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhana

    movimentado, diro, premonitrio. Tambm o smile do aaXmv (XVIII 219-221) traz ao texto sons afins - o som da guerra, da morte, da destruio, do cerco de uma cidade. Ideia presente tambm na inexorvel repetio do Tp - que sugere frenesim, movimentao surda.

    Mas retomemos a nossa questo anterior - o TnJp de Aquiles o mesmo que incendeia os olhos de Heitor? Posto o que dissemos, podemos tentar responder pergunta. Pensamos que a grande diferena entre o gesto dos dois heris, do seu TnJp, reside fundamentalmente na qualidade de tais fogos. Repare-se que no trecho do canto XVIII h uma clara relao de Aquiles com o divino. Aquiles, para j, oio (XVIII, 228) - e o fogo que lhe alumia o rosto de origem divina: foi Atena quem lho deu (XVIII, 227). Atena no se limita porm a ter um papel passivo na aco; no, no grito de Aquiles existe algo de divamente sinfnico, pois Atena grita com ele (ovv' (j)wvr)), conferindo uma musicalidade divina ao seu brado. De igual modo, Aquiles no se mistura com os Aqueus, honrando as sensatas ordens da me Ttis. Sendo assim, o TTp de Aquiles sem dvida divino, pelo menos na origem. E ser tambm o de Heitor? No julgamos; se Aquiles So, Heitor "somente" c|)a8o|os (XII, 462), e todos o temem, excepto os deuses, vac()i Gewv (XII, 466). Se a luz incessante de Aquiles de origem divina, a de Heitor emprestada pelo bronze, xa^KQ>. 0"|iep8aX)/ (XII, 463- 464). E se Aquiles grita, r\vo' (XVIII, 217), Heitor apenas exorta, KeicXeTO (XII, 467).

    C) Do porqu de tal dissemelhana. No entanto, porque no o mesmo o fogo o que alumia Aquiles e Heitor? Que o mesmo do que perguntar, porque Aquiles Aquiles ou Heitor Heitor? Como se define o seu herosmo? Podem ambos ser predi-cados de "heri"? Para responder a esta pergunta, propomos distinguir dois tipos de heris na Ilada: Aquiles, e todos os outros. Com tal provocao (mais no o pode ser no contexto de uma curta comunicao) queremos dizer que Aquiles s no seu gesto. Aquiles o heri que mais se assemelha a um Gilgamesh. Mas porque dize-mos isto? No podemos fundamentar uma intuio, ou melhor, podemos funda-mentar aquilo que levou nossa intuio, mas nunca a intuio em si. A verdade que sempre que pensamos no gesto de Aquiles, ou de Gilgamesh, pensamos em fora, em possesso divina, de evQovoiao\is que muito dificilmente poderemos caracterizar. A dificuldade desta caracterizao assenta no facto de, como inteligen-temente aponta Parry2, "what is a characteristic of the Iliad, and makes it unique as a tragedy, is that this otherness of Achilles is nowhere stated in clear and precise terms". Este otherness de Aquiles parece-nos evidente, at pelo facto de o grande esparto que liga a aco da Ilada a |ifjvi do heri, e os seus dois momentos - I^J] vis por Agammnon, desviada em prjvi por Heitor. Mas onde est esse otherness, usando o feliz termo de Parry? Pensamos que este reside no facto de existir algo de

    2 A. Parry, "The Language of Achilles", in The Language and Background ofHomer, G. S. Kirk (ed.), Cambridge-New York, Heffer-Barnes & Noble, 1967, p. 53.

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  • Pedro Braga Falco

    "daimonacd" na aco herica deste ser. Porque dizemos isto? Comecemos pela prpria filiao dos heris. Aquiles filho de Ttis. No concordamos com interpre-taes simplistas como , pensamos, a posio de Bowra; de facto, num estudo comparativo que este autor tem sobre as idades dos heris, o autor diz a certo mo-mento: sometimes, like certain Greek heroes, they [the heroes] are half-divine in origin; there is often something unusual or miraculous in their birth. But this is an incidental and almost irrelevant, no more than a tribute to their eminence by trying to explain it as a matter of breeding3. No podamos discordar mais. O facto que no acidente (no sentido aristotlico) o facto de Aquiles e ser filho de uma deusa; se lhe retirassem em ltima anlise esta qualidade (o processo epistemolgico de demonstrao do ca>[J.(3e|3r|KC)S aristotlico), Aquiles deixaria de ser Aquiles. Pelo contrrio, se lhes retirassem o seu famoso escudo, Aquiles continuaria a ser Aquiles. Escudo acidente (cnj|ipePqK), filiao divina substncia (oitaot). Porqu? Por-que, em ltima anlise, define o algo a que o discurso pico se reporta, a excelncia que no adquirida, mas nasce com o heri, como alis contraditoriamente admite o prprio Bowra: the Greek explained this [the heroes' power] by saying that they possessed a higher degree of inborn power, and indeed it is this which makes a hero, wherever he is to be found4. A forma de explicar este 'inborn power' no uma forma nem intelectual, nem potica, nem mitolgica, nem sentimental, uma for-ma teolgica: Aquiles Aquiles por ter sido tocado "geneticamente" pelos deuses; a sua filiao a primeira prova da sua gratia divina. E nenhum outro heri na Ilada " tocado" de tal forma; nenhum outro heri "canta com" os deuses. Clarifiquemos. Esta otherness de Aquiles reside, em nosso entender, na qualidade da sua ppL. No contexto da epopeia, utilizar o termo (3pL requer um certo cuidado. Defendemos que existe dois tipos de u(3pi na Ilada. A primeira, chamemos-lhe " u^pi huma-na", caracterstica de personagens como Heitor ou Ptroclo, e os seus gestos de arrogo definem-se por cegueira herica, ou seja, pela forma como no so capazes de interpretar os sinais que lhes so enviados devido excessiva confiana que tm no momento do seu apogeu blico Heitor no soube interpretar o que representa-va para ele vestir as armas de Aquiles, depois de despojar Ptroclo, assim como P-troclo no soube parar o seu furor guerreiro, precipitando-se sobre Heitor, no se-guindo os sinais dados pelo seu prprio amigo, Aquiles. E todo este comportamento hybristico assenta em gestos simblicos, pequenos na dimenso, embora posteriormente grandes no sentido - vestir as armas do emulo, avanar um pouco mais na refrega. fundamentalmente uma hybris de erro, isto , de no saber interpretar, um erro de clculo (duapTa). O excesso de Aquiles completamente diferente. A sua hybris csmica, na medida em que todos os sinais so correcta-mente interpretados por ele. Alis, o erro difcil, quando a prpria me, uma deusa!, lacrimosa lhe diz Ters ento uma morte rpida, meu filho, ao falares as-

    3 C. M. Bowra, "The Meaning of a Heroic Age", \n~Vhe Language and Background ofHomer, G. S. Kirk(ed.), Cambrid-ge-New York, Heffer-Barnes & Noble, 1967, p. 23. 4 Bowra, ipso loco.

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  • O Hvp de Aquiles e de Heitor: Unidade versus Dissemelhana

    sim! Pois a morte est iminente para ti, junto com Heitor (XVIII, 95-96), ao que Aquiles responde: Que eu morra agora mesmo, se no tentasse socorrer o meu companheiro j morto. Ou quando Xanto, o seu cavalo, lhe vaticina uma morte em breve, ao que ele responde: Xanto, porque me vaticinas a morte? No precisas. Isso bem eu prprio sei que de seguida o destino me far perder, longe do amado pai e me: mas com certeza no descansarei enquanto no levar os troianos ao fastio da guerra (XIX, 420-423). Este argumento de "pr-conhecimento" de Aquiles discutvel, uma vez que Heitor tambm o tem (Ptroclo diz-lhe, morrendo, no vivers muito tambm; j de ti se acercou a morte e o destino potente, que te faro subjugar pelo brao ilustre de Aquiles Ecida (XVI, 853). No entanto, pensamos que Heitor aceita esse destino, mas no se cola a ele, se me perdoam a expresso usada pelo Professor Jos Pedro Serra, como o caso de Aquiles, ou seja, divisa o seu destino, mas no se lhe entrega heroicamente; o gesto de vestir as armas de P-troclo pequeno, humano, um "pequeno excesso", embora grande, como j dissemos, nas consequncias. Pelo contrrio, os excessos de Aquiles so enormes, fisicamente enormes, enormes em termos de sentido. Mesmo a prpria conscincia da sua morte; Clarke, numa exmia obra sobre os conceitos de alma e corpo em Homero, soube como ningum intuir a forma nica como Aquiles encara a sua morte: comentando IX 321-22, um dos momentos mais fortes no discurso de Aqui-les a Ulisses. Although he invokes it at a time when his mood has been dictated by yielding to his passions in the most intense self-awareness, even here the core of the images is that the tyvyf\ will be lost in death, not that it underlies emotion, thought, or active life"5. E esta torva conscincia , pensamos, bem prpria deste heri; ela encara a prpria morte de uma forma diferente, pois v o mundo de forma diferen-te ele foi tocado por gratia vertical, isto, vinda de cima. Tudo isolado no seu gesto; ele vindima um imenso nmero de troianos, turva a cor do rio com a sangue das vtimas, investe contra a prpria natureza e a sua ordem a i3'Ppis de Aquiles uma TJPPL csmica. Tudo grande na sua clera funesta; o arrastar do corpo de Heitor em volta do tmulo de Ptroclo, a prpria morte de Heitor, a bestialidade da carnificina que vai provocando, o momento em que se detm sobre o fosso, como j vimos. Os seus excessos perturbam no s a ordem humana, perturbam a ordem csmica - e esse o verdadeiro motivo, no nosso entender, da sua iminente morte - ordem csmica porque a forma como ele humano no humana: as suas sevcias tm algo de daimonaco, quer pela sua filiao divina, quer porque toda a sua aco desmedida, pois excede a medida humana, por natureza horizontal, cronolgica. Aquiles KOtpos, Heitor xpvo. Se nos conseguirem demonstrar que a '|3pi de Heitor semelhante de Aquiles, ento admitiremos que o seu mJp semelhante. Acentumos a distncia que vai de Aquiles a Heitor. Mas ser mesmo verdade que s existe um heri na Ilada?. Queramos aqui dizer que sim; o tempo que dispomos

    5 M. Clarke, Flesh and Spirit in the Songs ofHomer: A Study ofWords and Myths, Oxford, Clarendon Press, 1999, p. 57. O autor no defende aqui a particular conscincia de Aquiles em relao morte, somos ns que interpretamos as suas palavras dessa forma.

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  • Pedro Braga Falco

    e o bom senso leva-nos a dizer que no. Vivemos em permanente anttese, em rela-o a ns prprios; vivendo queremos ser Aquiles, anelamos porm por igualmente ser Heitor; somos heris quando levamos aos limites da nossa dpeTTJ os dois plos do nosso querer. Ser Aquiles sem dvida tarefa dissonante, porque no est em ns a deciso de o ser. Ser Heitor igualmente sublime, difcil, mas no csmico: de-pende exclusivamente de ns, embora, paradoxalmente, a um deus seja impossvel ser Heitor. Quanto a mim, gostaria de ter provado do doce clice materno o damon de tudo; teria preferido fixar-me no sol do excio sob a lua que alteia - participar em passado futuro na grata guerra de Tria.

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