O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA EM...

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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO TESE DE DOUTORADO O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA EM CRIANÇAS NA FASE INICIAL DE ALFABETIZAÇÃO ESCOLAR Cláudia Maria Mendes Gontijo Campinas 2001

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEMESCRITA EM CRIANÇAS NA FASE INICIAL DE

ALFABETIZAÇÃO ESCOLAR

Cláudia Maria Mendes Gontijo

Campinas2001

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Agradecimentos

Ao professor Sérgio, pela crença na realização do estudo e pelas orientações.

Ao professor Pino, pelos sábios ensinamentos.

À professora Joelma que abriu as portas da sua sala de aula para a realização deste

estudo.

Às crianças que participaram do estudo, por me ensinarem como aprendem a ler e a

escrever.

Aos meus pais, José Elias e Vilma, pela vida.

Às minhas filhas, Larissa, Lays e Luana, sempre preocupadas em me possibilitar

condições para a escrita deste trabalho.

Ao Leonardo, interlocutor atento e incansável.

À Alina, leitora dedicada.

Aos amigas, Marisa, Amarílio e Tony, que tanto me incentivaram.

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SUMÁRIO

Resumo vii

Abstract ix

Introdução 1

Capítulo I - Trajetória: persistência de questões 4

Capítulo II - O problema 9

Capítulo III - Definindo a perspectiva teórico-metodológica 13

1 O biológico e o cultural no desenvolvimento infantil 13

2 Sobre o processo de apropriação 19

3 Mediação semiótica 29

4 Com referência à metodologia 34

4.1 Implicações metodológicas 37

Capítulo IV - Escola, rituais, professora e crianças 40

1 A escola 40

2 Mais rituais 43

3 As professoras da classe 48

4 As crianças 49

5 O trabalho de alfabetização desenvolvido na sala de aula 53

Capítulo V - O processo de apropriação da linguagem escrita 64

1 O registro da brincadeira 64

1.1 A escrita é usada como recurso para a memória 72

1.2 As crianças não se relacionam com a escrita para lembrar o texto 107

1 O registro do reconto 124

2.1 A escrita é usada como recurso para a memória 126

2.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o reconto 165

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3 O registro do poema 172

3.1 A representação de quantidades por meio de numerais e por extenso 174

3.2 Representações para as palavras cuja grafia as crianças não dominava 183

3.3 Interpretação dos artigos e da preposição ”de” 191

4 O registro do texto sobre a escola 195

4.1 As crianças se relacionavam com a escrita para recordar o texto 196

4.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para recordar o texto 212

5 O registro do texto sobre a história em seqüência 222

Capítulo VI - Considerações finais 238

Referências 257

ANEXOS 261

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Resumo

Este trabalho teve por finalidade investigar os processos que se constituem nas

crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a estabelecer uma relação

funcional com a escrita, ou seja, quando incentivadas a usar a escrita com função mnemônica.

Dessa forma, partimos da concepção de que a linguagem escrita, usada na nossa sociedade, é

um sistema de signos que serve de apoio às funções intelectuais, especificamente à memória.

Para a realização da pesquisa, partimos da observação do trabalho realizado na sala de aula,

pela professora e crianças de uma classe da primeira série do Ensino Fundamental. Após as

observações, planejamos, juntamente com a professora da classe envolvida no estudo, cinco

atividades de produção oral de textos e seus registros pelas trinta e nove crianças, sujeitos do

trabalho, para observarmos como se relacionavam com a escrita. Assim, não organizamos,

previamente, frases e palavras a serem escritas pelas crianças com o objetivo de intervir no

modo como escreviam, mas criamos situações em que elas eram incentivadas a estabelecer

uma relação funcional com a escrita. Com base nas atividades desenvolvidas pelas crianças

durante o ano letivo, concluímos que, no início, a “criança assimila a experiência escolar de

forma puramente externa, sem entender ainda o sentido e o mecanismo do uso de marcas

simbólicas” que constituem o uso funcional das letras do alfabeto para recordar, transmitir

idéias ou conceitos. Por isso, a criança opera por meios naturais: imita os atos dos adultos ao

escreverem e apenas rememora o texto sem o auxílio da escrita. Logo depois, aprende as

características externas da escrita e a tentativa de reprodução dessas características

proporciona uma mudança na atividade gráfica. Então, a escrita deixa de ser aleatória, casual e

indistinta para ser organizada a partir de critérios: ao escrever, é necessário colocar espaços

em branco entre os segmentos de letras, é necessário variar as letras em cada cadeia e, em um

determinado momento, a criança grafa os enunciados do texto com uma quantidade mínima de

letras. Desse modo, ela reproduz a forma externa da escrita, mas ainda não compreende que

ela é um meio para recordar os significados anotados; por isso rememora o texto sem o auxílio

da escrita. No momento em que a criança passa a organizar as grafias a partir da análise das

unidades da linguagem oral, a quantidade de letras registradas e a escolha das letras a serem

escritas passam a ser reguladas pelas relações que estabelece entre o oral e o escrito. Os

símbolos alfabéticos passam a ser empregados consciente e voluntariamente para representar

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as unidades da linguagem oral, o que não possibilita que a criança estabeleça uma relação

funcional com a escrita. A presença de determinados fatores no conteúdo dos textos que foram

produzidos oralmente pelas crianças propiciou o surgimento de símbolos indiferenciados que,

por sua vez, possibilitaram o uso da escrita como recurso para lembrar os enunciados do texto

que motivou o registro. Finalmente, observamos que a aprendizagem do caráter alfabético da

escrita não proporciona um aprimoramento brusco no modo como as crianças se relacionam

com a escrita para lembrar o texto; para tal, é necessário que aprendam os padrões ortográficos

que regem a escrita alfabética.

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Abstract

This work had the objective of investigating the processes triggered in children during the

initial phase of literacy, when encouraged to establish functional relation with writing, that is,

upon receiving incentive in using writing in its mnemonic function. Being so, we initially

assume that written language as used within society, is a sign system which supports the

intellectual functions, more specifically the memory. In order to achieve this study we initially

observed the type of class work occurring between the teacher and the children in a first grade

elementary classroom. Observations made, we planned five activities along with the teacher

involved in the study, for oral production of texts and the written accounts of the 39 children

involved in the study, seeking to analyze how they deal with the writing task. Being so, we

chose not to previously set words and phrases to be written by the children so as not to

interfere in the writing process. On the other hand, the children were stimulated in establishing

a functional relation with writing. Based on the activities which were developed by the

children over the school year, we concluded that, in the beginning, the “child assimilates the

scholastic experience in a purely external manner, yet not understanding the sense and

mechanism in the use of symbols” which constitute functional use of the letters of the alphabet

in order to register or transmit ideas and concepts. This is why the child operates through

natural means: imitating adult acts upon writing and simply being prompted through a text

without written aid. Shortly thereafter, the child learns the external characteristics of writing

and the attempt to reproduce these characteristics fosters a change in graphic activity. Thus,

writing ceases to be random, casual and indistinct to become organized according to standards:

upon writing, it is necessary to leave spaces in blank between the segments of letters, it is

necessary to vary letters in each chain, and at a certain point in time, the child etches the

expression of the text using a minimal amount of letters. In this manner, the child reproduces

the external form of writing, though he/she does not understand that it is a means for

registering the meanings; and then simply remembers the text without depending on written

aid. From the moment the child begins to organize its graphics according to analysis of the

units of oral language, the amount of letters registered and the choice of letters to be written

become regulated by the relations he/she establishes between oral and written language.

Alphabetic symbols start being used in a conscious and voluntary manner in order to represent

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the units of oral language, which does not necessarily enable the child to establish a functional

relation with writing. The presence of certain factors within the content of the texts which

were orally produced by the children, fomented the appearance of differentiated symbols

which in turn enabled the use of writing as a resource for remembering the expressed within

the text which motivated the account. Finally, we observed that the learning of the alphabetical

character of writing does not furnish a sudden excellence in the way in which children relate

with writing in remembering the text; in order to do so, it is necessary that they learn the

orthographic patterns which rule alphabetic writing.

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Introdução

A partir da década de 80, com a divulgação, no Brasil, dos estudos de Ferreiro &

Teberosky sobre a gênese da leitura e da escrita, as concepções tradicionais de alfabetização,

baseadas na visão de que a aprendizagem da linguagem escrita é um processo de associação de

símbolos gráficos a sons da fala e, por isso, um processo mecânico de repetição de letras ou

sílabas e seus respectivos segmentos sonoros, passaram a ser questionadas com mais

intensidade.

A crise histórica da Psicologia, principalmente da objetivista, e o reiterado fracasso

escolar das crianças de escolas públicas na fase inicial de alfabetização contribuíram para que

a teoria de Ferreiro & Teberosky, orientada para pressupostos interacionistas, na perspectiva

psicogenética, encontrasse campo fértil para divulgação e aceitação no meio educacional. As

próprias pesquisadoras assinalaram que as elaborações que construíram eram as primeiras no

sentido de “proceder a uma revisão completa de nossas idéias sobre a aprendizagem da língua

escrita, a partir das descobertas da psicolingüística contemporânea” (1989, p. 25) e também as

primeiras a vincular esses conhecimentos “com o desenvolvimento cognitivo, tal como é visto

na teoria de Piaget” (p. 25).

Além disso, apontam que essa nova forma de conceber a alfabetização, considerando o

sujeito que aprende e, portanto, a sua atividade, tem “como fim último o de contribuir na

solução dos problemas de aprendizagem da lecto-escritura na América Latina, e o de evitar

que o sistema educacional continue produzindo futuros analfabetos” (Ferreiro & Teberosky,

1989, p. 32). Entretanto, as expectativas de resolver os problemas denominados por Ferreiro &

Teberosky (1989) de seleção social e expulsão encoberta gerados pela distribuição desigual

de oportunidades educacionais não se concretizaram e muitas crianças que são matriculadas

nas escolas continuam sem aprender a ler e a escrever, porque a solução para o problema do

fracasso escolar durante a alfabetização exige não apenas mudanças nas concepções de ensino

e aprendizagem, mas demanda, sobretudo, empenho e vontade dos Poderes Públicos no

sentido de garantir as condições para que o sistema educacional possibilite a efetiva

aprendizagem.

No entanto, é evidente que não podemos deixar de ressaltar a contribuição da teoria

psicogenética de aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que essa teoria contribuiu para

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romper as concepções tradicionais de aprendizagem da linguagem escrita e possibilitou que os

professores alfabetizadores começassem a refletir sobre a participação da criança no processo

de aprendizagem e sobre o trabalho que realizavam para ensinar as crianças a ler e a escrever.

O estudo que realizamos sobre a apropriação da linguagem escrita pelas crianças, em

fase inicial de alfabetização, pretende contribuir com as reflexões em torno desse processo,

por meio de uma análise que leva em conta os pressupostos da perspectiva Histórico-Cultural

na Psicologia. Dessa forma, concordando com esses pressupostos, assumimos que a

alfabetização é um processo histórico e social de formação, nas crianças, da linguagem

escrita.

Sabemos que os fundamentos que norteiam os estudos de Ferreiro & Teberoky (1985)

são notadamente construtivistas. Esta é

... é uma concepção ou uma teoria que privilegia a noção de ‘construção’ de conhecimento,

efetuada mediante interações [grifo nosso] entre o SUJEITO (aquele que conhece) e

OBJETO (sua fonte de conhecimento) - buscando superar as concepções que focalizam

apenas o empirismo [...] ou a pré-formação de estruturas... (Bregunci, [199-], p. 15).

Assim, a principal categoria que orienta os estudos com pressupostos construtivistas é

o interacionismo, que implica noções de adaptação e de equilíbrio na relação organismo com

o meio. Do ponto de vista da Perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia, o modelo

interacionista não possibilita “a compreensão da relação histórico-social entre objetivação e

apropriação que caracteriza a especificidade do desenvolvimento humano tanto do ponto de

vista do gênero humano quanto do indivíduo” (Duarte, 1993, p. 108).

Consideramos que a formação, nos indivíduos, dos resultados do desenvolvimento

histórico e social realiza-se por intermédio de mediações entre o indivíduo e o gênero humano,

sendo essas mediações exteriores ao organismo e não resultado da herança genética. Por isso,

a análise que nos propomos a realizar do processo de alfabetização levará em conta o processo

de apropriação, pois as crianças não se adaptam à linguagem escrita, mas se apropriam dela.

Elas tomam para si esse conhecimento e a prática educativa de alfabetização é mediadora

dessa apropriação. De acordo com Leontiev (1978, p. 169), “a diferença fundamental entre os

processos de adaptação em sentido próprio e os de apropriação reside no fato de o processo de

adaptação biológica transformar [grifo nosso] as propriedades e faculdades específicas do

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organismo bem como o seu comportamento de espécie. O processo de apropriação é diferente,

pois “o seu resultado é a reprodução [grifo do autor], pelo indivíduo, das aptidões e funções

humanas, historicamente formadas” (p. 169). Assim, é por meio do processo de apropriação

que os indivíduos tornam seus os resultados do desenvolvimento sócio-histórico da

humanidade e, portanto, a linguagem escrita.

Este trabalho será organizado em seis capítulos. No primeiro capítulo, situaremos este

estudo no contexto da nossa trajetória acadêmica e profissional. No segundo, apresentaremos a

questão central que orienta a pesquisa, tomando por base o estudo de Luria sobre o

desenvolvimento da escrita na criança, qual seja, os processos que se constituem nas crianças

durante a fase inicial de alfabetização, quando são incentivadas a usar a escrita para fins

psicológicos. No terceiro capítulo, discutiremos os pressupostos teórico-metodológicos da

Perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia que orientaram o estudo. Inicialmente,

abordaremos a questão do biológico e cultural, pois a compreensão dessa relação é

fundamental para entendermos o processo de formação nos indivíduos dos resultados do

desenvolvimento histórico. O quarto capítulo é meramente descritivo e terá por finalidade

caracterizar a escola-campo e a sala de aula onde foi realizado o estudo, descrever o cotidiano

da escola e da sala de aula, caracterizar os sujeitos envolvidos no estudo (professora e

crianças) e identificar o método de alfabetização utilizado pela professora para ensinar as

crianças a ler e a escrever. No quinto capítulo, apresentaremos a base empírica do trabalho.

Esse capítulo foi organizado em cinco partes, considerando as atividades de produção de texto

realizadas pelas crianças durante o ano letivo. Assim, ele foi organizado a partir das atividades

de registro da brincadeira preferida das crianças, do registro do reconto, do registro do poema,

do registro do texto sobre a escola e do registro do texto sobre uma história em seqüência. No

último capítulo, sintetizaremos as nossas principais descobertas ocorridas durante o trabalho,

enfatizando os processos que se constituíram nas crianças participantes deste estudo, quando

eram incentivadas a usar a escrita para fins mnemônicos.

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Capítulo I

Trajetória: persistência de questões

A alfabetização é um processo que esteve no centro das nossas preocupações.

Inicialmente, como professora alfabetizadora, essas preocupações estavam orientadas para a

descoberta de métodos de ensino mais adequados. À medida que nos apropriávamos dos

conhecimentos acerca da gênese da linguagem escrita nas crianças, começamos a analisar,

principalmente, as elaborações de Ferreiro e Teberosky sobre a evolução da escrita

confrontando-as com as produções escritas das crianças das escolas onde trabalhamos. Nossas

primeiras indagações acerca da pertinência dos estudos das autoras nasceram da observação e

acompanhamento das produções escritas das crianças que ensinávamos a ler e a escrever. A

primeira questão que nos chamou a atenção foi o fato de não verificarmos o processo

evolutivo proposto por Ferreiro & Teberosky (1989) nas produções textuais das crianças. Era

possível observá-lo na escrita de palavras e pequenas frases, quando os procedimentos

utilizados pelas autoras para sugerir a interpretação das grafias eram também usados.

Essa questão era intrigante, porque, como já apontamos, uma das preocupações iniciais

com relação à alfabetização estava ligada à prática educativa, ou seja, à busca de métodos

mais adequados para ensinar as crianças a ler e a escrever. Havíamos, a partir de estudos

acerca das críticas aos métodos de alfabetização (principalmente os sintéticos), decidido pela

necessidade de as crianças aprenderem a ler e a escrever tendo por base os textos. Muitos

autores apontavam a centralidade da leitura e produção de textos no ensino da Língua

Portuguesa. Dentre eles, podemos citar João Wanderley Geraldi, que teve uma influência

importante na redefinição da nossa prática educativa, pois, com base nas suas aulas, na

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e, depois, por meio da leitura do seu livro

Portos de passagem, publicado após as belas exposições realizadas durante o curso,

delineamos uma metodologia de alfabetização baseada na leitura e produção de textos.

Estávamos certa de que formaríamos leitores e escritores por meio dessa forma de atuar junto

com as crianças, durante a fase inicial de alfabetização.

Ao mesmo tempo, no final da década de 80 e início da década de 90, no Estado do

Espírito Santo, as discussões sobre a alfabetização giravam em torno dos estudos de Ferreiro

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& Teberosky sobre a gênese da escrita na criança. Durante o curso de Especialização em

Alfabetização, realizado na PUC de Belo Horizonte (MG), foi possível, também, aprofundar

os estudos sobre as elaborações dessas autoras.

Assim, com base nos conhecimentos que acumulamos acerca da alfabetização e na

análise das produções escritas das crianças, construímos as primeiras questões que, mais tarde,

se tornariam objeto de estudo, desenvolvido durante o curso de Mestrado em Educação, na

Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação da professora Janete Magalhães

Carvalho.

Durante os estudos realizados no curso de Mestrado, concluímos que as questões,

inicialmente, formuladas para o trabalho, foram elaboradas sobre princípios teóricos que

objetivavam a busca de estágios e processos de desenvolvimento únicos e lineares para todas

as crianças, pois, na realidade, buscávamos investigar os processos evolutivos que poderiam

ser verificados por meio do registro de textos pelas crianças. À medida que as nossas questões

de estudo foram se aprofundando, passamos a considerar a necessidade de buscar novas

orientações teórico-metodológicas para fundamentar o estudo.

Desse modo, decidimos aprofundar estudos sobre a Perspectiva Histórico-Cultural na

Psicologia, na busca de delineamentos de pressupostos teórico-metodológicos que pudessem

orientar a nossa investigação sobre a apropriação da linguagem escrita. Diante da escassez das

obras de Vigotski, no Brasil, e da impossibilidade de articular a base teórica do nosso estudo a

partir das obras a que tivemos acesso na época, o livro de Leontiev (1978), intitulado O

desenvolvimento do psiquismo tornou-se uma das fontes privilegiadas para explicação dos

fenômenos observados durante a coleta de informações; da mesma forma, o artigo de Luria

(1988), O desenvolvimento da escrita na criança, foi fundamental para delinear a metodologia

que seria usada durante o trabalho empírico.

O relatório final do estudo, desenvolvido durante o curso de Mestrado, intitulado A

apropriação da linguagem escrita, mostra a tentativa de confrontar os resultados do nosso

estudo com as elaborações de Ferreiro e Teberosky. Não iremos apontar todas as questões

tratadas no relatório, mas consideramos pertinente enfocar a análise que elaboramos acerca do

que denominamos, na época, de internalização da linguagem escrita. Os procedimentos

metodológicos usados para a coleta das informações seguiram delineamentos semelhantes aos

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utilizados por Luria (1988) para investigar o desenvolvimento da escrita nas crianças pré-

escolares.

Participaram do estudo crianças que estavam matriculadas na etapa inicial do Bloco

Único, correspondente à primeira série do Ensino Fundamental. As atividades realizadas pelas

crianças consistiram, na primeira etapa, do registro de uma parlenda (versos populares) e, na

segunda etapa, do registro de frases que retratavam situações cotidianas da escola. Era pedido

às crianças que escrevessem os versos e as frases de modo que pudessem, após o registro, com

a ajuda das grafias, recordar o conteúdo que motivou a escrita.

Desse modo, o aspecto focalizado pela atividade realizada pelas crianças estava

relacionado com o uso funcional das grafias, ou seja, como as crianças passam a usar as letras

para fins psicológicos. No entanto, durante o processo de registro da parlenda e das frases,

constatamos que as crianças elaboravam as relações de simbolização entre as grafias e

unidades da linguagem por meio da fala. Como essa descoberta era muito interessante e estava

de acordo com os nossos propósitos iniciais – confrontar os resultados do nosso estudo com as

teorizações de Ferreiro e Teberosky – analisamos como as crianças, durante a apropriação da

escrita, na escola, compreendem as relações entre o oral e o escrito.

Com base no material coletado, elaboramos três categorias de análise que mostram a

dinâmica do processo de apropriação/internalização das correspondências entre letras e

unidades da linguagem. Na primeira categoria, incluímos as crianças que: a) usaram letras

para escrever o texto; b) produziram a escrita silenciosamente, isto é, não usaram a fala para

organizar a escrita que estava sendo elaborada; c) não utilizavam os registros produzidos para

ajudar a lembrar o conteúdo do texto. Na segunda categoria, foram incluídos os sujeitos que:

a) como na primeira categoria, o registro não os ajudava a recordar o conteúdo do texto; b)

usavam a fala para regular a ação de escrever: os segmentos gráficos registrados

correspondiam a determinados segmentos sonoros produzidos oralmente; c) não usavam a

escrita como recurso para auxiliar a recordação do conteúdo do texto. Desse modo, o segundo

item é o que diferenciava a atividade dos sujeitos incluídos na segunda categoria, se

comparada à primeira. As crianças tentavam estabelecer uma relação de simbolização entre os

segmentos gráficos e os segmentos sonoros, por meio da fala, mas não interpretavam a escrita

produzida. Na terceira categoria, foram incluídas as crianças que realizaram a atividade

silenciosamente. O silêncio só era quebrado quando tinham dúvidas sobre a grafia de uma

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palavra e, por isso, perguntavam à pesquisadora que letra deveria ser usada para escrever.

Nesse caso, a escrita ajudava a recordar o conteúdo registrado.

Assim, com base nos dados empíricos, coletados durante a realização das atividades de

registro, verificamos que a fala que orienta e organiza a atividade de escrita fornece elementos

novos para a compreensão de como as crianças, ao longo do processo de alfabetização,

compreendem as relações entre o oral e o escrito.

Conforme demonstraram Ferreiro & Teberosky (1989) e Ferreiro (1992, 1995), o

período de fonetização da escrita é constituído pela elaboração de três hipóteses: silábica,

silábico-alfabética e alfabética. A hipótese silábica, para Ferreiro (1995), constitui-se pela

tentativa de estabelecer correlação entre a escrita e a fala. Entretanto, a correspondência

elaborada pela criança é imprecisa, pois, para cada sinal gráfico produzido, corresponde uma

sílaba da palavra. A hipótese silábico-alfabética se caracteriza por uma forma de escrever que

revela a transição entre a concepção silábica e a concepção alfabética da escrita. A última

hipótese se caracteriza pela escrita alfabética, ou seja, a criança “compreendeu que cada um

dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba, e realiza

sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever” (Ferreiro &

Teberosky, 1989, p. 213).

É importante lembrar que os resultados obtidos pelas pesquisadoras originaram-se de

situações de pesquisa em que as crianças escreviam palavras e pequenas frases.

Imediatamente, após o registro, as crianças liam a escrita elaborada. A correlação entre os

segmentos gráficos e os segmentos sonoros foi observada, fundamentalmente, por meio da

leitura efetuada pelas crianças.

Como demonstram nossas investigações, as relações entre segmentos gráficos e

segmentos sonoros são elaboradas no plano verbal, por meio da fala. Por isso, consideramos

que, se quisermos compreender essas relações, é necessário analisar a linguagem que orienta e

organiza a atividade de escrita. Em nenhum momento solicitamos que as crianças fizessem a

análise verbalmente. Essa foi uma iniciativa das crianças envolvidas no estudo que nos

pareceu surpreendente e reveladora dos seus reais esforços na busca de compreensão das

relações entre as letras e as unidades da linguagem.

Não obtivemos evidências que comprovem que essas tentativas de correspondência

entre segmentos gráficos e unidades sonoras, elaboradas pelas crianças, por meio da fala,

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sigam o curso evolutivo proposto por Ferreiro e Teberosky. No entanto, acreditamos, com

base nas informações obtidas, na impossibilidade de definir estágios para a apropriação da

linguagem escrita, pois as funções mentais superiores são constituídas e reconstituídas nas

condições sociais em que esse fenômeno se desenvolve e, por isso, dependem das práticas

sociais de alfabetização.

Vigotski (1989a) assinala que a linguagem escrita é um sistema de signos que está

relacionado com contextos extralingüísticos. O estudo que realizamos enfocou a sua relação

com contextos lingüísticos. Dessa forma, a questão do uso funcional da escrita, ou seja, como

as crianças, durante a fase inicial de alfabetização, relacionam-se com a escrita para fins

psicológicos, não foi abordada e, por isso, decidimos orientar os estudos deste trabalho para

essa questão.

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Capítulo IIO problema

Luria (1988) descreveu, no seu trabalho sobre o desenvolvimento da escrita, como

crianças que não estavam participando de um processo escolar de alfabetização passaram a

usar sinais, marcas e desenhos como símbolos, pois estes adquirem um significado funcional;

começam a refletir o conteúdo registrado e, portanto, possibilitam a lembrança das frases ou

palavras que motivaram os registros. Esse autor diz que o período primitivo por ele estudado

chega ao fim quando a criança inicia o processo de escolarização. No entanto, não está

completamente certo da sua afirmação, pois considera que, entre o período de elaboração das

primeiras formas simbólicas de representação e a elaboração da escrita na sua forma cultural,

existe um longo período particularmente interessante para a pesquisa psicológica.

Interessado por esse período, Luria descreveu alguns dados de pesquisa coletados com

crianças que conheciam algumas letras do alfabeto, mas que ainda não podiam escrever

convencionalmente usando as letras conhecidas. Com base nesses dados e no estudo sobre a

pré-história da escrita, afirmou que

a escrita não se desenvolve, de forma alguma, em uma linha reta, com um crescimento e

aperfeiçoamento contínuos. Como qualquer outra função psicológica cultural, o

desenvolvimento da escrita depende, em considerável extensão, das técnicas de escrita

usadas e eqüivale essencialmente à substituição[grifo nosso] de uma técnica por outra

(1988, p. 180).

Centraremos nossas ponderações, inicialmente, na primeira parte da citação:

entendemos que Luria considerava que a criança, antes de participar de um processo escolar

de alfabetização, compreende que pode usar sinais, marcas, desenhos, etc. como símbolos,

pois estes passam a expressar significados que a criança desejou registrar; mas isso não

possibilita que utilize esses conhecimentos quando é exposta às formas culturais de escrita, ou

seja, quando começa a aprender, na escola, o sistema de escrita usado socialmente. Para o

autor, é exatamente a substituição de uma técnica por outra que leva a um aprimoramento das

habilidades de ler e escrever. Porém, a aprendizagem de uma nova forma de escrita

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“inicialmente atrasa, de forma considerável, o processo de escrita, após o que então ele se

desenvolve mais até um nível novo e mais elevado” (Luria, 1988, p. 180).

Assim, para Luria, as crianças iniciam o desenvolvimento da escrita mesmo antes de

estarem expostas a um processo escolar de aprendizagem da linguagem escrita. Esse período,

anterior à aprendizagem escolar, é denominado de pré-história da escrita e é constituído por

estágios que podem, de uma maneira geral, ser traduzidos pela seguinte explicação:

No começo, a criança relaciona-se com coisas escritas sem compreender o significado da

escrita; no primeiro estágio, escrever não é um meio de registrar algum conteúdo

específico, mas um processo autocontido, que envolve a imitação de uma atividade do

adulto, mas que não possui, em si mesmo, significado funcional. Esta fase é caracterizada

por rabiscos não-diferenciados; a criança registra qualquer idéia com exatamente os

mesmos rabiscos. Mais tarde – e vimos como se desenvolve – começa a diferenciação: o

símbolo adquire um significado funcional e começa graficamente a refletir o conteúdo que

a criança deve anotar (Luria, 1988, p.181).

Ao iniciar o processo de escolarização, a criança é exposta à aprendizagem do sistema

de escrita usado socialmente. Tendo que utilizar essa nova forma de escrita, Luria acredita que

as crianças passam pela mesma fase primitiva, ou seja, retomam uma escrita indiferenciada e,

dessa forma, usam as letras que estão sendo aprendidas para aprender, mas não conseguem

estabelecer uma relação funcional com elas. Nesse sentido, o desenvolvimento da escrita não é

um processo linear e de contínuo aperfeiçoamento, pois a aprendizagem dos símbolos

alfabéticos, na fase inicial de alfabetização, propicia o retorno às formas primárias de as

crianças se relacionarem com os registros.

Concordamos com o autor: de fato, no início da alfabetização escolar, as crianças

escrevem usando as letras que estão sendo aprendidas, mas ainda não conseguem estabelecer

uma relação funcional com elas. Em um trabalho anterior (Gontijo, 1996), mostramos que um

grupo de crianças que participou do nosso estudo usava letras para escrever um texto, mas

estas não possibilitavam a lembrança dos textos que motivaram a escrita.

Ainda de acordo com Luria (1988), o desenvolvimento da escrita é dependente da

substituição de uma técnica de escrita por outra. Conforme nosso entendimento, o autor se

refere a duas técnicas de escrita: uma elaborada pela criança pré-escolar, que se caracteriza

pelo uso de sinais, marcas, pontos, desenhos, etc. como símbolos que possibilitam a

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recordação dos significados anotados. Essa é uma forma primitiva de registro, possui um

caráter espontâneo, pré-histórico, pois não se constitui a partir das formas culturalmente

desenvolvidas de escrita que são aprendidas na escola. A outra eqüivale às formas culturais,

ou seja, ao sistema de escrita elaborado ao longo da história social e que depende de uma ação

sistemática e intencional para que as crianças venham se apropriar delas.

Tendo em vista a tradução portuguesa do texto de Luria sobre o desenvolvimento da

escrita nas crianças, deparamos-nos com uma questão (Luria, 1988): o uso do termo

substituição para se referir à passagem das formas primárias de escrita elaboradas pelas

crianças para as formas culturais. Não sabemos até que ponto o termo substituição é usado na

tradução do texto de Luria (1988) correspondendo corretamente ao termo usado no trabalho

original. Em um outro texto, ao explicar os processos que levam ao desenvolvimento das

formas culturais na criança, usa o termo superação. A questão será tratada no próximo

capítulo de maneira geral, mas é importante assegurar que o termo superação entendido, no

contexto do modelo teórico que orienta os estudos da Perspectiva Histórico-Cultural na

Psicologia, é mais apropriado para explicar a dinâmica do desenvolvimento cultural na

criança.

O desenvolvimento da escrita, na sua forma cultural, começa, para Luria (1988),

quando a criança entra para a escola e começa a aprender o alfabeto. Nesse momento, no

entanto, a criança passa por uma fase que se caracteriza pela incapacidade de se relacionar

com a escrita de maneira funcional, ou seja, ela é incapaz de usar, no começo da

aprendizagem, a escrita como instrumento que lhe permite recordar os significados anotados.

Como mencionamos, nós mesmos observamos que isso ocorre com as crianças que estão

participando de um processo inicial de alfabetização escolar.

Nesse sentido, é fundamental a indicação do autor de que “a partir do momento em que

uma criança começa, pela primeira vez, a aprender a escrever até a hora que finalmente

domina essa habilidade há um longo período, particularmente interessante para a pesquisa

psicológica” (1988, p. 180). Visando a contribuir para a compreensão dos processos que

possam se constituir nas crianças, nesse período, propusemos este estudo que teve por

finalidade investigar como as crianças escrevem e se relacionam com a escrita, durante a fase

inicial da alfabetização, ao serem incentivadas a usá-la para fins mnemônicos.

Escolhemos para participar da pesquisa a professora e as crianças de uma classe de

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primeira série do Ensino Fundamental, da rede pública de ensino. Elegemos essas crianças,

porque sabemos que a maioria usa as letras do alfabeto para escrever, mas elas não dominam a

linguagem escrita. Para evidenciar os processos que se constituem nas crianças, foi necessário

planejar atividades de produção de textos para serem realizadas pelos alunos e investigar como

se relacionavam com a escrita, após serem incentivados a utilizar a escrita para lembrar o texto

que motivou o registro.

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Capítulo III

Definindo a perspectiva teórico-metodológica

De modo geral, a proposta desta pesquisa foi investigar a apropriação da escrita pelas

crianças matriculadas na primeira série do Ensino Fundamental. Sendo assim, essa proposta

remete à perspectiva teórica que orientou o estudo, pois consideramos que o uso do termo

apropriação está vinculado à abordagem teórica que fundamenta os trabalhos da Perspectiva

Histórico-Cultural na Psicologia. Consideramos ainda que a adoção de uma determinada

perspectiva teórica corresponde a uma maneira específica de olhar, analisar, explicar e intervir

sobre os processos que ocorrem nas crianças ao longo do seu desenvolvimento. Por isso, antes

de discutirmos a categoria de análise escrita no título deste estudo, enfocaremos como

compreendemos, com base na Perspectiva Histórico-Cultural, a questão do biológico e cultural

no desenvolvimento infantil, pois acreditamos que essa compreensão é fundamental para

entendermos as categorias de apropriação e mediação que orientaram a pesquisa.

1 O biológico e o cultural no desenvolvimento infantil

A Perspectiva Histórico-Cultural, elaborada pela escola de Vigotski, fornece os

pressupostos que contribuem para romper dualismos que marcaram os estudos na Psicologia e

para compreendermos que não existem mecanismos internos de conhecimento da realidade

independentes das relações sociais historicamente situadas.

Certamente, os estudos de Vigotski não constituem uma obra acabada. O próprio

Vigotski, segundo Leontiev, Luria e Tieplov (1987), estava consciente da incompletude de seu

programa de estudos. Entretanto, os estudos desse autor “fornecem um conjunto de

pressupostos, fundados no materialismo-histórico e dialético, e algumas elaborações teóricas

que definem as grandes linhas do que pode ser considerado um novo paradigma

epistemológico” (Pino, [199-], p. 13-14), principalmente se considerarmos os estudos

desenvolvidos por Luria e Leontiev, dois dos seus mais importantes companheiros na busca de

elaboração de uma nova Psicologia.

Segundo Luria (1996, p. 151), o estudo do desenvolvimento ontogenético deve levar

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em conta que este é resultado de uma

evolução complexa que combina pelo menos três trajetórias: a da evolução biológica desde

os animais até o ser humano, a da evolução histórico-cultural, que resultou na

transformação gradual do homem primitivo no homem cultural moderno, e a do

desenvolvimento individual de uma personalidade específica (ontogênese), com o que um

pequeno recém-nascido atravessa inúmeros estágios, tornando-se escolar e a seguir um

homem adulto cultural.

Para a análise da evolução biológica, Vigotski (1996) baseou-se nas idéias de Marx e

Engels sobre a história humana. De acordo com Leontiev, Engels acreditava na idéia de uma

origem animal para o homem, conforme elaborada por Darwin, mas mostrou, também, que o

homem é distinto dos seus antepassados animais “e que a hominização resultou da passagem à

vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou a sua

natureza e marcou o início de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento

dos animais, estava e está submetido não às leis biológicas, mas às leis sócio-históricas [grifos

do autor]” (1978, p. 262). Para Marx, os homens e os animais realizam uma atividade

produtiva, porém, “o animal se identifica imediatamente com sua atividade vital; não se

distingue dela; é ela. O ser humano torna sua atividade vital, ela mesma, objeto de sua vontade

e de sua consciência” (apud Konder, 1992, p. 104). O homem é um ser natural e pertence à

natureza, mas a sua atividade produtiva permite-lhe adquirir “uma relativa autonomia no que

faz, passa a fazer escolhas, a tomar iniciativas e assumir riscos. Nesse sentido, o ser humano

tem um modo peculiar de assumir a sua espécie [grifos do autor] (que é o gênero humano)”

(Konder, 1992, p.104). Ele produz universalmente, ou seja, produz também livre das

necessidades físicas – e de fato só assim produz de maneira verdadeiramente humana.

Nessa perspectiva, a invenção e o uso de ferramentas no trabalho demarcam “o fim da

etapa orgânica de desenvolvimento comportamental na seqüência evolutiva [...] e [tornam-se]

o principal pré-requisito psicológico do desenvolvimento histórico do comportamento”

(Vigotski, 1996, p. 52). Analisando os experimentos de Köhler sobre o uso de instrumentos

pelos animais, Vigotski concluiu que esse uso nunca se desenvolve em trabalho. Por isso, “o

uso de instrumentos na ausência do trabalho é o que mais aproxima o comportamento do

homem e do macaco e, ao mesmo tempo, o que mais os afasta” (1996, p. 87).

Assim, a invenção e o uso de instrumentos são os fundamentos para a construção de

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uma nova forma de inter-ação com a natureza, mas não definem o processo histórico de

desenvolvimento da humanidade. Para que esse processo seja iniciado, é necessário que essas

atividades se desenvolvam em situação de trabalho. De acordo com Duarte, o trabalho “é

originariamente uma atividade imediatamente coletiva, exige, portanto, a atividade

comunicativa. A atividade de comunicação foi, ao longo da história primitiva, se objetivando

em processos que geraram a linguagem” (1993, p. 33). Desse modo, o uso de instrumentos no

trabalho permitiu ao homem controlar a natureza e o surgimento da linguagem permitiu-lhe

dominar o seu próprio comportamento e o de outros homens. O uso dos signos constitui, dessa

forma, “o conteúdo principal de toda história do desenvolvimento cultural” (Vigotski, 1996, p.

91). Nessas condições, o desenvolvimento do homem é definido pela história social e não mais

por leis naturais. “O homem e a humanidade libertam-se [...] do ‘despotismo da

hereditariedade e podem prosseguir o seu desenvolvimento num ritmo desconhecido no

mundo animal’” (Leontiev, 1978, p. 264).

O início de um novo processo de desenvolvimento – histórico-cultural – produziu

mudanças extraordinárias no homem e na natureza. Ao agir sobre a natureza e em relação com

outros homens, munidos dos instrumentos técnicos e dos signos, o homem cria uma natureza

completamente nova, ao mesmo tempo em que modifica e transforma a si mesmo, adquirindo

um controle cada vez maior sobre as forças da natureza e produzindo uma variedade de

capacidades e necessidades que se tornam o ponto de partida de novo autodesenvolvimento.

Dessa forma, a apropriação da cultura, produzida pelo homem, ao longo de sua história

social, tornou-se um requisito fundamental para a humanização. Podemos dizer, concordando

com Leontiev, “que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando

nasce não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no

decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (1978, p. 267).

O processo de desenvolvimento histórico não coincide com o processo de evolução

biológica no decurso da história humana, mas, na criança, essas duas linhas evolutivas estão

fundidas, formando um processo único e complexo. Isso significa que o desenvolvimento das

funções psicológicas superiores, o desenvolvimento cultural na criança, apóia-se sobre os

processos de maturação e crescimento, formando um todo único. “Como o desenvolvimento

orgânico tem lugar em um meio cultural, ele se converte em um processo biológico

condicionado historicamente. Por outro lado, o desenvolvimento cultural adquire um caráter

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particular e incomparável, já que se realiza simultaneamente com a maturação orgânica,

portanto seu portador é o organismo da criança que amadurece e cresce [grifos e tradução

nossos]” (Vigotski, 1987, p. 40).

Assim, a apropriação pelas crianças dos resultados do desenvolvimento histórico, das

produções humanas, ocorre simultaneamente com o processo de desenvolvimento biológico.

Por isso, o desenvolvimento cultural na criança adquire um caráter particular, peculiar,

específico, que não deve ser comparado ao desenvolvimento da espécie humana (filogenético)

e ao processo histórico de construção da cultura pelos homens, pois não é uma recapitulação

desses processos: ele é também obra da própria criança que se desenvolve.

Luria (1996), ao descrever o desenvolvimento cultural, diz que a criança passa por

quatro fases que podem ser encontradas em quase todos os processos desde os mais simples

até os mais complexos. A primeira fase é caracterizada pelas formas naturais de

comportamento, ou a fase primitiva. Essa fase diferencia-se das demais pela incapacidade da

criança de usar funcionalmente os meios culturais disponíveis. Na segunda fase, denominada

fase ingênua, a criança utiliza determinados meios culturais que lhe são apresentados, mas não

compreende a sua função. No terceiro estágio, “a criança compreende a possibilidade de um

uso instrumental ativo dos meios culturais” (1996, p. 219). No estágio do uso interno de meios

culturais, quarto estágio, “as técnicas externas e signos culturais aprendidos na vida social [...]

[tornam-se] processos internos” (p. 219).

De modo geral, a visão de Vigotski e de Luria sobre o desenvolvimento da

criança pode ser resumida assim: “todas as crianças [passam] por um estágio de

desenvolvimento ‘natural’ caracterizado pela incapacidade da criança para fazer uso dos meios

culturais disponíveis. Como as crianças dessa idade não usam esses instrumentos, elas podem

ser chamadas de ‘primitivas’, no sentido de pré-culturais” (Veer e Valsiner, 1996, p. 248). À

medida que a criança cresce, estando imersa em relações sociais que lhe propiciam a

aprendizagem, passa a fazer uso dos meios culturais disponíveis e a exercer um domínio, cada

vez maior, sobre os seus próprios processos mentais.

Vigotski e seus colaboradores ao definir as fases para o desenvolvimento

infantil, deixaram à mostra que distinguiam (pelo menos em uma etapa de seus estudos) os

processos naturais de desenvolvimento, que estão diretamente ligados aos processos

biológicos, dos processos culturais, que dependem das apropriações, no decorrer do

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desenvolvimento ontogenético. Luria, Leontiev e Tieplov assinalam que essa distinção,

criticada na época, teve de fato lugar nos trabalhos de Vigotski, assim como nas investigações

de seus colaboradores. Contudo, a proposição de etapas para o desenvolvimento infantil, que

distinguiam os processos naturais e culturais, “es realmente inconsistente, pues, resulta que

también, en los niños de la edad más temprana, los procesos psíquicos se forman bajo la

influencia de la comunicación verbal con los adultos que los rodean y, por lo tanto, no son

'naturales'” (1987, p. 7). Desse modo, para esses autores, as apropriações que ocorrem, a partir

do nascimento, resultam das relações que as crianças estabelecem com as outras pessoas.

Luria, Leontiev e Tieplov argumentam ainda que a contraposição não estava presente

nas proposições metodológicas gerais de Vigotski.

Al contrario, Vigotskij, al exponer sus puntos de vista teóricos, desarrollaba insistentemente

la idea de que estas 2 formas sólo se pueden separar por medio de la abstracción: 'Ambos

planos del desarrollo, el natural y el cultural, coinciden y se vierten uno el outro (...) Dado

que el desarrollo orgánico se realiza en un medio cultural, se convierte, por tanto, en un

proceso biológico condicionado históricamente' (1987, p. 7).

Sendo assim, para Vigotski (1987), as formas naturais (orgânicas) e as superiores

(culturais) se desenvolvem simultaneamente constituindo um processo único. A análise que

Vigotski (1987) desenvolveu sobre a história do desenvolvimento do gesto indicativo ilustra

adequadamente a sua concepção sobre o desenvolvimento cultural. Para ele, o gesto indicativo

é, inicialmente, apenas um movimento de agarrar fracassado, dirigido a um objeto de interesse

da criança. Quando a criança tenta pegar o objeto, ela não tem a intenção de estabelecer

contato com as outras pessoas ou de intervir em seus comportamentos. No entanto, esse

movimento é interpretado pelas outras pessoas que estão à sua volta e adquire uma

significação, no contexto das relações, que no princípio é externa, mas se transforma para a

própria criança no que ele é para os outros. O movimento torna-se um gesto indicativo.

Segundo esse autor, a criança é a última a se conscientizar da função que os seus movimentos

assumem no interior das relações sociais. Assim, eles adquirem a função de indicação para os

outros e, só mais tarde, transformam-se em indicação para a própria criança.

Conforme exemplificado, na ontogênese, o desenvolvimento cultural e o

desenvolvimento biológico ocorrem simultaneamente, formando um processo único. Isso,

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segundo Vigotski (1987), constitui toda particularidade do desenvolvimento das funções

psicológicas superiores na criança. O desenvolvimento cultural se apóia sobre um tipo

específico de desenvolvimento biológico (humano), que possibilita e torna as apropriações

possíveis, e as crianças, por nascerem imersas em um mundo cultural criado pelos seus

antepassados e nas relações sociais que tornam as apropriações possíveis, iniciam o seu

desenvolvimento cultural antes de terem encerrado seu desenvolvimento biológico. Desse

modo, o desenvolvimento infantil, desde a mais tenra idade, não está ligado unicamente ao

inventário biológico da criança e não pode ser compreendido a partir deste. A história do

desenvolvimento das funções psicológicas superiores nas crianças deve levar em conta as

formas historicamente elaboradas de pensamento, como estas vão se constituindo num

organismo que se desenvolve, por meio das relações que estabelecem com as pessoas que as

rodeiam. No próximo item, discutiremos o processo que possibilita a constituição nas crianças

das formas culturais.

Se as duas formas de desenvolvimento (cultural e biológico) estão integradas na

ontogênese, então, como estas se relacionam, produzindo formas cada vez mais superiores de

conduta? Vigotski, ao discutir a relação entre as formas superiores e inferiores, diz que “la

relación entre las formas superior e inferior puede ser expresada de la mejor manera por el

reconocimiento de lo que en dialéctica se conoce bajo el nombre de superación” (1987, p.126).

O termo superação significa, na Língua Portuguesa, “ato ou efeito de superar”. Superar, por

sua vez, significa vencer, destruir, dominar. Vigotski (1987) recorda que o significado dessa

expressão no alemão é, em primeiro lugar, eliminar, negar, mas ela significa também

conservar. Dessa forma, o termo superação tem sentidos contraditórios. Com base nos

sentidos que lhe são atribuídos no alemão, é possível dizer que os processos elementares e as

leis que os regem permanecem, são conservados nas formas culturais. O exemplo do

desenvolvimento do gesto indicativo é ainda ilustrativo. O movimento inicial realizado pela

criança (gesto de agarrar) continua a existir independentemente do sentido que lhe é atribuído

e, para realizá-lo, é necessário que se coloquem em ação as forças do seu corpo. No interior

das relações sociais, ele se torna um gesto indicativo, adquirindo a qualidade de signo para os

adultos e, depois, para as crianças que passarão a utilizá-lo para se relacionarem com as outras

pessoas e alcançar um determinado objetivo (por exemplo, um brinquedo).

Segundo Vigotski (1987), a decomposição dos processos superiores em partes, ou seja,

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a análise dos processos elementares, não possibilita a compreensão das particularidades

específicas das formas superiores e das leis que os regem (a visão de que o todo não surge da

soma das partes é um pressuposto básico da dialética). Assim, se isolarmos o movimento que

está na base do gesto indicativo e analisarmos as leis que o regem, não obteremos a sua forma

superior. O movimento passa a ser um gesto indicativo para os outros que o interpretam como

tal. Dessa forma, são as pessoas que, inicialmente, dão significados ao movimento da criança

sendo essa significação atribuída ao movimento, o elemento que possibilita compreender a

relação entre os processos biológicos e culturais e, portanto, a passagem do biológico para o

cultural sem, contudo, suprimir os primeiros, pois permanecem na base de qualquer função

cultural e, sem eles, o desenvolvimento não seria possível.

Em síntese, é possível dizer, com base nas elaborações dos autores da Perspectiva

Histórico-Cultural, que o desenvolvimento infantil é um processo particular, porque as duas

linhas de desenvolvimento - cultural e biológico - estão integradas e, dessa forma, formam um

processo único. As funções psicológicas superiores se formam a partir dos processos

biológicos presentes no organismo humano. No entanto, essas funções não podem ser

compreendidas a partir dos processos biológicos, pois, nas formas culturais/superiores de

atuação

el signo y el modo de su utilización son un todo o foco que determina funcionalmente y por

completo el proceso. De un modo análogo a como el uso de uno u otro instrumento dicta

toda la estructura de la operación laboral, el carácter del signo utilizado aparece como

aquel momento fundamental en dependencia del cual se constituye todo el resto del

proceso (Vigotski, 1987, p.131).

2 Sobre o processo de apropriação

O preceito do caráter mediado dos processos psíquicos conduz necessariamente à

constatação de que esses processos são constituídos, primeiro, entre as pessoas para, depois, se

tornarem funções do próprio indivíduo. Se é assim, é necessária a existência de um processo

que possibilite a conversão para o plano individual das funções que são construídas no plano

social. Vigotski, ao longo dos seus trabalhos (aqueles a que tivemos acesso durante a

elaboração deste estudo), denomina esse processo de internalização; Leontiev (1978) o chama

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de apropriação e diz que esse é o principal conceito introduzido por Vigotski na Psicologia.

Não consideramos o termo internalização adequado, se considerarmos a corrente filosófica

que orienta os trabalhos do autor, mas acreditamos que o seu uso, por Vigotski, revela a sua

impossibilidade de empenhar-se na elaboração de termos apropriados.

Contudo, o uso do termo internalização, pelos autores da Perspectiva Histórico-

Cultural, tem gerado discussões sobre sua adequação. Pino (1992, p. 315) discute essa questão

e assinala que

a adequação ou não do uso de um determinado conceito a um determinado modelo teórico

depende da função semântica que ele desempenha nesse modelo: contribuindo à construção

do sentido da teoria ou, ao contrário, servindo a sua ocultação, distorção ou ambigüidade.

No primeiro caso pode afirmar-se em princípio, que é adequado. No segundo, porém,

parece mais consistente reconhecer que não é um termo adequado, podendo constituir um

verdadeiro obstáculo epistemológico.

O termo internalização, por ser usado para explicar os processos que possibilitam a

conversão da atividade social, interpsíquica, em atividade individual, intrapsíquica, ou seja, o

caráter social dos processos psíquicos, pressuposto diferenciador da perspectiva Histórico-

Cultural na Psicologia de outros modelos que colocam no próprio indivíduo a origem das

funções psíquicas superiores, é considerado, pelo autor, um termo não adequado no contexto

do modelo teórico que inspira essa perspectiva. Pino (1992) assinala ainda que o uso do termo

internalização é freqüente na literatura psicológica e, desse modo, foi usado em diferentes

contextos teóricos, o que coloca a questão sobre sua adequação no contexto do modelo teórico

que orienta os estudos na Perspectiva Histórico-Cultural.

O conceito de internalização, para Pino, “veicula uma visão dualista e naturalista do

homem e do social” e, com base em Wertsch, assinala que “reintroduz [...] o debate de um dos

mais antigos e persistentes problemas da psicologia: o da conceitualização da relação entre

atividade externa e atividade interna” (1992, p. 316). Contudo, acredita que a questão

subjacente ao debate da relação entre atividade interna e atividade externa é mais profunda,

“pois a relação interno/externo tem que ver com a concepção que se tem do homem, situado

no eixo das coordenadas natureza & cultura, ou ordem biológica & simbólica” (p. 316). Nesse

sentido, a preocupação de Pino com o uso do termo internalização é, por um lado,

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compreensível e extremamente procedente, mas, por outro lado, sabemos que os trabalhos de

Vigotski estão inseridos no materialismo histórico e dialético e, em termos filosóficos, Marx

já havia elaborado a crítica ao idealismo e a todo materialismo precedente principalmente, nas

Teses sobre Feuerbach, exatamente pela incapacidade de reconhecerem que a atividade

teórica existe na prática social dos homens e, por isso, a atividade prática e a atividade teórica

não se opõem e nem são independentes. Marx, escreveu na primeira Tese:

A falha principal, até aqui, de todos os materialismos (incluindo o de Feuerbach) é que o

objeto, a realidade efetiva, a sensibilidade, só é percebido sob a forma do objeto ou da

intuição; mas não como atividade sensivelmente humana, como prática, e não de maneira

subjetiva. É por isso que o lado ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo –

que, naturalmente, não reconhece como tal a atividade efetiva, sensível – em oposição ao

materialismo. Feuerbach procurou objetos pensados: porém não captou a própria atividade

humana como atividade objetiva. É por isso que só considera, em A essência do

cristianismo [grifos de Labica], a atitude teórica como verdadeiramente humana, enquanto

que a prática apenas é percebida e fixada em sua manifestação sordidamente judia. É por

isso que ele não compreende o significado da atividade ‘revolucionária’, da atividade

prático-crítica (Marx, apud Labica, 1990, p. 30-1).

De acordo com a análise de Konder, a primeira Tese de Marx “rompe, declaradamente,

com ‘todo o materialismo’ elaborado até então [...] rompe inclusive com o materialismo de

Feuerbach (que tinha ajudado Marx a ajustar contas com o idealismo de Hegel)” (1992, p.

114). Para Marx, conforme mostra Konder, Feuerbach distinguia “a atividade teórica,

espiritual, digna, rica de potencialidades, da ‘cabeça’; e a prática egoísta, grosseira, ‘passiva’,

‘judaica’, interesseira” (p.114) e, dessa forma, “não reconhecia que a consciência é sempre

consciência de um ser consciente ativo [grifos do autor], cujo modo de existir consiste em

intervir transformadoramente na realidade” (p. 114). Tomando a atividade humana (prática e

teórica) como fenômenos distintos, Feuerbach não consegue perceber que a atividade

subjetiva/teórica existe objetivamente. Nesse sentido, para Marx, “o defeito de Feuerbach

estava na sua incapacidade de enxergar a importância da atividade real dos homens como

essencial para a compreensão do pensamento humano” (Konder, 1992, p. 115).

Vásquez ainda mostra que, a “primeira Tese tende a contrapor o materialismo

tradicional e o idealismo no modo de conceber o objeto, e, portanto, a relação cognoscitiva do

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sujeito com ele” (1997, p. 151). Assim, para Marx, o materialismo tradicional postula que a

imagem dos objetos impressa na consciência do sujeito cognoscente é a do objeto em si. Desse

modo, o sujeito tem um papel passivo e é isso que Marx tem em mente, conforme Vásquez,

ao mostrar a necessidade de substituir o objetivismo do materialismo tradicional “por uma

concepção de realidade, do objeto, como atividade humana, como prática, ou seja,

subjetivamente. O objeto do conhecimento é produto da atividade humana, e como tal – não

como mero objeto de contemplação – é conhecido pelo homem” (p. 152).

O idealismo percebeu, por outro lado, o papel ativo do sujeito. “O sujeito não capta

determinados objetos, em si, mas produtos de sua atividade”. Marx, na visão de Vásquez, “tem

presente a concepção idealista do conhecimento que Kant inaugurou, e segundo a qual o

sujeito conhece um objeto que êle mesmo produz” (1997, p. 152-3). No entanto, essa atividade

do sujeito é reconhecida no idealismo como “a do sujeito consciente, pensante; daí ser ela

considerada abstratamente, já que não inclui a atividade prática, sensível, real” (Vásquez,

1977, p. 153). Marx elabora uma concepção do objeto como resultado da atividade subjetiva,

mas não entendida abstratamente e sim como atividade real dos homens. Dessa forma,

“conhecer é conhecer objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o

homem e a natureza, relação que se estabelece graças à atividade prática humana” (Vásquez,

1977, p. 153). A prática, para Marx, “é fundamento e limite do conhecimento e do objeto

humanizado que, como produto da ação, é objeto do conhecimento” (Vásquez, 1977, p. 154).

Fora da prática está a natureza em seu estado bruto e, assim o é, porque permanece em sua

existência imediata, como natureza em si, ou seja, sem sofrer a ação humana.

Isso não significa que Marx não reconheça a existência de uma natureza à margem da

práxis. “Ele nega é que o conhecimento seja mera contemplação, à margem da prática. O

conhecimento só existe na prática, e é o conhecimento de objetos nela integrados, de uma

realidade que já perdeu, ou está em vias de perder, sua existência imediata, para ser uma

realidade mediada pelos homens” (Vásquez, 1977, p. 155). Dessa forma, Marx afirma a

externalidade dos objetos, traduzida em termos de conhecimentos, idéias, valores, etc. e

declara que o homem é um ser que se faz homem na medida em que torna sua, por meio da

apropriação, a humanidade que não lhe é impigida ao nascer, o que traduz a dinâmica do

processo de transformação dos objetos e autotransformação dos homens, o que torna as

objetivações ser do homem.

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Vigotski iniciou a elaboração dos seus estudos na década de vinte, portanto, em um

momento em que surgia a grande crise na Psicologia em função do choque entre as duas

direções tomadas nesse campo. Segundo Luria, no texto O problema da linguagem e a

consciência, a crise

consistiu em que a psicologia praticamente dividiu-se em duas disciplinas independentes,

Uma, a 'psicologia descritiva' ou 'psicologia da vida espiritual' ('Geisteswissenschaftliche

Psychologie'), reconhecia as formas superiores complexas da vida psíquica, mas negava a

possibilidade de sua explicação e limitava-se à sua fenomenológica ou descrição. A outra, a

psicologia 'explicativa' ou científica natural ('Erklärende Psychologie'), entendia que sua

tarefa era a construção de uma psicologia cientificamente fundamentada, mas se limitava à

explicação dos processos psíquicos elementares, negando-se, em geral, a qualquer classe

de explicações das formas mais complexas da vida psíquica [grifos do autor] (1987, p. 20).

A saída da crise, de acordo com Luria (1987), estava na conservação do estudo das

formas mais complexas de consciência pela Psicologia, mas garantindo o seu enfoque

materialista, ou seja, que essas formas complexas originam-se da atividade real dos homens.

Assim, Vigotski, na busca de construção de uma nova Psicologia fundada nos pressupostos do

materialismo histórico, formula uma saída para a grande crise vivida pela Psicologia:

para explicar as formas mais complexas de vida consciente do homem é imprescindível

sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do

comportamento 'categorial', não nas profundidades do cérebro ou da alma, mas sim nas

condições externas da vida e, em primeiro lugar, da vida social, nas formas histórico-

sociais da existência do homem [grifos do autor] (Luria, 1987, p. 20-1).

Marx já havia dito que a atividade consciente tem origem na atividade prática dos

homens, pois dessa atividade vital originam-se as formas de conduta humana independentes

dos motivos biológicos. Vigotski, então, busca as raízes da atividade psicológica nos signos

que se constituem na atividade material e social dos homens. Nesse sentido, Vigotski

procurando explicar como as funções sociais se convertem em funções o próprio indivíduo

enfatiza os processos semióticos que têm existência nas relações e se constituem nas relações

sociais.

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De acordo com Marx e Engels, a apropriação resulta do fato de as forças produtivas

adquirirem uma existência objetiva, independente dos indivíduos e das formas naturais.

Portanto, “a apropriação destas forças nada mais é do que o desenvolvimento das capacidades

individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma

totalidade de instrumentos de produção é, exatamente, por isso, o desenvolvimento de uma

totalidade de capacidades nos próprios indivíduos” (1996, p. 105). Nesse sentido, destacam

ainda que essas forças somente são reais no intercâmbio e relação entre os indivíduos. Assim,

o termo apropriação expressa explicitamente os vínculos dos trabalhos de Vigotski e de seus

colaboradores com o pensamento filosófico que orientou os estudos desses autores. Smolka,

ao se propor a “discutir um certo modo de conceber e elaborar teoricamente a questão da

apropriação, não estritamente ligada ao construto de internalização, mas relacionada

principalmente ao problema da significação [grifos da autora]” (2000, p. 129), assinala que “o

termo apropriação adquire relevância teórica especialmente quando embasado no materialismo

histórico-dialético” (p. 28).

O pressuposto de que a explicação das formas superiores do psiquismo deve ser

buscada nas formas de vida socialmente constituídas não pode conduzir à interpretação de que

o homem é fruto da realidade, exercendo um papel passivo em frente a ela. O mundo com o

qual as pessoas se relacionam, por intermédio das outras pessoas, não é uma realidade em si,

ou seja, um mundo que não sofreu a ação humana, mas é constituída pelos próprios homens

numa atividade em que estes modificam a natureza, a si mesmos e aos seus semelhantes.

Nesse sentido, Vigotski ressalta que as funções psicológicas superiores, no seu

desenvolvimento são subordinadas às regularidades históricas. Estar subordinadas às

regularidades históricas, não significa estar apenas comprometida com o passado, mas esta é

uma condição que se define por sua projeção no futuro. A concepção de história do

desenvolvimento das funções psicológicas superiores, presentes nos estudos de Vigotski e,

anteriormente, na obra de Marx, conduz, portanto, à centralidade da práxis humana, atividade

do homem distinta da atividade animal por ser duplamente livre: das determinações biológicas

e hereditárias e para produzir de maneira planejada e premeditada. Dessa forma, Vigotski, no

trabalho intitulado A consciência como problema da psicologia do comportamento, assinala

que a novidade do comportamento humano em relação ao comportamento animal é o fato de o

“homem [...] [adaptar] ativamente o meio a si mesmo”, enquanto os animais “adaptam-se

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passivamente ao meio”. (Vigotski, 1996, p. 65). Segundo o autor,

a aranha que tece a teia e a abelha que constrói as colméias com cera o farão por força do

instinto, como máquinas, de um modo uniforme e sem manifestar nisso uma atividade maior

do que nas outras reações adaptativas. Outra coisa é o tecelão ou o arquiteto. Como diz,

Marx, eles construíram previamente sua obra na cabeça; o resultado obtido no processo de

trabalho existia idealmente antes do começo do trabalho (1996, p. 65).

A práxis, segundo Konder “é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se

afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la transformando-

se a si mesmos” (1992, p.115). Nessa acepção, a práxis não compreende apenas a atividade

pela qual o homem se relaciona com a natureza, por intermédio dos instrumentos, transforma-

a, dando-lhe uma forma humana, mas compreende, também, a atividade intersubjetiva,

comunicativa, que possibilita aos homens transformarem a si mesmos e aos seus semelhantes.

Vigotski, a partir dessa visão histórica, entendeu que a atividade essencial humana se

baseia no uso de instrumentos e dos signos, mas enfocou o signo, pois nele está a possibilidade

de compreensão da gênese dos processos psíquicos. A utilização dos signos proporciona uma

reorganização dos processos naturais que se desenvolvem no indivíduo, potencializando-os,

transformando-os e possibilitando um maior controle sobre o seu próprio comportamento e

dos outros.

Dessa forma, as crianças não se apropriam dos resultados do desenvolvimento histórico

imediatamente. Conforme mencionamos, esse processo é mediado pelas relações que são

estabelecidas com as outras pessoas no decorrer de suas vidas. Vigotski (1987) diz que é por

meio dos outros que nos convertemos em nós mesmos, o que significa dizer que toda atividade

interna foi antes externa, foi para as outras pessoas o que é para nós. Para Vigotski, falar que

uma função foi externa é falar que ela foi social. “Qualquer função psíquica superior foi

externa, porque foi social antes de ser interna; antes de ser propriamente uma função psíquica

consistiu em uma relação social entre duas pessoas (tradução nossa)” (1887, p. 161). Essa

idéia é uma paráfrase da sexta Tese de Marx que diz:

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Feuerbach converte a essência religiosa na essência humana. Porém a essência humana

não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade efetiva, ela é o

conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real

efetiva, é conseqüentemente obrigado:

1. A fazer abstração da história e a fixar o sentimento religioso para si, e a pressupor

um indivíduo humano abstrato-isolado.

2. A essência só pode então ser percebida como ‘gênero’, como universalidade

interna, implícita, ligando os numerosos indivíduos de maneira natural [grifos de Labica]

(Labica, 1990, p. 33).

Assim, Vigotski afirmou que “la naturaleza psicológica del hombre constituye un

conjunto de relaciones sociales, trasladadas al interior y que se han convertido en funciones de

la personalidad y en formas de su estructura” (1987, p. 162). A paráfrase da sexta Tese deve

ser compreendida como a afirmação do caráter mediado dos processos psicológicos, porque as

significações, função do signo, só existem entre as pessoas. É importante ressaltar ainda que as

funções não perdem o seu caráter social quando se tornam próprias de um indivíduo particular.

Em Marx, a idéia da não oposição entre o social e o individual é apontada, no terceiro de seus

Manuscritos económico-filosóficos (1844):

Mesmo quando eu sozinho desenvolvo uma actividade científica, etc., uma actividade que

raramente posso levar a cabo em directa associação com outros, sou social, porque é

enquanto homem que realizado tal actividade. Não é só o material da minha actividade –

como também a própria linguagem que o pensador emprega – que me foi dado como um

produto social. A minha própria [grifos do autor] existência é actividade social. Por

conseguinte, o que eu próprio produzo é para sociedade que o produzo e com a consciência

de agir como ser social (p. 195).

Nesse sentido, o indivíduo é um ser social, porque todas as produções humanas que se

encontram fora do homem e que constituem o requisito fundamental para a humanização das

novas gerações são produtos da vida social. Dessa forma, como assinala Duarte (1993, p. 77),

“o que caracteriza a atividade humana enquanto uma atividade social não é o fato do indivíduo

agir de forma imediatamente coletiva, mas sim o fato de que os elementos constitutivos da

atividade são objetivações sociais”.

Finalmente, de acordo com Leontiev, Vigotski introduziu na Psicologia a idéia “de que

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o principal mecanismo do desenvolvimento psíquico, na criança, é o mecanismo da

apropriação [grifo nosso] das diferentes espécies e formas sociais de actividade

historicamente constituídas” (1978, p. 155). Essa categoria, oriunda da tradição filosófica

marxista, contrapõe-se ao conceito de adaptação e equilibração para explicar o

desenvolvimento do psiquismo. Como mencionamos, a adaptação, segundo Leontiev, é o

“processo de modificação [grifo do autor] das faculdades e caracteres específicos do sujeito e

do seu comportamento inato, modificação provocada pelas exigências do meio” (1978, p. 320)

e, por isso, não explica o desenvolvimento no indivíduo das aquisições da herança cultural. A

apropriação, no entanto, “é o processo que tem por resultado a reprodução [grifo do autor]

pelo indivíduo de caracteres, faculdades e modos de comportamentos formados

historicamente” (p. 320).

Para Leontiev, “a natureza do homem é ao mesmo tempo natural e social” (1978,

p.160), pois conforme discutimos, sem as propriedades naturais resultantes do

desenvolvimento biológico, o desenvolvimento sócio-histórico, provavelmente, não seria

possível. Os mecanismos hereditários e inatos são, portanto, condições que tornam as

apropriações possíveis sem, contudo, determinar a sua composição ou a sua qualidade

específica, pois os resultados da prática social e histórica dos homens não se acumulam ou se

fixam da mesma forma que as propriedades da espécie, por herança genética. Eles surgem sob

a forma material objetiva, como objetivações que se concretizam sob uma forma exterior e,

por isso, as crianças precisam apropriar-se delas para reproduzirem em si mesmas as

aquisições do desenvolvimento histórico. Porém, a apropriação só se torna possível se as

relações das crianças com o mundo das objetivações forem mediatizadas pelas relações com as

outras pessoas. Por sua vez, as relações entre pessoas se realizam por intermédio da

linguagem, sendo, portanto, relações de comunicação.

Dessa forma, é por meio da linguagem que medeia as relações entre as crianças e o

mundo humano e as relações das crianças e as outras pessoas que as apropriações se efetivam

possibilitando que as crianças descubram progressivamente a significação social dessas

objetivações. A comunicação é tão essencial para o processo de apropriação que Leontiev

(1978), recorrendo ao curso de Piéron sobre a hominização, comenta que, se fossem destruídas

todas as pessoas adultas da face da Terra e só restassem as crianças pequenas e as

objetivações, a história seria interrompida e teria que ser recomeçada, pois a continuidade da

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história deve-se à transmissão para as novas gerações da cultura humana por meio da

comunicação que se desenvolve entre as pessoas.

A proposição de que a linguagem e, portanto, as significações refletidas nela é a

mediadora do processo de constituição nos indivíduos particulares das funções que se

constituíram ao longo da história humana possibilitou romper concepções que isolavam a

atividade intelectual da atividade exterior, considerando a primeira como “manifestação de um

princípio espiritual particular – o mundo da consciência, oposto ao mundo da matéria e da

extensão” (Leontiev, 1978, p. 117). Essa concepção idealista que opõe espírito e matéria

influenciou determinadas correntes da Psicologia que postulam a oposição e a independência

da atividade intelectual/interior em relação à atividade prática/externa.

Segundo Leontiev, “a concepção tradicional do psiquismo distingue dois tipos de

fenómenos e processos. Os primeiros são fenómenos e processos interiores, que encontramos

em nós; as imagens sensíveis, os conceitos, as sensações e também os processos de

pensamento, da imaginação, da memorização voluntária, etc.” (1978, p. 140) e os outros são

fenômenos e processos que constituem o mundo da matéria e da extensão. “São a realidade

concreta que circunda o homem, o próprio corpo deste, os fenómenos e processos fisiológicos

que se realizam nele. Este conjunto constitui o domínio do físico, o mundo da ‘extensão’” (p.

140). Nessa visão, somente os primeiros, pelo seu caráter supostamente subjetivo, seriam

objetos de estudo da Psicologia. Por outro lado, a separação entre os fenômenos internos e

externos também serviu de base para a elaboração de um sistema psicológico que se dedicou a

estudar os fenômenos ou reações que são visíveis no homem. Vigotski contrapõe-se às visões

que se baseiam na idéia de um psiquismo como essência com existência própria. Para esse

autor, as funções psíquicas formam-se nos indivíduos, a partir das relações que estes

estabelecem com as outras pessoas e, portanto, por meio da mediação sígnica que possibilita

os processos de comunicação.

Assim, são duas as condições para que as apropriações tornem-se possíveis: as

propriedades biológicas herdadas e a comunicação com outras pessoas que ocorre por meio da

linguagem. “A criança, no momento do seu nascimento, não passa de um candidato à

humanidade, mas não a pode alcançar no isolamento: deve aprender a ser um homem na

relação com os outros homens” (Leontiev, 1978, p.239). A linguagem não é apenas um meio

de comunicação entre os homens. Ao longo do desenvolvimento histórico, ela passa a refletir a

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realidade na forma de significações, pois sintetiza/cristaliza as práticas sociais, sendo,

portanto, simultaneamente, objeto de conhecimento e mediadora do processo de apropriação

das produções humanas.

3 Mediação semiótica

Como discutimos, para Vigotski, “qualquer função no desenvolvimento da criança

aparece em cena duas vezes, em dois planos: primeiro como algo social, depois como algo

psicológico; primeiro entre as pessoas, como uma categoria interpsíquica, depois na criança

como uma categoria intrapsíquica (tradução nossa)” (1987, p. 161). Dessa forma, em termos

psicológicos, a apropriação é o processo que torna possível a transição para o plano individual,

das funções que, no início, foram construídas no plano social.

Toda função psíquica foi, no princípio de seu desenvolvimento na criança, uma função

externa. O que significa dizer que ela foi social, pois se formou a partir das relações entre

pessoas. Um exemplo específico desse processo, citado por Vigotski, é a linguagem. No

princípio, ela é uma das formas de comunicação entre as crianças e as pessoas que vivem à sua

volta, “mas, no momento em que a criança começa a falar para si, pode se considerar como a

transposição da forma coletiva de comportamento, para a prática do comportamento

individual” (tradução nossa) (1987, p.112), ou seja, a criança começa a exercer sobre si mesma

a ação que, antes, era exercida por outras pessoas. A função que estava dividida entre duas

pessoas se constitui, na criança, de forma unificada.

Para Pino (1992), no entanto, as análises disponíveis não são suficientes para auxiliar a

compreensão e a explicitação do que é apropriado e do processo de apropriação. Contudo, com

base em Vigotski, diz que o que é apropriado são as significações e, dessa forma, o processo

de apropriação é de natureza semiótica. Nesse sentido, considera que o conceito de mediação

semiótica pode fornecer elementos para a compreensão do processo de apropriação, porque

esse conceito

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Em primeiro lugar, revela-nos que tanto as interações sujeito-objeto – relações

epistemológicas – quanto às interações sujeito/sujeito – relações eminentemente

comunicativas – não são nem diretas nem imediatas, mas mediatizadas por ‘instrumentos

semióticos’. Em segundo lugar, que essa função mediadora dos ‘instrumentos semióticos’

(os signos) é papel da significação, não do significante nem do referente. Em terceiro lugar,

que, em razão da natureza da significação, ela acontece no próprio ato de comunicação,

qualquer que seja a forma como esta torna. Mesmo tratando dos significados das palavras

– as zonas mais estáveis da significação – não só eles são reconstituídos cada vez no

próprio ato da comunicação como admitem variações – ou sentidos, zonas menos estáveis

da significação – em função da subjetividade de cada um dos agentes do processo de

comunicação [grifos do autor] (Pino, 1992, p. 322).

Dessa forma, o que torna possível a constituição, no plano individual, das funções

psíquicas, é a mediação por intermédio dos signos. O signo que, no início do desenvolvimento

histórico da humanidade, nasceu da necessidade de os homens comunicarem-se e interferirem

sobre os outros, no processo de desenvolvimento infantil, é, também, um meio de conexão das

funções psíquicas que torna a apropriação possível.

Vigotski (1987) assinala que a invenção e o uso dos signos apresentam uma analogia

com a invenção e o uso de instrumentos, pois ambos expressam o caráter mediado das relações

humanas. Os signos nasceram da necessidade de os homens comunicarem-se com os seus

parceiros e de intervirem sobre eles e os instrumentos resultaram da ação do homem sobre a

natureza. Desse modo, signos e instrumentos são mediadores das relações construídas pelos

próprios homens para garantir a continuidade da história e a reprodução da espécie. No

entanto, o autor assinala que a analogia entre o signo e o instrumento não deve levar à

identificação desses conceitos, pois eles se diferem quanto à orientação: o instrumento é um

diretor da atividade externa do homem e, por isso, está dirigido para o domínio da natureza,

enquanto o signo é um meio de intervenção sobre si mesmo e sobre as outras pessoas e, dessa

forma, está dirigido para a atividade interna.

Vigotski (1987) chama de signo qualquer estímulo criado artificialmente pelo homem

que seja um veículo para o domínio da conduta alheia ou própria. A especificidade da

conduta humana resulta desta atividade fundamental: criação e utilização de signos. No plano

da linguagem, Bakhtin (1992) ajuda-nos a esclarecer essa questão e, por isso, as suas

elaborações têm uma importância fundamental. Para esse autor, a realidade psíquica/interior é

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a do signo e é por meio deste que o organismo e o mundo se encontram. O signo é um

fenômeno do mundo exterior, resultado das práticas sociais humanas, portanto o conteúdo da

atividade psíquica origina-se da realidade exterior e está impregnado por ela.

Afirma ainda que “os signos só podem existir em um terreno interindividual” (Bakhtin,

1992, p. 35). Isso significa que eles constituem-se entre indivíduos “que estejam socialmente

organizados, que formem um grupo (uma unidade social)” (p. 35). Se o conteúdo do

psiquismo é o signo, constituído no terreno interindividual, a explicação para o psiquismo,

para a atividade psíquica deve ser elaborada a partir dessa realidade. A consciência, segundo

Bakhtin,

adquire forma e existência nos signos criados por um grupo no curso de suas relações

sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu

desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da

comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a

consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra,

o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o

simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os

signos lhe conferem (1992, p. 35-6).

Ainda de acordo com Bakhtin (1992), o material semiótico da vida interior, da

consciência (discurso interior) é a palavra, a linguagem. A palavra, que resulta do consenso

entre indivíduos, constitui material veiculável pelo corpo. Nesse sentido, a realidade psíquica

é definida em termos da significação, pois esta é a função do signo; sem isso, o signo não é

signo e a palavra não é palavra. Sem a significação, não existe atividade psíquica.

Por significação, [...] entendemos os elementos da enunciação reiteráveis e idênticos cada

vez que repetidos. Naturalmente, esses elementos são abstratos: fundados sobre uma

convenção, eles não têm existência concreta independente, o que não os impede de formar

uma parte inalienável, indispensável, da enunciação (p. 129).

Dessa forma, as significações mantêm uma dependência direta com os contextos onde

são produzidas e, portanto, com o contexto interlocutivo. Bakhtin (1992) assinala que a

diferença entre o signo interior e signo exterior reside no fato de a significação realizada por

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meio da atividade psíquica/interior se dirigir para o próprio indivíduo. Apesar de o conteúdo

semiótico do psiquismo se constituir na prática social dos homens e, portanto, refletir a lógica

e as leis da interação semiótica de um grupo social, ele pertence também ao sistema do

psiquismo individual. Assim, o signo interior, que é a palavra, o discurso interior, assemelha-

se mais “às réplicas de um diálogo. Não é por acaso que os pensadores da Antigüidade já

concebiam o discurso interior como um diálogo interior” (Bakhtin, 1992, p. 63). A linguagem,

a palavra são signos por excelência. É especialmente por meio da linguagem que as pessoas

agem umas sobre as outras num processo contínuo de autotransformação. Por isso, a

linguagem é uma das mais importantes criações da humanidade.

Neste estudo, focalizamos a linguagem escrita como signo e como tal “possuidora de

significado que artificialmente serve aos sujeitos como apoio às funções psicológicas”

(Azenha, 1995, p. 65). Smolka e Góes, ao analisarem algumas características do processo de

produção de texto em crianças que cursavam os anos iniciais de escolarização, consideram,

com base em Vigotski, que a linguagem escrita, mesmo se tratando de um sistema de

produção de linguagem distinto da linguagem oral, tem funções comunicativa e individual

assim como a linguagem oral. “A função individual se estabelece, inicialmente, quando a

escrita é feita apenas para si, utilizada como recurso de memória (coisas para lembrar) de auto-

organização (coisas para orientar) ou de fruição (coisas para expressar)” (p.68). As autoras

argumentam ainda que “depois, também a escrita para o outro assume uma função individual,

de natureza bem mais complexa, ao permitir que o sujeito desenvolva uma atitude de análise

ante seu discurso e pensamento. Nesse processo a função comunicativa da escrita contribui

para aprimorar a função individual, a de organizar e regular o próprio pensamento” (1992,

p.68).

Evidenciamos, neste estudo, a função individual da escrita, focalizando os processos

que se constituem nas crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a usar a

escrita como recurso mnemônico, como recurso para lembrar. Muitos autores, na década de

setenta, buscaram investigar os processos que se desenvolvem na criança durante esse período,

que começa pelo uso de letras para escrever até o momento em que passa a dominar a forma

cultural da escrita. O estudo de Ferreiro e Teberosky (1989), mais recentemente divulgado no

Brasil, focalizou esse período. Entretanto, essas autoras se detiveram na análise das tentativas

de as crianças relacionarem o oral e o escrito e nas diferentes formas como compreendem essa

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relação. Desse modo, enfocaram a escrita como um sistema de signos relacionados

especificamente com o contexto lingüístico.

A escrita está ligada a esse contexto e é fundamental que as crianças que estão sendo

alfabetizadas compreendam essa relação. Durante o estudo, observamos como essa

compreensão é fundamental para a superação de uma atividade gráfica baseada na reprodução

das características externas da escrita. Vigotski, ao escrever algumas considerações sobre a

pré-história da linguagem escrita, aponta pertinentemente que a escola tem ensinado as

“crianças a desenhar as letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem

escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se

obscurecendo a linguagem escrita como tal” (1989a, p. 119). A mecânica do ler e escrever,

para Vigotski, está ligada aos processos de codificação da língua oral em escrita (escrever) e

de decodificação da língua escrita em língua oral (ler). Desse modo, refere-se a um processo

de representação de fonemas em grafemas (escrever) e de grafemas em fonemas (ler). Assim,

as práticas de ensino que levem em conta apenas esses processos, para Vigotski (1989a),

obscurecem o que é essencial na linguagem escrita. A essência da escrita está no fato de que

esta é um sistema de símbolos e signos. A escrita constitui, segundo Vigostski um simbolismo

de primeira e segunda ordens. Ele explica esse simbolismo dizendo:

isso significa que a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam

os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e

entidades reais. Gradualmente, esse elo intermediário (a linguagem falada) desaparece e a

linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as

entidades reais e as relações entre elas (1989a, p. 120).

A citação, reproduzida no parágrafo anterior, pode parecer incoerente com a visão

apresentada por Vigotski de que a escola enfatiza apenas a mecânica do ler e escrever,

deixando de apresentar, portanto, o que é essencial na linguagem escrita: a sua relação com

contextos extralingüísticos. Acreditamos que não há incoerência, pois ele quer se referir às

práticas de ensino que se limitam a ensinar a linguagem escrita como um processo unicamente

de associação entre as respostas sonoras e sinais gráficos, reduzindo a aprendizagem ao nível

sensório. A linguagem escrita representa os sons da fala e, como mencionamos, essa é uma

aprendizagem necessária, mas não pode ser reduzida a essa relação, senão será esvaziada das

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significações que possibilitam a realização das suas funções.

4 Com referência à metodologia

A definição de uma abordagem metodológica que leve em conta a perspectiva teórica

que orienta o estudo não é uma tarefa fácil para o investigador; porém, necessária para garantir

uma busca profunda e radical das determinações e mediações históricas que constituem o

fenômeno social a ser destacado na pesquisa. Neste trabalho, partimos dos preceitos

fundamentais da Psicologia Histórico-Cultural e, por isso, consideramos que os pressupostos

que orientam o método instrumental ou método histórico-genético são adequados para o

estudo da apropriação da linguagem escrita pelas crianças na fase inicial de alfabetização.

O método instrumental foi elaborado por Vigotski para estudar o desenvolvimento das

funções psicológicas superiores. Ele “é um método histórico-genético que proporciona a

investigação do comportamento de um ponto de vista histórico” (1996, p. 98). O autor chama

a atenção para que o “método instrumental nada tem em comum (exceto o nome) com a teoria

da lógica instrumental de J. Dewey e outros pragmatistas” (p. 99).

Esse método, segundo Vigotski,

não estuda apenas a criança que se desenvolve, mas também aquela que se educa [...]. A

educação não pode ser qualificada como do desenvolvimento artificial da criança. A

educação é o domínio artificial dos processos de desenvolvimento. A educação não apenas

influi em alguns processos de desenvolvimento, mas reestrutura as funções do

comportamento em toda sua amplitude (1996, p. 99).

. Nesse sentido, o método instrumental “estuda o processo de desenvolvimento natural e

da educação como um processo único e considera que seu objetivo é descobrir como se

reestruturam todas as funções naturais de uma determinada criança em um determinado nível

de educação” (1996, p. 96). Assim, o método instrumental

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procura oferecer uma interpretação de como a criança realiza em seu processo

educacional o que a humanidade realizou no transcurso da longa história do trabalho, ou

seja, ‘põe em ação as forças naturais que formam sua corporeidade [...] para assimilar

desse modo, de forma útil para sua própria vida, os materiais que a natureza lhe brinda’

(1996, p. 96).

Partindo do princípio do caráter mediado dos processos psíquicos, Vigotski considera

que esses processos somente podem ser estudados no seu desenvolvimento histórico-genético.

Para Vigotski (1987), estudar um fenômeno historicamente significa estudá-lo em seu

movimento, ou seja, à medida que ele se desenvolve. O estudo histórico de um fenômeno

possibilita “abarcar na investigação o processo de desenvolvimento de alguma coisa, em todas

as suas fases e transformações – desde que surge até o seu desaparecimento (tradução nossa)”

(1987, p. 74). Somente por intermédio do estudo histórico, é possível, portanto, descobrir a

natureza e a essência dos fenômenos.

Essa última consideração conduz à visão de que os processos psíquicos devem ser

analisados tendo por base três pressupostos:

a análise do processo e não das coisas; a análise, que descobre o enlace e a relação

dinâmico-causal real, e não a análise que decompõe os traços externos do processo,

portanto, uma análise explicativa e não descritiva e, por fim, a análise genética, que

regressa ao ponto de partida e restabelece todos os processos do desenvolvimento de uma

determinada forma que, em seu aspecto presente, já aparece como uma fossilização

psicológica (tradução nossa) (Vigotski, 1987, p. 113).

Com relação ao primeiro pressuposto, relacionado com a análise dos processos e não

das coisas, Vigotski esclarece que a Psicologia de sua época tratava sempre o fenômeno

estudado como uma coisa conhecida e a tarefa do investigador residia na decomposição da

coisa em partes. Na perspectiva do autor, os fenômenos psicológicos deveriam ser analisados

como processos, nos seus diferentes momentos. O segundo postulado em que se apóia a

concepção de Vigotski, sobre a análise dos processos psicológicos, consiste na contraposição

das tarefas descritivas e explicativas. Dessa forma, considerava que a “tarefa verdadeira das

análises em qualquer ciência é, precisamente, descobrir os enlaces e as relações dinâmico-

causais reais, que estão na base de qualquer fenômeno (tradução nossa)” (1987, p.109).

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Desse modo, a tarefa do pesquisador não deve se restringir à descrição dos fenômenos,

na forma como esses aparecem aos olhos do observador. Com base em Engels, argumenta que

toda ciência seria supérflua se a essência dos fenômenos coincidisse com sua aparência. Por

isso, as manifestações externas de um determinado fenômeno devem ser submetidas à

explicação, para que se descubra a sua essência, ou seja, as relações reais (internas e externas)

que possibilitam o surgimento e o desenvolvimento de um fenômeno. O terceiro postulado que

deve fundamentar as análises dos fenômenos psicológicos baseia-se na idéia de que o

investigador deve analisar processos e não condutas já fossilizadas ou mecanizadas.

Os três postulados, considerados por Vigotski (1987) fundamentais para o estudo

histórico-genético do psiquismo humano, retratam a sua preocupação na construção de uma

metodologia adequada à Psicologia que pretendeu elaborar, fundada no materialismo histórico

e dialético. Por isso, a partir do pressuposto de que os processos psicológicos só poderiam ser

compreendidos historicamente, apontou ainda que, para romper comportamentos

mecanizados, é necessário que a tarefa a ser solucionada pela criança, durante as

investigações, esteja além de sua capacidade, ou seja, não pode ser solucionada com as

habilidades que ela possui no momento e deve propiciar ainda a utilização de instrumentos

auxiliares para efetuá-las.

O método instrumental ou histórico-genético, segundo Vigotski (1996), pode utilizar

procedimentos técnicos de investigação, tais como, a observação e a experimentação. A

observação possibilita que o pesquisador observe como os processos psíquicos explicitam-se e

formam-se nos indivíduos por meio da práxis.

Com relação à experimentação, o próprio Vigotski (1987) aponta os seus limites e

assinala que sempre devemos nos perguntar como se desenvolve, nas condições de vida real,

um processo analisado em condições experimentais. Nesse sentido, Leontiev (1988), ao

analisar as questões metodológicas relativas ao desenvolvimento do psiquismo infantil,

assinala que esse desenvolvimento é determinado pela vida da criança, pelo desenvolvimento

dos processos reais desta vida. E, por isso,

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ao estudar o desenvolvimento da psique infantil, nós devemos, por isso, começar analisando

o desenvolvimento da atividade da criança como ela é construída nas condições concretas

de vida. Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das condições externas

de sua vida, como das potencialidades. Com esse modo de estudo, baseando-se na análise

do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é que podemos compreender

de forma adequada o papel da educação e da criação [grifos nossos], operando

precisamente em sua atividade, em sua atitude diante da realidade, e determinando,

portanto, sua psique sua consciência (1988, p. 63).

Nessa perspectiva, o processo de apropriação da linguagem escrita deve ser estudado

nas condições reais em que ele ocorre. Dessa forma, buscamos analisar como esse fenômeno

se desenvolve nas crianças que estão participando de um processo formal de aprendizagem.

Sabemos, conforme assinala Marx, que as condições concretas, nas quais os indivíduos

constroem sua vida, têm dificultado a plena humanização, pois esse processo desenvolve-se

sob relações de dominação, exclusão e alienação. Na escola, e no que se refere à apropriação

da linguagem escrita, isso não é diferente. Porém, nessa perspectiva, os processos de

produção e divulgação de conhecimento não renunciam aos conflitos; buscam evidenciá-los,

pois isso é imprescindível na luta pela transformação das relações sociais marcadas pela

alienação e exclusão.

4.1 Implicações metodológicas

O estudo da apropriação da linguagem escrita e a opção metodológica adotada

colocam alguns problemas, pois, com base nos pressupostos metodológicos da Perspectiva

Histórico-Cultural, é possível supor que o (a) pesquisador (a) poderá criar situações em que

serão propostas às crianças tarefas que buscarão evidenciar o processo de apropriação da

escrita. Essas tarefas deverão levar em conta os pressupostos dessa perspectiva, anteriormente

mencionados: estar além das capacidades já aprendidas pelas crianças e propiciar a

utilização/criação de mecanismos auxiliares para a realização da tarefa. Por outro lado, o (a)

pesquisador (a) poderá optar pela observação do processo analisado no contexto em que se

desenvolve, ou seja, poderá observar como as crianças aprendem a utilizar a escrita na sala de

aula.

Luria (1988), durante o estudo que realizou sobre a pré-história da escrita, optou por

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procedimentos metodológicos que consistiam na produção de registros que deveriam ser

elaborados de modo a possibilitar a lembrança de um conteúdo: a tarefa era lembrar uma série

de palavras ou frases que não podiam ser reproduzidas oralmente sem a ajuda de um

mecanismo auxiliar. Esse encaminhamento possibilitou ao autor observar as fases pelas quais

a criança passa até chegar a utilizar marcas, pontos, desenhos, etc. como símbolos,

identificando os mecanismos que ajudavam a recordar os significados anotados. Sendo assim,

as crianças que participaram do trabalho desenvolvido pelo autor não estavam inseridas em

um processo de escolarização, aprendendo o sistema de símbolos, convencionalmente, usado

para escrever. Além disso, o desenvolvimento dos registros produzidos pelas crianças foi

observado em condições em que foram necessárias intervenções específicas, ou seja, a

introdução no conteúdo das frases e palavras que eram escritas pelas crianças de fatores

(forma, quantidade, cor, etc.) que possibilitaram o surgimento de grafias expressivas.

Assim, uma solução metodológica para a realização deste trabalho poderia ser a

proposição de tarefas para as crianças, com base nos delineamentos metodológicos da

pesquisa desenvolvida por Luria (1988). Outra solução seria partir para um estudo que

consistiria na observação da prática escolar de alfabetização e, assim, verificar como esse

fenômeno se desenvolve na criança na sala de aula. Assim, optamos, para encaminhamento

deste estudo, por procedimentos que foram desenvolvidos da seguinte forma: foram realizadas

observações na sala de aula com o objetivo de identificar como o processo de alfabetização se

desenvolvia naquele contexto e, também, adotamos procedimentos que se basearam na

proposição de tarefas para as crianças envolvidas no estudo, que consistiram na produção oral

de textos e, em seguida, no registro do texto produzido oralmente. Retomaremos, no próximo

capítulo, de forma detalhada, os procedimentos utilizados para o encaminhamento do que

denominamos de atividades de produção de textos, mas, de modo geral, as atividades

consistiram nas seguintes etapas: a) elaboração de um texto oral pelas crianças e registro pela

pesquisadora; b) registro do texto pela criança; c) tentativa de interpretação das grafias

registradas pelas crianças, após serem incentivadas a usar a escrita como recurso mnemônico.

Desse modo, a análise que elaboramos do processo de apropriação da linguagem escrita, partiu

das informações coletadas durante as observações do trabalho cotidiano desenvolvido pelos

alunos e pela professora, na sala de aula, privilegiando-se as atividades que envolviam o

trabalho com a linguagem escrita, e, fundamentalmente, das informações coletadas durante as

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atividades de produção de textos, planejadas com a professora da classe, e orientadas pela

pesquisadora com cada criança individualmente. Com base no objetivo do estudo, analisamos,

principalmente, o que ocorria no momento em que as crianças registravam os textos

produzidos oralmente (movimentos de registro e emissões verbais) e o momento, após o

registro, em que buscavam se relacionar com a escrita para lembrar o texto. Dessa forma, a

escrita produzida pelas crianças também se tornou um material privilegiado para as análises. A

atividade de produção de texto foi proposta às crianças durante cinco momentos do ano letivo.

Apenas, no terceiro momento, pedimos que escrevessem um poema já elaborado previamente.

Sabemos que a aprendizagem da linguagem escrita na escola marca o início de um

novo processo, em que a maioria das tarefas realizadas pelas crianças passa a exigir o uso do

sistema de escrita. Assim, as atividades propostas às crianças, durante a alfabetização, trazem

para elas o desafio de lidar com uma das mais importantes produções simbólicas: a escrita. A

simples escrita de uma lista de palavras, por exemplo, coloca a necessidade da utilização desse

mecanismo artificial. Assim, priorizamos as atividades de produção de texto, porque tal

atividade coloca para a criança a necessidade de usar a escrita para finalidades psicológicas.

Além disso, a produção de textos possibilita aos indivíduos, historicamente situados, a

enunciação de seu ponto de vista sobre a realidade, pois o discurso produzido pelas crianças,

no texto, não é uma mera reprodução dos discursos já constituídos e nem mesmo uma

produção única de um indivíduo particular. Os textos se constituem, pois, articuladamente às

formas já constituídas de perceber e pensar a realidade e que se renovam em cada discurso.

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Capítulo IV

Escola, rituais, professora e crianças

No início da pesquisa, consideramos importante: a) caracterizar a escola-campo e a

sala de aula; b) descrever o cotidiano da escola e da sala de aula; c) caracterizar os sujeitos

envolvidos no estudo (professora e crianças); d) caracterizar o método de alfabetização

utilizado pela professora para ensinar as crianças a ler e a escrever. Não pretendemos elaborar

uma análise pormenorizada dessas informações. Nosso objetivo com essa descrição é mostrar

as características da escola, professora e alunos envolvidos na pesquisa. Sabemos, que essas

informações nos colocam diante de uma realidade que se repete em muitas escolas públicas

brasileiras. No entanto, existem aspectos que são próprios, específicos de cada escola e dos

sujeitos que participaram deste estudo. Por isso, consideramos conveniente contextualizar a

realidade para não incorrermos no risco de estabelecer generalizações que nem sempre

traduzem as particularidades e características das escolas públicas e dos atores que estão

presentes nesses contextos.

1 A escola

Para realização da pesquisa, escolhemos uma escola da rede pública municipal de uma

cidade do interior de São Paulo. O caráter público da escola foi o único critério utilizado para

sua escolha. A escola está situada em um bairro periférico e foi incorporada à rede municipal

no ano de 1996. A arquitetura da escola é a mesma dos CAICs, construídos para atender os

alunos do Ensino Fundamental. A escola, na época de sua fundação, objetivava atender os

alunos na faixa etária de quatro a seis anos; porém, em 1999, ela passou a atender os alunos

das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Para a caracterização da escola, utilizamos um questionário (ANEXO A) que foi

preenchido pela pesquisadora, com base em uma entrevista realizada com a diretora da escola

e com a coordenadora pedagógica. As perguntas que compunham o questionário visavam a

obter informações sobre os aspectos físicos e sobre os recursos humanos e materiais. As

informações sobre a rotina da escola foram obtidas por meio da observação das atividades que

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se desenvolviam diariamente na escola. Essas observações foram escritas no diário de campo

(ANEXO B) e transcritas para esta parte do trabalho.

A escola possuía vinte e seis salas de aula funcionando em cada um dos dois turnos

(matutino e vespertino), somando um total de cinqüenta e duas salas de aula. Funcionavam

ainda mais três turmas no turno noturno, atendendo alunos que não tiveram acesso à rede

regular de ensino na idade própria ou que não puderam concluir o ensino fundamental

(suplência da 1a a 4a séries).

A maioria das salas de aula encontrava-se em ótimo estado de conservação. Entretanto,

alguns professores tinham que realizar seu trabalho com as crianças em salas improvisadas o

que impunha grandes dificuldades. Isso porque os espaços destinados, no projeto original dos

CAICs, à biblioteca, ao depósito e às salas ambientes foram transformados em salas de aula.

Dessa forma, espaços mais amplos, como o da biblioteca, abrigavam quarenta alunos em fase

de alfabetização (primeira série).

Havia ainda, na escola, uma única sala que foi transformada em biblioteca, refeitório

para os funcionários, sala de vídeo e sala para planejamento das aulas. Essa sala deveria ser

destinada às atividades de Artes e, por isso, possuía grandes bancadas feitas de cimento e pias

para lavagem dos materiais utilizados nas aulas. Os livros de literatura infantil, dicionários,

enciclopédias e os livros para estudo dos professores estavam arrumados nas estantes, no

início do ano, sem o menor cuidado. Com a chegada do inspetor de alunos, no segundo

semestre do ano, os livros foram arrumados e catalogados, conforme o tipo de obra.

As reuniões de planejamento das atividades escolares eram feitas no horário inverso,

ou seja, os professores que lecionavam no turno vespertino planejavam suas atividades, uma

vez por semana, no turno matutino e vice-versa. Essas reuniões eram realizadas na sala

mencionada no parágrafo anterior e na sala da coordenadora pedagógica. Uma das salas

destinada às reuniões foi transformada em sala para as atividades de reforço das crianças que

apresentavam um baixo desempenho escolar. Existia ainda uma sala para a direção e outra

para a secretaria. O refeitório era amplo, com bancos e mesas para as refeições.

Quanto aos recursos humanos, a escola possuía 31 professores atuando no turno

matutino, 31 no turno vespertino e três no noturno. A média de alunos por turma, segundo a

direção da escola, era de trinta e cinco; havia 684 alunos estudando nas turmas de Educação

Infantil e 988 estudando nas turmas do Ensino Fundamental, totalizando 1.672 alunos.

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O corpo técnico-administrativo era formado por uma diretora, uma vice-diretora, uma

coordenadora pedagógica, dois inspetores (contratados no segundo semestre) uma secretária e

um auxiliar administrativo para atender aos três turnos. A escola possuía ainda três faxineiras

que cuidavam da limpeza nos três turnos e quatro merendeiras que atendiam, também, os três

turnos.

No Ensino Fundamental funcionavam, nos turnos matutino e vespertino, sete turmas de

primeira série, sete turmas de segunda série, seis turmas de terceira série e oito turmas de

quarta série, somando um total de vinte e oito turmas. Na Educação Infantil, funcionavam

quatro turmas que atendiam as crianças na faixa etária de quatro anos, dez turmas para alunos

na faixa etária de cinco anos e oito turmas que atendiam alunos na faixa etária de seis anos.

Quanto aos recursos audiovisuais, segundo a direção, a escola possuía quatro

televisores, dois vídeos e um aparelho de som. Apenas dois dos televisores encontravam-se na

escola. No entanto, o televisor e o vídeo eram pouco usados, pois ficavam em lugares que se

destinavam à realização de outras atividades.

Tendo em vista o número de alunos em cada turno, a rotina da escola era difícil e

marcada por rituais que visavam a garantir a disciplina e a ordem. Todos os dias, às sete horas,

o sinal anunciava o horário da entrada dos alunos do Ensino Fundamental. Em fila e guiados

pelas professoras, todas as crianças dirigiam-se ao refeitório para o desjejum. Do refeitório, os

alunos eram encaminhados para as salas de aula. Uma nova entrada é anunciada. Dessa vez, os

alunos da Educação Infantil. O ritual é o mesmo: às sete horas e trinta minutos, dirigiam-se

para o refeitório e, em seguida, para a sala de aula.

Durante o primeiro semestre, às nove horas e trinta minutos, começavam os horários

dos três recreios que existiam na escola. Primeiro, as professoras da Educação Infantil saíam

das suas salas, durante quinze minutos, para o seu recreio. Após os quinze minutos de

descanso, retornavam às suas classes e levavam os seus alunos para merendarem no refeitório.

As professoras das primeiras e segundas séries deixavam suas salas, às nove horas e quarenta e

cinco minutos, para o seu horário de descanso e lanche e retornavam às dez horas para

levarem as crianças para merendar. O mesmo ocorria com as professoras das turmas de

terceira e quarta séries. Durante o recreio das professoras, os alunos ficavam sozinhos nas

salas de aula realizando alguma atividade proposta pela professora. No entanto, não era bem

isso que acontecia: devido ao barulho, facilitado pela estrutura do prédio, a partir das nove

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horas e trinta minutos até às dez horas e trinta minutos, quando terminavam os recreios dos

professores e dos alunos, era difícil desenvolver qualquer trabalho nas salas de aula.

O tempo de recreio das crianças era ocupado, quase exclusivamente, com a merenda e

com a ida ao banheiro. Mesmo os alunos que não queriam merendar tinham que ficar sentados

esperando os colegas que merendavam. As professoras de cada turma ficavam no pátio,

durante os poucos minutos que sobravam para as brincadeiras. No entanto, não havia

brincadeiras. Na realidade, havia muitas brigas entre os alunos e correrias.

Após o recreio de todas as turmas, a escola voltava a uma certa calma. Às onze horas e

trinta minutos, os alunos da Educação Infantil voltavam para suas casas e, às doze horas, os

alunos do Ensino Fundamental faziam o mesmo.

Essa rotina durou até o final do primeiro semestre. No começo do segundo semestre,

conforme mencionamos, a rede de ensino admitiu inspetores escolares. Com a chegada de dois

deles, um para cada turno, continuaram a existir três recreios: o primeiro começava às nove

horas e trinta minutos (Educação Infantil), o segundo começava às dez horas (primeira e

segunda séries) e o terceiro começava às dez horas e trinta minutos (terceira e quarta séries);

porém os professores não eram mais responsáveis pelo controle das crianças nesse horário. Os

recreios passaram a ter duração de vinte minutos, com intervalos de dez minutos entre um e

outro para que os alunos pudessem regressar às suas salas.

2 Mais rituais

A classe envolvida neste trabalho era uma das turmas da primeira série do Ensino

Fundamental. A definição da classe ocorreu, em uma reunião, no início do ano, após

apresentação para toda a equipe da escola do projeto de pesquisa. Dessa forma, foram os

próprios profissionais que atuavam na escola que definiram a classe onde foi realizado o

trabalho.

Após a definição da classe, passamos a coletar as informações sobre as crianças que

constavam da ficha de matrícula e certidões de nascimento. Terminada essa coleta, iniciamos

nossas observações da sala de aula. O trabalho realizado pelos alunos e professora foi filmado,

transcrito e algumas situações serão descritas neste item. Iniciaremos pela atividade cotidiana

que se desenrolava nesse espaço.

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Assim que as crianças chegavam à sala de aula, eram iniciados novos rituais que

começavam por uma música, cantada por todos. Em seguida, repetiam as normas da classe

para, então, iniciar a escrita do cabeçalho (nome da escola, nome da cidade, data, número de

alunos que estavam presentes, nome do ajudante do dia e nome do próprio aluno). Somente

após essas atividades, a professora iniciava novas atividades.

Descreveremos como se desenvolvia essa rotina, com base nas filmagens que fizemos

no início do ano e, depois, escreveremos como era organizada a sala de aula, conforme

informações registradas no diário de campo. Omitiremos, na descrição que se segue, os nomes

da escola e da cidade onde foi desenvolvida a pesquisa.

Depois que entravam na sala de aula, a professora definia os lugares onde cada criança

deveria sentar-se. Aquelas que haviam faltado no dia anterior ficavam de pé aguardando que

todos os outros se sentassem para, depois, a professora indicar onde deveriam sentar. As

crianças, então, organizavam os materiais sobre a carteira e...

Professora: Em pé para cantar.

Crianças: (Todos cantam e fazem os gestos).

“Bom dia, ó professora!

De volta à escola estou.

Deixei a mamãe em casa

Agora, estudar eu vou.

Palma, palma, palma.

Pé, pé, pé.

Roda, roda, roda.

A escola boa é”.

Terminada a música, os alunos sentavam-se recitando os versos:

Em minha cadeira eu vou me sentar.

Bom dia, amiguinhos!

A aula já vai começar.

Bom dia, meu Deus querido

Viemos aqui para estudar.

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Nós queremos que o Senhor

Venha nos abençoar.

Após terminarem de recitar os versos, as crianças repetiam, todas juntas, as três normas

da classe.

Professora: Como vocês passaram o dia ontem?

Crianças: Bem.

Professora: Então tá. Regras da sala. Número um.

Crianças: Respeitar as pessoas.

Professora: Número dois.

Crianças: Não estragar as coisas.

Professora: Número três.

Crianças: Conversar na hora certa.

Ao terminarem de recitar as normas da classe, escreviam o cabeçalho, o número de

alunos que estavam presentes na classe, o número de alunos faltantes e o nome do ajudante do

dia. O ajudante do dia era responsável pela distribuição e coleta dos materiais utilizados

durante a aula. Vejamos como ocorria essa atividade diariamente.

Professora: Qual é o nome da nossa escola?

Crianças: Escola...

A professora escreve no quadro o nome da escola.

Professora: Agora todo mundo junto (aponta para que as crianças leiam).

Crianças: Escola...

Professora: Qual é o nome da nossa cidade?

Crianças: (Falam o nome da cidade).

A professora registra na lousa o nome da cidade.

Professora: Que dia é hoje?

Crianças: Trinta

Professora: Trinta de que mês?

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Crianças: Março.

Professora: De que ano?

Crianças: Dois mil.

Professora: Muito Bem! Hoje o tempo está...

Crianças: Sol.

Professora: Com sol.

Um aluno começa a tirar o agasalho.

Professora: Vamos contar quantos alunos têm.

Crianças e professora: Um, dois, três, quatro, cinco... vinte e oito.

Professora: Quantos alunos estão faltando?

Crianças: Vinte e oito.

Professora: Vinte e oito é quantos têm. Quantos estão faltando hoje?

Criança 1: Dezenove?

Professora: Não. São trinta e seis no total. Vinte e oito pra chegar a trinta e seis vai faltar

quanto?

Criança 2: Vinte e nove.

Criança 3: Dez.

Professora: Vinte e oito, vinte e nove... trinta e dois... (a professora vai contando nos dedos e

mostrando para as crianças. Algumas crianças fazem o mesmo).

Criança 4: Oito (mostra os dedos, pois terminara de contar primeiro).

Crianças e professora: Trinta e três, trinta e quatro... trinta e seis.

Professora: Vai faltar quanto? (mostrando os dedos da mão).

Várias vozes de crianças: dez, cinco, oito...

Professora: Oito alunos estão faltando (anota na lousa). Quem foi ajudante ontem?

Criança 4: O Adriano.

Criança 5: Alanderson.

Professora: Ontem foi o Alanderson (vai até a mesa e procura a lista de presença dos alunos

para saber qual é o próximo da lista). Quem é o ajudante hoje?

Crianças: Alessandra.

Professora: Alessandra. Muito bem! Fábio, troca de lugar com a Alessandra, por favor (a

ajudante ou o ajudante tinha um lugar específico para se sentar, mais próximo à

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lousa e, nesse dia, o Fábio ocupava o lugar da ajudante). Qual é a primeira letra do

nome da Alessandra?

Crianças: A, a, a.

Professora: E a última?

Crianças: A, a, a, a.

Professora: Quem mais da classe começa com “A”?

Criança 5: Adriano.

Professora: Andrey, Ana Paula, Alanderson, Alexandre.

Criança 5: Adriano.

Professora: Vamos contar quantas letras.

Crianças: Um, dois, três... dez (a professora aponta as letras enquanto os alunos contam).

Professora: Quantas letras?

Crianças: Dez.

Professora: Tem mais ou tem menos letras que o nome do Alanderson?

Crianças: Igual, igual.

Professora: Igual, por quê? Quantas letras tem o nome do Alanderson?

Crianças: Dez.

Professora: Eu vou passar o caderno e vocês começam a escrever o calendário.

Os alunos, então, escreviam o cabeçalho no caderno e, em seguida, a professora

entregava uma folha com o calendário do mês que era preenchido, a cada dia, com o numeral

correspondente ao dia do mês e com o desenho de como estava o tempo (ensolarado, chuvoso,

nublado, etc.).

Com relação ao espaço físico da sala de aula, o ambiente era amplo, com alguns

cartazes espalhados pelas paredes (letras do alfabeto, um cartaz dos ajudantes do dia e um

cartaz dos aniversariantes). Com o tempo, alguns outros cartazes foram colocados nas paredes

(textos estudados, famílias silábicas, calendário, etc.). A professora da classe mantinha à

disposição das crianças, para uso coletivo, lápis de cor, borrachas e lápis cera. Esses materiais

eram colocados sobre uma carteira no fundo da sala. A sala possuía ainda dois armários que

eram utilizados pelas professoras dos turnos matutino e vespertino. Durante o primeiro

bimestre, na maior parte do tempo, as carteiras eram organizadas em filas. Em alguns

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momentos, as crianças trabalhavam sentadas em duplas. A partir do segundo bimestre, a

professora dispôs as carteiras formando dois retângulos. Segundo a própria professora, essa

forma de organização inibiria as andanças na sala de aula. No segundo semestre, as carteiras

foram dispostas em filas.

3 As professoras da classe

Trabalhavam na classe onde estudavam os alunos envolvidos na pesquisa duas

professoras: uma responsável pelas aulas de Educação Física e outra responsável pelo

desenvolvimento das outras áreas do currículo. Havia duas aulas de Educação Física

distribuídas durante a semana. Não foi possível conhecer o trabalho da professora responsável

por essas aulas. Estávamos interessada pelas atividades desenvolvidas pela segunda

professora, relacionadas com a aprendizagem da linguagem escrita. Por isso, utilizamos um

questionário (ANEXO C) destinado à caracterização da professora responsável diretamente

por esse trabalho. O questionário visava a coletar informações para caracterização da

professora, tendo ainda por finalidade identificar dados sobre a formação/qualificação da

professora para o exercício da função. O questionário foi preenchido pela própria professora.

A professora responsável diretamente pela alfabetização das crianças era do sexo

feminino, com trinta anos de idade. Ela trabalhava apenas em uma escola, mas, às vezes,

substituía outros professores no horário inverso. Pertencia ao quadro de professores efetivos e

não exercia outra atividade profissional. Possuía licenciatura plena em Educação Física. Sua

experiência como professora era de dez anos de atuação, exercida unicamente na docência no

Ensino Fundamental (1a a 4a séries). Afirmou ter participado de cursos que contribuíram para a

sua formação, tais como: Classes de aceleração, práticas pedagógicas (90 horas) e Formação

de contadores de histórias. Disse ainda que era vinculada ao sindicato dos professores da rede

municipal de ensino. Quanto ao nível de informação por meio de leitura, afirmou que lia

jornais, revistas e periódicos. Os títulos citados foram as revistas Nova Escola, Veja e o jornal

Folha de São Paulo. Ela disse que, às vezes, participava de congressos, seminários ou

encontros similares. Suas atividades culturais mais freqüentes eram ouvir rádio (sempre),

assistir à TV (às vezes), assistir a vídeos (às vezes), ir ao cinema (às vezes) e ir ao teatro (às

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vezes). Afirmou ainda que sempre lia jornais locais, periódicos na área da educação, livros

didáticos, livros variados sobre educação, periódicos diversos, romances, biografias e ficção.

Quanto à concepção de alfabetização da professora, acreditamos que pode ser

identificada no poema escrito para prefaciar o livro de histórias das crianças:

Ler e escrever é muito mais que juntar letras e formar palavras.

Ler é ver mais do que está escrito, é descobrir o que o outro pensou.

Escrever é poder deixar a nossa marca numa folha, num caderno, no mundo.

Ler e escrever é saber que isso foi construído aos poucos, com a ajuda de muitos e a

própria força de vontade.

É importante esclarecer que, no final do ano, elaboramos, juntamente com a professora

e as crianças da classe, um livro com as produções das crianças. Os textos, contidos no livro

foram produzidos durante as atividades de produção de textos, orientadas pela pesquisadora. O

livro foi intitulado pelas crianças de Nossas histórias. A organização do livro teve um caráter

pedagógico importante, durante a construção da base de informações para a pesquisa.

Consideramos que as crianças deviam produzir textos para que estes fossem, de alguma

maneira, publicados e lidos por outras pessoas e não apenas pela pesquisadora ou pela

professora. Por isso, no decorrer da pesquisa, planejamos duas estratégias de divulgação dos

textos: a primeira, já mencionada e, a segunda, por meio da confecção de um mural, intitulado

Nossas brincadeiras onde foram divulgados textos que versavam sobre essa temática.

4 As crianças

No início do trabalho, portanto, no momento da coleta de informações que constam

neste item, foram sujeitos da pesquisa trinta e cinco crianças que estavam matriculadas na

primeira série do Ensino Fundamental da escola escolhida. Porém, esse número variou durante

o ano e, assim, participaram do trabalho, durante o ano, trinta e nove crianças. No entanto, é

importante esclarecer que o número de crianças que participou das atividades de produção de

textos variou em função das matrículas novas e de transferências e, também, devido à própria

dinâmica estabelecida para a coleta.

Para caracterização das crianças envolvidas no estudo, utilizamos um formulário

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(ANEXO D) que foi preenchido por meio de consulta à ficha de matrícula e à certidão de

nascimento, existentes na Secretaria da escola, entrevista com as crianças e, por fim, foi

encaminhado um outro formulário (ANEXO E) aos pais ou responsáveis pelos alunos,

solicitando informações que não puderam ser obtidas por meio da consulta à ficha de

matrícula e da entrevista com as crianças. Apenas dois formulários encaminhados não foram

devolvidos. Descreveremos as informações coletadas sobre todas as crianças que participaram

da pesquisa e, assim, estaremos considerando as transferências e matrículas novas que

ocorreram durante o ano, pois todas essas crianças participaram em algum momento do

trabalho desenvolvido. As informações obtidas sobre os alunos foram organizadas em tabelas

(ANEXO F).

Participaram da pesquisa, conforme dito, trinta e nove crianças. A idade dessas

crianças variava entre sete e dez anos, havendo vinte e três (58,98 por cento) crianças na faixa

etária de sete anos, doze (30,76 por cento) com oito anos e quatro (10,26 por cento) com idade

acima de oito anos. Desse modo, o número de crianças com distorção idade/série era pequeno

e como, na rede municipal, as séries iniciais do Ensino Fundamental são organizadas em ciclos

de dois anos, a presença desses alunos na turma justificava-se pelo fato de apresentarem,

segundo a professora, grandes dificuldades de aprendizagem. Esses alunos não se

diferenciavam dos outros alunos se considerarmos a altura e os conhecimentos sobre a

linguagem escrita. Havia ainda, na classe, vinte e duas (56,41 por cento) crianças do sexo

feminino e dezessete (43,59 por cento) do sexo masculino.

Das crianças que participaram do estudo, trinta e oito (97,44 por cento) haviam

estudado anteriormente e apenas uma (2,56 por cento) não havia estudado. A idade com que

os alunos começaram a freqüentar a escola, conforme dados contidos na ficha de matrícula,

variou entre quatro e oito anos. Quinze (37,47 por cento) crianças começaram a freqüentar

escolas de Educação Infantil com quatro anos, sete (17,94 por cento) com cinco anos e treze

(33,34 por cento) com seis anos. Desse modo, quatro não cursaram a pré-escola, três (7,69 por

cento) começaram a estudar com sete anos e uma (2,56 por cento) com oito anos. Apesar de a

maioria das crianças ter freqüentado a pré-escola, apenas uma, no início do ano escolar, sabia

ler e escrever.

Os programas de rádio favoritos apontados pelas crianças são Reino de Deus, músicas

sertanejas e baianas. Os programas de televisão preferidos pelas crianças são: Disney Club,

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desenhos, novelas, Chaves, Gugu, Xuxa, Sessão da Tarde, Angélica, Ratinho, Eliana, Sandy e

Júnior. É importante ressaltar que sete crianças não possuíam rádio em casa e duas não

possuíam televisão. A maioria das crianças (71,80 por cento) prefere ouvir no rádio programas

de músicas. Os programas de televisão que obtiveram índices significativos de preferência

foram: novelas (34,49 por cento), desenhos (28,21 por cento) e o programa do Ratinho (13,59

por cento).

Com relação ao tipo de material escrito que possuíam em casa, vinte e uma (61,76 por

cento) crianças disseram ter livros, vinte e cinco (73,52 por cento) falaram que possuíam

revistas e nove (26,47 por cento) que possuíam jornais. Sobre os títulos desses materiais, as

crianças mencionaram livros, tais como: Os três porquinhos, Chapeuzinho Vermelho e Bíblia.

Falaram ainda que possuíam livros didáticos fornecidos pela escola. Quanto aos jornais,

afirmaram que foram fornecidos pela professora da classe para recortarem palavras e letras.

Apenas uma disse que tinha o jornal da farmácia. Os alunos citaram os títulos das revistas

(Caras, Veja e Gibis) e informaram que eram trazidas por parentes dos seus locais de trabalho.

As crianças apontaram que as diversões preferidas são as brincadeiras de boneca,

carrinho, casinha, mamãe-filhinha, jogar bola, virar piruetas, pega-pega, esconde-esconde,

corre-cutia, estátua, pular corda. Uma criança afirmou que gostava de brincar de video-game.

Outras disseram que gostavam de ir ao parque, brincar com os amigos, andar de bicicleta,

conversar com amigos, fazer lição de casa, nadar no rio, brincar de balanço, soltar pipa, andar

a cavalo, brincar com o irmão, brincar de urso e assistir à televisão. As brincadeiras apontadas

com maior freqüência foram: brincar de boneca (20,51 por cento) e brincar de esconde-

esconde (17,94 por cento).

No que se refere às pessoas que moravam com as crianças, foi possível identificar

vinte e seis crianças (66,68 por cento) que viviam apenas com os pais e os irmãos, sete (17,94

por cento) que moravam com os pais, irmãos e outros parentes; quatro (10,26 por cento) com

um dos pais e irmãos; e duas (5,12 por cento) que viviam com um dos pais, irmãos e parentes.

Desse modo, o tipo de organização familiar era variado e nem sempre seguia os modelos

tradicionais.

As informações que se seguem relacionadas com as profissões e grau de instrução dos

pais e renda familiar foram organizadas com base no universo de trinta e sete sujeitos, pois

duas crianças não devolveram o formulário encaminhado para suas casas. As profissões dos

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pais, conforme formulário preenchido pelos próprios membros da família, eram variadas.

Havia pedreiros, serventes de pedreiro, operário, motoristas, entre outras. Quanto às profissões

das mães, foi interessante observar que um número significativo de mães exercia apenas

atividades no lar (dezoito mães), apesar dos baixos salários de seus parceiros. Cerca de onze

mães trabalhavam como empregadas domésticas e um número menos expressivo como

faxineiras, merendeiras, pajens, etc.

Conforme o mesmo formulário, a renda familiar era baixa. A maioria das famílias

sobrevivia com uma renda que variava entre um e até três salários. Desse modo, quatro

famílias (10,81 por cento) possuíam renda que variava entre um até dois salários, oito (21,62

por cento) possuíam renda entre dois e três salários, quatro (10,81 por cento) tinham renda

entre três e quatro salários, três (8,10 por cento) entre quatro até cinco salários, três (8,11 por

cento) entre cinco e seis salários e três famílias (8,11 por cento) possuíam renda superior a seis

salários. Ainda é importante ressaltar que sete (18,91 por cento) famílias não declararam a

renda familiar e cinco (13,52 por cento) afirmaram que ambos os pais estavam

desempregados.

Quanto ao nível de instrução dos pais e das mães, constatamos que era baixo, pois a

maioria dos pais e das mães possuía quarta série do Ensino Fundamental incompleta ou apenas

concluiu essa série. Assim, conforme dados fornecidos pelas famílias, foi possível constatar

que nove pais possuíam a quarta série completa, dez a quarta série incompleta, cinco a oitava

série incompleta, onze a oitava série completa, nenhum pai possuía o ensino médio completo e

um possuía o ensino médio incompleto. Dos pais, apenas um não havia estudado.

Com relação ao nível de instrução das mães, identificamos que sete mães possuíam a

quarta série completa, doze possuíam a quarta série incompleta, quatro possuíam a oitava série

completa, doze a oitava série incompleta, uma o ensino médio completo e nenhuma mãe

possuía o ensino médio incompleto. Apenas uma mãe nunca havia estudado.

O quadro descrito com relação ao nível de instrução dos pais é caótico: vinte e dois

pais não haviam concluído o Ensino Fundamental e trinta e quatro mães não concluíram essa

mesma etapa da Educação Básica. Esses resultados retratam a distribuição desigual da

educação no Brasil. Na realidade, a maioria dos pais teve acesso ao Ensino Fundamental, e

apenas um pai e uma mãe eram analfabetos; no entanto, é alto o número de pais que não

conseguiram avançar nos estudos.

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Verificamos ainda que quatro crianças (10,26 por cento) não possuíam nenhum irmão,

dez (25,64 por cento) possuíam um irmão, quatorze (35,89 por cento) possuíam dois irmãos,

seis (15,39 por cento) possuíam três irmãos e cinco (12,82 por cento) possuíam mais de três

irmãos. Se considerarmos a renda familiar e o número de irmãos, é possível concluir que há

predominância de famílias que viviam com renda insuficiente para o seu sustento. Com base

nos dados, vale destacar ainda que o índice de desemprego é alto. Cinco famílias não tinham

como sobreviver, pois os responsáveis pelo sustento da família encontravam-se

desempregados.

Com base nas informações descritas, constatamos que o nível socioeconômico e

cultural dos sujeitos envolvidos na pesquisa é baixo. Dessa forma, os dados mostram a

situação de pobreza em que tem vivido grande parte da sociedade brasileira.

5 O trabalho de alfabetização desenvolvido na sala de aula

Definir o método de alfabetização utilizado pela professora é algo extremamente

complicado, pois não existia uma forma sistemática de trabalho. Concepções de alfabetização,

de ensino e de aprendizagem misturavam-se na prática educativa. Além disso, o nosso

envolvimento com os sujeitos produziu algumas expectativas na professora, principalmente,

no sentido de participação no planejamento do trabalho que era desenvolvido com as crianças.

Não nos negamos a contribuir, pois percebemos que a nossa participação era necessária.

No início do ano, a professora começou o trabalho com as crianças por meio do estudo

das vogais. As atividades usadas para trabalhar esse conteúdo eram as mesmas que estão

presentes em um grande número de cartilhas, já suficientemente criticadas. Essa constatação

foi feita por intermédio da observação dos cadernos das crianças, pois, nesse momento, ainda

não havíamos começado o trabalho de pesquisa na escola.

Durante algum tempo, permanecemos na sala de aula sem poder observar o tipo de

trabalho desenvolvido pela professora com relação à alfabetização, pois as crianças eram

sempre instruídas a resolver tarefas de Matemática. Porém, com o passar das semanas, foi

possível observar que a professora trabalhava seguindo os delineamentos das cartilhas e, ao

mesmo tempo, propunha atividades de “produção de textos” coletivos e individuais, além de

outras atividades que serão mencionadas oportunamente. Mostraremos, com base nas

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filmagens que realizamos do trabalho desenvolvido pela professora, dois exemplos de como

era orientado o trabalho com esse tipo de produção.

“Produção de texto” coletivo a partir de uma gravura (17 de maio de 2000)

Na época em que os alunos realizaram a atividade de “produção de texto” que será

descrita, a temática que orientava as atividades, na sala de aula, era Brinquedos e brincadeiras.

Por isso, a professora levou para a classe uma gravura que mostrava duas crianças brincando

de casinha e disse aos alunos que eles iriam escrever um texto coletivo sobre a figura. Cada

criança falaria uma parte do texto que seria registrada pela professora na lousa. Ao final, todos

os alunos deveriam copiar o texto no seu caderno. As carteiras estavam organizadas formando

dois retângulos. A atividade ocorreu conforme será descrito:

Professora: O Adriano já começou (vira-se para a lousa e escreve). Uma menina. Uma menina.

Não é para escrever nada. É para ir escutando e pensando. Uma menina e um

menino estavam brincando de casinha (escreve, enquanto fala de maneira artificial,

ou seja, tentando estabelecer uma relação biunívoca entre sons e letras). Então,

vamos ler aqui todo mundo (aponta na lousa o texto). Jéssica, presta atenção,

porque você vai continuar a história. Todo mundo!

Professora e crianças: Um menino e uma menina estavam brincando de casinha (a professora

aponta a escrita e a leitura desenvolve-se de maneira artificial).

Professora: (Dirige-se à aluna). Fala, Jéssica. Tem gente que não está prestando atenção. Fala

(fecha o caderno da aluna que ainda escrevia o cabeçalho).

Jéssica: O papai foi trabalhar.

Professora: O papai foi trabalhar, né (vai para a lousa e escreve) O papai foi trabalhar (fala

pausadamente, enquanto registra a frase. Ao terminar, vira-se para as crianças e,

em seguida, aproxima-se de Luiz Carlos). Luiz Carlos, antes de trabalhar, o que

ele estava fazendo antes de trabalhar?

Luiz Carlos: Deu uma flor para a mamãe.

Professora: (Volta-se para a lousa e inicia o registro). E antes, e antes de sair. Pode ser?

Crianças: Pode.

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Professora: Deu uma flor para a mamãe. Tá ficando bonita a nossa história, viu. E aí, Sabrina?

O que aconteceu? (Pára em frente à criança).

Sabrina: (Fica silenciosa).

Professora: Olha lá (mostra a lousa). A mamãe gostou da flor?

Sabrina: Gostou.

Professora: O que ela ficou fazendo?

Sabrina: (Fala algo que não pode ser ouvido).

Professora: Hum?

Sabrina: (Repete e é ouvida pela professora que se dirige novamente para a lousa).

Professora: A mamãe estava dando banho na filhinha e gostou da flor. Como a gente pode

escrever isso? Daí então...

Criança 1: Ela gostou da flor.

Professora: Ela gostou da flor. (Fica silenciosa por alguns segundos). E dá banho na filha fica

para depois?

Crianças: Fica.

Professora: É. Então, vamos escrever. Ela... Olha o ponto final... Ela quem?

Crianças: A mãe.

Professora: Gostou muito da flor (escreve ao mesmo tempo que repete a frase). Alessandra, e

aí?

Alessandra: Ela guardou com carinho aquela flor.

Professora: Ela gostou muito da flor (lê o que havia escrito anteriormente). Então, vamos pôr

assim. Uma vírgula. E guardou com carinho. Então, tá. Chega de falar da flor.

Vamos falar, agora, o que a mamãe estava fazendo? (Dirige-se para Rafaela).

Rafaela: A mamãe estava dando banho na filhinha.

Professora: A mamãe estava dando banho na filhinha (repete e inicia o registro na lousa). A

mamãe estava dando banho na filhinha. Quem era a filhinha?

Crianças: A boneca, a boneca.

Professora: Então, a gente escreve que era uma boneca ou não precisa?

Crianças: Não precisa.

Professora: Então, deixa assim. E aí, Ana Paula? O que vai vir? A mamãe estava dando banho

na filhinha? E aí?

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Ana Paula: (Move-se na cadeira sem responder).

Professora: O que mais você acha que a gente pode escrever?

Ana Paula: (Não diz nada).

Professora: Enquanto a mamãe estava dando banho na filhinha, quem que ficava olhando ela

ali (aponta para a gravura no alto da parede).

Andrey: O papai.

Ana Paula: O cachorro.

Professora: O cachorro, né. E o cachorro ficava observando.

Ana Paula: (Balança a cabeça afirmativamente).

Professora: Como é que ele pode se chamar?

Ana Paula: Betowen.

Professora: Hã?

Ana Paula: Betowen.

Professora: Betowen? A mamãe estava dando um banho na filhinha (lê o que estava escrito na

lousa) enquanto... Olha, eu vou pôr outra vírgula aqui. Enquanto que o cachorro

Betowen ficava olhando. É isso?

Crianças: É.

Professora: Ficava olhando. E aí, Manuely? O que mais?

Manuely: A filhinha gostou muito do banho.

Professora: A filhinha gostou muito. Você quer dar um nome para a filhinha ou não precisa?

Manuely: Balança a cabeça afirmativamente.

Professora: Como é que ela pode chamar, então?

Manuely: Bárbara.

Professora: (Volta-se para a lousa e repete a frase). A Bárbara gostou muito do banho.

(começa a escrever) A Bárbara gostou muito do banho. (Volta-se para Mariane).

Mariane, por que ela gostou do banho?

Mariane: Por que a água estava quentinha.

Professora: A Bárbara gostou muito do banho (lê e, em seguida, volta-se para Mariane).

Porque ela gostou muito do banho?

Mariane: Porque a água estava quentinha.

Professora: (Lê novamente). A Bárbara gostou muito do banho. (escreve) porque...

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Crianças: (Conversa entre as crianças).

Professora: Porque a água estava...

Criança: Quen...

Professora: Quen...

Criança: Tinha.

Professora: Tinha. Andrey e depois?

Andrey: (Mexe-se na cadeira, mas não responde).

Professora: Gabriela, eu já falei para você guardar esse livro, agora não é hora. E então

Andrey? Tem gente que não está prestando atenção.

Andrey: (Continua em silêncio).

Professora: Vamos ler. Presta atenção. Um menino e uma menina estavam brincando de

casinha. Ponto final. O papai foi trabalhar e antes de sair deu uma flor para a

mamãe. Ela gostou muito da flor e guardou com carinho. A mamãe estava dando

banho na filhinha, enquanto que o cachorro Betowen ficava olhando. Enquanto o

cachorro. Não tem esse ”que” aqui (apaga a palavra que). Enquanto o cachorro

Betowen ficava olhando. A Bárbara gostou muito do banho, porque a água estava

quentinha. E depois, Andrey?

Andrey: Ela gostou muito do banho.

Professora: Mas isso nós já escrevemos. Ela gostou muito do banho.

Andrey: (Fica em silêncio).

Professora: Fala, Natália.

Natália. Ela adorou o banho.

Professora: O quê?

Natália: Ela adorou o banho.

Professora: Então, gostou muito e adorar é a mesma coisa. Vanessa, fala alguma coisa?

Vanessa: Ela adorou tomar banho.

Professora: Não. Nós já escrevemos isso. Quem quer falar alguma coisa?

Várias crianças levantam a mão.

Crianças: Eu.

Professora: Você já falou. Quem não falou ainda? José Carlos! Não precisa mais falar do

banho da Bárbara. Fala, Tais.

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Taís: Ela ficou muito cheirosinha.

Professora: A água estava quentinha.

Fábio: Tia, eu sei qual era o nome dela.

Professora: Já foi o nome dela. Pera aí. A água estava quentinha e a Tais falou que ela ficou

muito cheirosinha. E ela ficou cheirosa, chei ro sinha. O que você estava falando,

Hugo?

Hugo: Depois ela foi comer.

Professora: (Volta-se para a lousa e escreve ao mesmo tempo em que repete a frase do Hugo).

Depois ela foi comer. Precisamos continuar a história ou a gente pode terminar?

Crianças: Pode terminar.

Professora: Pode terminar?

Crianças: Pode.

Professora: Como é que a gente pode terminar a história para ela ficar bem legal?

(Não obtém resposta).

Professora: Como a gente pode terminar?

Criança: O papai chegou do trabalho e viu...

(Enquanto isso, a professora ouve Natane falar)

Professora: Não. Se a gente escrever isso vai continuar a história e não vai terminar a história.

Vamos pensar um jeito de terminar a história.

(As crianças conversam)

Professora: Olha, o menino e a menina que estavam brincando. Eles gostaram de brincar?

Crianças: Gostaram.

Professora: Vocês acham que eles se divertiram brincando juntos de casinha?

Crianças: Divertiram.

Professora: Então, se a gente escrever que eles se divertiram muito. A gente pode terminar a

história assim?

Crianças: Pode.

Professora: Então, vamos escrever. Os dois se divertiram muito.

Criança: Ô tia, olha ela.

Professora: Muito nessa brincadeira. Agora, que nós terminamos a nossa história a gente tem

que inventar um nome para a história.

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Criança: A bela adormecida.

Professora: Bela adormecida? A gente não está falando de bela adormecida. Fala, Manuely.

Manuely: A casinha.

Professora: A casinha? Quem é que concorda com esse nome pra nossa história?

Crianças: Eu concordo (vários alunos levantam o dedo, a professora conta).

Professora: Um, dois, três... vinte e um. Então, vinte e um concordam, nove não concordam,

Então, vai ficar a casinha. (os alunos que levantaram o dedo comemoram e a

professora escreve). A ca si nha. Agora, vocês vão escrever o texto no caderno.

Crianças: Não!

Criança: Tudo isso?

Professora: Só isso. E depois fazer o desenho da brincadeira.

(Mais reclamações das crianças)

Professora: Vocês começam aqui (aponta na lousa, onde está escrito o título). José Carlos você

começa aqui. Colorido. Olha o parágrafo, ponto final, as vírgulas. Olha sempre

que tiver esse espaço aqui (aponta o parágrafo). Primeira série, presta atenção.

Sempre que tiver esse espaço aqui (aponta novamente) é para... Esse espaço se

chama?

Crianças: Parágrafo.

Professora: Parágrafo. Então, vamos ver se vão deixar parágrafo. Vocês querem que eu

marque os parágrafos?

Crianças. Queremos. Não.

Professora: Não precisa, né.

Crianças: Não.

Professora: Mas eu vou marcar assim mesmo. Eu vou fazer uma bolinha nos parágrafos. Não é

para vocês fazerem. Aqui é um parágrafo, aqui é outro. Vocês não precisam. É só

para vocês saberem onde é o parágrafo. Aí vocês deixam um espaço (marca todos

os parágrafos e mostra como está organizado o texto na lousa). Começa aqui

(aponta onde está escrito o título). Aí vem aqui (mostra o outro lado da lousa que

foi dividida em duas partes) até embaixo e sobe ali em cima. Qual é o problema,

Fábio?

Fábio: Eu não tenho lápis.

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Professora: Eu te dei dois lápis ontem. Eu te dei um que você quebrou. Depois te dei outro.

Onde foi que você enfiou o outro?

Fábio: O outro é aquele ali.

Como foi possível observar, por meio da longa descrição da atividade, a professora ia

pedindo que cada criança falasse uma parte que deveria compor o texto. Algumas vezes, as

crianças ficavam perdidas, sem saber como continuar e repetiam o que já estava escrito. No

entanto, a professora elaborava perguntas que conduziam e possibilitavam a elaboração do

texto.

A descrição da atividade permite alguns questionamentos: por que produzir um texto

que iria versar sobre uma das brincadeiras comuns entre as crianças daquela classe, a partir de

uma gravura? E ainda: por que não possibilitar que as crianças falem sobre como brincam de

casinha? É provável que as dificuldades para a continuidade do texto, por parte da crianças,

fossem minimizadas com esse procedimento. Por que não confiar nas experiências das

crianças? Por que não deixar que falem de suas próprias vidas? As respostas para todas essas

questões podem ser encontradas, talvez, na forma como, historicamente, vem sendo conduzido

o trabalho com a alfabetização. Atualmente, mesmo que a professora deixe o texto entrar na

sala de aula pela via da chamada “produção de textos”, consciente ou inconscientemente, tal

prática também acaba sendo controlada, como eram as letras, as sílabas, as palavras e os

pseudotextos que eram/são estudados durante a alfabetização.

A descrição que segue de uma outra atividade de “produção de texto” expressará, por

si mesma, com maior precisão, as condições em que se desenvolvia esse trabalho na sala de

aula.

“Produção de texto” individual sobre “dois namorados” (13 de junho de 2000)

No dia anterior à realização de produção de texto que será descrita (12 de junho), a

professora havia comentado sobre o Dia dos Namorados. Adriano falou que tinha uma

namorada e a professora perguntou-lhe se havia comprado um presente para ela. Ele sorriu e

disse que não. Após essa conversa, os alunos pintaram um desenho sobre O Dia dos

Namorados. No dia seguinte, a professora iniciou a proposta de produção de texto da seguinte

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forma:

Professora: Nós já conversamos. O Adriano disse que tem uma namorada. Não sei quem...

Você deu o presente para a sua namorada, Adriano?

Adriano: Agora eu dei.

Professora: Agora ele deu o presente.

(Alguém fala, mas não é possível identificar e nem entender o que foi dito).

Professora: É. Agora, vocês vão escrever, então. Vão pular uma linha e vão escrever uma

história sobre dois namorados. O que eles conversaram, se não conversaram, se

um deu presente, se não deu presente. Cada um. Só que presta atenção. Não é para

escrever qualquer coisa. Primeiro, pensa na história. Vamos pensar: tem um

namorado que se chamava alguma coisa e uma namorada que se chamava outra

coisa; onde eles se conheceram; quando eles se conheceram; quando eles

começaram a namorar; quantos anos eles tinham; o que eles faziam; o que eles não

faziam. Tá combinado?

Crianças: Tá.

Professora: Antes de escrever tem que fazer o quê?

Criança 1: Pular uma linha.

Criança 2: Pensar.

Professora: Pensar. Pula uma linha também, mas pensa pra depois escrever e, pra pensar, a

gente não conversa. Façam o texto agora. Depois termina o caderno. Guarda o

caderno, Jéssica, Natália, Fábio. Pode começar. Quem terminar levanta a mão,

quando acabar (todas as crianças conversam nesse momento. Bruno conta algo

para Hugo e levanta as mãos).

Professora: Bruno, pra pensar a gente usa a cabeça e não a mão (a criança volta-se para a folha

diante de si. Algumas crianças circulam pela sala e outras iniciam a escrita. A

professora coloca um fundo musical).

Não nos deteremos numa análise minuciosa desse tipo de trabalho, pois sabemos que

Geraldi (1993) e outros autores, a partir da distinção entre produção de texto e redação, fez

uma análise fabulosa desse tipo de produção, considerando especialmente as condições que

devem ser levadas em conta para produzir um texto na escola. Contudo, é importante ressaltar

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que, mesmo diante de propostas que podem parecer estranhas, as crianças produzem textos até

certo ponto interessantes e se esforçam para fazê-lo. Acreditamos que isso demonstra que as

crianças tentam incorporar as exigências da escola de modo a nela permanecer e, também,

compreendem que estão na escola para realizar as atividades sem questioná-las.

A partir da solicitação da nossa participação no planejamento e com as sugestões que

apresentamos, a professora passou a utilizar, em alguns momentos, um tipo de metodologia

denominada alfabetização a partir do texto, proposta por Carvalho (1989), no livro Guia

prático do alfabetizador. No entanto, havia dificuldades para colocar em prática o trabalho

planejado. Uma dificuldade estava ligada ao tempo pensado para realização de um plano e o

tempo usado efetivamente para desenvolver o trabalho. Dessa forma, atividades que eram

planejadas para serem desenvolvidas durante quatro dias, chegavam a atingir três ou quatro

semanas para sua realização. Isso porque o desenvolvimento do planejamento era

interrompido para realização de outros trabalhos não previstos. Não acreditamos que o

planejamento deva ser uma camisa-de-força e que não possa sofrer mudanças durante o seu

desenvolvimento, mas, se o trabalho educativo não for orientado de maneira sistemática,

intencional e visando a finalidades determinadas, poderá redundar em resultados desastrosos

para as crianças que precisam da escola para aprender. Na maioria das vezes, as atividades

eram justapostas sem uma organização, seqüência e sentido. Outras atividades eram propostas,

conforme as datas previstas no calendário (Dias das Mães, Páscoa, Festa junina, Dia dos

Namorados, etc.).

Enfim, na maior parte do tempo, as atividades que visavam a possibilitar a

aprendizagem da leitura e da escrita eram de treino (cópia de famílias silábicas estudadas, de

palavras e de letras), cópia de pequenos textos da cartilha usada, ditados para verificação da

aprendizagem de palavras estudadas, cópia de listas de palavras, etc.

Nesse contexto, é importante lembrar as afirmações de Saviani (1997):

a escola existe [...] para propiciar a aquisição de instrumentos que possibilitam o acesso ao

saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso ao rudimentos desse saber. Dessa

forma, as atividades escolares devem ser organizadas de modo a proporcionar a

apropriação de conhecimentos fundamentais à formação dos indivíduos. O conteúdo

fundamental da escola é 'ler, escrever, contar, os rudimentos das ciências naturais e das

ciências sociais (história e geografia)' (Saviani, 1997, p. 19-20).

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Era possível perceber, por parte da professora, a “necessidade” (às vezes, imposta) de

realizar determinadas atividades que estavam de acordo com as determinações da Secretaria

Municipal de Educação. A prática adotada na rede de ensino era baseada nos pressupostos do

“construtivismo”, contra toda espécie de repetição e mecanicismo. Dessa forma, algumas

atividades atendiam às orientações do órgão central e as outras eram realizadas conforme os

modelos cartilhescos de alfabetização. Mais uma vez lembramos Saviani (1997), pois

independentemente dos modismos, o clássico da escola é a transmissão-assimilação do saber

sistematizado. Enquanto os profissionais das escolas oscilam entre formas tradicionais de

ensino e formas “inovadoras” adotadas pelos órgãos diretores, perde-se a finalidade do

trabalho educativo.

Mesmo assim, não podemos deixar de mencionar o esforço da professora na realização

de algumas atividades que eram importantes para o processo de aprendizagem: a partir do

segundo bimestre, criou um sistema de biblioteca na sua própria classe. Para fazer isso,

adquiriu, com recursos próprios, alguns livros, colocou-os em uma caixa, fez uma ficha para

empréstimo e toda segunda-feira fazia, na própria classe, os empréstimos e as devoluções dos

livros. Nesse dia, ela também lia um livro para as crianças e em outros dias da semana as

próprias crianças liam livros que foram emprestados da caixa-biblioteca. A iniciativa da

professora foi muito importante, pois, conforme verificamos, as crianças possuíam poucos

materiais escritos em suas casas. Ela organizou, ainda juntamente com as outras professoras da

primeira série, o que podemos chamar de “círculo de leitura” . Uma vez por semana, as turmas

reuniam-se no pátio da escola e as crianças liam histórias uma para as outras.

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Capítulo V

O processo de apropriação da linguagem escrita

Para realização do trabalho proposto, elaboramos as atividades que foram

desenvolvidas pelas crianças durante o ano letivo. As atividades consistiram na produção oral

de textos que eram registrados pela pesquisadora e, depois, escritos pelas próprias crianças

envolvidas no trabalho. Organizamos cinco atividades durante o ano. Elas ocorreram nos

meses de maio, julho e agosto, setembro, outubro e novembro, sendo realizadas com os alunos

individualmente.

Participaram da pesquisa trinta e nove crianças, número que variou, durante a

realização de cada uma das atividades, em função das transferências, matrículas novas e de

acordo com o nosso próprio interesse de pesquisa.

Realizamos ao longo do ano cento e sessenta e oito atividades com as crianças.

Duraram em torno de trinta minutos cada uma. Todas foram filmadas e, depois, transcritas

para análise. Na primeira atividade, filmamos os três momentos: produção oral do texto pelas

crianças e registro pela pesquisadora, processo de registro do texto pela criança e como se

relacionavam com a escrita, após serem incentivadas a ler o texto. A partir da segunda

atividade, optamos por iniciar a filmagem pelo registro feito pela criança, porque o que ocorria

durante a produção oral do texto não era matéria de nosso interesse.

Diante da quantidade e riqueza das informações obtidas em cada uma das atividades,

agrupamos as crianças em duas categorias, de acordo com o objetivo do trabalho. Na primeira

categoria, incluímos as crianças que usavam a escrita como recurso para a memória e, na

segunda, incluímos as crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto.

Este capítulo será organizado tendo por base as cinco atividades realizadas com as

crianças. Começaremos pela atividade de registro das brincadeiras preferidas das crianças.

1 O registro da brincadeira

Após permanecermos na sala de aula durante algumas semanas, observando e

participando do trabalho desenvolvido pelas crianças e pela professora, iniciamos, no mês de

maio, a primeira atividade que consistiu na produção de texto oral pelas crianças,

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individualmente, e o registro dos mesmos. Participaram dessa atividade trinta e sete crianças

que freqüentavam as aulas durante o mês de maio.

No início do referido mês, planejamos, com a professora da classe, as atividades para

serem realizadas pelas crianças, na sala de aula, cuja temática era Brinquedos e brincadeiras.

Com base nessa temática e com o objetivo de articular a atividade de produção de texto com o

trabalho que estava sendo desenvolvido, decidimos propor às crianças que escrevessem sobre

as brincadeiras que estavam sendo objeto de estudo na classe. Essa proposta foi feita para

todas as crianças, ao mesmo tempo, na sala de aula. Elas gostaram da idéia e, então,

combinamos que cada uma escolheria e escreveria sobre a sua brincadeira preferida. Ao final

do trabalho, todas as produções seriam expostas em um mural intitulado Nossas brincadeiras.

Como não existia espaço disponível, na escola, para a realização do trabalho, no

primeiro dia, realizamos as atividades na sala da diretora. No entanto, não foi possível

continuar as atividades nesse espaço, pois a sala ficava localizada no segundo piso do prédio e

recebia o barulho das salas de aula que funcionavam no terceiro piso e das crianças que

passavam para encaminharem-se ao refeitório e ao pátio, prejudicando as filmagens que eram

realizadas durante a atividade. Assim, a partir do segundo dia, a Coordenadora Pedagógica

cedeu a sua sala para a realização das atividades.

Durante o tempo em que permanecemos na sala de aula, as crianças se familiarizaram

com os equipamentos usados (filmadora e tripé) no trabalho, e estes já não eram objetos de

interesse e, por isso, agiam naturalmente diante deles ao serem filmadas. Além disso, todas as

crianças sabiam o porquê da presença de uma outra pessoa na sala de aula, acompanhando e

participando das atividades. Naquele momento específico, sabiam que iriam escrever sobre as

brincadeiras que estavam sendo trabalhadas e sabiam ainda que, após a conclusão das

produções, estas seriam expostas no mural para que os outros alunos, os professores e os pais

pudessem conhecer as brincadeiras preferidas dos alunos da primeira série. Quando

terminamos o trabalho, a professora da classe construiu o mural e todos puderam conhecer o

trabalho realizado pelos alunos.

A atividade desenvolvida com os alunos foi orientada, tomando por base os seguintes

procedimentos:

a) Inicialmente, perguntamos às crianças quais eram as suas brincadeiras preferidas.

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b) Em seguida, pedimos que imaginassem que teriam de ensinar a brincadeira

escolhida para colegas que não a conheciam. Era explicado ainda que deveriam

descrever oralmente a brincadeira de modo que pudéssemos registrá-la.

c) Após a conclusão da explicação e do registro, solicitamos que as crianças

escrevessem a brincadeira. Em casos de argumentos como “não sei escrever”,

pedimos que escrevessem como sabiam.

d) Quando as crianças demonstravam que estavam dispostas a realizar a atividade,

ditávamos o texto que havia sido registrado.

e) Ao término do registro da brincadeira, perguntamos se a escrita ajudava a lembrar o

conteúdo que escreveram e, em seguida, pedimos que lessem o texto registrado.

Durante as explicações das brincadeiras pelas crianças, ocorreram situações em que

não era possível registrar o que estava sendo falado, pois as crianças expressavam-se com

propriedade e rapidez, falavam demasiado baixo e, por isso, não podiam ser ouvidas e

compreendidas, usando palavras que tínhamos dificuldades em compreender, pois eram

próprias da comunidade da qual faziam parte. Nessas diversas situações, era necessário pedir

que as crianças repetissem o que foi dito para que o registro fosse efetuado. Outras crianças,

mesmo conhecendo as brincadeiras, tinham dificuldades em expressá-las de forma

compreensiva e precisavam da nossa ajuda para elaboração do texto.

Como o material seria exposto e lido pelos outros alunos que estudavam na escola,

pelos professores e pais, pedimos às crianças que imaginassem que ensinariam a brincadeira

para outras pessoas que não a conheciam. Essa conversa objetivava constituir os leitores dos

textos. Além disso, a criança era informada que o texto verbalizado seria registrado, o que

certamente produziu, para algumas crianças, mudanças no modo como expressaram a

brincadeira. No entanto, para a maioria, o fato de haver um registro e mesmo o fato de

saberem que outras pessoas iriam ler o texto não alterou suas formas de dizer e escrever.

Tornou-se, necessário, com isso, durante a produção oral, negociar como deveria ser escrito o

que estava sendo dito; confirmar se o registro elaborado traduzia, corretamente, o que foi

expresso; reler as partes do texto já composto para garantir a seqüência, pois os alunos

alteravam completamente o rumo daquilo que estava sendo dito. Quando as crianças diziam

ter concluído o texto, repetíamos a leitura para que confirmassem se o registro correspondia ao

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que realmente queriam dizer. Para fins de ilustração, descreveremos detalhadamente o

trabalho inicial desenvolvido com um dos sujeitos.

P.: Como é que brinca de esconde-esconde?

Christopher: Você pega uma árvore, um poste ou senão pega um pau assim e, então, a gente

fica com o braço assim (coloca o braço no rosto para mostrar como é) e conta. Até

uma pessoa falar. Essa pessoa. A pessoa fala assim: conta até vinte. A pessoa que

tá lá assim na árvore (põe, novamente, a mão sobre o rosto) tem que contar até

vinte. Aí, na hora que a outra respondeu pode vir. Aí, a outra pessoa que tá lá na

árvore batendo tem que procurar o outro. Se o outro acha, tá com o outro. O

primeiro que achar o que tá batendo ele tem que procurar a pessoa que tá se

escondendo. Aí, a pessoa que achar o que bateu tem que procurar, se ele achar o

que tá se escondendo vai ter que bater.

P.: Eu queria, agora, que você falasse a brincadeira mais devagar, porque eu quero escrever do

jeito que você está falando. Eu quero escrever como é a brincadeira. Pra que eu

possa escrever, você precisa falar um pouco mais devagar.

Christopher: E tem uma pessoa. A gente enterra um pau ou senão bate na árvore ou num poste.

P.: Então, a gente enterra o quê?

Christopher: Ou a gente enterra o pau ou fica na árvore ou num poste.

P.: A gente enterra um pau (registra o que foi dito).

Christopher: Ou senão bate na árvore ou num poste.

P.: Ou senão bate na árvore ou num poste (registra o que foi dito).

Christopher: Aí a pessoa que tá no poste batendo ela tem que ficar assim: (põe o braço sobre o

rosto e mostra).

P.: Ficar assim, como?

Christopher: Ela não pode olhar quando a pessoa foi se esconder. Ela tem que ficar com o olho

fechado.

P.: A pessoa que está no poste batendo tem que ficar com o olho fechado?

Christopher: É.

P.: (Escreve). Pronto!

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Christopher: Aí essa pessoa que tá com o olho fechado, na hora que a outra pessoa foi se

esconder, ela tem que falar assim: conta até vinte. Senão conta até quanto quiser.

P.: Então, a pessoa...

Christopher: pode contar até o número que quiser.

P.: A pessoa que está o quê?

Christopher: Que está no poste batendo pode contar até o número que quiser.

P.: (Escreve). E aí?

Christopher: E aí, a outra pessoa que foi se esconder ela tem que falar, a pessoa que está no

poste, quer dizer, ela tem que falar: já vou eu.

P.: A pessoa que está no poste batendo pode contar até o número que quiser (lê o que foi

registrado).

Christopher: Aí, depois que ela contar até o número que quiser, ela tem que falar assim: já vou

eu.

P.: Depois, tem que falar: já vou eu! (registra). Muito bem!

Christopher: Aí, depois a pessoa que foi se esconder ela tem que esconder rápido, ela tem que

esconder num lugar muito, muito, muito escuro ou senão muito no lugar que ele

não foi senão o cara que estava batendo no poste ele vai achar ela.

P.: Então ele tem que se esconder num lugar...

Christopher: É. Num lugar que a pessoa que tá no poste nunca foi.

P.: Num lugar que a pessoa que está no poste... (registra).

Christopher: Aí se a outra pessoa acha, se a pessoa que está batendo no poste achar. Se a...

P.: Se a pessoa. Se a pessoa o quê?

Christopher: Que tá no poste, que tá lá no poste!

P. Se a pessoa que estava (escreve).

Christopher: É.

P.: No poste achar.

Christopher: Aí, vai tá com a pessoa que se escondeu [...] Se a pessoa que tava no poste

batendo achar, a pessoa vai tá, vai tá, vai tá. Ela vai ter que ir pro poste bater e a

pessoa que tava no poste vai ter que se esconder.

P.: (Escreve).

Christopher: Ela vai ter que ir para o poste.

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P.: Ela vai ter que ir para o poste. Isso!

Christopher: E aí vai continuando, assim desse jeito aí.

P.: Muito bem! Vou ler para ver se é isso mesmo que você queria dizer: Esconde-esconde. A

gente enterra um pau ou senão a gente bate na árvore ou no poste. A pessoa que

está no poste batendo tem que ficar com o olho fechado. A pessoa que está no

poste batendo pode contar até o número que ela quiser. Depois, tem que falar: já

vou eu! A pessoa que foi esconder tem que esconder num lugar que a pessoa que

está no poste nunca foi. Se a pessoa que estava no poste batendo achar uma

pessoa, ela vai ter que ir para o poste. E vai continuando.

P.: É essa a brincadeira?

Christopher: (Balança a cabeça afirmativamente).

No contexto deste estudo, o momento inicial da atividade era fundamental, pois o fato

de as próprias crianças produzirem o texto que seria registrado rompe com um tipo de

procedimento de investigação da apropriação linguagem escrita que se baseia no registro de

frases e palavras pelas crianças, organizadas previamente pelos pesquisadores, com o objetivo

de interferir no modo como elas escrevem. Luria (1988) e Azenha (1995) utilizaram

procedimentos de pesquisa semelhantes que tinham, deliberadamente, o propósito de

influenciar o modo como as crianças registravam as palavras e as frases que eram propostas. O

tipo de procedimento usado, no contexto da pesquisa de Luria, pode ser justificado pelo fato

de esse autor ter trabalhado com crianças pré-escolares que não possuíam o domínio das letras

do alfabeto. No caso do estudo de Azenha, determinados conteúdos que deveriam ser escritos

possibilitaram a emergência da escrita pictográfica, como no estudo de Luria, mas, também,

provocaram o retorno a essa forma de escrita (pictográfica) quando a criança já utilizava

formas convencionais de registro (letras).

Vamos nos deter um pouco mais nessa questão para explicar os procedimentos

utilizados por esses pesquisadores na condução de seus estudos. Luria explicita que a tarefa do

experimentador é averiguar quais as atividades que deve propor às crianças, responsáveis por

produzir “a transição primária da fase difusa para o uso significativo dos signos” (1988, p.

164), ou seja, a tarefa é descobrir que tipo de atividade possibilita a emergência de registros

com caráter simbólico. Nesse sentido, afirma que havia um elemento fundamental que poderia

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mudar os rumos do desenvolvimento da criança. Esse elemento era o conteúdo das frases e

palavras que eram escritas, o que levou Luria (1988) a delimitar o conteúdo como

determinante na mudança da orientação da escrita, produzida pelas crianças não foi

esclarecido no seu texto. No entanto, conforme explicitado, foram os fatores de número ou

quantidade e de forma, introduzidos no conteúdo das frases ou palavras, que fizeram com que

as crianças envolvidas nos experimentos desenvolvidos pelo autor superassem o caráter

imitativo e inexpressivo das escritas produzidas. É importante lembrar que as primeiras

escritas produzidas pelos sujeitos (crianças) tinham a forma de ziguezagues e traduziam, para

Luria (1988), apenas a imitação do ato de escrever dos adultos.

Assim, a dissolução da produção gráfica elementar, não diferenciada resultou da

introdução dos fatores de quantidade, forma, cor e tamanho no conteúdo das frases que

deveriam ser escritas pelas crianças. Para o autor, talvez, o primeiro fator que produziu tal

mudança tenha sido o de quantidade, principalmente quando acrescido do fator contraste. Por

isso, diz:

é claro que a produção gráfica, em si mesma, é ainda confusa, e a técnica ainda não

assumiu contornos precisos, constantes: se nós ditássemos outra vez, sem qualquer

referência à quantidade, obteríamos novamente um rabisco não diferenciado sem a

preocupação de representar um conteúdo particular por uma maneira particular (1988, p.

165).

Contudo, o primeiro passo havia sido dado para a emergência, em situações

experimentais, de escritas que começavam a expressar o conteúdo registrado, ou outro que era

evocado com base no registro. Isso era impressionante para o autor que buscava, sobretudo,

analisar e compreender a emergência da escrita simbólica.

Azenha (1995), como já foi dito, ao lançar mão dos procedimentos utilizados por Luria

(1988), também observou que a introdução de determinados fatores (forma, quantidade,

tamanho) no conteúdo das frases que eram escritas possibilitou o surgimento da pictografia,

uma forma de escrita que auxiliava a lembrança do conteúdo registrado. Porém, quando a

criança já fazia uso de letras convencionais, a introdução desses fatores fez, também, com que

a escrita fosse redirecionada e tomasse a forma da antiga pictografia.

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Com base nos resultados dos estudos de Azenha (1995), consideramos que seria

inadequado propor às crianças envolvidas neste estudo a escrita de frases cujo conteúdo

pudesse levar à utilização das primeiras formas de escrita significativa. Mesmo que a autora

argumente que, no início, a escrita, usando-se letras do alfabeto, é apenas, aparentemente,

mais evoluída, pois “está associada a um funcionamento psicológico primário” baseado na

“imitação das características externas da escrita adulta”, nosso objetivo é investigar como, a

partir do uso de letras, as crianças desenvolvem plenamente esse tipo de escrita rumo ao seu

uso convencional. Assim, optamos por propor às crianças tarefas de registro de textos, pois,

conforme constatamos no trabalho que desenvolvemos durante o curso de Mestrado, esse tipo

de atividade não possibilitou que os sujeitos participantes de um processo de alfabetização

escolar retomassem formas antigas de registro.

No primeiro momento em que foi realizada a atividade de produção de textos, optamos

por escrever o texto que a criança compunha oralmente. Líamos o texto que estava sendo

produzido, durante o processo e ao final da produção oral. Isso demonstrava às crianças que as

suas idéias poderiam ser recuperadas integralmente, porque foram registradas. Em seguida,

dizíamos às crianças que deveriam escrever o texto. Após efetuarem o registro do texto

produzido oralmente, perguntávamos se a escrita as ajudava a lembrar o conteúdo registrado.

É importante ressaltar que, na primeira atividade, não incentivamos, explicitamente, que

escrevessem como os adultos, ou seja, que registrassem de uma forma que as ajudasse a

lembrar o conteúdo que motivou a escrita, mas possibilitamos toda uma situação em que o

texto produzido oralmente era registrado e recuperado por meio da leitura, para que o próprio

aluno observasse como a escrita pode auxiliar a lembrança do conteúdo do texto.

Tomando por base os procedimentos descritos, analisaremos a escrita elaborada pelas

crianças, o processo de registro do texto produzido oralmente e como as crianças se

relacionavam com a escrita ao serem incentivadas a ler o texto. Conforme mencionamos, esses

aspectos serão analisados a partir da organização de duas categorias de análise. Na primeira

incluímos as crianças que se relacionavam com a escrita para lembrar o texto que motivou o

registro e, na segunda, as crianças que não se relacionavam com a escrita com tal finalidade.

É importante ressaltar ainda que escreveremos os textos produzidos oralmente, logo em

seguida, à reprodução do texto escrito pela criança. A ordem em que os primeiros serão

escritos estará de acordo com a seqüência em que foram escritos pelas crianças.

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Durante o registro da brincadeira, observamos que vinte e sete crianças realizavam a

atividade silenciosamente e dez falavam durante o registro, demonstrando que estabeleciam as

correspondências entre as unidades da linguagem oral e as letras que eram registradas. Essa

observação é interessante, pois sugere que o controle sobre a quantidade de letras registradas

para os textos era exercido por meio dessas correspondências que eram construídas por

intermédio da fala, durante a atividade de registro. Oportunamente, discutiremos a importância

da fala no processo de apropriação da linguagem escrita. Por enquanto é importante apontar

que, inicialmente, observamos que não existia uma inter-relação entre o tipo de escrita

elaborada, o fato de as crianças construírem correspondências entre o oral e o escrito, no início

da alfabetização, e como as crianças se relacionavam com a escrita, após serem incentivadas a

lembrar o texto que motivou a escrita. Isto é, a análise das atividades realizadas pelas crianças

mostrará que tanto as crianças que tinham o domínio do caráter alfabético da escrita como

aquelas que não tinham esse domínio usavam a escrita para lembrar os enunciados do texto,

estabeleciam correspondências entre os segmentos sonoros e as letras e escreviam sem

manifestar as correspondências estabelecidas.

1.1 A escrita é usada como recurso para a memória

Durante a primeira atividade de produção de textos, constatamos que doze crianças se

relacionavam com os registros para recordar o texto que havia sido escrito. No entanto, o tipo

de escrita produzida e o modo como esse grupo produziu os registros não foram semelhantes:

seis crianças possuíam o domínio da escrita alfabética e seis não possuíam esse domínio. Por

outro lado, seis crianças efetuaram o registro silenciosamente e seis falavam durante o registro

do texto.

a) As crianças que tinham o domínio da escrita alfabética

Havia seis crianças que dominavam a escrita alfabética, mas que não se relacionaram

com a escrita da mesma maneira para recordar o conteúdo registrado. Vejamos o registro

produzido por Natanne que, na época da produção, tinha seis anos e nove meses de idade.

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Natanne optou por escrever sobre a brincadeira Escolinha e, conforme pode ser

observado, a escrita produzida é legível. Há três “incorreções” no texto: escreveu “escolnha”

para a palavra escolinha e, nesse caso, omitiu a letra “i”; escreveu “lisão” para a palavra lição;

e não acentuou o verbo “tem” que concorda com o sujeito “todos”. Assim como todas as

crianças que participaram deste estudo, ela não usou sinais de pontuação. No entanto, essas

“incorreções” não foram notadas pela aluna durante a leitura. Observemos como ocorreu o

registro do texto.

P.: Agora, você vai escrever sobre a brincadeira [...]. O nome da brincadeira é escolinha.

Natanne: (Escreve ESCOLINHA).

P.: Agora, você vai escrever: precisa de um caderno.

Natanne: Embaixo?

P.: Embaixo.

Natanne: (Escreve PRECE, apaga a letra E, escreve a letra I e continua AS DE UM

CADERNO).

P.: Uma lousa.

Natanne: (Escreve UMA LOUSA e usa o espaço embaixo).

P.: Giz e lápis.

Natanne: (Escreve GIZ E LÁPIS).

P.: Todos os que estão brincando de escolinha.

Natanne: (Escreve TODOS OS QUE ESTÃO BRINCANDO DE ESCOLNHA).

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P.: Têm que prestar atenção na lição.

Natanne: (Escreve TEM QUE PRESTAR ATENÇÃO NA LISÃO).

P.: E escrever tudo no caderno.

Natanne: (Escreve ESCREVER TUDO NO CADERNO).

P.: Muito bem! Você acha que a sua escrita ajuda a se lembrar do que escreveu?

Natanne: Acho.

P.: Então, leia.

Natanne: Escolinha. Precisa de um caderno, uma lousa, giz e lápis. Todos que estão brincando

de escolinha têm que prestar atenção na lição escrever tudo no caderno.

Durante o registro, Natanne fez uma pergunta para saber onde deveria escrever a frase

“precisa de um caderno”, corrigiu uma palavra, respondeu à pergunta feita pela pesquisadora e

leu o texto. Assim, podemos dizer que a conduta da aluna, considerando as condições dadas

para a realização da atividade, é semelhante à conduta de qualquer pessoa que domina a

linguagem escrita. Não tinha dúvidas de que a escrita lhe possibilitaria recordar o conteúdo

registrado e, por isso, leu o texto escrito. Natanne já alcançou um nível complexo de

desenvolvimento da escrita. Contudo, quatro crianças que tinham o domínio da escrita

alfabética não se relacionaram com a escrita da mesma maneira.

Analisaremos a produção de Alessandra. Ela decidiu que sua explicação seria sobre a

brincadeira Amarelinha. Vejamos a escrita da aluna. Escreveremos como foi dito, em seguida

à escrita elaborada pela criança, o texto produzido oralmente, na seqüência em que foi escrito

pela criança. Alessandra tinha sete anos e dois meses de idade na época em que produziu o

texto que se segue.

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Amarelinha

Ela é muito divertida a brincadeira.

Primeiro, a gente desenha a amarelinha.

Depois, a gente joga no número um e não pode pisar no número um.

Depois, a gente joga até o dez.

Depois, tem que começar tudo de novo.

Não pode pisar no risco.

Como pode ser visto, a escrita de Alessandra não possui o nível e elaboração dos

registros de Natanne. Com um certo esforço, é possível interpretar algumas palavras que

foram escritas e, se, o leitor souber que se trata de uma explicação de como se brinca de

Amarelinha, é possível apreender o sentido do texto apenas com as palavras que podem ser

lidas. A aluna representou a palavra a gente de três formas diferentes. Essa palavra foi escrita,

na primeira frase, com as letras “zete”, na segunda, com as letras “aelte” e, na terceira, com as

letras “tete”. O mesmo ocorreu com a palavra joga, grafada duas vezes no texto de formas

diferentes. Na primeira vez, escreveu “joga” e, na segunda, escreveu “jog”. Ocorreram ainda

junções e separações indevidas entre as palavras, trocas de letras, omissões de palavras, sílabas

e letras.

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Analisemos como ocorreu a atividade de registro. É importante destacar que a parte

final da entrevista foi perdida, por um erro lastimável na gravação. Efetuaremos a análise

dessa parte da atividade desenvolvida pela criança, com base nos registros que fizemos.

P.: Então, agora, você vai escrever o texto sobre a brincadeira (...). O nome da brincadeira é

amarelinha.

Alessandra: (Escreve ANARÉRIHA).

P.: Agora, ela é muito divertida a brincadeira.

Alessandra: (Escreve É LA É MUITO DEVETIDE e repete as sílabas “tida” oralmente).

P.: O que você escreveu?

Alessandra: Ela é muito divertida.

P.: Primeiro a gente desenha a amarelinha.

Alessandra: (Escreve BIMEIRO A ZETE DÉ EHA, pára por duas vezes e pensa).

P.: Primeiro a gente desenha a amarelinha. Escreveu tudo?

Alessandra: (Acena com a cabeça afirmativamente).

P.: Então, lê.

Alessandra: (Começa a ler o início do texto).

P.: Não. Somente aqui (aponta a última frase que foi escrita).

Alessandra: Primeiro a gente desenha (percebe a falta da palavra amarelinha e escreve

AMARÉLIHA).

P.: Depois, a gente joga no número um e não pode pisar no número um.

Alessandra: (Escreve silenciosamente, mas pronuncia sons que têm dúvida, pára, pensa e

escreve DE POIS AELTE É JOGA NO NAIMEU É NÃO POPILI 1).

P.: Escreveu tudo?

Alessandra: (Balança a cabeça afirmativamente).

P.: Leia.

Alessandra: Depois a gente (pára de ler).

P.: O que foi?

Alessandra: Depois, a gente joga no número, não pode pisar.

P.: Está tudo escrito?

Alessandra: (Balança a cabeça afirmativamente).

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P.: Depois, a gente joga até o 10.

Alessandra: (Escreve DEPOS A ZETE JOG A TÉ O DES).

P.: Depois, tem que começar tudo de novo.

Alessandra: (Escreve DEPOS TEGUE GO MESA TUDE DE NOVO).

P.: Não pode pisar no risco.

Alessandra: (Escreve NÃO PODE PISAR NORICO).

P.: Essa escrita ajuda você a se lembrar do que você escreveu?

Alessandra: Um pouco.

P.: Por que um pouco.

Alessandra: (Hesita). É... porque cada vez que a gente vai escrevendo a gente esquece um

pouco.

A aluna realizou a leitura com muita dificuldade e com a nossa ajuda. Conseguiu ler

apenas algumas palavras, pois se deteve exclusivamente na escrita para realizar essa atividade.

Dessa forma, quando disse que a escrita ajudava a lembrar “um pouco”, estava certa, pois a

escrita não lhe ajudou a recordar o texto e, de uma certa forma, atrapalhou, pois, se não ficasse

tão ocupada em interpretar o que realmente estava escrito, poderia ter lembrado o texto. Diante

das grafias que não conseguia interpretar, parava e ficava a pensar com os olhos fixos sobre as

letras.

Durante o registro do texto sobre a brincadeira, no entanto, ela leu umas das frases

escritas e percebeu inclusive a falta de uma palavra. É o caso da frase “primeiro a gente

desenha a amarelinha”. Quando pedimos para ler o que havia escrito, percebeu que faltava a

palavra “amarelinha” e completou o registro. Nesse momento, ela se relacionou com as grafias

para interpretar a escrita.

Outro aspecto que deve ser mencionado na conduta de Alessandra, durante o registro,

foi o fato de realizar a atividade silenciosamente. Somente ao escrever a primeira frase “ela é

muito divertida”, repetiu, ao final do registro, as sílabas “tida” da palavra “divertida”. Desse

modo, a aluna não elaborou as correspondências entre as grafias e os segmentos sonoros por

meio da fala, mas sabemos que compreendia a natureza alfabética do sistema de escrita, pois

registrava para os fonemas uma letra correspondente. Podemos concluir que a criança sabia

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que a escrita auxiliava a recordação do texto, mas a falta de domínio da escrita ortográfica

dificultou a realização da leitura e, por isso, leu apenas algumas palavras.

O terceiro exemplo que mostraremos é um dos mais interessantes que presenciamos

durante a pesquisa, pois a criança usava a linguagem como recurso para lembrar as letras que

deveriam ser usadas para grafar as sílabas pronunciadas. Natália tinha sete anos e cinco meses

na época em que realizou a atividade.

Batata quente

Pegar uma bolinha.

Uma criança tem que ficar de pé para dizer:

— Batata quente, quente, quente, quente.

Depois, aquele que queimar vai falar batata quente

no lugar do outro.

Como pode ser observado, na escrita produzida pela aluna, algumas palavras podem

ser interpretadas. Sabemos que ela explicou a brincadeira Batata quente e usou as letras “ce”

para escrever a sílaba “quen” da palavra quente. O primeiro enunciado “pega uma bola”

também pode ser lido integralmente, mesmo tendo dito, durante a produção oral, “pegar uma

bolinha”. Nas outras partes do texto, podemos observar representações para as palavras do

texto que não possibilitam a sua leitura e a utilização de uma mesma representação -

“batatacete” - para as palavras batata quente, nos três contextos em que foram escritas.

Vejamos como ocorreu o registro da brincadeira.

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P.: O nome da brincadeira é batata quente.

Natália: Ba (grafa as letras BA), bata (registra as letras TA), ta, é o t e o a de novo (registra as

letras TA), quen, ca, que, ca, que (registra as letras CE), batata quente, te, ta, batata

quente (registra as letras TE e fala como escreve).

P.: Pegar uma bolinha.

Natália: Pe, pa, pe. Separado não é?

P.: Pode escrever na outra linha.

Natália: (Registra a sílaba PE).

P.: Pegar uma bolinha. Você já escreveu o PE.

Natália: (Apaga e escreve a letra P novamente). Pe, gar. É o ga de gato?

P.: É o ga de gato.

Natália: Gar, pegar (registra a sílaba GA) pegar.

P.: Uma.

Natália: É o u e o m de macaco?

P.: É.

Natália: (Registra as letras UM).

P.: Uma bolinha.

Natália: Bo, ba, be, bi, bo (registra a palavra BOLA).

P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: uma criança tem que ficar de pé [...].

Natália: Uma cri, cra, cre, cri, ca, que, qui, uma cri, cri, cra, cre, cri, é o “K” e o “i”, né?

P.: Isso.

Natália: (Registra as letras CI). Uma cri, an, an. Como é o an?

P.: O “a” e o “n”.

Natália: Ah! O “n” de Natália?

P.: Isso o “n” de Natália.

Natália: (Registra as letras NA). Uma cri, an, ça, uma cri, an, ça tem uma cri, an, an, ça, ça, se,

si. É o “sa” de sapo, com o quê?

P.: Com o “a” , não é isso?

Natália: (Registra as letras SA).

P.: Uma criança...

Natália: Tem.

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P.: Tem.

Natália: Te, tem (sussurra a família silábica) te, te. É o “t” e o “i”, né?

P.: É o “t”, isso!

Natália: (Registra as letras TU).

P.: Tem que.

Natália: Que, ca, que, qui, co. Pera aí. Ca, que. É o “k” e o “e”.

P.: Tem que...

Natália: Separado?

P.: Separado.

Natália: (Registra as letras CE).

P.: Ficar.

Natália: Fi, fa, fe, fi (registra as letra FI, apaga e acerta a letra F) ficar é o “K” e o “a”.

P.: De pé.

Natália: Pé, é “p” e o “e”.

P.: (Confirma).

Natália: Separado (registra a palavra PÉ). Pé.

P.: Você escreveu o quê?

Natália: Pé. Tem que ficar de pé.

P.: E aí não está faltando nada?

Natália: Aqui né (aponta entre as palavras fica e pé).

P.: O que está faltando aí?

Natália: É de ficar [...] tem que ficar de, da, de (escreve as letras DE) é o “d” e o “e”, separar

aqui (apaga e escreve a palavra pé separada) [...].

Não continuaremos a descrever o processo de registro, pois, com o que foi escrito, é

possível perceber todo o esforço da criança para elaborar a escrita. A linguagem estava

presente durante toda a atividade. Podemos dizer que havia dois tipos de linguagem: uma

direcionada para a pesquisadora para receber confirmação sobre a escrita de uma sílaba e

sobre onde deveria colocar os espaços na escrita; a outra visava a encontrar, por meio da

repetição oral das famílias silábicas, as letras correspondentes à sílaba que era pronunciada.

Desse modo, podemos dizer que a primeira era comunicativa, pois estava direcionada para

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uma outra pessoa e a segunda era egocêntrica, porque a criança não se dirigia a nenhum

interlocutor em particular. Ambas, no entanto, estavam orientadas para a realização da

atividade proposta. Para Vigotski (1989b), os dois tipos de linguagem têm origens sociais, mas

possuem funções diferentes. A linguagem comunicativa tem a função de contato social, de

estabelecer comunicação com as outras pessoas. No caso de Natália, para receber confirmação

sobre as letras que deveriam ser escritas e sobre onde deveria colocar os espaços entre as

palavras. Assim, ao mesmo tempo em que a linguagem atuava sobre a outra pessoa, exigindo-

lhe um posicionamento, exercia uma ação sobre a própria criança que, ao receber a

confirmação, concluía a atividade. A linguagem egoncêntrica atuava como um recurso que lhe

permitia encontrar as letras adequadas à sílaba que desejava escrever. Podemos dizer que

atuava como signo, tal qual quando as crianças contam nos dedos para lembrar a grafia de um

numeral. Nesse sentido, a recordação da letra adequada à sílaba não se estabeleceu por meio

de um processo associativo direto entre as sílabas (unidades sonoras) e letras, mas foi mediada

pela linguagem.

A atividade de escrita tornou-se demorada e penosa para a menina que tinha que recitar

as famílias silábicas até encontrar as letras que desejava escrever. Isso fazia também com que

esquecesse o conteúdo da frase que deveria ser escrita e, por isso, tivemos que repetir as

palavras de cada frase. Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o texto que registrou,

disse que ajudava. Então pedimos que lesse o que escreveu.

P.: Leia o que você escreveu.

Natália: Batata quente (fala sem apontar a escrita). Tem que pegar uma bolinha (aponta onde

está escrito batata quente).

P.: Como?

Natália: Tem que pegar uma bolinha (aponta novamente onde está escrito batata quente).

P.: Está escrito isso aí?

Natália: É aqui, né? (aponta o início do texto corretamente).

P.: E em cima o que está escrito?

Natália: Batata quente.

P.: Então continua. O que mais está escrito?

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Natália: Quente, quente, quente (apontando onde estava escrito “pega uma bola” ) batata

(aponta o nome da brincadeira). Tem que pegar uma bola (aponta onde está escrito

“pegar uma bola” ).

P.: Muito bem! E depois?

Natália: (Fica parada com o dedo apontando para o registro UM). Uma, uma criança tem que

ficar de pé, pé (aponta até o final da frase).

Uma criança tem que fi car de pé, pé

UM CIANSA TU CE FI CADE PÉ PA DE ZE

(Volta, aponta a palavra pé). Pé.

P.: Pé.

Natália: Pé (aponta a palavra pé). O que está escrito aqui (aponta as sílabas que foram escritas

após a palavra pé).

P.: O que está escrito depois da palavra pé?

Natália: (Volta a ler).

Uma cri ança tem que que ficar de pé

UM CIANSATU CE FICA DE PÉ PA DE ZE

P.: Onde está escrito pé, Natália?

Natália: Aqui (aponta corretamente).

P.: Então, como você está lendo lá na frente?

Natália: (Fica silenciosa com o dedo apontando para a palavra pé).

P.: Uma criança tem que ficar de pé...

Natália: Para pegar.

P.: É pegar que está escrito aí?

Natália: Não.

P.: E o que é?

Natália: (Permanece com o dedo apontando as letra PA e, em seguida, lê). Para de ze.

P.: Continua.

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Natália: Batata quente, quente, quente, quente (aponta corretamente).

P.: Muito bem!

Natália: (Continua tentando ler a próxima linha). O que é isso? (aponta BEPOS). Como é

mesmo?

P.: Depois.

Natália: De pois. (Fica um tempo parada tentando ler o próximo segmento, não consegue e,

por isso, lê as letras separadamente). A, Q, A, T, E.

É impressionante como produziu o registro e, depois, como tentou ler o texto.

Retomou, por duas vezes, a leitura no início do texto, mas, ao perceber que não conseguia ler,

decifrou as letras “a, q, a, t, e” correspondentes à palavra aquele, durante o registro.

Natália tentou lembrar o texto sem se relacionar com a escrita. Isso pode ser visto no

início, quando apontou as grafias correspondentes ao nome da brincadeira e disse “tem que

pegar uma bolinha”. Quando questionamos sobre o que estava escrito no início do texto,

observou os registros e respondeu “batata quente”, repetiu as palavras “quente, quente,

quente” e apontou onde havia escrito “pega uma bola”, enunciado que não correspondia ao

registro e nem mesmo ao texto produzido oralmente, mas que tem o mesmo sentido do

enunciado que motivou o registro. Ela mesma observou que as grafias não correspondiam aos

enunciados. Então, leu “tem que pegar uma bola”. Em seguida, iniciou a leitura a partir do

registro da palavra “uma”, representada com as letras “um”. Esse registro a auxiliou a se

lembrar do enunciado que foi escrito “uma criança tem que ficar de pé”, mas, como ela não

correspondeu as palavras pronunciadas aos respectivos segmentos de letras usadas para grafar

cada palavra, apontou até o final da linha. Ao observar o registro da palavra “pé”, antes do

final, retomou o início das grafias e verbalizou novamente o enunciado, sem conseguir

resolver a situação criada. A frase “uma criança tem que ficar de pé” deveria terminar no

registro da palavra “pé” e isso não ocorreu, pois ela concluiu a leitura no final da linha. A

situação criada é tão complicada que leu apontando o espaço em branco no final da linha como

correspondente à palavra “pé”. Então, repetimos o enunciado que estava sendo lido e isso foi

suficiente para que a criança continuasse dizendo “para pegar”. Entretanto, não era isso que

estava escrito e, após nova intervenção, leu “para de ze”. A criança decifrou os símbolos, pois

o enunciado que motivou o registro era “para dizer”. Em seguida, leu “batata quente, quente,

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quente, quente” apontando os segmentos de letras usados para escrever essas palavras. Após

tentar ler os registros que se seguiam, sem conseguir, perguntou o que estava escrito e, diante

da resposta recebida, não conseguiu interpretar os segmentos de letras que foram escritos

posteriormente e, por isso, decifrou as letras. Fez várias tentativas para continuar a leitura, mas

não conseguiu ler o segmento de letras “a, q, a, t, e” que correspondia à palavra “aquele”.

Acreditamos que a criança já não lembrava os enunciados que foram registrados e, por

isso, não conseguiu prosseguir a atividade e a nossa informação sobre o que estava escrito não

contribuiu para ajudá-la. Contudo, constatamos que a leitura de uma palavra no texto

possibilitou a lembrança de um enunciado que compunha o texto. Vimos como a aluna se

relacionou com a escrita para enunciar “uma criança tem que ficar de pé”. A representação da

palavra uma com a grafia “um” possibilitou a lembrança dessa frase e a criança continuou a

ler sem se preocupar em corresponder as palavras pronunciadas oralmente com os registros

que se seguiam. No entanto, a observação de que a palavra pé não concluía os registros fez

com que retomasse a escrita. Desse modo, ao mesmo tempo em que a primeira grafia (“um”)

possibilitou a lembrança dos significados registrados e acionou um tipo de conduta, que

desconsiderava a escrita, o reconhecimento da palavra pé inibiu essa forma de conduta

levando a criança a considerar novamente o que estava escrito.

Alessandra, diferentemente de Natália, não enunciava o texto a partir da leitura de uma

palavra. Ela se detinha exclusivamente na escrita e, por isso, realizou a leitura de apenas

algumas palavras. Natália, por outro lado, elaborou os enunciados, a partir da leitura de uma

das palavras. Também, não conseguiu lembrar o texto a partir da informação sobre qual

palavra estava registrada. Tentou, então, interpretar a escrita, mas, como não conseguiu,

decifrou as letras. Natália se relacionou com a escrita para lembrar o texto, mas, inicialmente,

tentou lembrá-lo apoiando-se exclusivamente na memória. A mudança na sua atividade

ocorreu após a nossa intervenção.

Dessa forma, observamos que as crianças que tinham o domínio da escrita alfabética

não se relacionaram com a escrita da mesma maneira, ao serem incentivadas a ler o texto:

usavam apenas a escrita para recordar o texto (Natanne), liam algumas palavras que podiam

ser interpretadas (Alessandra) e se relacionavam com uma das palavras do texto para enunciar

os significados anotados ou decifravam letras, quando não podiam interpretar as grafias

(Natália).

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b) As crianças que não dominavam a escrita alfabética

Verificamos que seis crianças não tinham o domínio da escrita alfabética, mas se

relacionavam com as grafias para recordar o texto que motivou o registro. Isso pode ser

evidenciado na atividade realizada por Hugo, Taís e Luís Carlos. Analisaremos, primeiro, a

escrita produzida por Hugo, em seguida, como se desenrolou a atividade de registro e como se

relacionou com a escrita para lembrar o texto. Ele tinha sete anos e um mês de idade na época

em que elaborou o registro.

Pular corda Precisa de três pessoas

e muito mais gente: duas para bater

e uma para cantar. Bater a corda devagar e, depois, rápido e uma pessoa canta:

Senhoras e senhores, põem a mão no chão.

Senhores e senhores, pulem com um pé só.

Quando acaba a música, a criança tem que sair.

A criança escreveu como é a brincadeira de Pular corda. Não há indícios, na escrita de

Hugo, que garantam a legibilidade do texto. Apenas podemos observar que foram usados

numerais para representar as quantidades e notar indiferenciações nas grafias dos dois

primeiros segmentos de letras escritos, no início das quarta e quinta linhas. No entanto, a

ilegibilidade é apenas aparente, pois essas escritas, que podem ser identificadas como

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reprodução de letras aleatórias, orientaram a atividade de interpretação realizada por Hugo, ou

seja, elas adquiriram um caráter expressivo.

Observando ainda a escrita da criança, constatamos que colocava espaços em branco

entre os segmentos de letras. Acreditamos que essas separações foram ocasionadas pela

apropriação das características externas da escrita. Existem separações entre as palavras, na

escrita; a professora, na classe, enfatizava esse aspecto pedindo às crianças que pintassem os

espaços entre as palavras de um texto e, depois, copiassem observando as separações. Ela

ainda escrevia textos sem colocar separações entre as palavras, solicitava às crianças que

pintassem as palavras usando cores diferentes e, em seguida, copiassem colocando as

separações. Essas atividades, certamente, influenciaram a produção de Hugo. Ele ainda não

sabia usar as letras adequadamente, mas tentava fazer uso de conhecimentos sobre a escrita

que estavam sendo aprendidos na sala de aula.

Analisemos como ocorreu a atividade de registro realizada pelo aluno. Ela é

particularmente importante para os propósitos deste trabalho.

P.: Agora, eu gostaria que você escrevesse como é que brinca. Do jeito que você falou. Pra

isso, eu vou ditar para você o que você me disse. Está certo?

Hugo: (Concorda com um movimento de cabeça).

P.: (...) O nome da brincadeira é pular corda.

Hugo: (Escreve a letra P e começa a registrar a segunda letra). É com letra de forma. (Em

seguida, registra a letra A e escreve a letra P novamente) p. (Registra a letra A, pára,

pensa e, em seguida, registra a letra E, pára novamente, pega a borracha, apaga a letra

E, a substitui pela letra B e escreve, também, a letra O).

P.: Escreveu?

Hugo: (Concorda com um movimento de cabeça).

P.: O que você escreveu?

Hugo: Pular.

P.: Pular. Então, falta escrever corda.

Hugo: (Grafa LQ, pára um pouco, registra a letra A, pára, novamente, e registra as letras EA.

P.: Terminou?

Hugo: (Confirma).

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P.: Está bem. Precisa de três pessoas.

Hugo: Três, três (escreve o número 3 invertido), pe (escreve a letra P, grafa as letras CO, pára

de escrever e, em seguida, escreve a letra A).

P.: O que você escreveu?

Hugo: Precisa de 3 pessoas (lê vagarosamente, silabando e sem apontar o registro).

P.: Aí você disse: precisa de três pessoas e muito mais gente,

Hugo: Mu (grafa BU, volta, lê tudo que foi escrito e grafa a letra A. Em seguida, lê

novamente, registra LA e pára de escrever).

P.: O que você escreveu?

Hugo: Pessoas.

P.: E aqui? O que está escrito? (aponta onde havia dito que tinha escrito pessoas).

Hugo: (Aponta o último registro). Aqui é muito mais.

P.: O quê? (a pesquisadora não compreende as últimas palavras).

Hugo: (Retorna ao início do texto e lê cada grupo de letras) Precisa de 3 pessoas e muito mais.

Falta gente.

P.: Gente.

Hugo: (Grafa as letras H e G, pára um pouco, grafa a letra I, pronuncia a palavra gente e grafa

as letra A e E. Pronuncia, novamente a palavra gente, aguçando o som da última

sílaba).

P.: Depois, você disse o seguinte: dois para bater.

Hugo: Dois. (Grafa o número 2, volta e grafa a letra I na palavra gente). Dois para. (Grafa as

letra P e A, pára de escrever e lê apontando) 2 para bater. (Grafa as letras PATA, apaga

a letra A, volta e lê) 2 para bater. (Grafa a letra E).

P.: Isso! Dois para bater e um para cantar.

Hugo: (Grafa o número 1, as letras PA) Can, can. (Grafa a letra H). Tar. (Grafa a letra A).

P.: Bater a corda devagar e, depois, rápido.

Hugo: (Escreve as letras PA e pára).

P.: Bater a corda.

Hugo: (Aponta e lê). Ba. (Escreve a letra T, volta e lê) te, te. (Grafa as letras A e HG, pára e

volta a ler a palavra bater apontando. Ao terminar, volta ao início do texto e aponta

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primeiro onde está escrito o número 3 e lê). Três pessoas. (Em seguida, onde está

escrito o número 2 e lê). Duas pessoas para bater. (Grafa as letras EA).

P.: Depois, você disse: bater a corda devagar e, depois, rápido. Foi isso que você escreveu. E

uma pessoa canta.

Hugo: Uma pe. (Grafa o número 1. Em seguida, aponta o número um). Mas, aqui, já tá.

P.: Aí você escreveu um para cantar. Agora, você vai escrever: bater a corda devagar e,

depois, rápido e uma pessoa canta.

Hugo: Uma. (Grafa o número um). Pe. (Grafa as letra PE). So. (Grafa as letras HQ, volta, lê a

palavra que está sendo escrita e grafa a letra A).

P.: E uma pessoa canta. Você não escreveu uma pessoa?

Hugo: (Volta e lê fazendo corresponder segmentos sonoros às grafias produzidas) uma

(corresponde ao número 1), pes (corresponde às letra PE), so (corresponde às letras

HQ) canta.

P.: Isso! Canta.

Hugo: (Grafa as letras PIA).

P.: Canta?

Hugo: Confirma acenando a cabeça.

P.: Muito bem. Depois, você disse: senhoras e senhores, põem a mão no chão.

Hugo: (Escreve a seqüência de letras CQIC, dá um espaço e escreve as letras AI, volta, lê,

completa a segunda seqüência com as letras AIE e escreve as letras BAPAHU).

P.: O que foi que você escreveu?

Hugo: (Aponta cada seqüência grafada como correspondente a cada palavra). Senhoras e

senhores põem a. (Grafa a letra A). Mão, mão. (Grafa as letras PE). No. (Grafa as letras

BU). Chão. (Grafa as letras HE).

P.: Depois, você disse: senhoras e senhores, pulem com um pé só.

Hugo: (Copia o que escreveu anteriormente: CQIC AIAIE). Em. (Grafa as letras BA).

P.: Primeiro pulem (ao perceber que iria escrever em um pé só).

Hugo: (Volta, lê apontando). Senhoras e senhores pule. (Grafa as letras PA e apaga). Com um.

(Grafa o número 1). Um. (Grafa o número 1 novamente). Pé. (Grafa as letra PÁ). Só,

só. (Grafa as letras OQ).

P.: Com um pé só.

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Hugo: (Confirma).

P.: E aí depois: quando acaba a música.

Hugo: Um. (Grafa as letras LA). Aca, ca. (Grafa a letra A) A. (Dá um espaço entre as letras

que foram escritas e grafa novamente a letra A). Um, um. (Grafa LI.) Acaba, música.

(Grafa as letras AI).

P.: Quando acaba a música, a criança tem que sair.

Hugo: A. (Grafa a letra A). Cri. (Grafa a letra I). An. (Grafa a letra I). An, ança. (Grafa as

letras PE). Criança tem. (Pára um pouco e, só depois, grafa as letras HI). Pronto, já

acabei!

P.: Então, lê o que você escreveu.

Hugo: Quando acaba a música a pessoa sa (grafa as letras AI).

Observamos que Hugo iniciou o registro dizendo para ele mesmo que deveria usar letra

de forma. Em seguida, escreveu as grafias correspondentes ao nome da brincadeira

silenciosamente. Começou o registro da frase “precisa de três pessoas” e registrou “ε pcoa”.

A partir dessa escrita, passou a elaborar, no plano verbal, as correspondências entre as letras

grafadas e as unidades da linguagem oral. Foi possível, então, observar que usou a letra “p”

para representar a sílaba “pes”, as letras “co” para representar a sílaba “so” e a letra “a” para

representar a última sílaba da palavra “pessoas” . Desse modo, escreveu uma ou duas letras

para representar as sílabas. As letras usadas nem sempre pertenciam à sílaba que estava sendo

registrada.

Assim, por intermédio da análise da linguagem que surgiu, durante o registro do texto,

identificamos o tipo de correspondência que estabelecia entre o oral e o escrito. Em algumas

situações usou duas letras para cada sílaba, mas não sabia as letras que deveria usar. O

trabalho na sala de aula, a partir das chamadas sílabas simples (compostas de consoante-

vogal), certamente influenciou o uso de duas letras para a representação das sílabas. Em outras

situações, usou uma letra para representar as sílabas. É importante notar ainda que a

linguagem não estava direcionada para outra pessoa; tinha a função de ajudar a criança a

lembrar as letras que deveriam ser usadas para representar a unidade silábica.

O fato de Hugo relacionar as letras às unidades sonoras que eram pronunciadas mostra

que já aprendeu que as letras representam unidades da linguagem oral, ou seja, já

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compreendeu que existe uma relação de simbolização entre os sons e as letras. Essa é uma

compreensão importante e que, no caso da criança, precisava ser aprimorada pelas

aprendizagens escolares. Além disso, Hugo se relacionou com a escrita, durante o registro.

Nesse contexto, pareceu querer corresponder cada segmento de letras, que foi separado por

espaços em branco, às palavras que eram pronunciadas. No entanto, o uso de numerais, na

representação das quantidades, fez com que essa tentativa fracassasse e, por isso, acabou

modificando a atividade.

A compreensão de que os símbolos escritos representavam unidades da linguagem oral

não possibilitou, entretanto, a interpretação dos registros, quando incentivamos a criança a se

relacionar com a escrita para lembrar o texto. Observamos que a representação das

quantidades por meio de numerais e o uso de um mesmo segmento de letras para representar

as palavras que foram escritas em dois contextos foram os fatores que propiciaram a

lembrança do texto.

Ao terminar o registro, Hugo disse que a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o texto;

então, pedimos que lesse o texto produzido. Ele parou por alguns segundos e começou a

leitura. Reproduziremos a escrita de Hugo para mostrar como se relacionou com a escrita para

realizar a atividade. Escreveremos em azul os enunciados produzidos pela criança, em preto os

registros produzidos pelo aluno e numeraremos cada seqüência de registros para facilitar a

análise.

Pre cisa de (pára e relê o três) três pes

1a) PAPABO LQAEA ε PCOA

so as e, e (pára e pensa e, depois lê) duas para bater

2a) BUALA HGIAEI 2 PAPATE

E uma para can tar (pára e desiste de ler)

3a) 1 PAHA PATA HQAEA 1PEHQA PIA

senhoras e senhores põem a mão no chão

4a) CQIC AIAIE BAPAHU APEBUHE

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senhoras e senhores pulem com um pé

5a) CQIC AIAIE BAPA 1 1 PÁOQ

só senhoras e senhores

6a) LAPA ALIAI AIHA IPEHI AI

Quando o aluno começou, novamente, no sexto segmento, a enunciar “senhoras e

senhores”, parou o enunciado, retomou o quinto segmento e repetiu: “pule com um pé só”.

Voltou a apontar o último segmento e bateu com os dedos sobre a mesa. Então, perguntamos o

que estava acontecendo e, de repente, lembrou-se do que havia escrito, apontou a escrita e

enunciou rapidamente: “quando acaba a música a pessoa sai”.

Retomando o início da atividade, como pode ser visto, Hugo não disse o nome da

brincadeira. Os dois primeiros segmentos de letras que, durante a atividade de registro,

correspondiam às palavras pular corda, foram apontados para a primeira frase. Ele começou o

texto pelo primeiro enunciado e este pareceu estar memorizado. O uso do título para garantir a

primeira enunciação não é aleatório, pois, como vimos, não registrou a palavra “precisa”.

Assim, na interpretação, apontou os dois primeiros segmentos de letras para a palavra precisa.

Quando enunciou a palavra “de” e apontou o numeral três, parou um pouco, leu “três” e

continuou dizendo a palavra “pessoas” que terminou no segundo segmento de letras da linha

seguinte. Novamente, ele parou diante do numeral dois, como se estivesse procurando lembrar

o enunciado ligado a esse numeral; lembrou-se da frase que foi escrita “e duas para bater”. A

terceira linha de registros é iniciada com o numeral 1. Hugo não teve dúvidas e enunciou “e

uma para cantar”. Parou diante do registro do numeral 1, mais uma vez, ainda, na terceira

linha de grafias, mas não conseguiu recuperar o conteúdo que estava ligado a ele. Então,

apontou a quarta linha e disse: “senhoras e senhores, põem a mão no chão”. Concluiu o

enunciado no final dessa mesma linha e apontou a quinta linha e disse “senhoras e senhores,

pulem com um pé só”. Como destacamos, os dois primeiros segmentos de letras, escritos no

início das quarta e quinta linhas, foram compostos com as mesmas letras, o que demonstra que

a criança sabia que para escrever as mesmas palavras são usadas as mesmas letras. Isso,

porém, não ocorreu com Alessandra que representou uma mesma palavra com segmentos de

letras diferentes. Na quinta linha, além dos segmentos usados para escrever “senhoras e

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senhores”, o registro do numeral um também possibilitou a lembrança do enunciado “pulem

com um pé só”. Esse enunciado é concluído no primeiro segmento de letras, na sexta linha. A

criança então continuou dizendo “senhoras e senhores”, mas parou, pois percebeu que não era

isso que estava escrito. Apontou os registros, na quinta linha, e terminou o enunciado “pulem

com um pé só”. Ficou pensativo por algum tempo até lembrar-se do conteúdo que foi

registrado por último.

Pensemos um pouco mais na atividade desenvolvida pela criança. Quais foram os

elementos presentes, na escrita produzida pelo aluno, que ajudaram a lembrar o texto?

Certamente, foram as representações de quantidades por meio de numerais e a representação

das palavras “senhoras e senhores”, por duas vezes, com o mesmo segmento de letras. Isso

significa que os numerais e o uso de um mesmo segmento de letras para representar as

mesmas palavras assumiram a forma de signos que remeteu não só ao conteúdo que eles

próprios significam, mas possibilitaram a lembrança de outros conteúdos que estavam ligados

a eles, garantindo a enunciação de um texto com sentido.

Como mencionamos, Luria (1988) observou que o fator primário, introduzido no

conteúdo das frases e palavras que deveriam ser escritas pelas crianças, que possibilitou a

emergência da escrita expressiva foi a quantidade. Esse, também, foi um fator, presente no

texto a ser escrito por Hugo, que possibilitou a recordação do texto. No entanto,

diferentemente das crianças que participaram do trabalho realizado por Luria (1988), Hugo fez

uso do sistema numérico, que estava sendo aprendido, na escola, para representar as

quantidades.

A segunda criança que se relacionou com as grafias para lembrar o texto se apoiou na

escrita de uma palavra, grafada com letras que são usadas na sua escrita convencional.

Observemos os registros de Taís que, na época, tinha sete e cinco meses de idade.

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A aluna escreveu colocando separações na escrita. Porém, somente a palavra olho,

mesmo escrita “incorretamente”, pode ser lida. Ela escreveu sobre a brincadeira Cobra-cega.

Analisemos o processo de produção dos registros acima e, em seguida, como a aluna se

relacionou com a escrita para lembrar o texto.

P.: Agora, você vai escrever o que me disse [...]. O nome da brincadeira é cobra-cega.

Taís: (Escreve PEAG PEIO e continua a escrever).

P.: O que você está escrevendo?

Taís: Cobra-cega. (Escreve TO e continua escrevendo ATUNE O OLIHO).

P.: E agora, o que você está escrevendo?

Taís: Tem que tampar o olho (aponta a escrita).

P.: Mas você tinha dito pra mim assim: pega um pano e tampa o olho.

Taís: (Aponta a escrita). Então, tá aqui.

P.: Onde está escrito?

Taís: (Mostra onde está escrito sem apontar os segmentos que disse corresponder a cobra-

cega).

P.: Agora, deixa eu ditar. Depois, tem que correr para a cobra não pegar.

Taís: (Escreve silenciosamente TAQNO E DE CANTA, volta e lê sussurrando o que escreveu.

Continua e escreve A PEAGBA. Muda de linha, registra PHA e CEPAHI). (Sussurra

enquanto escreve).

P.: Terminou de escrever o que eu ditei?

Taís: (Confirma com um movimento de cabeça).

P.: O que você está escrevendo agora?

Taís: Aí tem que tampar o rosto. Depois, sai correndo senão a cobra pega. (Continua

escrevendo, registra NEA, volta, lê sussurrando o que escreveu e, em seguida, registra

QCEA PEAGBA).

P.: Terminou?

Taís: (Confirma com um movimento de cabeça).

Como vimos, a aluna não esperou que ditássemos o texto que havia produzido

oralmente. Escreveu um outro texto que não é possível definir com clareza. Porém, a primeira

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frase pode ser identificada, pois ela mesma afirmou que escreveu “tem que tampar o olho”.

Quando confirmou que havia terminado, perguntamos se a escrita ajudaria a lembrar o que

escreveu e ela disse que ajudaria. Então, pedimos que lesse o que foi escrito.

A criança produziu o registro do primeiro enunciado sem apontar os registros e, por

isso, sugerimos que apontasse, no texto, onde estava lendo. Após a nossa sugestão, apontou os

segmentos de grafias como correspondentes às palavras que estavam sendo lidas. O segmento

“oliho”, é apontado pela aluna referindo-se à palavra “olho”. Ao concluir a atividade,

perguntamos:

P.: Como você sabe que aí está escrito essas coisas?

Taís: (Hesita e não responde).

P.: Você sabe onde está escrita a palavra olho?

Taís: (Aponta corretamente).

P.: E cobra-cega?

Taís: (Aponta novamente os segmentos de letras que usou para escrever cobra-cega).

Com isso, entendemos que os outros registros foram apontados aleatoriamente, mas as

letras usadas para escrever a palavra olho eram expressivas. O mesmo ocorreu com os

registros usados para escrever cobra-cega. Nesse caso, apoiou-se no fato de terem sido essas as

primeiras palavras escritas. Talvez tivesse sido possível explorar mais o trabalho desenvolvido

pela criança se pudéssemos ouvir o que ela falava, durante o registro, pois, assim, saberíamos

exatamente o que escreveu.

Analisemos ainda a produção escrita de Luís Carlos. A atividade realizada pelo aluno

evidenciará a análise que elaboramos anteriormente. A sua idade, na época do registro, era de

sete anos e quatro meses de idade.

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Esconde-esconde

Um colega bate cara.

Os outros meninos se escondem. Se o colega que bateu cara pegar um menino, ele diz:

— Um, dois, três, Alanderson. O Alanderson vai bater cara.

A criança escreveu sobre a brincadeira Esconde-esconde. Desse modo, registrou as

palavras que compõem o nome da brincadeira com as mesmas letras. Ao escrever o primeiro

enunciado “um moleque bate cara”, registrou o numeral “um” para representar o artigo. Se

observarmos a escrita, veremos que usou as letras do seu nome para compor o registro (i, o, s,

r, l, a). As letras “b e j” foram escritas apenas uma vez. A palavra “são” foi registrada duas

vezes. Ele conhecia bem essa palavra, pois a escrevia todos os dias no cabeçalho. Analisemos

o processo de registro.

P.: Agora, você vai escrever o que falou sobre a brincadeira [...]. O nome da brincadeira que

você me explicou é esconde-esconde. Vamos escrever?

Luís Carlos: Vamos. Do jeito que sabe?

P.: Do jeito que sabe.

Luís Carlos: (Escreve IOSR IOSR).

P.: Muito bem! [...] Aí você disse o seguinte: um colega bate cara.

Luís Carlos: (Escreve 1 - ROSI JURORIXBLOR). Pronto!

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P.: Depois você disse: os outros meninos se escondem.

Luís Carlos: (Grafa as letras IOSRO). Pronto!

P.: Você escreveu aí os outros meninos se escondem?

Luís Carlos: (Não responde, continua escrevendo, grafa as letras SORA e pára de escrever).

P.: E aí você disse assim: se o colega que bateu cara pegar o menino, ele diz. Se o colega que

bateu cara.

Luís Carlos: (Continua na mesma linha, sem separar as palavras e escreve CARALOS).

Pronto!

P.: Se o colega que bateu cara pegar o menino.

Luís Carlos: (Escreve CRBEO). Pronto!

P.: Ele diz:

Luís Carlos: (Escreve ALDSÃO).

P.: Um, dois, três, Alanderson.

Luís Carlos: (Muda de linha e escreve ROAIOSAXR). Pronto!

P.: O Alanderson, então, vai bater cara.

Luís Carlos: (Escreve UARALSÃO). Pronto!

A criança escreveu o texto silenciosamente. Perguntamos, ao final do registro, se a

escrita ajudava a recordar o texto. Ele respondeu que ajudaria. Assim, pedimos que lesse o

texto.

P.: (...) Então, se a escrita ajuda a se lembrar da brincadeira, leia o que você escreveu.

Luís Carlos: Esconde-esconde.

P.: Onde está escrito esconde-esconde.

Luís Carlos: (Aponta corretamente). Aqui.

P.: Continua.

Luís Carlos: Um moleque bate cara (fica parado por algum tempo).

P.: O que mais está escrito?

Luís Carlos: Aí os outros se escondem.

P.: Onde está escrito um moleque bate cara.

Luís Carlos: (Mostra a última linha do texto). Aqui.

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P.: Como você sabe que está escrito um moleque bate cara?

Luís Carlos: Porque eu escrevi.

P.: E o que mais você escreveu?

Luís Carlos: E aí o Alanderson bate cara.

P.: Onde está escrito e aí o Alanderson bate cara?

Luís Carlos: (Aponta novamente a última linha. Em seguida, o final da escrita anterior onde

aparecem algumas letras o nome do Alanderson).

Observamos que Luís Carlos apontou para o enunciado “o Alanderson bate cara” dois

segmentos de grafias. Primeiro, apontou “uaralsão” e, depois, “aldsão”. Observa-se que os

dois segmentos foram compostos com a palavra “são” que traduz a forma oral, usada pelas

crianças, para pronunciar a sílaba final do nome do colega. As crianças falavam “Alandersão”.

Além disso, no primeiro segmento apontado, podemos verificar a presença das letras “a” e “l”

que compõem a escrita de duas sílabas do nome. No segundo segmento apontado, ele

escreveu, também, a letra “d”, além das letras mencionadas. Por isso, o último segmento

apontado aproxima-se mais do registro da palavra. Desse modo, o uso de letras para

representar uma palavra que compõe a sua escrita convencional, acompanhado da sílaba “são”,

possibilitou ao aluno indicar onde escreveu a frase. É importante observar que a escolha das

letras usadas parar representar o nome do colega foi baseada na análise das unidades sonoras.

Antes de continuar a análise, é necessário sintetizar as idéias que foram abordadas.

Mostramos, inicialmente, que Alessandra possuía o domínio da escrita alfabética, mas

conseguiu ler apenas algumas palavras do texto. Na realidade, a criança procurava interpretar

apenas a escrita sem recorrer à memória e, desse modo, não conseguiu realizar a atividade.

Entretanto, foi a compreensão de que a escrita auxilia a recordação do texto e o fato de não

conseguir ler as palavras registradas, uma a uma, que a fizeram desistir da atividade. Natália,

por outro lado, também, compreendeu a função da escrita, mas não observava todas as

palavras escritas. Em uma situação, foi suficiente ler uma palavra para produzir o enunciado

completo, valendo-se da lembrança que a palavra lida evocava.

Outro aspecto que não podemos deixar de ressaltar diz respeito à habilidade que ambas

possuíam de identificar, segmentar e manipular de forma intencional as unidades constituintes

da linguagem oral para produzir a linguagem escrita. No entanto, o modo como elaboraram a

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análise ocorreu de forma diferenciada. Natália elaborou essa análise de maneira manifesta

enquanto Alessandra escreveu silenciosamente. O modo como Natália elaborou a análise é

muito interessante, pois nos permitiu avaliar as unidades da linguagem que foram

consideradas para efetuar o registro. Ao mesmo tempo, mostrou que utilizava a linguagem

como recurso para auxiliar a lembrança das letras correspondentes às unidades da linguagem

pronunciadas.

As crianças que não possuíam o domínio da escrita alfabética também se relacionavam

com as grafias para recordar o conteúdo que motivou o registro. Com base nas atividades

analisadas, podemos concluir que a representação de quantidades por meio de numerais pode

contribuir para a recuperação do texto (contudo, nem sempre as crianças usavam esses

registros para recordar o conteúdo). Da mesma forma, observamos que uma mesma palavra,

representada em diferentes contextos, com o mesmo segmento de grafias, possibilitou a

lembrança do seu significado e, ao mesmo tempo, levou à recuperação de um enunciado

completo, ligado às palavras lidas. Também a representação de palavras com letras que

compõem a sua escrita ortográfica propiciou a lembrança da própria palavra e do enunciado

ligado ela. Os enunciados produzidos pelas crianças, ao se relacionarem com a escrita, eram

ou não os mesmos que motivaram os registros, mas os seus sentidos eram os mesmos. Assim,

podemos concluir que os fatores que possibilitaram a emergência de grafias expressivas foi a

presença, nos textos elaborados oralmente pelas crianças, de quantidades, palavras que se

repetiam e palavras que haviam sido estudadas pelas crianças.

c) As grafias possibilitaram a evocação de palavras que não foram escritas

Durante a realização da atividade com as crianças, identificamos uma situação única no

trabalho. No entanto, iremos analisá-la, pois nos pareceu muito interessante o modo como a

criança se relacionou com as grafias de forma a construir significados para as grafias que não

motivaram a escrita. Essa criança tinha oito anos e nove meses e estava repetindo a primeira

série pela segunda vez. Ele produziu o texto sobre uma brincadeira que denominou de

Amarelinha. Observemos a escrita produzida por José Carlos:

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Amarelinha

Um tem que ficar em pé de um lado

E outro tem que ficar em pé do outro lado

Com uma corda nas pernas.

Outra pessoa entra dentro da corda

e fica pulando.

Os meninos levantam a corda enquanto a pessoa pula.

Como pode ser constatado, a criança utilizou um número reduzido de letras para

escrever a brincadeira. Ele usou as vogais e duas consoantes (d e t). Isso é surpreendente para

uma criança que tem uma trajetória escolar tão longa. Vejamos como ocorreu a atividade de

registro.

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P.: Agora, você vai escrever o que você falou [...]. O nome da brincadeira é amarelinha.

Vamos escrever? Amarelinha [...].

José Carlos: O a (registra a letra A). Ma (registra AEOCA).

P.: Escreveu?

José Carlos: (Confirma).

P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: um tem que ficar em pé de um lado.

José Carlos: Um (registra a letra AIAI).

P.: Escreveu?

José Carlos: (Confirma).

P.: E outro tem que ficar em pé do outro lado.

José Carlos: (Escreve AIAIAO).

P.: Com uma corda nas pernas.

José Carlos: (Escreve ATIA).

P.: Outra pessoa entra dentro da corda.

José Carlos: (Escreve OTAATA).

P.: E fica pulando.

José Carlos: I (escreve IUOA).

P.: [...] Os meninos levantam a corda.

José Carlos: Meni (escreve OCAO). Escrevi.

P.: Escreveu? Mas eu escutei você falando só meni.

José Carlos: (Anota as letras OA).

P.: Os meninos levantam a corda enquanto a pessoa pula.

José Carlos: En (registra a letra E), quan (registra a letra A), t (registra a letra T), a pessoa

(registra a letra A), pu (registra a letra A), la (registra a letra A).

Ele iniciou a atividade identificando que o nome da brincadeira começava pela letra

“a” e escreveu essa letra. Em seguida, registrou as frases silenciosamente e, no registro da

última frase (“os meninos levantam a corda, enquanto a pessoa pula”), foi possível observar

que as grafias produzidas corresponderam apenas à frase “enquanto a pessoa pula”, pois ele

elaborou as correspondências entre as unidades sonoras e as letras, por meio da fala. As

relações que elaborou são entre uma sílaba e letra, uma sílaba e duas letras, uma palavra e uma

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letra. Grafou letras que pertenciam a sílaba e, também, letras que não pertenciam. É o caso,

por exemplo, das letras que corresponderam à palavra “enquanto”. Ele escreveu a letra “e”,

correspondendo à sílaba “en”, as letras “oa” correspondendo à sílaba “quan” e a letra “t”

para a sílaba “to”. Na mesma frase, registrou as letras “aa” para a palavra “pula”. Vale

ressaltar que o fato de não variar as duas letras, nesse contexto, não foi problemático para o

aluno. Porém, para algumas crianças, isso era inaceitável.

Ao terminar o registro, perguntamos a José Carlos se a escrita ajudava a recordar o

texto que foi registrado. Ele afirmou que ajudava. Então pedimos que lesse.

P.: Você acha que essa escrita ajuda a lembrar o que está escrito?

José Carlos: Ajuda.

P.: [...] Então lê o que você escreveu?

José Carlos: Aqui? (aponta a escrita).

P.: É.

José Carlos: (Começa a ler no meio do registro).

P.: Não. Começa no início.

José Carlos: A, A, E, D, E, A.

P.: Lê alto.

José Carlos: A, A, E, D, A.

P.: E o que você queria escrever aí?

José Carlos: Amarelinha [...].

P.: Agora, tenta ler a segunda linha. O que você quis escrever aí?

José Carlos: A, I, A, I. Aqui tá escrito pi, pa.

P.: O quê?

José Carlos: Aqui tá escrito pipa só.

P.: Pipa?

José Carlos: É.

P.: E você quis escrever pipa?

José Carlos: Não.

P.: E está escrito pipa?

José Carlos: Tá.

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P.: Por que você sabe que está escrito pipa?

José Carlos: Porque quando a professora escrevia lá na lousa ela colocava o A e o PI, não o

AI, o AI.

P.: E embaixo o que está escrito?

José Carlos: A, I, A, I mais A,O.

P.: E aí?

José Carlos: (Diz algo que não é compreendido)

P.: O quê?

José Carlos: A com o i.

P.: O que está escrito? (...)

José Carlos: Aí.

P.: Como você sabe?

José Carlos: Porque tem o A e o I.

P.: E embaixo o que está escrito?

José Carlos: A, T, IA (leu separadamente as duas primeiras letras e as duas últimas leu

conjuntamente).

P.: A, T, IA? Quando você estava escrevendo, foi isso que eu disse para você escrever?

José Carlos: Não.

P.: Como você escreveu isto?

José Carlos: (Sem resposta).

P.: [...] Embaixo, o que você escreveu?

José Carlos: D, T (pára) esses três aqui dá T, não dá D, T, A.

P.: O que foi que você escreveu?

José Carlos: D, T, A.

Como pode ser visto, no início, a criança decifrou letras e disse que ali havia escrito

“amarelinha”. Para o segundo segmento de letras (ai, ai), leu a palavra pipa. Ao ser

questionada sobre a leitura elaborada, disse que, quando a professora escrevia na lousa a

palavra pipa, “ela colocava o “a” e o “pi”, não o “ai”, o ai” . Dessa forma, José Carlos

lembrou-se de que as letras “a” e “i” são usadas para escrever a palavra pipa e, por isso, ali

estava escrita essa palavra. Leu também as palavras “ai” (terceiro segmento) e “a tia” (quarto

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segmento) e sabia que não foi isso que desejou escrever. É interessante o fato de as grafias

provocarem a evocação de palavras que não motivaram o registro. Luria (1988) relatou algo

semelhante: as crianças que participaram dos seus experimentos também atribuíam

significados que não foram registrados aos sinais e marcas registradas. No caso de José Carlos,

algo que parecia uma série de letras grafadas aleatoriamente assumiu um caráter expressivo, se

considerarmos a análise que elaborou da escrita de modo a enunciar significados elaborados a

partir dos próprios registros. Ele tomou por base unicamente a escrita para enunciar as

palavras que disse estarem escritas.

Vale acrescentar que, ao retornarmos à sala de aula para guardar o equipamento que

utilizávamos durante as atividades, José Carlos contava para os colegas que havia lido. Como

os colegas não acreditavam, chamou-me para confirmar o fato. Ele tinha um grande sorriso no

rosto. Acreditava que havia lido e não estava totalmente equivocado, pois as grafias

possibilitavam a interpretação que elaborou. Na última atividade realizada pela criança, fez

questão de se certificar se havia aprendido a ler. Raras vezes, vimos a aprendizagem da

linguagem escrita provocar tanta alegria numa criança. Acreditamos que as atividades que

desenvolvemos com as crianças contribuíram para esse aprendizado, pois José Carlos se

esforçava para se relacionar com a escrita para ler o texto e, desse modo, mostrar que havia

aprendido a ler.

d) Desenhar e escrever

Por último, é importante mostrar o trabalho desenvolvido por Jéssica Fernanda. A

atividade elaborada por essa criança também é única no trabalho. Ela usou desenhos e letras

para registrar a explicação de como é desenhada a Amarelinha. Jéssica Fernanda tinha seis

anos e onze meses. Vejamos sua escrita.

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Amarelinha

Coloca um quadradinho e faz o número um.

Coloca um quadrão perto do número um

e, depois, coloca um risco no meio.

Coloca o dois de um lado e o três do outro.

Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o quatro.

Faz outro quadradão e coloca o cinco e o seis.

Faz um quadradinho e coloca o sete.

Coloca um quadradão e coloca os números oito e nove.

Faz um quadradinho pequeno e coloca o número dez.

Como pode ser observado, a menina escreveu e desenhou, ao mesmo tempo, a

explicação dada de como é feito o desenho usado para brincar de Amarelinha. Analisemos

como isso ocorreu.

P.: Vamos escrever Amarelinha.

Jéssica F.: É pra desenhar?

P.: É pra escrever. A gente escreve usando o quê?

Jéssica F.: (Fica silenciosa).

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P.: Você vai escrever amarelinha da mesma forma que você escreveu Jéssica Fernanda,

usando letras. É para escrever.

Jéssica F.: (Fica parada sem saber o que fazer).

P.: O que foi?

Jéssica F.: É pra escrever o que você escreveu?

P.: É pra escrever o que eu vou dizer para você. A primeira palavra que você vai escrever é o

nome da brincadeira, amarelinha.

Jéssica F.: (Escreve a letra C, fica parada por algum tempo). Eu não sei escrever.

P.: Mas você pode escrever do jeito que sabe. Tá bom?

Jéssica F.: (Então, continua escrevendo e registra as letras ARCÃO).

P.: Terminou de escrever amarelinha?

Jéssica F.: (Balança a cabeça afirmativamente).

P.: Então, você vai escrever agora: coloca um quadradinho e faz o número 1.

Jéssica F.: (Escreve as letras OCARHVCA).

P.: Escreveu coloca um quadradinho e faz o número um?

Jéssica F.: (Desenha um quadradinho e coloca o número 1 dentro).

P.: Coloca um quadrão perto do número 1.

Jéssica F.: Aqui? (aponta o quadradinho desenhado).

P.: Olha o que eu estou dizendo para você: coloca um quadrão perto do número um.

Jéssica F.: Escrever?

P.: É.

Jéssica F.: (Escreve as letras CARCNANCA).

P.: Terminou?

Jéssica F.: (Confirma).

P.: Coloca um quadrão perto do número 1 e, depois, coloca um risco no meio.

Jéssica F.: Aqui? (aponta novamente o desenho).

P.: E, depois, coloca um risco no meio.

Jéssica F.: (Desenha o que foi ditado e acrescenta os numerais 3 e 4 dentro dos quadros).

P.: Coloca o dois de um lado e o três do outro.

Jéssica F.: Coloquei (aponta o desenho).

P.: Você vai escrever ou você vai desenhar?

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Jéssica F.: Desenhar.

P.: Mas eu quero que você escreva: coloca o dois de um lado e o três do outro.

Jéssica F.: (Escreve as letras CRNAHDSP).

P.: Pronto?

Jéssica F.: Confirma.

P.: Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o 4.

Jéssica F.: (Desenha o que foi falado).

P.: Vamos escrever isso agora. Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o número

quatro.

Jéssica F.: (Escreve DVTICA). Pronto!

P.: Faz outro quadradão e coloca o 5 e o 6.

Jéssica F.: (Escreve COVAVCRA).

A partir de então, ela escreveu os outros enunciados usando somente as letras. O que

aconteceu com Jéssica Fernanda? Ela não sabia a diferença entre as formas icônicas e não

icônicas de representação? Não acreditamos que ela não soubesse essa diferença. No entanto,

o seu texto poderia ser escrito por meio de desenhos e estes serviriam adequadamente para

explicar como era o desenho da Amarelinha. Talvez já tenha dado a mesma explicação,

desenhando. Essa maneira torna-se, inclusive, mais simples para dar tal explicação e facilita

ainda o entendimento daquele que pretende aprender a desenhá-la.

Acreditamos que o conteúdo registrado possibilitou a emergência da escrita

pictográfica, fazendo com que ela retomasse antigas formas de registro. Luria (1988) afirmou

que o conteúdo é fator preponderante para que as formas primárias e indiferenciadas de

registro adquiram um caráter simbólico e passem a expressar determinados conteúdos. Por

outro lado, com base na atividade realizada pela menina, confirmamos, também, que o

conteúdo pode proporcionar o retorno à escrita pictográfica em crianças que usam letras para

escrever. Como pode ser observado, no texto produzido oralmente pela criança, os fatores

forma e tamanho apareciam conciliados numa única palavra (quadradinho, quadradão) ou

separadamente (pequeno). Dessa forma, acreditamos que esses fatores, presentes no texto,

levaram a criança a usar a pictografia para escrever. Por outro lado, as quantidades foram

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representadas foram representadas com os símbolos numéricos correspondentes, pois a criança

havia aprendido esses símbolos.

Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o que escreveu, ela disse que ajudava e

enunciou o texto abaixo apontando a escrita:

“Amarelinha

Coloca um quadradinho pequeno e coloca o número 1.

Coloca um quadradão e coloca o número 3 e o número 2.

Coloca um quadradinho pequeno e coloca o número 4.

Coloca um quadradão e coloca o número 6 e o 5.

Coloca um quadradinho e coloca o número 7.

Coloca um quadradão e coloca o número 6, o 8 e o 9.

Coloca um quadradinho e coloca o número 10” .

Jéssica Fernanda não reproduziu exatamente o texto que motivou os registros, mas

cada enunciado correspondia a um dos segmentos de letras registrados. Certamente, os

desenhos auxiliaram a realização da atividade, mas a criança também sabia o texto de

memória e, por isso, bastou apontar um segmento de grafias para cada parte o texto lembrado.

Nessas circunstâncias não se relacionou com a escrita para lembrar o texto, mas certamente, os

desenhos auxiliaram a recordação.

1.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto

Foram incluídas nesta categoria vinte e cinco crianças que não se relacionavam com os

registros para recordar o texto grafado. Uma característica comum observada na escrita

produzida por todas essas crianças é o fato de usarem letras para escrever. Observamos,

também, que algumas realizavam a atividade de escrita silenciosamente e outras elaboravam a

análise das unidades da linguagem oral no plano verbal. No entanto, nenhuma criança

estabelecia uma relação funcional com a escrita. Algumas rememoravam o texto, pois não

compreendiam ainda que a escrita poderia auxiliá-las na recordação; outras não enunciavam o

texto afirmando que a escrita não poderia ajudá-las a recordar.

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Constatamos que vinte e uma crianças escreveram silenciosamente e quatro falavam

durante a atividade de registro. Analisaremos as escritas produzidas pelas crianças e o seu

processo de produção. Começaremos pela análise do trabalho realizado por Fábio. Ele tinha

oito anos e sete meses de idade e escreveu sobre a brincadeira denominada de Faquete.

Faquete

Tem que montar um castelo.

Daí, você taca a faca no castelo.

Se cair em pé, ganhou.

Se cair deitado, perdeu.

E daí vai a outra pessoa.

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A escrita parece de uma criança iniciante, pois ainda é enorme e com traçados pouco

precisos. No entanto, o menino estava repetindo a primeira série pela segunda vez. Ele usou

apenas as vogais “u, a, o, i” e as consoantes “f, b, r” para compor o texto. No entanto,

diferenciou os segmentos de grafias usados para escrever o texto. Analisemos como ocorreu a

atividade de registro da brincadeira.

P.: Você vai escrever essa brincadeira.

Fábio: Mas vai desenhar?

P.: Não, vai escrever.

Fábio: Mas escrever eu não sei.

P.: Você pode escrever de um jeito que você sabe.

Fábio: (Olha para os lados).

P.: Escreve o seu nome. Seu nome você sabe escrever. Não sabe?

Fábio: Vai fazer completo?

P.: Pode escrever.

Fábio: (O lápis quebra a ponta. Depois de apontado o lápis, começa. Escreve FAEIOLN).

Depois dessa letra vai o U (desiste de escrever o nome completo).

P.: O nome da brincadeira qual é?

Fábio: Faquete.

P.: Então, escreve faquete.

Fábio: Fa de faca, né?

P.: É.

Fábio: (Escreve as letras FI). E agora? Eu não sei qual é que vem mais.

P.: O que você escreveu?

Fábio: Fa. (Pensa). Agora, eu não sei qual...

P.: Agora, é o que de quete.

Fábio: Quete... Eu não sei qual que é o q?.

P.: Quais as letras que a gente está falando? Q.

Fábio: que, te, fa, que, te.

P.: O que são as letras q, u, e.

Fábio: Como é o u?

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P.: Você não sabe como é o u?

Fábio: Sei.

P.: Então, uma das letras é o u.

Fábio: (Escreve as letras U e A).

P.: Quete.

Fábio: (Grafa a letra O).

P.: Escreveu?

Fábio: Balança a cabeça afirmativamente.

P.: Lê o que você escreveu.

Fábio: (Aponta uma letra para cada sílaba e sobram duas letras) Fa que te.

P.: Agora [...], a primeira frase é: tem que montar um castelo.

Fábio: Depois taca a faca.

P.: Depois, joga a faca, mas primeiro você vai escrever tem que montar um castelo.

Fábio: (Ri e mexe-se na cadeira).

P.: O que foi Fábio?

Fábio: Amontar eu não sei.

P.: Como?

Fábio: Eu não sei escrever amontar.

P.: Então, escreve o que você sabe: tem que... Escreve castelo.

Fábio: (Olha para cima. Mexe-se).

P.: Tenta escrever do jeito que você sabe.

Fábio: (Fica irrequieto por alguns segundos e começa a escrever. Registra três letras B

invertido, A e O). Mais duas para montar, não é?

P.: O que você acha?

Fábio: Eu acho que é pequeno. Tem que ser do tamanho desse (aponta as primeiras três letras

que foram registradas).

P.: Você tem que escrever tem que montar um castelo. Já está escrito?

Fábio: (Grafa a letra U, conta as letras e escreve as letras BOR).

P.: E agora está escrito?

Fábio: (Balança a cabeça afirmativamente).

P.: Daí você taca a faca no castelo.

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Fábio: (Grafa as letras UUOR, volta ao registro, conta as letras). Eu fiz dois desse (ao observar

que escreveu a letra U duas vezes, apaga e escreve a letra B e volta a contar as letras).

E daí taca a faca no castelo?

P.: É.

Fábio: (Conta as letras e escreve OUOBOR).

P.: Pronto?

C. (Balança a cabeça afirmativamente).

P.: Se cair em pé, ganhou.

Fábio: (Grafa as letras UBORU, conta as letras, grafa a letra A, conta novamente e grafa as

letras OI).

P.: Se cair em pé, ganhou.

Fábio: (Grafa as letras ROUOA, conta as letras que escreveu e grafa a letra O).

P.: Pronto?

Fábio: (Confirma).

P.: Se cair deitado, perdeu.

Fábio: (Grafa as letras RAOUB, conta, grafa a letra R, conta novamente e grafa as letras IO).

P.: E daí vai outra pessoa.

Fábio: (Grafa as letras ROUAOIUO, conta e grafa a letra A).

No começo do registro, Fábio não sabia se desenhava ou escrevia. Ele diferenciava as

duas formas de representação e quis desenhar, porque afirmou que “não sabia escrever”. No

entanto, ao escrever o nome da brincadeira (Faquete) lembrou que a sílaba inicial era “o fa de

faca”, mas escreveu a sílaba “fi”. Escreveu mais três letras que correspondiam as duas últimas

sílabas da palavra faquete, porém, na leitura, apontou uma letra para cada sílaba pronunciada e

o fato de sobrarem letras não se tornou problemático para o aluno.

No registro do segundo enunciado, “tem que montar um castelo”, afirmou não saber

escrever a palavra “amontar”. Então, sugerimos que escrevesse as palavras que conhecia. Ele

registrou três letras e perguntou se precisava de mais duas letras para “montar”. Quando

perguntamos o que achava, ele disse que precisava ser do tamanho do registro anterior, ou

seja, deveria ter três letras, mas grafou quatro letras para a palavra “montar”.

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Dessa forma, observamos que Fábio tinha dúvidas quanto à quantidade de letras que

deveria ser usada para escrever a palavra e utilizou três letras, mesmo para as palavras

“pequenas”. Isso confirma as constatações de Ferreiro e Teberosky (1989) e Ferreiro (1990) de

que há uma homogeneidade em relação à quantidade de letras que deve ser escrita para as

palavras. A preocupação de Fábio com a quantidade de letras também foi evidenciada na

escrita de palavras. Ao escrever frases, preocupava-se em contar as letras e registrou no

mínimo seis letras para cada uma.

Constatamos ainda que Fábio não admitiu a possibilidade de escrever uma mesma letra

duas vezes numa mesma cadeia, ou seja, era necessário variar as letras. Ele observou que

havia escrito a letra “u” duas vezes e, por isso, apagou uma das letras e a substituiu pela letra

“b” .

De acordo com a abordagem de Ferreiro (1990), no segundo período de evolução da

escrita, as crianças esforçam-se para estabelecer diferenciações entre as escritas. Os critérios

de diferenciação são, inicialmente, intrafigurais e se baseiam na definição de características

que uma escrita deve possuir para que possa ser interpretável. Os critérios intrafigurais

expressam-se sobre dois eixos: o quantitativo e o qualitativo. Isto é, as crianças definem que é

necessária uma quantidade mínima e a variedade de letras para que uma escrita possa ser lida.

Constatamos, com base na atividade realizada, que Fábio considerava a necessidade de ter

quantidade mínima e variedade de letras. Contudo, não temos evidências para concluir que

essas características são exigências para que um texto seja interpretável. Os alunos que

produziam escritas semelhantes à do Fábio sabem que esse tipo de grafia não é interpretável e,

por isso, recorrem aos meios naturais para recordar o texto ou não enunciam o texto, pois

argumentam que a escrita não pode ajudá-los a lembrar.

Nas situações analisadas, neste estudo, consideramos que a explicação para esse

fenômeno é simples, pois, se observarmos a página que estamos escrevendo, veremos, sem

muito esforço, que prevalecem, para o registro deste texto, palavras com número igual ou

superior a três letras. Por outro lado, prevalece também a variedade de letras, ou seja, são

poucas as situações em que as letras se repetem numa mesma palavra. É provável que seja a

percepção dessas características que leve as crianças a escreverem com base nos eixos

quantitativos e qualitativos. O que não significa que estabeleçam tais critérios para que a

escrita possa ser interpretável. Pensamos que as crianças utilizam os critérios de quantidade e

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variedade na tentativa de reproduzir as características externas da escrita. Essa consideração é

corroborada pelas nossas observações que mostram ainda que, à medida que as crianças

passam a relacionar-se com a escrita de maneira sistemática, na escola, começam a utilizar

para escrever os enunciados do texto série de grafias compostas com duas ou uma letra

também na tentativa de reproduzir a aparência de um texto escrito convencionalmente.

Ao ser questionado se a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o que escreveu sobre a

brincadeira, Fábio disse que sim e lembrou-se do seguinte texto: “Faquete. Se eu perder, vai

outro moleque. Daí, se eu perder, entra outro. Se o moleque ganhar, tem que ficar tocando até

perder. Se eu perder, entra outro”. O texto foi lembrado sem utilizar a escrita, ou seja, a

criança não se relacionou com a escrita para lembrar o conteúdo. Ele rememorou o texto sem o

auxílio da escrita. Dessa forma, observamos que o esforço do aluno está concentrado na

elaboração do registro. No entanto, os critérios utilizados para diferenciar e organizar a escrita

não possibilitam a emergência de grafias expressivas.

Luria (1988) considerava que a transição de um estágio de escrita não diferenciada

para um nível de signos, pressupõe que a criança passe a diferenciar a escrita para que esta

expresse os significados. As primeiras escritas expressivas, conforme descrito no estudo

desenvolvido por Luria (1988), surgem das diferenciações nos registros. No entanto, quando

as crianças usam letras para escrever, constatamos que as diferenciações na escrita de um texto

não levaram as crianças a se relacionarem com os registros para recordar o texto que motivou

a escrita. Como vimos, com base nas situações analisadas, foram as indiferenciações nas

grafias usadas para representar algumas palavras que levaram as crianças a estabelecerem uma

relação funcional com a escrita.

Mostraremos, agora, a atividade realizada por Rônei. A atividade se difere da realizada

por Fábio, porque ele não realizou nenhum esforço para lembrar o texto que registrou. Ele

tinha nove anos e dez meses de idade e escreveu sobre a brincadeira Pega-pega.

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Pega-pega

Tem que correr

Para que o colega

Não pegue você.

Como pode ser visto, a criança escreveu usando letras. Ele usou apenas oito letras para

grafar o texto. No entanto, conforme observamos nos registros produzidos por Fábio, a criança

variou a posição dessas letras para escrever cada enunciado e, também, variou as letras numa

mesma cadeia. As diferenciações nos registros, contudo, não possibilitaram que a criança

estabelecesse uma relação funcional com as grafias. A produção do registro ocorreu da

maneira que será descrita:

P.: O nome da brincadeira é pega-pega.

Rônei: (Começa a escrever na frente do registro do seu nome).

P.: Escreve embaixo.

Rônei: Aqui?

P.: É, senão vai ficar parecendo que você chama Rônei pega-pega.

Rônei: (Escreve as letras ABNITA).

P.: Escreveu?

Rônei: (Confirma).

P.: [...] Tem que correr.

Rônei: (Escreve as letras BNEI e pára).

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P.: Pronto? Já escreveu “tem que correr” ?

Rônei: (Confirma).

P.: Tem que correr para que o colega...

Rônei: Te (escreve as letras ITONEH).

P.: Não pegue você.

Rônei: (Sussurra e escreve as letras BAIOSI).

Ao ser questionado se a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o que escreveu, disse que

“não, porque faltou”. O aluno quis dizer que faltou às aulas. A professora sempre conversava

com as crianças sobre a necessidade de estarem presentes na classe para que pudessem

aprender a ler. Rônei era uma criança que tinha um índice baixo de freqüência e, por isso,

disse que a escrita não poderia ajudá-lo a recordar. Assim, não tentou interpretar a escrita e

nem mesmo utilizou mecanismos naturais para recordar o conteúdo registrado.

Rônei, como vimos, usou apenas oito letras para escrever o texto, mas diferenciou a

posição das letras para escrever cada enunciado e variou as letras numa mesma cadeia. As

diferenciações, no entanto, não auxiliaram a recordação dos enunciados, reafirmando que as

diferenciações de naturezas qualitativa e quantitativa não proporcionaram o surgimento de

grafias expressivas.

A escrita de Manuely é semelhante à de Rônei. Ela também usou letras para escrever.

A menina tinha sete anos e nove meses de idade quando elaborou os registros que serão

analisados. Manuely escreveu sobre a brincadeira Esconde-esconde.

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Esconde-esconde

Uma pessoa tem que bater cara.

As outras pessoas têm que esconder.

Quem não se salvar tem que bater cara.

Manuely também diferenciou as grafias usadas para escrever o texto, mas, ao escrever

o último enunciado “quem não se salvar tem que bater cara”, usou as letras “saslslslsisaela” .

Como pode ser visto, repetiu cinco vezes a letra “s” , três vezes a letra “l” e três vezes a letra

“a” para escrever um único enunciado. Analisemos o processo de registro.

P.: Agora, você vai escrever o que você me falou.

Manuely: Aqui nessa folha?

P.: Nesta folha [...].

Manuely: Do jeito que eu sei?

P.: Do jeito que você sabe [...]. O nome da brincadeira é esconde-esconde.

Manuely: (Grafa ISAD). Pode ser assim mesmo?

P.: Pode. Aí está escrito o quê?

Manuely: Esconde-esconde.

P.: Está escrito as duas coisas esconde-esconde?

Manuely: Tá.

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P.: [...] Uma pessoa tem que bater cara.

Manuely: (Grafa as letras USELHOCDSE).

P.: Terminou?

Manuely: (Confirma).

P.: As outras pessoas têm que se esconder.

Manuely: (Grafa ASUPSCESE).

P.: Terminou?

Manuely: Terminei.

P.: Quem não se salvar tem que bater cara.

Manuely: (Escreve SASLSLSISAELA).

Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o que escreveu, disse primeiro que não

sabia e, depois, que achava que sim. No entanto, lembrou o texto sem fazer uso da escrita.

Disse ainda que havia “prestado atenção” e, por isso, sabia o que estava escrito. A aluna

enunciou o seguinte texto: “As pessoas que não se salvarem têm que bater cara. Um tem que

bater cara”. Desse modo, apoiou-se unicamente na memória para realizar a atividade.

Consideramos que as escritas analisadas mostram que as crianças aprenderam que, para

escrever, usamos letras. O uso letras e as diferenciações na escrita, no entanto, não

possibilitaram que estabelecessem uma relação funcional com elas. Estamos salientando esse

aspecto, porque, no estudo desenvolvido por Luria (1988), com crianças pré-escolares, esse

autor aponta que as diferenciações nos registros levaram as crianças que participaram do seu

estudo a evocar conteúdos que foram registrados ou outros possibilitados pelos próprios

registros. Nas situações analisadas neste estudo, as diferenciações na escrita para escrever o

texto não possibilitaram a emergência de grafias expressivas. Isso não significa, entretanto,

que estamos discordando das descobertas de Luria (1988). Pelo contrário, acreditamos que as

suas descobertas são pertinentes e se mantêm atualizadas, estamos apenas afirmando que o que

ocorre com as crianças que usam letras para escrever não é o mesmo que ocorre com as

crianças pré-escolares. Essa observação é importante, porque Landsmann (1995) e outros

autores têm afirmado que Luria sugeriu que, após o início da aprendizagem dos símbolos

usados socialmente para escrever, os estágios definidos por ele, para o desenvolvimento da

escrita na criança pré-escolar, recomeçariam. Como constatamos, as crianças diferenciavam as

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grafias usadas para escrever os enunciados dos textos, mas essas diferenciações não levaram

as crianças a se relacionarem funcionalmente com a escrita e nem resultaram da introdução

dos fatores mostrados por Luria no conteúdo dos textos. Dessa forma, mesmo que alguns

processos estudados por Luria estejam presentes durante a apropriação da linguagem escrita na

fase inicial de alfabetização, adquirem funções diferentes e resultam de fatores distintos.

Iremos mostrar ainda, por meio dos exemplos que se seguem, como se desenvolveram

as atividades realizadas pelas crianças que não se relacionavam com a escrita para recordar o

conteúdo do texto, mas organizavam a relação de simbolização entre segmentos sonoros e as

grafias no plano verbal. Analisaremos, primeiro, a atividade realizada por Vanessa. Vejamos a

sua escrita. Ela tinha sete anos de idade no momento em que escreveu sobre a brincadeira

“pular corda”.

Pular corda

Duas pessoas seguram a ponta da corda.

Depois, uma menina vai no meio para pular.

Como pode ser visto, a escrita dessa aluna não difere nos aspectos formais das escritas

anteriormente exemplificadas. Ela usou as vogais “a, o e i” e as consoantes “p, c e b” para

registrar o texto. No último segmento de grafias, escreveu as letras “o” e “a” seguidamente.

Isso ocorreu, porque, diferentemente do que foi observado anteriormente, Vanessa analisava

as unidades da linguagem oral e relacionava-as com a escrita. Vejamos a atividade de registro.

P. O nome da brincadeira é pular corda [...].

Vanessa: Pu (registra a letra O), la (registra as letras AI), corda (registra as letras AOA).

P.: Muito bem! Depois, você disse duas pessoas.

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Vanessa: Du (registra a letra O), as (registra a letra A), pes (registra a letra P), soas (registra a

letra A), se (registra a letra C), gu (registra a letra O), ra (registra a letra A), na

(registra a letra A).

P.: Ponta.

Vanessa: (Registra as letras O e A sem verbalizar a relação).

P.: Escreveu duas pessoas seguram na ponta da corda?

Vanessa: (Confirma).

P.: Depois uma menina vai no meio para pular.

Vanessa: Uma (registra a letra A), me (registra a letra B), nina (registra a letra A), vai (registra

a letra A), no (registra a letra O), meio (registra a letra O), polar (Registra as letras

AOA).

Dessa forma, observamos que a aluna analisou as unidades que compunham o texto e

buscou relacionar os símbolos gráficos com essas unidades. As unidades analisadas foram as

sílabas e as palavras. Ela usou uma e duas letras para representar as sílabas e uma letra para

representar uma palavra. Assim, a quantidade de letras usada para representar a unidade

silábica analisada variou. É possível observar ainda que, mesmo antes de ter o domínio do

caráter alfabético da escrita, usou a letra “o” para grafar o som [u]. Assim, sabia que as

palavras terminadas com a vogal “o”, em posição átona, pronuncia-se [u], mas escreve-se a

letra “o”. Ela também utilizou essa regra em situações em que não é possível a sua aplicação.

A atividade desenvolvida pela aluna mostra que o desenvolvimento da escrita na criança não

segue uma linha evolutiva linear e independente do ensino. Além disso, a quantidade de letras

registradas para cada frase era definida pelas relações que estabelecia verbalmente entre o oral

e o escrito. Também as letras que deveriam ser registradas eram definidas da mesma forma,

por isso a não preocupação com a variação das letras numa mesma cadeia, pois utilizava na

maioria das situações, as vogais para representar a sílaba.

Ao ser questionada se a escrita ajudaria a lembrar o conteúdo registrado, disse que não,

“porque eu não me lembro das coisas que a tia falou”. Insistimos para que observasse o

registro. Ficou olhando a escrita por algum tempo e começou a cantar “salada, saladinha”.

Disse, então, que a brincadeira lembrava a música “porque eu canto isso quando vou pular

corda”.

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Assim, as tentativas de organização da escrita, a partir do oral, não possibilitaram o

estabelecimento de uma relação funcional com os registros de modo que estes ajudassem a

recordar o texto. No entanto, é importante destacar que a quantidade de letras usadas para

escrever as frases que compunham o texto era definida pelas relações que estabelecia, no

plano verbal, entre o oral e o escrito e, também, as letras usadas para escrever o texto foram

definidas por essas relações. Dessa forma, não organizava a escrita por meio da reprodução

das características externas de um texto.

Analisaremos a atividade realizada por Ricardo. A criança tinha nove anos e quatro

meses de idade na época em que elaborou os registros. A atividade corrobora a análise

realizada anteriormente. Vejamos a sua escrita.

Esconde-esconde

Um menino fica no poste.

E os outros vão se esconder.

Depois, correm e dizem:

— Um, dois, três, salve eu!

A escrita é semelhante à anterior. Como pode ser visto, o aluno reproduz parte da

família silábica “ma, me, mi, mo, mu”, ensinada na classe, para grafar as palavras “um, dois,

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três”, mas, como veremos, não se relacionou com esses registros para recordar o texto.

Observemos como ocorreu a atividade de registro.

P.: O nome da brincadeira é esconde-esconde. Então escreva esconde-esconde.

Ricardo: Do jeito que eu sei?

P.: Do jeito que você sabe.

Ricardo: Es (grafa a letra R), con (grafa a letra O). Em seguida, grafa as letra DV sem

enunciar a relação.

P.: Um menino fica no poste.

Ricardo: Um (grafa a letra O), me, ni (grafa a letra E), me, ni (grafa a letra I), ni, no (grafa as

letras MO), poste (grafa BDM) te.

P.: E os outros vão se esconder.

Ricardo: E os (grafa a letra O), outros (grafa a letra E), vão (grafa a letra I), es (grafa a letra

N), com (grafa a letra O), der (grafa a letra M).

P.: Depois correm e dizem.

Ricardo: Depois (grafa a letra D). Errei. Apaga a letra D.

P.: Errou?

Ricardo: De, de (grafa as letras MEINOM) der.

P.: Depois, corre e diz: um, dois, três, salve eu!

Ricardo: Um (grafa as letras ME com letra cursiva), dois (grafa as letras NE), salve...

P.: Dois, três.

Ricardo: (Grafa as letras ME) três.

P.: Salve eu.

Ricardo: Sal (registra a letra H), ve (registra as letras OE).

Ricardo também elaborou, por meio da linguagem, a análise das unidades da

linguagem oral e grafou letras correspondentes às unidades analisadas. Mais uma vez,

observamos que essas correspondências não possuem uma regularidade, ou seja, as unidades

analisadas eram as palavras e as sílabas. A quantidade de letras grafadas para as unidades

consideradas também era irregular. Para o enunciado “um menino fica no poste”, grafou uma

letra para a sílaba “me” e duas letras para sílaba “no” da palavra menino. Disse que a escrita

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não ajudava a lembrar o que escreveu e, em seguida, mudou de idéia e enunciou: “Ele fica no

poste”. Não continuou a atividade e disse ter esquecido o que escreveu e que os registros não

ajudavam a lembrar.

Para finalizar os exemplos, analisaremos a escrita de Eliemary, com sete anos e um

mês de idade. Ela escreveu sobre a brincadeira Cobra-cega.

Cobra-cega

A pessoa pega o pano.

Enrola e, depois, põe no olho da pessoa.

Roda a pessoa

E, depois, tem que pegar outra pessoa.

Novamente, vemos que a escrita produzida pela aluna é semelhante àquelas que foram

mostradas anteriormente. Ela usou as vogais “a, e, i, o” e as consoantes “b e r” para escrever

o texto. O registro ocorreu da seguinte maneira.

P.: Agora, você vai escrever o nome da brincadeira. Qual é o nome da brincadeira?

Eliemary: Cobra-cega.

P.: Cobra-cega. Então escreva.

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Eliemary: Eu não sei escrever direito [...].

P.: Escreve do jeito que você sabe, então.

Eliemary: (Registra as letras OAEA).

P.: [...] A pessoa pega o pano.

Eliemary: (Escreve ABEOA).

P.: [...] Enrola e, depois, põe no olho.

Eliemary: (Registra EOA), En (registra a letra I), ro (registra a letra O), la (registra a letra A),

e (registra a letra I), de (rgistra a letras OARB), po (registra O A).

P.: Roda a pessoa

Eliemary: Ro (registra a letra O), da (registra as letras RO), pes (registra a letra B), so (registra

a letra O), a (registra a letra A).

P.: (...) E depois tem que pegar outra pessoa.

Eliemary: E (registra a letra I), de (registra a letra R), po (registra a letra O), is (registra a letra

I), tem (registra a letra E), que. Ih! Errei (apaga e escreve a letra A e registra em

seguida as letras BOA).

A menina começou a escrever sem verbalizar as correspondências que tentava

estabelecer entre o oral e o escrito, mas foi possível observar que estabeleceu essa relação ao

escrever o nome da brincadeira cobra-cega, pois grafou as vogais “oaea” que fazem parte das

sílabas das palavras. Nesse contexto, a unidade analisada foi a sílaba e usou as vogais para

representá-las. O mesmo ocorreu com o registro da frase “a pessoa pega o pano”. Ela registrou

as palavras “a pessoa” utilizando as letras “abeoa”. Ela trocou as consoantes “p e b”, mas

podemos verificar que, para registrar a sílaba “pes”, usou as letras “be”. A partir do momento

em que passou a verbalizar a análise que elaborava das unidades da linguagem oral, foi

possível confirmar que a unidade analisada era a sílaba e que usou um número variado de

letras para representá-la. A atividade de registro da aluna é importante para mostrar que as

crianças podiam estabelecer relações entre o oral e o escrito sem manifestá-las por meio da

linguagem.

A aluna disse que a escrita ajudaria a lembrar o texto registrado e apontou cada

segmento de letras registrado como correspondente aos seguintes enunciados: “Pega um pano.

Enrola no olho da pessoa. Depois roda. Tem que rodar a pessoa. E depois tem que pegar outra

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pessoa. Para ir de novo”. Na verdade, não se valeu dos registros para recordar o texto que

motivou a escrita, mas podemos observar que, durante o registro, representou a palavra

pessoa, em dois contextos, usando as mesmas letras “boa”, cada letra correspondendo a uma

das sílabas que compõem a palavra. No entanto, a indiferenciação no registro da palavra não

proporcionou uma relação funcional com essas grafias.

Sintetizaremos as principais idéias elaboradas, a partir da análise das atividades

realizadas pelas crianças, neste último item. Verificamos que as crianças que não se

relacionavam com a escrita para lembrar o texto diferenciavam a escrita para escrever o texto

com base nos princípios quantitativos e qualitativos. Por outro lado, um grupo de três crianças

definia a quantidade de grafias anotadas e as letras que deveriam registrar por meio da análise

das unidades constituintes da linguagem oral. Essas crianças compreenderam que as letras

representam a linguagem, mas ainda precisam aprender que as unidades representadas são os

fonemas e quais são as letras usadas para representar cada fonema. A compreensão de que as

letras representam unidades da linguagem oral não levou as crianças a estabelecerem uma

relação funcional com as grafias, mas permitiu que passassem a organizar a escrita por meio

da análise definindo-se, desse modo, as letras e a quantidade que deveriam ser escritas. Essa

foi uma aprendizagem importante, porque proporcionou a superação de uma atividade gráfica

baseada na reprodução das características externas da escrita.

2 O registro do reconto

Tendo por base as análises anteriores, organizamos a segunda atividade de registro dos

textos produzidos oralmente. Ela consistiu no registro do reconto oral da história Marcelo,

marmelo, martelo, de autoria de Ruth Rocha. Como na primeira etapa do trabalho, a atividade

foi planejada em parceria com a professora da classe. Assim, foi a professora quem contou a

história para as crianças e desenvolveu, na sala de aula, trabalhos relacionados com a história.

Iniciamos a realização da produção oral e registro do reconto na última semana do mês do

julho, estendendo até o final do mês de agosto. Dessa forma, a segunda atividade desenvolvida

pelas crianças ocorreu dois meses após a realização da primeira. Participaram da segunda

trinta e seis crianças matriculadas na classe durante esse período. Duas crianças participantes

da primeira etapa da pesquisa foram transferidas e uma foi matriculada na classe.

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Combinamos com as crianças que, após concluída a atividade, organizaríamos um livro

com os recontos. No entanto, não foi possível realizar o que foi combinado. Por isso, tivemos

uma nova conversa com as crianças e decidimos que a organização do livro de histórias

ocorreria no final do ano, ao término de todas as atividades, pois, assim, poderíamos

selecionar o melhor texto de cada criança para publicação. No mês de dezembro, conforme

combinamos com as criança, organizamos, juntamente com a professora da classe, o livro que

foi intitulado Nossas histórias.

Conduzimos a atividade de produção oral do reconto e seu registro tomando por base

procedimentos semelhantes aos utilizados na produção oral e registro da brincadeira. Assim,

após a professora contar a história para as crianças, na sala de aula, a atividade foi orientada da

seguinte forma:

a) Solicitamos que as crianças recontassem a história oralmente para que pudéssemos

registrá-la.

b) Terminado o registro do reconto oral, perguntamos às crianças se se lembravam do

conteúdo que haviam verbalizado. Como não lembravam, lemos o texto e explicamos

que lembrávamos, porque registramos a história enquanto falavam.

c) Explicamos ainda que iriam escrever o texto produzido oralmente e recomendamos,

expressamente, que deveriam escrevê-lo de modo que pudessem, ao final do registro,

usar as grafias para recordar o conteúdo.

d) Diante da pergunta se “podiam escrever do jeito que sabiam”, orientamos para que

escrevessem do jeito que sabiam, mas sem se esquecer de que usariam os registros

para recordar o conteúdo.

e) Ao final da elaboração do registro pela criança, pedimos que lesse o texto.

Decidimos, nesse momento, expressar claramente, no início da atividade de registro, a

recomendação de que deveriam escrever com o objetivo de ler o que foi escrito. Dessa forma,

os objetivos da escrita atenderiam a uma finalidade imediata e isso poderia direcionar o modo

como as crianças escreviam. A análise das informações, obtidas durante a atividade, será

desenvolvida com base nas duas categorias elaboradas no item anterior. Estaremos nos

detendo mais intensamente na primeira categoria, pois acreditamos que, com base na análise

das atividades desenvolvidas pelas crianças que se relacionavam com a escrita para recordar o

conteúdo, poderemos elucidar a questão central deste estudo: como as crianças relacionam-se

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com a escrita, durante a fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a lembrar o texto

que motivou o registro.

2.1 A escrita é usada como recurso para a memória

Constatamos que dezessete crianças, ao serem incentivadas a lembrar o texto,

relacionavam-se com a escrita para recordá-lo. Desse modo, houve um aumento no número de

crianças, pois, durante o registro da brincadeira, doze crianças estabeleceram uma relação

funcional com a escrita. Destacaremos, durante esta análise, situações não abordadas

anteriormente e, também, situações que venham corroborar a análise que elaboramos no item

anterior.

Durante a realização da primeira atividade, constatamos que uma criança combinou a

pictografia e os símbolos alfabéticos para registrar o texto sobre a brincadeira e uma criança

atribuiu significados aos registros que não motivaram a escrita. Essas duas situações,

conforme mencionamos, não voltaram a ocorrer. A primeira criança foi incluída na segunda

categoria, porque, durante a atividade de reconto, não se relacionou com a escrita para

recordar o texto e a outra continuou incluída nesta categoria. Analisaremos as atividades das

duas crianças posteriormente.

A partir da análise das atividades desenvolvidas pelas crianças, verificamos que o tipo

de escrita usada e o modo como realizaram a atividade de registro foram variados. Assim, dez

crianças dominavam a escrita alfabética e sete usavam letras do alfabeto para registrar o texto,

mas não possuíam esse domínio. Verificamos ainda, durante o registro, que quatorze crianças

analisavam as unidades da linguagem oral no plano verbal e escreviam símbolos alfabéticos

correspondentes às unidades analisadas e três escreviam silenciosamente. Outro aspecto

observado, com mais freqüência, nessa etapa da pesquisa, foram as tentativas de as crianças

buscarem, durante o registro, utilizar o mesmo segmento de grafias para representar uma

mesma palavra. Porém, no momento em que eram incentivadas a se relacionar com a escrita

para lembrar o texto, isso nem sempre ajudou na recordação.

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a) As crianças dominavam a escrita alfabética

Iniciaremos a análise mostrando a atividade desenvolvida por Alessandra. Na atividade

de registro da brincadeira, como vimos, interpretou apenas algumas palavras. Ela tinha sete

anos e quatro meses quando realizou a atividade de reconto. Vejamos a sua escrita.

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A aluna possuía o domínio da escrita alfabética e, assim, compreendia que as unidades

da linguagem oral, representadas pelas letras, são os fonemas. Ela recontou a história

Chapeuzinho Vermelho, pois disse que não se lembrava da história contada pela professora.

Recontou toda a história sem problemas, pois a havia decorado. Porém, como veremos, esse

fato criou algumas situações interessantes ao tentar interpretar a escrita. Ao escrever, a criança

cometeu erros de grafia, tais como omissões de letras, uso indevido de letras por falta de

domínio das convenções que regem a escrita ortográfica, erros de segmentação, etc.

Entretanto, a falta de domínio da ortografia, diferentemente do que ocorreu na primeira

atividade, não impossibilitou a interpretação do texto. A atividade de registro foi iniciada da

seguinte maneira:

P.: O título da história é Chapeuzinho Vermelho.

Alessandra: Do jeito que eu sei?

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P.: É. Do jeito que você sabe. Só lembra que você vai ter que prestar atenção no momento de

escrever, porque terá que se lembrar do que escreveu, lendo. Chapeuzinho

Vermelho.

Alessandra: (Escreve CHA PEUZIHO VERMELIO e fala durante o registro).

P.: Você pode escrever com letra de forma?

Alessandra: (Diz que sim com um movimento de cabeça).

P.: Quando estiver falando, na hora que você está escrevendo, pode falar em voz alta para eu

ouvir. Era uma vez uma menina que morava com a sua mãe.

Alessandra: (Registra ERA UMA MEMINA, apaga as sílabas MINA e registra as sílabas

NINA).

P. Que morava com a sua mãe.

Alessandra: (Registra e fala cada sílaba ao mesmo tempo, QUE MORAVA COM SUA MÃE).

Alessandra perguntou, no início da atividade, se poderia escrever do seu jeito. Não

sabemos porque fez a pergunta, pois já tem o domínio da escrita alfabética. Como ela falava

baixinho ao escrever, pedimos que falasse em voz alta. Com isso, percebemos que repetia cada

sílaba que deveria ser escrita. Interpretamos como repetição, porque a pronúncia da sílaba

ocorria simultaneamente ao registro. Nas situações que examinamos, no item anterior,

verificamos que a pronúncia de uma determinada unidade ocorria antes do registro, pois essa

era uma maneira de as crianças pensarem sobre as grafias correspondentes às unidades

pronunciadas. Acreditamos que Alessandra possuía mais segurança com relação às letras que

devia registrar e, por isso, a pronúncia das sílabas e o registro das grafias correspondentes

ocorriam simultaneamente.

Como dissemos, a interpretação que a aluna elaborou é interessante, porque conhecia

bem a história que recontou e isso acabava levando-a a antecipar o texto a partir da leitura de

uma palavra. Porém, os enunciados antecipados nem sempre correspondiam ao que realmente

estava registrado.

P.: Agora, leia o que você escreveu.

Alessandra: Chapeuzinho Vermelho (aponta o título da história).

1. Era uma vez uma menina que morava com a sua mãe (a leitura corresponde à escrita).

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2. Todo mun (pára e começa novamente). Todo mundo chamava a menina de Chapeuzinho

Vermelho, porque ela tinha uma capa e um chapéu vermelho. (Até a palavra capa

lê apontando no texto. Antecipa e um chapéu vermelho. No texto está escrito

“tinha uma capa vermelha e um chapéu vermelho”).

P.: Onde você está lendo?

Alessandra: É aqui? (Aponta a frase seguinte sem se preocupar em retomar a leitura que

deixou de realizar). 3. Um dia a sua mãe fez deliciosos docinhos e falou: — Minha

(percebe que não é isso que está escrito. Está escrito e “falou para a sua filha”.

Então desconsidera a palavra “para” e continua a leitura). Sua filha vá levar esses

docinhos para a vovó. Só que toma muito cuidado. Não converse com estranhos. 4.

E f e fa an j e não converse com, com estranhos. E foi andando e cantando a

música. 5. Depois, ela encontrou o lobo um lobo e o lobo falou assim: — Aonde

vai, aonde você, meninha, vai com esta cesta. Vou levar esses docinhos para a

vovó. Então o lobo disse: — Não vai por este caminho, porque ele é mais longe. O

lobo foi pelo outro caminho que era mais perto, chamou na casa da vovó e comeu.

Então, vestiu a roupa da vovó e deitou na cama. Depois, Chapeuzinho Vermelho

chegou e falou:

— Vovó, pra que esse nariz tão grande?

6. — É pra te ver me (volta e lê novamente).

— Pra que esse nariz tão grande?

— É pra te cheirar melhor, minha netinha (desconsidera o que está escrito).

— Vovó, pra que esse nariz tão grande?

— Para te ouvir melhor. Vovó, pra que esse nariz tão grande?

— É pra te cheirar melhor.

— Vovó, pra que esse bocão tão grande?

— É pra te comer.

Depois, Chapeuzinho gritou e o caçador que estava passando salvou a

Chapeuzinho e a vovó.

Numeramos a interpretação que Alessandra elaborou da história para facilitar a análise.

Ela iniciou a leitura e se relacionou com escrita para elaborá-la (1). Em seguida, na frase

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“Todo mundo chamava a menina de Chapeuzinho Vermelho porque ela tinha uma capa

vermelha e um chapéu vermelho” (2), omitiu a palavra “vermelha”. Desse modo, leu “uma

capa e um chapéu vermelho”. Nesse momento, ela deixou de apontar o texto e, por isso,

solicitamos que mostrasse onde estava lendo. Apontou a frase seguinte e continuou a leitura.

Observamos, também, que ao interpretar “Um dia sua mãe fez deliciosos docinhos e falou para

sua filha”, ela leu: “Um dia sua mãe fez deliciosos docinhos e falou: — Minha. Ao perceber

que a palavra “minha” não estava escrita, leu “sua filha vá levar esses docinhos para a vovó”,

numa tentativa de conciliação do texto enunciado com a escrita. Observamos ainda que as

palavras que foram escritas com letras que não correspondiam à sua escrita convencional

foram lidas. É o caso da frase “só que toma cuidado, não converse com estranhos”. Ela foi

escrita “soque tom ma quui ado i não com verci com estaios (a separação do segmento de

letras usada para representar a palavra cuidado - “quui dado” ocorreu, porque precisou mudar

de linha). Alessandra leu a palavra “não” apontando o segmento “ado” que completava a

palavra cuidado e deixou de ler o registro que correspondia à palavra “não” (3). Na frase “e foi

andando e cantando a música” (4), teve problemas, pois a forma como registrou as palavras

dificultou a leitura e, por isso, articulou alguns sons na tentativa de dar-lhes significados. Para

a frase: “e foi ndando e cantado a música”, articulou os sons [f], [ã] e não conseguiu ler. Então

parou por uns instantes, apontou a letra “e”, que vem após a palavra andando (ndando), e leu

“e não converse com”, mas apontou “cantado a musica”. Como percebeu que não era isso que

estava escrito, apontou a palavra “estranhos” da frase anterior e continuou a leitura “e foi

andando e cantando a música”, dessa vez fazendo corresponder adequadamente cada palavra

ao seu registro.

Observamos ainda que a aluna enunciava a história com fluência e entonação quando

não se detinha exclusivamente aos registros. No entanto, quando lia tomando por base a

escrita, a interpretação perdia essas características. Com isso, podemos dizer que a aluna

utilizava a escrita para orientar sua leitura, mas parte da atividade foi realizada sem contar com

o auxílio da escrita. Isso ocorreu, porque sabia o texto de memória. A escrita, no entanto,

exercia um controle sobre sua ação de modo a mantê-la submetida aos enunciados registrados,

impedindo a elaboração de uma leitura espontânea (sem ajuda da escrita) que ocorre quando

os alunos ainda não usam a escrita para ajudá-los a lembrar o texto. É interessante observar

que a criança elaborou registros para algumas palavras que não correspondiam à escrita

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ortográfica, mas atribuiu significados a essas representações. Esse é um aspecto interessante

que focaremos neste item: as crianças que possuíam o domínio da escrita alfabética

elaboravam representações para as palavras que não conseguiam escrever ortograficamente e

atribuíam-lhes os mesmos significados que motivaram o registro.

A atividade realizada por Rodrigo também mostra que as crianças elaboravam

representações gráficas para determinadas palavras do texto que não correspondiam à sua

escrita ortográfica e atribuía, no momento da leitura, os mesmos significados para essas

grafias que motivaram o resgistro. Não apresentamos, no item anterior, a atividade realizada

por esse aluno. Por isso, é importante esclarecer que ele usou apenas a escrita de uma palavra

para recordar um dos enunciados do texto. Ele registrou a palavra “amigo” com os segmentos

“alico” e essa grafia, próxima da escrita ortográfica, ajudou-o a lembrar o seguinte enunciado

“um amigo vai contar”. O enunciado produzido oralmente e escrito pela criança havia sido

“um amigo fica contando”. O texto lembrado não foi exatamente o que motivou os registros,

mas tinha o mesmo sentido. Ele tinha sete anos e quatro meses de idade no momento em que

escreveu o reconto. Vejamos como elaborou o registro.

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Como podemos verificar, a sua escrita pode ser lida, pois ele dominava a escrita

alfabética. Apenas para as palavras confundia (qefudia), travesseiro (mnaviceiro), deitador

(neitanor), sentador (cmetador) e prometeu (marmeteo) foram usados segmentos de grafias

que não expressavam os seus significados, mas isso não impossibilitou a interpretação. Ele

leu:

“Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo era um menino que confundia o nome das coisas. Ele falava que travesseiro era

deitador e a cadeira era sentador. Um dia, a casa do cachorro pegou fogo. Marcelo falou para seus pais,

mas não entenderam. Quando foro lá fora, a casa do cachorro já tinha desmoronado. O Marcelo, então,

pediu para o seu pai fazer uma casa nova para o cachorro. O pai, mar, é, prometeu fazer uma casinha

nova para o cachorro”.

Dessa forma, Rodrigo leu o texto. Ele interpretou as grafias que não expressavam os

significados das palavras anotadas. Provavelmente, se as palavras tivessem que ser lidas fora

do texto, a criança não conseguiria atribuir-lhes esses significados.

Analisaremos a atividade realizada por Taís. Ela tinha sete anos e sete meses de idade.

Usou a escrita alfabética, mas cometeu erros, devido à falta de domínio da escrita ortográfica.

No entanto, isso não impossibilitou a leitura, pois não lia palavra por palavra do texto.

Vejamos como registrou o reconto.

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Como pode ser observado, a escrita da aluna é possível de ser interpretada. Na primeira

atividade (registro da brincadeira), verificamos que interpretou apenas uma palavra e esta

possibilitou a recordação de um enunciado do texto. Dessa forma, houve um avanço

importante na escrita. Podemos interpretar o título apesar da omissão da sílaba “me” na

palavra marmelo. Há omissões de letras em palavras como porque (poque), redonda (redoda),

quando (qado), prometeu (pomete), etc. A criança usou indevidamente as letras maiúsculas e

minúsculas e usou a letra “h” para representar o fonema [g], nas palavras perguntando

(pehutedo) e negócio (nehocio). Omitiu parte de um enunciado durante o registro, ou seja,

para a frase “o pai do Marcelo não entendia o que ele falava”, escreveu apenas “o pai do

Marcelo falava”. Algumas palavras registradas não podem ser interpretadas fora do texto, pois

escreveu para cachorro, o segmento carro, para embrasado, registrou “edubazado”, para

entende grafou “eadede”, para demais, escreveu apenas as letras “em”. Como veremos, no

entanto, a omissão de letras e sílabas na composição das palavras e de palavras no registro do

enunciado, assim como as representações usadas para algumas palavras que não

correspondiam à sua escrita ortográfica não dificultaram a realização da leitura.

Durante o registro do reconto produzido oralmente, Taís escreveu o título da história.

Em seguida, deveria escrever “o Marcelo era um menino que vivia perguntando por que as

coisas tinham um nome”, mas escreveu outro enunciado. Vejamos:

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P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.

Taís: (Escreve Marcelo, marlo e martelo).

P.: O Marcelo era um menino que vivia perguntando por que as coisas tinham um nome.

Taís: (Escreve O Marcelo vivia pehutedo poque a bola era redoda ora Marcelo peque a bola

labos).

P.: O que você está escrevendo?

Taís: Lembra.

P.: Porque lembra um negócio redondo. Não foi isso que você falou para mim?

Taís: Foi (termina de registrar a frase).

Observamos ainda, durante o registro, que a aluna falava baixinho e, outras vezes,

escrevia silenciosamente. Quando percebemos que as crianças falavam dessa maneira durante

a escrita, passamos a incentivá-las a “falar em voz alta o que estavam falando ou pensando”.

Em alguns casos, isso foi importante para percebermos com maior clareza a função da

linguagem durante o registro. No caso de Taís, o fato de incentivá-la a pronunciar em voz alta

o que pronunciava baixinho possibilitou verificar que, para cada um dos enunciados,

pronunciava as palavras que deveriam ser escritas e, em seguida, grafava a palavra completa.

Vejamos:

P.: Um dia a casinha do cachorro queimou.

Taís: Um dia a ca (falava sussurrando).

P.: Pode pronunciar em voz alta.

Taís: Casinha (registra CASAHA), do (registra DO), cachorrinho (registra CARRO), queimou

(registra QUEIMO).

Dessa forma, a criança pronunciou cada palavra que deveria ser registrada. No

enunciado “o pai do Marcelo não entendia o que ele falava”, citado anteriormente, a menina

escreveu silenciosamente. Coincidentemente, no seu registro, omitiu palavras. Assim, a

linguagem, para Taís, pode ter a função de ajudá-la na organização da escrita, possibilitando

que não esquecesse de registrar palavras que compõem o enunciado que deveria ser escrito.

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Como Taís se relacionou com a escrita para lembrar o texto? Para mostrarmos como a

aluna realizou essa atividade, reproduziremos a sua escrita e escreveremos em azul os

enunciados produzidos a partir da escrita.

Marcelo marmelo e martelo

1o MARCELO MARLO E MARTELO

O Marcelo vivia perguntando por que a bola era redonda

2o O MARCELO VIVIA PEHUTEDO POQUE A BOLA ERA REDODA

Ora Marcelo porque a bola lembra um negócio redondo

3o ORA MARCELO PEQUE A BOLA LABOS UM NEHOCIO REDODO

Um dia a casinha do cachorro queimou e o Marcelo falou que

4o UM DIA A CASAHA DO CARRO QUEMO E O MARCELO FALAFA QUE

Embrasou a casinha do Latildo O pai do Marcelo não entendia o que

5o UI EDUBAZADO A MORADA E LATIDO O PAI DO MARCELO

ele falava

6o FALAVA

Embrasou a o pai do Marcelo falava. Não! Quando ele foi ver

7o QADO PAI DO MARCELO FOI EADEDE JÁ

Era tarde demais O pai do Marcelo

8o ERA TADE EM O PAI DO MARCELO

Prometeu que falava uma casinha azul para o Latildo

9o POMETE FAZE UM CASAHA AZUL PARA O LATI

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A interpretação apresentada por Taís da escrita elaborada mostra que usou a escrita

para lembrar o texto. Tendo em vista que escreveu grafias inexpressivas para algumas

palavras, acreditamos que, se a criança fosse analisar cada palavra escrita, não realizaria a

leitura. Assim, leu as grafias “labos, casaha, em” dando-lhes significados que foram atribuídos

durante o registro. Leu inclusive as palavras da frase “o pai do Marcelo não entendia o que ele

falava” que foram omitidas sem apontar nenhuma grafia. É interessante observar que, se

compararmos as atividades realizadas por essas crianças com a atividade realizada pela

Natália, ao ser incentivada a se relacionar com a escrita para lembrar o texto, verificamos que

houve uma inversão. No caso de Natália, a leitura de uma palavra foi suficiente para lembrar o

texto. Nas situações que estão sendo analisadas, as crianças interpretam a maioria das palavras

e, por isso, não é difícil atribuir significados às grafias inexpressivas.

As atividades analisadas mostram que as crianças que tinham o domínio da escrita

alfabética elaboravam representações para palavras cuja escrita não dominavam. Essas

representações não expressavam os significados das palavras; entretanto as crianças atribuíam-

lhes os significados, durante a leitura, que foram dados durante o registro. Além disso, não

podemos deixar de considerar que a interpretação é feita tomando por base, também, o

conhecimento que as crianças tinham do texto e isso, certamente, auxiliou a lembrança de

grafias inexpressivas.

Analisamos, no item anterior, a atividade realizada por Hugo e verificamos que ele se

relacionou com os registros para recordar os enunciados do texto. Ele não utilizava a escrita

alfabética, mas a representação de quantidades por meio de numerais e o uso de um mesmo

segmento de grafias para representar as palavras “senhoras e senhores”, por duas vezes,

possibilitou a recordação do texto. Observemos a escrita elaborada pelo aluno para registrar o

reconto. Ele tinha sete anos e três meses de idade.

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Podemos observar que, assim como Taís, a escrita de Hugo está mais legível. É

possível interpretar grande parte do que foi escrito. No entanto, há grafias que não expressam

os significados das palavras que desejou escrever. Ele escreveu, por exemplo, para a palavra

inventando as grafias “faferte”, para a palavra coisas grafou “concas”, para a palavra falou

escreveu “fanou”, para suco, escreveu “cuço”, etc. Essas formas de registro demonstram as

tentativas de compreensão da escrita ortográfica, mas, no caso de Hugo, dificultaram a

interpretação do texto. Hugo compreendeu a natureza alfabética da escrita, mas tem dúvidas

quanto às letras que devem ser usadas para representar os fonemas e vice-versa. Isso,

diferentemente do que aconteceu com as crianças que realizaram as atividades anteriormente

analisadas, se tornou um empecilho para realização da leitura.

Hugo não registrou o título da história. Ele começou a grafar o texto pelo primeiro

enunciado. Vejamos:

P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.

Hugo: (Registra MARCÉLO ERA UN MININO).

P.: Espere. Você está escrevendo o quê?

Hugo: Marcelo era um me (acerta a letra “I” e escreve a letra “E”). Menino

P.: Que vivia fazendo perguntas.

A linguagem estava presente durante a escrita do texto. Observamos que tinha a função

de ajudá-lo na elaboração das grafias. Constatamos ainda, por meio da análise das unidades da

linguagem oral, que havia uma regularidade nas correspondências que estabelecia entre

unidades sonoras e grafias: usou uma letra para representar os fonemas que compunham as

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sílabas pronunciadas. Algumas vezes, repetia a sílaba para ouvir o fonema e representá-lo. Na

primeira vez, registrava a consoante correspondente à unidade pronunciada e, na segunda,

grafava a vogal. Vejamos:

P.: Ele começou falando.

Hugo: E (registra a letra “E”), le (registra a sílaba “LE”), co (registra as sílabas “COME”),

meçou, çou (registra a sílaba “CO”), o (registra a letra “U”).

P.: Falando e inventando nome para as coisas.

Hugo: Fa (registra a sílaba “FA”), falan (registra a sílaba “FER”), du, tu (registra a sílaba

“TU”), nome (registra a sílaba “MO”), nome, me (registra a sílaba “ME”), nome, para,

pa (registra a sílaba “PRA”, apaga e registra as letras “ARA” e registra a letra “A”), as

(volta e escreve a letra “S”), coi, coi (registra o segmento de letras “CONCAS”).

P.: Ele falou para o pai para catar o mexedorzinho.

Hugo: E (escreve a letra “E”), le (escreve a sílaba “LE”) fa (registra a letra “F”), fa (registra a

letra “A”), lou, lou (registra a sílaba “LOU”), pa (registra a sílaba “PA”), ra (registra a

sílaba “RA”), ca (registra a letra “K”), ca (registra a letra “A”), tar (registra a letra “T”),

tar (registra a letras “AR”), catar o (registra a letra “U”), me, me, me (registra a sílaba

“ME”), xe (registra a sílaba “GE”), xer (registra a letra “R”), do, do (registra a sílaba

“DO”), zinho (registra a letra “Z”).

Dessa forma, ficou evidenciado que Hugo, em algumas situações, repetia por duas

vezes a sílaba na tentativa de encontrar os grafemas adequados para registrar os fonemas. O

modo como a criança realizou a atividade diferiu do modo como Taís a realizou. Ela repetia as

palavras do texto que devia ser escrito, demonstrando conhecer as letras adequadas para

compor as palavras. Hugo, no entanto, teve que realizar cuidadosamente a análise, no plano

verbal, para encontrar os grafemas correspondentes aos fonemas. É claro que nem sempre

conseguiu encontrar a letra adequada, mas é visível o seu trabalho nesse sentido.

No começo da interpretação das grafias, Hugo ficou atrapalhado, pois lembrou um

texto que não foi confirmado pelo registro. Vejamos como apontou a escrita.

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Marcelo era um menino que

1o MARCELO ERA UN MENINO QUE

Vivia fazendo, facentu per, nome, para

2o VIVIA FACENTU PRECURTAR ELE

Hugo iniciou a leitura de forma correta. Leu a palavra fazendo, mas repetiu acentuando

o modo como a palavra havia sido escrita: “facentu”. Continuou dizendo “facentu per”, mas o

fato de estar escrita a palavra “precunta” o fez duvidar da interpretação que elaborava. Tentou

outras duas palavras (“nome e para”), mas, também, essas palavras não correspondiam às

grafias e, por isso, retomou a leitura no início do texto. Leu silenciosamente e apontando o que

estava lendo. Começou a ler novamente em voz alta, mas deixou de apontar três registros

(“ele, comecou, e fafertu”) para dar continuidade ao texto: “Marcelo era um menino que vivia

nome para coisas”. Vejamos:

Nome para as

3o COMECOU FAFERTU MONE PARA AS

Assim, Hugo deixou de apontar três registros. A criança se relacionava com a escrita

para ler o texto, mas, quando não conseguia interpretá-la deixava de apontá-la para dar

continuidade aos enunciados. Na escrita que se segue, continuou a apontar as grafias para as

palavras lidas.

Coisas ele falou parra, para ca,ca, tar,tar um

4o CONCAS ELE FALORU PARA KATAR U

Mexedorzinho. O pai falou o

5o MEGERDONZNAO O PAI FANOU O

Que é isto? Mexedorzinho di

6o QUE É ISTU MERGEDORZINAO DI

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Café. Mamãe me dá o

7o MEGEKAFÉ MEMÉ MIDAR O

Suco de vaca. Mar, ma, a casinha

8o CUÇO DE VACA NA CAZINAN

Do latildo cho, foi embra sada

9o DO CACAHORICHO CHO KARO UMA

Como pode ser visto na escrita acima, Hugo apontou as grafias para as palavras

enunciadas até o sétimo segmento de letras. As grafias que não expressavam os significados

das palavras foram lidas. No oitavo segmento, para a sílaba “na” leu, “mar”. Ele pareceu

querer ler Marcelo, mas o registro o fez mudar o enunciado que pretendeu elaborar. Como

mudou o sentido que iria atribuir às grafias, continuou a leitura do texto, apontando palavras

que não correspondiam às palavras enunciadas. Ele havia escrito, “na casinha do cachorrinho

jogaram uma brasa de cigarro”, mas enunciou “a casinha do Latildo cho, foi embrasada”. Por

isso, teve que deixar de apontar o décimo segmento. Continuou a atividade, mas teve que

repetir o que havia lido anteriormente, pois as grafias que correspondiam aos enunciados lidos

foram escritos no décimo primeiro segmento de grafias. Vejamos:

10o BARZA DE CIHRO PAPAI AKAZI

A casinha do Latildo foi embrasada

11o NA DO LATIDO FOI IR BARZA

Assim, a criança teve que repetir o enunciado, porque as palavras escritas “Latido, foi

ir bazada” assinalavam para o enunciado “a casinha do Latildo foi embrasada”. Ele prosseguiu

a atividade e, desta vez, não conseguiu expressar enunciados com sentido.

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O pai dele falou o que que i

12o O PEORU FORHO AHRA QUE I

Soquanto os

13o S PAZ DO MARCELO GEKA

Pais do

14o RO FORIMIRTO TARTE CE COS

Mar, Marcelo era tarde

15o IZA IQU FIOQUOU BERPAR

Hugo enunciou o texto com base na memória, sem o auxílio da escrita, mas apontava

algumas grafias expressivas. Como as grafias não completavam o texto lembrado, produziu

enunciados sem sentido.

Tar, a já que a casinha

16o PAPAI GA QUE AKAZINAN

Do Latildo foi embrasada

17o DU LALIUTO FOIS BARZTA

Você faz outra casinha do Latildo

18o VOCE FATIS OS CINADOLAITIU

19o DO O PAI TRO MTEU FAZSI

Faço uma azul

20o ORARA CASA AZU

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A interpretação que Hugo realizou mostra que se relacionou com o texto escrito para

realizar a leitura, mas, também, rememorou os enunciados do texto, quando não podia

interpretar as grafias. A escrita direcionou, em alguns momentos, a atividade, fazendo-o rever

o enunciado rememorado e possibilitando a lembrança dos enunciados anotados. O texto

lembrado, também, direcionava o modo como apontava as grafias. Essa forma de realização da

atividade possibilitou, para algumas partes do texto, a produção de enunciados fragmentados e

sem sentido. No entanto, no início da leitura, observamos que algumas grafias que não

expressavam os significados das palavras anotadas foram lidas.

Analisaremos ainda a atividade desenvolvida por Natália. Mostramos, no item anterior,

como Natália realizou a atividade de registro da brincadeira. Ela recitava as famílias silábicas

como recurso para lembrar as letras correspondentes às sílabas que deveria escrever. Vejamos,

então, o registro do reconto. Ela tinha sete anos e sete meses na época em que escreveu o texto

a seguir.

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Marcelo, marmelo, martelo

O Marcelo estava brincando de bola com o pai.

Então, o Marcelo falou assim: — Por que bola se chama

bola? — Porque ela é redonda. Um dia, a casa

do Latildo pegou fogo. — Pai, venha ver

o que aconteceu na casa do Latildo. A mãe

falou que iria fazer uma casinha no

va para o Latildo, pintada de azul.

Como pode ser observado, há palavras e frases, no texto, que podem ser lidas. O fato

de a aluna escrever demarcando com maior precisão os espaços entre as palavras é um avanço

e facilitou a interpretação das grafias. Na escrita analisada, no item anterior, a aluna

preocupava-se em colocar tais separações, mas não o fazia com a mesma freqüência que na

escrita acima. A omissão de letras e sílabas no registro das palavras ainda é uma característica

da sua escrita. Notamos também que escrever, para Natália, continuava a ser uma tarefa difícil.

A parte do processo de registro do reconto, que será descrita, mostrará como a aluna escreveu

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o texto. Lembramos que cada uma das atividades realizadas pela aluna, durou em torno de

uma hora e trinta minutos. Isso demonstra o quanto escrever era uma atividade difícil e

demorada para ela.

P.: Marcelo estava brincando de bola com o pai [...].

Natália: Pode escrever isso aqui? (Aponta onde está escrito MASEO).

P.: Pode. Você vai escrever Marcelo estava brincando.

Natália: (Copia o segmento de letras que usou para escrever Marcelo) Marcelo i (registra a

letra I). Separado?

P.: É.

Natália: Esta (começa o registro da sílaba “ta” separando-a da letra I).

P.: Agora, não é separado. É separado o “estava” do “Marcelo”.

Natália: Ta, ta (registra a sílaba TA). Agora, é só essas três palavrinhas?

P.: Não, olha o que você escreveu, leia o que você escreveu.

Natália: Ta.

P.: O que está faltando na palavra estava?

Natália: Ta, ta.

P.: O “ta” você já escreveu.

Natália: Va, va. É o va (registra a sílaba “VA”).

P.: Brincando.

Natália: Brin, ba, be, brin, é o BI, separado, né? (registra as letras “BI”). Can, can, ca, que, qui,

é o “CA” e o “O” (registra as letras “CO”). Agora qual letra que é mesmo?

P.: O que foi que você escreveu? Brincan...

Natália: Do, o. Já tem o “O” aqui (aponta a letra anterior). Ih! Marcelo estava brincando com o

pai.

P.: Brincando de bola com o pai.

Natália: Brincando de (registra a palavra “bola”) pai.

P.: Com o pai.

Natália: É o “P” e o “O”.

P.: Com.

Natália: Com, com, com. Eu acho que é o “P” e o “O”.

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P.: Então, põe o “P” e o “O”.

Natália: Separado?

P.: Separado.

Natália: (Registra as sílabas PO).

P.: O pai.

Natália: Pa, separado, né?

P.: É.

Natália: Pa (registra a palavra pai).

P.: Então, Marcelo falou assim.

Natália: In, i. Essa letra aqui? (aponta a letra I que usou para escrever a palavra estava).

P.: Aí você escreveu estava. Agora, você vai escrever: então, Marcelo falou assim.

Natália: Então, então, ta, te, ti. É o “T” e o “O”.

P.: O “T” e o “O” tem na palavra então [...].

Natália: Então, tão, ta, te, ti. É o “T” e “O” (registra ITO).

Como constatamos no item anterior, a aluna utilizou dois tipos de linguagem durante o

registro: comunicativa e egocêntrica. Uma tinha por objetivo estabelecer comunicação com a

pesquisadora para esclarecimentos de dúvidas e, portanto, receber confirmação sobre as letras

que deveriam ser usadas para grafar uma determinada palavra e sobre onde deveriam ser

colocados os espaços entre as palavras. Esse tipo de linguagem era pouco freqüente durante as

atividades realizadas pelos outros alunos. O segundo tipo de linguagem era usado como

recurso para lembrar as letras que deveriam ser usadas para grafar as sílabas. Assim, o

primeiro tipo de linguagem estava direcionado para um interlocutor e o segundo para o próprio

sujeito. Contudo, ambos estavam orientados para a descoberta de quais letras eram adequadas

para registrar uma determinada sílaba.

A maneira como Natália se relacionou com a escrita para lembrar o texto é muito

interessante. Como na atividade de registro da brincadeira, ao ser incentivada a ler o texto,

interpretava algumas palavras e enunciava o texto a partir dessa palavra. Ela leu o título da

história “Marcelo, marmelo, martelo” e apontou os segmentos de letras “Maseo mameo

mateo”. Em seguida, continuou lendo “Marcelo tava brincando”. Para tal, apontou “Maseo

itava”. Para o último segmento (itava), correspondeu às palavras “tava brincando”. Falou duas

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vezes as palavras “tava brincando” e tentou ler o segmento seguinte “bico” correspondente à

palavra “brincando”. Como não conseguiu, perguntou: “o que é aqui mesmo?”. Então,

pedimos que começasse novamente a leitura. Leu “Marcelo estava brincando de bola”. Ela leu

apontando corretamente os segmentos e, como interpretou a palavra “bola”, leu a preposição

“de” juntamente com o segmento que correspondia à palavra “brincando”, porque foi omitida

no registro. Em seguida, apontou o segmento “ito” e enunciou “Marcelo falou por que bola

chama bola?”. Perguntamos onde estava lendo e, assim, ela passou para os segmentos de

grafias da linha seguinte que começava pela palavra “bola” e leu “pai, por que bola se chama

bola?”. Dessa forma, a leitura da palavra bola provocou a lembrança do conteúdo enunciado.

Depois, continuou a atividade sem apontar a escrita e disse: “porque ela é redonda”.

Demonstrou estar cansada e incomodada com a atividade e, por isso, perguntou:

Natália: Onde ditou mais? Aqui? (apontou a quarta linha com os registros). Espera aí. Aqui,

né? (apontou novamente a quarta linha de registros). Do Latildo. Papai, papai.

P.: Lê o que está escrito.

Natália: Eu tô tentando lê.

P.: Então aponta onde você está lendo.

Natália: Latildo (aponta Latido). Como é mesmo?

P.: Leia.

Natália: (Fica parada). Pe (leu onde estava escrita a sílaba pe), go (leu onde estava escrita a

sílaba go).

P.: Que palavra formou?

Natália: (Não é possível entender o que foi dito).

P.: Pegou.

Natália: Pegou. Pegou o quê?

P.: O que está escrito? É a escrita que vai te ajudar a lembrar.

Natália: (Fica observando os registros, passa o lápis várias vezes sobre a palavra fogo). Papai

vem ver o fogo. (Pára novamente e não consegue ler os segmentos VEGA VEGA).

P.: Continua lendo, Natália.

Natália: Pera aí. Ca, que, que, eu quero (leu onde grafou a palavra “que”).

P.: Aconteceu (lê para ajudar na lembrança).

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Natália: Aconteceu a casa (aponta a palavra casa que foi registrada) do Latido pegou fogo

(para os segmentos AMÃE FALO). E que estava queimando a casa (termina a leitura

na palavra casa). Va, pa, Latildo (pula a penúltima linha de registros).

A menina não conseguiu concluir a atividade. Ela leu algumas palavras, mas não

conseguiu elaborar um texto com sentido, pois queria realizar a atividade a partir da leitura de

algumas palavras. Assim, observamos que algumas palavras possibilitaram a lembrança do

texto registrado ou de outro com o mesmo sentido. É o caso das palavras “fogo e casa”, no

final da leitura. Com base nessas palavras, lembrou o enunciado “papai vem ver o fogo”. No

entanto, o enunciado que motivou o registro foi “um dia, a casa do Latildo pegou fogo. —

Papai, venha ver o que aconteceu na casa do Latildo”. Além disso, ao decifrar a palavra pegou,

perguntou “pegou o quê?”. Podemos dizer que essa palavra não remeteu a nenhum significado

anotado e, por isso, fez a pergunta.

Analisaremos a atividade realizada por Nicole. Na realização da atividade de registro

da brincadeira, observamos elementos na escrita da aluna que possibilitavam a leitura de um

enunciado do texto mas, no entanto, a aluna se deteve à escrita e, por isso, apenas decodificou

algumas letras. Vejamos a escrita do reconto, porque isso voltou a ocorrer.

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Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo era um menino. Ele falou para a mãe: — Mãe, por que eu não posso chamar martelo?

— Filhinho, porque é nome de ferramenta.

— Mamãe, por que eu não posso chamar marmelo?

— Ah, filhinho! É nome de fruta.

A aluna usou a mesma representação para a palavra Marcelo em dois contextos.

Podemos ler palavras e duas frases independentemente das omissões de letras. Observamos

ainda que foram usadas representações que não expressam os significados das palavras

registradas: “faparami, mepo, movoposoxa”. Vejamos como aconteceu o registro do reconto.

P.: O registro do reconto é Marcelo, marmelo, martelo.

Nicole: Registra MARCLO MATELO MATELE.

P.: Terminou?

Nicole: (Confirma).

P.: Marcelo era um menino.

Nicole: (Registra MASE É RAUMINIO e fala enquanto escreve).

P.: Muito bem! Talvez se você falar mais alto te ajude a escrever melhor. Ele falou para a mãe.

Nicole: (Registra ELE FAPARAMI e continua falando).

P.: Mãe, por que eu não posso chamar Marcelo?

Nicole: (Registra MEPO MÃE MRCLO).

P.: Filhinho, porque é nome de ferramenta [...].

Nicole: (Registra FILIO POQUE É NOME DE FERAMETA).

P.: Mamãe por que eu não posso chamar marmelo?

Nicole: (Registra MAMÃE POQUE E MOVOPOSOXA MAMELO e fala).

P.: Ah! filhinho, porque é nome de fruta.

Nicole: (Registra A FILIPOQUE É NOME DE FUTA).

A criança falava baixinho durante o registro. Por isso, incentivamos a falar mais alto,

mas continuou falando da mesma forma. A sua escrita mostra que representava as sílabas

usando uma letra e, também, usava letras para representar os fonemas. A segunda forma de

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representação foi a mais freqüente. Vejamos, então, como se relacionou com a escrita para

lembrar o texto:

Marcelo, marmelo, martelo

1o MARCLO MATELO MATELE

Marce e ra um menino ele faparami mepo mãe

2o MASE É RAUMINIO ELE FAPARAMI MEPO MÃE MRCLO

3o FILI POQUE É NOME DE FERAMETA

Mamãe, por que é movoposoxa marmelo

4o MAMÃE POQUE E MOVOPOSOXA MAMELO

Ah, filhinho! Porque é nome de fruta.

5o A FILIO POQUE É NOME DE FUTA

Nos segundo e quarto segmentos, a aluna decodificou grafias que não expressavam os

significados das palavras anotadas. Deixou de ler a palavra Marcelo e a frase “filhinho, porque

é nome de ferramenta”. Por isso, leu apenas o título e as frases “Marcelo era um menino” e

“Ah! Filhinho, porque é nome de fruta”. É interessante observar que a maioria das crianças, no

momento em que eram incentivadas a se relacionar com a escrita para lembrar o texto

registrado, atribuía significados às grafias inexpressivas. Contudo, o mesmo não ocorreu com

Nicole. Ela decodificou as grafias inexpressivas, produzindo sons sem significados.

As atividades analisadas mostram que as crianças que dominavam a escrita alfabética

se relacionavam com os registros para lembrar o texto. Essas análises, no entanto, trazem

alguns elementos interessantes, observados quando as crianças eram incentivadas a ler o texto:

a) as grafias inexpressivas, escritas para representar as palavras do texto, eram interpretadas e,

desse modo, as crianças atribuíam a elas os mesmos significados que motivaram o registro; b)

as grafias não possibilitavam a interpretação da palavra registrada e, por isso, desencadeavam

uma leitura espontânea, baseada na memória, mas, como a criança tentava também interpretar

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as grafias expressivas, os enunciados produzidos, para algumas partes do texto, eram sem

sentido; c) as grafias inexpressivas eram decodificadas, ou seja, a criança produzia símbolos

sonoros para os símbolos visuais; d) por fim, observamos ainda que os enunciados eram

elaborados a partir da leitura de uma palavra.

b) As crianças não dominavam a escrita alfabética

Passaremos à análise da atividade realizada por Luís Carlos. Ele ainda não dominava

completamente a escrita alfabética, mas podemos ler algumas palavras no texto. Lembramos

que essa criança, na atividade de registro da brincadeira, utilizou apenas algumas letras

constituintes do nome de um colega da classe para enunciar uma frase do texto. Além disso, as

letras mais usadas para escrever o texto foram as letras que compunham o seu próprio nome.

Vejamos o registro do reconto. Luis Carlos tinha sete anos e seis meses de idade.

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Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo era um menino comum. Ele vivia perguntando as coisas para a mãe, o pai e a avó. — Por que

eu me chamo Marcelo? — Porque eu e seu pai escolhemos.

Depois, Marcelo falou assim: — Por que não colocaram o meu nome de martelo? A mãe falou que

martelo é nome de ferramenta. — Por que não colocaram meu nome de marmelo?

Um dia, Marcelo e o pai estavam jogando futebol. — Por que

bola se chama bola? Perguntou Marcelo. — Porque

ela é redonda. Aí Marcelo perguntou:

— E o bolo? — Ele lembra uma coisa redonda.

Marcelo responde: — Essa não! Mamãe vive fazendo bolo quadrado.

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É evidente que houve mudanças na sua escrita. Algumas palavras, como “marmelo,

falou, ela e não”, podem ser interpretadas e há uma variedade de letras usadas para compor as

palavras. Os espaços entre as palavras também podem ser observados. Luís Carlos registrou o

reconto silenciosamente. Constatamos, durante o registro, que usou os mesmos segmentos

gráficos para representar as palavras “Marcelo, marmelo e martelo”. Dessa forma, a palavra

Marcelo foi representada com as letras “mafegh”, a palavra martelo com as letras “mamelo” e

a palavra marmelo com as letras “moravld”. Como copiou as grafias das palavras do título,

usou, no texto, as grafias da palavra “marmelo” para representar “martelo” e vice-versa. A

criança ainda registrou o numeral 1 para representar o artigo na frase “um dia, Marcelo e o pai

estavam jogando futebol”. Vejamos se as características observadas na escrita ajudaram a

criança a interpretar as grafias. Ele apontou adequadamente as grafias que correspondiam ao

título da história que foi recontada.

Marcelo era um me nino comum

1o MAFEGH É COMOE É VOPQZ MEMOLDE VO MLORO

Ele perguntava as coisas para o pai

2o E SO Q E MIOLO MAFEGH É MEMOLOE DE Ó

3o MAFEGH FALOASI FOQ MAMELO A MLOROF DE FER

E para a mãe de pois

4o A COTA QVCOAR DE MORAVLO E TA TAH

Marcelo falou para

Um dia

Marcelo Um dia Marcelo tava jogando

5o E DE MAEGH 1 TIA MAEGH I O MEMOLO

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Bola Ele (não!)

O Marcelo falou para o pai

Falou por que a bola

6o BALA QTQ A BALA E BARTAI QTQ ELA BA

7o COAGHIJ BARTAI AI MAFEGH TOEQTA

Por que a bola se chama bola. Depois ele falou se lembra uma coisa redonda

8o IO BOLGH E LIGHGJAJ É NAO MAEVO

9o VIFAHG RAHGO BOLOAGLO

Assim, leu a palavra “Marcelo” para as grafias que haviam sido usadas para representar

a mesma palavra no título. Para a primeira letra “e”, registrada, correspondeu a palavra “era”

que começa com essa letra. Para a segunda letra “e” correspondeu a sílaba “me” da palavra

“menino” que possui essa letra. Dessa forma, ele apontava as unidades menores na escrita,

como as letras e sílabas, e estas ajudavam a confirmar o texto que estava sendo elaborado. Ao

apontar o terceiro segmento, primeiro enunciou “Marcelo falou para”. A palavra Marcelo

correspondeu ao registro semelhante ao do título. Quando observou o numeral 1, voltou ao

início das grafias e enunciou: “um dia”. Leu, mais uma vez, começando pelo numeral 1, usado

para representar o artigo, e disse: “um dia Marcelo tava jogando bola”. Para a última palavra

(bola), apontou a palavra “bala”, grafada na linha seguinte. Nesse caso, o elemento que

propiciou a lembrança foi, inicialmente, o registro do numeral 1 e, em seguida, as

representações usadas para as palavras Marcelo e bola. No oitavo segmento, percebemos que

leu, também, para as grafias “bolgh” a palavra “bola”. O fato de a criança ter representado as

palavras “marmelo e martelo” com o mesmo segmento de letras, em outras partes do texto,

não possibilitou a leitura dessas palavras. No entanto, mesmo que as representações usadas

para essas palavras não tenham contribuído para a lembrança, mostrou que Luís Carlos

compreendeu que uma mesma palavra deve ser grafada com as mesmas letras.

Analisaremos, também, a atividade realizada por José Carlos. Durante o registro da

brincadeira, leu palavras que não foram registradas, mas, como mostramos, a leitura elaborada

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era possível, tendo em vista o modo como organizou as grafias. Ele tinha oito anos e onze

meses de idade e registrou o reconto da seguinte forma:

Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo era um menino interessado em colocar nome nas coisas.

Ele perguntava para as pessoas,

por que mesa chama mesa

e queria mudar o nome das coisas.

Um dia, a casa do Latildo embrasou.

Marcelo ficou triste,

mas o pai e a mãe prometeram fazer uma casinha marrom para o cachorro.

Há mudanças na escrita de José Carlos. Ele utilizou um número maior de letras para

escrever o texto. O numeral 1 e a palavra casa, registrada convencionalmente, podem ser lidos.

A criança falava, durante o registro. Vejamos uma parte do registro.

P.: Ele perguntava para as pessoas.

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José Carlos: Ele (registra a letra E), perguntava (registra a letra T), para (registra as letras AP),

as (registra a letra A), pessoas (registra as letras ASA).

P.: Por que a mesa se chama mesa?

José Carlos: Por que (registra as letras UA) a mesa chama (registra a letra A), me (registra a

letra M), sa (registra a letra S).

Assim, as unidades da linguagem oral analisadas, no plano verbal, para composição

das grafias e a quantidade de letras usadas para grafar as unidades não tinham uma

regularidade. Para a palavra perguntava, registrou apenas a letra “t”; para pessoas, usou três

letras, conforme a quantidade de sílabas; para a sílaba “me”, da palavra mesa, registrou a letra

“m”. No entanto, verificamos que a criança começou a registrar algumas letras pertencentes à

sílaba, como no caso da palavra mesa. Vejamos, então como leu as grafias registradas:

José Carlos: Marcelo marmelo e martelo (apontou onde havia escrito o título).

P.: Como você sabe onde está escrito Marcelo, marmelo e martelo?

José Carlos: Porque tá escrito Marcelo (aponta a letra M, no primeiro segmento de grafias).

P.: Como você sabe que é aqui que está escrito Marcelo?

José Carlos: (Aponta a última letra M do segmento de grafias). Eu escrevi aqui martelo.

P.: Como você sabe o que está escrito aí?

José Carlos: Porque é quase igual ao nome do menino.

As perguntas que fizemos, após a leitura do título, foram em função da forma como

apontou cada palavra lida. Ele indicou apenas a letra “M” que começava cada um dos

segmentos de grafias usadas para escrever as palavras “Marcelo, marmelo e martelo”. Com a

sua resposta, verificamos que sabia que as três palavras começavam com a letra “m” e, com

essa letra, marcou o início de cada uma delas. Em seguida, enunciou o seguinte texto: O

Marcelo era um menino muito interessado. Ele falava para os outros: por que a mesa chama

mesa? Aí, o pai dele falou: a mesa vem do latildo. Ele falou assim: o que é latildo? A boca do

cachorro? Aí ele falou assim. Um dia a casa do Latildo embrasou. O Marcelo ficou triste e o

pai seu e a sua mãe falou, prometeram, fazer outra bem amarronzinha para ele”.

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Verificamos que, no momento em que enunciou “aí, falou assim”, José Carlos deparou

com os registros do numeral “1” e da palavra “casa”, reconhecidos por ele e, por isso, disse

exatamente o enunciado que motivou o registro “um dia a casa do Latildo embrasou”. Desse

modo, podemos dizer que as grafias possibilitavam a lembrança dos significados registrados,

inibiram a construção de um texto, baseado unicamente na memória e conduziram ao

enunciado que motivou o registro.

Mostraremos as atividades realizadas por mais três crianças que, durante a realização

do registro da brincadeira, não se relacionavam com as grafias para recordar o texto que

motivou a escrita, mas que, na atividade de reconto, passaram a se relacionar para tal

finalidade. Iniciaremos pela atividade realizada por Vanessa. Observemos a sua escrita. Ela

tinha sete anos e dois meses de idade.

Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo vivia perguntando as coisas para as pessoas.

— Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?

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— Porque eu e seu pai escolhemos esse nome.

— Por que não colocaram martelo?

Por que não colocaram marmelo?

— Porque marmelo é nome de fruta

e martelo é nome de ferramenta.

É possível observar que ela usou as mesmas letras para representar a palavra Marcelo

em dois contextos. Porém, isso não ocorreu com as palavras marmelo e martelo. Para as

palavras “por que” registrou as letras “o” e “q”, em quatro contextos. Com base na escrita, é

possível constatar que estabeleceu correspondência entre letras e sílabas. Usou apenas as

consoantes “m, c, p, q, t” e as vogais para escrever o texto. Vanessa iniciou o registro do

reconto da seguinte forma.

P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.

Vanessa: Mar (registra a letra “M”), ce (registra as letra “COA”). Agora, mar (registra a letra

“M”), me, me (registra a letra “E”), lo (registra a letra “O”). Não é. Faz esquecer . É

martelo (apaga as letras que usou para registrar a palavra marmelo).

P.: É marmelo primeiro.

Vanessa: Mar (registra a letra “M”), me (registra a letra “E”), lo (registra a letra “O”).

P.: Agora é martelo.

Vanessa: Mar (registra a letra “M”), te, te (registra a letra “A”), lo (registra a letra “O”).

P.: [...] Marcelo vivia perguntando as coisas para as pessoas.

Vanessa: Aqui? (Aponta onde havia escrito o título).

P.: Não, na outra linha.

Vanessa: Mar (registra a letra “M”), ce (registra as letras “CA”), lo ve (registra a letra “V”,

volta e registra a letra “O”), vi (registra a letra “I”), pre (registra a letra “E”), go

(registra a letra “O”), tan, tan (registra a letra “L”), preguntando o que mesmo?

P.: As coisas para as pessoas.

Vanessa: A (registra a letra “A”), co (registra a letra “A”), para pe (registra a letra “P”), so

(registra a letra “O”), a (registra a letra “A”).

P.: [...] Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?

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Vanessa: Ma (registra a letra “E”) po (registra a letra “O”), que (registra a letra “Q”), eu

(registra a letra “U”), me (registra a letra “I”), cha, cha, mar (registra a letra “M”), ce

(registra as letras “CA”), lo (registra a letra “C”).

O exame da linguagem que ocorreu, durante o registro, mostra que a aluna elaborou a

análise das unidades da linguagem oral no plano verbal e escreveu letras correspondentes às

unidades analisadas. Havia uma regularidade na unidade analisada, pois ela destacava a sílaba

e, na maioria das vezes, representava a sílaba por meio de uma letra. Quando escreveu o título,

apagou as letras que usou para escrever a palavra “marmelo”, após afirmar que as letras não

eram aquelas e que faziam esquecer. Dessa forma, a aluna estava atenta à necessidade de

escrever de uma maneira que possibilitasse a recordação. A nossa intervenção, afirmando que

a palavra “marmelo” deveria ser escrita, fez com que aluna registrasse as mesmas letras que

foram apagadas. Ao escrever a palavra Marcelo, na primeira frase, “Marcelo vivia

perguntando as coisas para as pessoas”, registrou primeiro as letras “mca”. Percebeu que a

palavra não estava escrita da mesma forma que no título e, por isso, voltou ao registro e

acrescentou a letra “o”. Dessa forma, a palavra foi composta com as mesmas letras usadas no

título. Vanessa elaborou o texto que se segue para a escrita:

“Marcelo, marmelo

Marcelo vivia perguntando as coisas para as outras pessoas.

Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?

Meu filho, esse nome foi eu e seu pai que escolhemos

Por que não colocaram martelo?

Porque é nome de ferramenta, meu filho.

Por que não colocaram marmelo?

É nome de fruta, meu filho”.

Assim, observamos que iniciou três enunciados com a palavra “por que”. Acreditamos

que isso é devido ao registro das letras “p” e “q” usadas para grafar essa palavra. Na frase

“Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?”, apontou a adequadamente os segmentos gráficos

usados para escrever a palavra Marcelo. É interessante notar o que ocorreu na atividade

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realizada pela aluna, pois o registro de apenas duas letras, constituintes da palavra, possibilitou

a recordação, porque essa palavra se repetiu no início dos enunciados que foram anotados.

Analisaremos ainda a escrita desenvolvida por Marianne. Sua atividade é um excelente

exemplo para evidenciar que representações, aparentemente, inexpressivas adquirem um

caráter expressivo e, dessa forma, auxiliam a recordação do texto. Observemos os registros de

Marianne. Ela tinha sete anos e sete meses de idade.

Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo fazia muitas perguntas para o seu pai e a sua mãe. Ele colocava nomes diferentes nas coisas.

Um dia, a casa do cachorro pegou fogo, porque jogaram uma ponta de cigarro pela grade.

Marcelo perguntou para a sua mãe: — Mãe, por que a chuva cai?

Às vezes, os mais velhos respondiam às perguntas do Marcelo. Às vezes, não respondiam

porque não sabiam.

A aluna utilizou as letras “Marfeo” para registrar, por três vezes, a palavra Marcelo.

Além disso, podemos interpretar as palavras “pai, casa e não”. Usou as letras “mao”, por três

vezes, para representar a palavra mãe. O processo de registro foi particularmente interessante:

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P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.

Marianne: (Registra os segmentos MARFEO MAORO MATAO e sussurra).

P.: O que você estiver pensando, falando, você pode falar alto. Marcelo fazia muitas perguntas

para o seu pai e a sua mãe.

Marianne: (Copia o segmento de letras correspondentes à palavra Marcelo e registra a palavra

pai). Pai, mãe (registra as letras E MAO).

P.: Você escreveu tudo que eu falei, Marcelo fazia muitas perguntas para o seu pai e a sua

mãe?

Marianne: (Confirma).

P.: Ele colocava nomes diferentes nas coisas.

Marianne: Ele (registra a letra E) colocava nomes diferentes nas coisas. (Não foi possível, por

meio da filmagem, ver como realizou a correspondência entre o que era

pronunciado e o que era grafado).

P.: Um dia a casa do cachorro.

Marianne: Um (registra as letras UE), dia a (registra a letra A), a casa ( registra a palavra

CASA), do cachorro (registra as letras CARO), pe (registra as letras TA), gou

(registra as letras UO), fogo (registra as letras AOR).

P.: Porque jogaram uma ponta de cigarro pela grade.

Marianne: Por (registra UE), jogaram uma ponta de cigarro pela grade (escreveu ao mesmo

tempo que repetia a frase as letras TRAU).

P.: Escreveu tudo?

Marianne: (Confirma).

P.: Marcelo perguntou para a sua mãe.

Marianne: Mar (registra a sílaba MAR), celo (registra as letras FEO) perguntou para

P. Perguntou para sua mãe.

Marianne: (Registra as letras E), para sua (registra as letras FE), mãe (registra as letras MAO).

P.: Mãe, por que a chuva cai?

Marianne: Mãe (registra as letras MAO), por que (registra a letra A), chuva (registra as letras

FORA e EROR), cai.

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Ao registrar o primeiro enunciado a aluna se limitou a escrever três palavras: Marcelo,

pai e mãe. No entanto, afirmou ter escrito tudo que foi ditado. Um pouco mais adiante, é

possível observar que a linguagem estava presente durante a atividade de registro, mas não

realizava a análise das unidades da linguagem oral por meio dela. Ela simplesmente repetiu as

palavras que deveriam ser registradas.

O modo como a aluna se relacionou com a escrita para lembrar o texto é muito

interessante. Por isso, reproduziremos a sua escrita e mostraremos como realizou a atividade.

Macelo marmelo martelo

1o MARFEO MAORO MATAO

Marcelo vivia fazendo pai e a sua mãe

Muitas perguntas

Para se

2o MARFEO PAI E MÃO

Um

3o É LOOR E AFO

Diaa casinha do cachorro pegou fogo4o UE A CASA CARO TAUO AOR UE TRAU

E o Marcelo perguntou para sua mãe mãe5o MARFEO EU FE MÃO MÃOCI

Por que a chuva6o FORA EROR

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Cai às vezes os Marcelo respondia às vezes

Mais velhos

7o AU AFAO U FARO ORAORO AU

Não respondiam8o NÃO UO

Porque não sabiam.

9o ARO NÃO FARO.

Assim, para o segundo segmento de grafias, Marianne disse o enunciado que motivou

o registro e apontou os espaços em branco para as palavras que não foram anotadas, pois havia

escrito apenas as palavras “Marcelo, pai e mãe”. A repetição das mesmas grafias usadas para

representar as palavras Marcelo e mãe, assim como o registro convencional das palavras “pai e

não” contribuíram para que lembrasse um texto próximo daquele que motivou a escrita.

Em síntese, as crianças que não dominavam a escrita alfabética se relacionavam com

grafias, aparentemente inexpressivas, para lembrar o texto que motivou a escrita ou outro com

o mesmo sentido. O surgimento de grafias expressivas foi possibilitado pela presença de

palavras, no texto, que podiam ser representadas por numerais (artigos indefinidos, por

exemplo) e de quantidades, que podiam ser representadas da mesma forma.

Luria (1988), conforme mencionamos, mostrou que o fator primário - quantidade -

introduzido no conteúdo das frases a serem registradas pelas crianças que participaram do seu

estudo possibilitou a dissolução da atividade gráfica indiferenciada e inexpressiva e o

surgimento de grafias que expressavam os significados registrados. Ele cita no seu texto o

exemplo de uma menina, chamada Brina, para mostrar como a introdução do fator quantidade,

no conteúdo das frases, possibilitou que a criança usasse os registros para lembrar as frases

que motivaram o registro. Para as frases que foram ditadas, durante a terceira sessão, a criança

usava linhas e marcas, de acordo com a quantidade introduzida. Por exemplo, para a frase “a

garça tem uma perna”, Brina fez uma marca indicando uma perna.

Nas situações analisadas neste estudo, observamos que as crianças representavam as

quantidades e os artigos indefinidos por meio de numerais e não mais por meio de marcas e

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173

linhas. Nesse sentido, as crianças usavam símbolos convencionais para representá-los. Isso só

é possível porque, diferentemente da criança que participou dos experimentos de Luria, as

crianças envolvidas neste estudo estavam aprendendo, na escola, o sistema numérico usado em

nossa sociedade.

Não foram apenas as quantidades e palavras, representadas pelos numerais, que

possibilitaram uma relação funcional com os símbolos registrados. Notamos ainda que a

presença, no texto, de palavras que se repetiam em mais de um contexto levou as crianças a

representá-las com as mesmas grafias (durante o registro, era possível observá-las copiando as

letras usadas para representar as palavras) e estas, por sua vez, passaram a expressar a palavra

anotada possibilitando, dessa forma, a recordação do texto. Também a presença de palavras

cuja grafia as crianças conheciam ou lembravam algumas letras que compunham a sua escrita

possibilitou que elas registrassem essas palavras ortograficamente ou usando as letras que

lembravam e esses registros proporcionaram, também, a lembrança do texto.

2.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o reconto

Verificamos que havia dezoito crianças que não utilizaram a escrita para recordar o

texto. Desse grupo de crianças apenas três elaboravam, durante o registro, a análise das

unidades da linguagem oral e escreviam símbolos alfabéticos correspondentes às unidades

analisadas. Constatamos ainda que oito crianças reproduziam a aparência externa da escrita,

ou seja, separavam os segmentos de letras usando espaços em branco. Verificamos isso nas

grafias analisadas anteriormente, mas é interessante destacar que a reprodução desses aspectos

não está vinculada ao início do uso funcional das grafias.

Utilizaremos, para exemplo, as atividades desenvolvidas por três crianças. Com base

na análise dessas atividades, mostraremos como o uso de letras pelas crianças e as suas

tentativas de reprodução dos aspectos externos da escrita adulta não estão vinculados ao uso

funcional da escrita. Antes, porém, examinaremos a atividade realizada por Laudicéia. Ela será

mostrada para que possamos discutir um pouco mais a questão da diferenciação e

indiferenciação na escrita. Observemos os registros da aluna. Ela tinha sete anos e sete meses

de idade.

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Marcelo, marmelo, martelo

Uma pessoa jogou cigarro na casa do cachorro.

Marcelo foi contar para seu pai,

mas o pai não entendeu o que Marcelo dizia. Depois, o pai prometeu que iria construir uma casa nova

para o cachorro.

Ela registrou letras que formaram um conjunto de grafias quase totalmente

indiferenciadas. Para cada parte do texto, escreveu uma linha inteira com essas grafias.

Durante o registro, dizia palavras completamente incompreensíveis. Solicitamos que falasse

mais alto, mas continuou falando da mesma maneira. Como mencionamos, Luria (1988)

mostrou que o desenvolvimento da escrita não ocorre de maneira linear, num processo de

aperfeiçoamento contínuo. Ele depende das aprendizagens e uma nova aprendizagem pode

atrasar esse processo. Laudicéia está aprendendo a usar as letras, mas a sua escrita é ainda

quase totalmente indiferenciada. Desse modo, a criança compreendeu que pode usar signos

para registrar o texto, mas não entendeu como fazê-lo. Isto é, usou letras para escrever, mas

não compreendeu que a escrita pode auxiliá-la a lembrar o texto que motivou os registros. A

sua escrita apresenta o caráter não diferenciado das primeiras escritas produzidas pelas

crianças que participaram do estudo de Luria, mas, ao mesmo tempo, traz uma característica

nova, introduzida pela aprendizagem escolar: o uso de letras convencionais. Não podemos

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175

avaliar com precisão quais letras foram usadas, pois usou a escrita cursiva, mas, no primeiro

segmento, podemos identificar as letras “l, r, t, a, o e j”. O fato de ter usado letra cursiva não

justifica, na nossa opinião, a indiferenciação, pois outras crianças que usavam a letra cursiva

diferenciavam as letras ao escrever (em seguida, veremos a escrita de Jéssica Fernanda). Ao

final, pedimos, conforme combinado, que lesse os registros. A aluna enunciou o seguinte

texto:

P.: Agora, você vai ler o que você escreveu.

Laudicéia: Alto?

P.: Alto. Eu quero que leia alto para eu ouvir.

Laudicéia: Marcelo, marmelo e martelo.

Marcelo queria que o pai queria construir uma casa nova para o cachorro. Ele

colocou. O pai não entendia o que o Marcelo falava.

Assim, a aluna não se relacionou com os registros para recordar o texto. Podemos

dizer, de acordo com Luria, que era capaz de imitar os adultos ao escrever e ler, mas não podia

“apreender os atributos psicológicos específicos que qualquer ato deve ter, caso venha a ser

usado como instrumento a serviço de algum fim” (1988, p. 149). Ferreiro (1996) também

analisou esse tipo de escrita e observou que as crianças que escrevem dessa forma já

descobriram dois atributos importantes do sistema de escrita: a arbitrariedade e a linearidade.

A descoberta desses atributos demonstra, segundo a autora, que as crianças diferenciam as

formas icônicas e não icônicas de representação.

A escrita de Jéssica Fernanda será analisada, porque, como vimos no item anterior, ela

combinou a pictografia e as letras para registrar a brincadeira. Não consideramos, no entanto,

que a aluna não sabia diferenciar desenho e escrita. Em nossa opinião, o conteúdo do texto foi

determinante para que ela combinasse os modos de representação ao escrever o texto.

Ao registrar o reconto da história, Jéssica Fernanda usou letras ao escrever e não houve

nenhuma dúvida quanto ao tipo de representação que deveria ser usada. Vejamos o registro. A

aluna tinha sete anos e um mês de idade.

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Marcelo, marmelo, martelo

O Marcelo ficava mudando o nome das coisas.

Ele queria que seu nome fosse martelo,

Mas a mãe falou assim: — Martelo é nome de ferramenta.

— Por que a cadeira não pode chamar sentador?

Por que a mesa não pode chamar comedor?

Como pode ser visto, a aluna usou letra cursiva para escrever o texto, mas diferenciou

as letras ao escrever o texto e não repetiu a mesma letra numa cadeia. Colocou espaços em

branco entre os segmentos de grafias e cada segmento de letras possui mais de três letras.

Quando solicitamos que lesse, lembrou-se do seguinte texto:

“Marcelo, marmelo e martelo (apontou onde havia registrado o título do reconto)

Ele queria que o nome dele chamava Marcelo (apontou o primeiro segmento de letras). Martelo

é nome de ferramenta (apontou o segundo segmento). Por que cadeira não podia chamar sentador e

mesa comedor? (apontou o último terceiro segmento)”.

Dessa forma, não apontou o último segmento de grafias e disse: “a última eu não sei”.

Assim, podemos verificar que, durante a atividade envolvendo a brincadeira, o uso dos

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desenhos ajudou a menina a lembrar o texto. A escrita, no entanto, do reconto usando apenas

letras não possibilitou a lembrança do texto. É interessante observar que as crianças agiam

como se a escrita auxiliasse a realização da tarefa, mas, na verdade, a criança imitava a

atividade de leitura dos adultos. O fato de sobrarem letras provocou um certo incômodo na

criança, mas não podia continuar a atividade, pois havia esgotado os enunciados que lembrava.

Consideramos que as diferenciações na escrita (qualitativa e quantitativa) puderam ser

observadas nos registros das crianças que participaram do estudo, mas não possibilitaram que

os alunos usassem a escrita para fins mnemônicos. A escrita de Jéssica Fernanda exemplifica

mais uma vez tal conclusão. Há diferenciações na escrita, mas isso não ajudou a lembrar o

texto registrado.

Analisaremos ainda a escrita de Fernanda para mostrar que as crianças podem usar

duas ou mesmo uma letra para escrever o texto. Como mencionamos, uma característica das

escritas produzidas pelas crianças é a colocação de espaços em branco entre os segmentos de

letras usados para escrever o texto. Dissemos que essa forma de grafar o texto tem origem nas

atividades desenvolvidas na sala de aula, ou seja, no uso de textos para a leitura durante a

alfabetização e nas atividades envolvendo esses textos. Olhemos a escrita da aluna. Ela tinha

sete anos e dez meses de idade.

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Marcelo, marmelo, martelo

Marcelo era um menino

que fazia perguntas.

Ele perguntou por que o seu nome era Marcelo.

— Por que o meu nome não pode ser marmelo?

— Porque esse é nome de fruta.

— Por que eu não posso chamar martelo?

— Porque é nome de ferramenta.

Fernanda separou os segmentos de letras usados para grafar cada enunciado do texto

por espaços em branco e usou grafias com duas letras para compor os segmentos. Para compor

as grafias com duas letras, utilizou sempre consoante/vogal: “de, sa, be, fe”. Ela também

diferenciou a escrita para registrar cada enunciado do texto que era ditado. Assim, escreveu

observando as diferenciações qualitativas, mas, na tentativa de reprodução da aparência

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externa da escrita, utilizou registros com duas letras e, dessa forma, diferentemente da escrita

de Jéssica Fernanda não observou o critério de quantidade mínima de letras para escrever cada

segmento de grafias que compunham a escrita dos enunciados. A escrita da aluna afirma a

análise que elaboramos: as crianças reproduzem as características externas da escrita.

Inicialmente, essa reprodução pode ser traduzida por diferenciações baseadas nos eixos

qualitativos e quantitativos. No entanto, à medida que avançam no processo de alfabetização

escolar, aprendem que, na escrita, usamos palavras com duas e uma letra e, por isso, passam a

usar também essas quantidades de letras para compor as grafias usadas para registrar os

enunciados dos textos. Desse modo, é importante enfatizar que essa forma de registro só

ocorreu, porque as crianças registravam textos. Contudo, a reprodução da aparência externa da

escrita não garantiu o surgimento de grafias expressivas e, portanto, não possibilitou que as

crianças se relacionassem com a escrita para lembrar o texto. Vejamos o que aconteceu com

Fernanda ao solicitarmos a leitura.

P.: [...] Vamos ler o que você escreveu?

Fernanda: Era. Espera aí. Um menino fazia pergunta. Mãe, por que o meu nome é Marcelo?

Esqueci!

P.: A escrita pode te ajudar a lembrar?

Fernanda: Pode. Um menino fazia perguntas. Mãe por que eu me chamo Marcelo? Porque eu e

seu pai escolhemos. Por que não me chamava marmelo? Porque marmelo é nome de

fruta. Então, por que martelo? Porque é nome de ferramenta.

Assim, a escrita não possibilitou a lembrança do texto. Ela lembrou o texto apoiada na

memória. Desse modo, as diferenciações baseadas no eixo qualitativo e a reprodução de

grafias com duas letras não propiciaram o uso funcional da escrita. Isso significa que a

reprodução dos aspectos externos da escrita, no início da alfabetização, não está ligada ao uso

funcional da escrita. Pelo contrário, como temos mostrado, são as indiferenciações da escrita

que têm possibilitado a emergência de grafias expressivas.

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180

3 O registro do poema

A análise da atividade de registro do reconto, produzido oralmente, confirmou a

pertinência das análises que desenvolvemos no primeiro tópico deste capítulo e possibilitou a

análise de outros processos que constituem a apropriação da linguagem escrita pelas crianças

na fase inicial de alfabetização. Assim, com base nas constatações anteriores, planejamos a

terceira atividade de registro. Para esse momento, realizado no mês de setembro, escolhemos

um poema para ser escrito pelas crianças. O poema escolhido foi A mochila de Mariela, de

autoria de Glaucia Lemos. Os critérios utilizados para escolha do poema foram: a) repetição

de palavras ao longo dos versos; b) presença de palavras, no texto, estudadas pelos alunos; c)

presença de quantidades; d) existência de vários versos para que não fossem memorizados

pelas crianças.

Os três primeiros critérios foram definidos com base nas nossas descobertas. Como

vimos, a representação de uma mesma palavra em diversos contextos com o mesmo segmento

de grafias, o registro de palavras conhecidas e a representação de quantidades levaram as

crianças a se relacionarem com essas grafias para lembrar o texto que motivou o registro. O

último critério diz respeito à necessidade de criar uma situação de escrita que levasse à sua

utilização funcional.

O poema escolhido para realização da atividade foi:

A mochila de Mariela

Autora: Gláucia Lemos

A mochila de Mariela

é uma mochila amarela.

Que é que ela guarda nela?

Guarda álbum de figurinhas

guarda um colar de conchinhas

um chaveiro, uma fivela,

dois cadernos, três canetas,

tinta verde, tinta preta

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e um estojo de aquarela.

Ainda tem mais, Mariela,

nessa mochila amarela?

Tem boneca de flanela,

um diário

e um bilhete de Isabela.

Um chocolate em tablete,

dois chicletes

e um pão com mortadela.

Um dia, me dá carona,

Mariela,

nessa mochila amarela?

Como pode ser verificado, na poesia, há repetição das palavras “Mariela, mochila,

amarela e guarda”. Além disso, o primeiro verso é uma repetição do título. As palavras

“cadernos, canetas, mochila e boneca” já haviam sido estudadas pelas crianças. A poesia

apresenta ainda quantidades como “um, dois e três”. Além disso, o poema tem vários versos

que não poderiam, portanto, ser lembrados sem o auxílio da escrita. É importante ressaltar que

a última estrofe do poema não foi escrita pelas crianças.

Optamos por não realizar a atividade de registro da poesia com as crianças que, no

registro do reconto, demonstraram possuir o domínio do caráter alfabético da escrita e, ao

mesmo tempo, usaram apenas a escrita para lembrar o conteúdo do texto. Assim, participaram

da atividade de registro da poesia vinte e oito crianças. É importante ressaltar que, nesse

momento da pesquisa, uma criança que participou da última atividade foi transferida, uma

outra estava impossibilitada de ir à escola por motivo de doença e uma outra criança foi

matriculada na turma. Desse modo, oito crianças não participaram da atividade.

A atividade de escrita do poema foi orientada da seguinte forma:

a) Primeiramente, perguntamos às crianças se tinham mochila, o que guardavam nela,

qual era a sua cor.

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b) Em seguida, dissemos que iriam ouvir a leitura de uma poesia que falava dos

objetos que uma menina, chamada Mariela, guardava na sua mochila.

c) Líamos, então, o título e o nome da autora da poesia.

d) Antes de começar a leitura, pedimos às crianças que prestassem atenção nos versos,

porque, quando concluíssemos a leitura, elas deveriam lembrar os versos da poesia.

e) Como não conseguiam lembrar o poema ou lembravam apenas alguns versos,

explicamos, mais uma vez, que os adultos usam a escrita para ajudá-los a lembrar.

f) Em seguida, solicitamos que escrevessem o poema de modo que pudessem recordar

o seu conteúdo, ou seja, ler os versos.

g) Ao final do registro, pedimos, conforme combinado, que as crianças lessem a

escrita produzida e lembrassem os versos do poema.

Verificamos, com base na realização da atividade, que dez crianças se relacionavam

com as grafias para recordar os versos registrados e dezoito crianças não se relacionaram com

a escrita para tal finalidade. Centralizaremos a atenção no grupo que buscou se relacionar com

as grafias para lembrar os versos da poesia.

Conforme mostramos no início deste tópico, a poesia foi escolhida de acordo com

critérios que, durante as atividades analisadas anteriormente, possibilitaram a emergência de

grafias expressivas. Não pretendíamos, com a definição desses critérios, influenciar o modo

como as crianças escreviam, mas confirmar que a presença desses critérios no conteúdo do

texto possibilitavam a emergência de escritas expressivas.

As informações que obtivemos, por meio da proposição da atividade, confirmaram que

o registro pela criança, no texto, de quantidades, por meio de numerais ou por extenso,

auxiliaram a recordação dos versos que motivaram a escrita. Analisaremos, primeiramente, as

atividades que comprovam a afirmação acima.

3.1 A representação de quantidades por meio de numerais e por extenso

Examinaremos, inicialmente, a atividade desenvolvida por quatro crianças que

representaram as quantidades por meio dos numerais ou por extenso, o que ajudou a

recordação dos versos que foram escritos. Começaremos pela atividade elaborada por Ana

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Paula Morais. Ela tinha sete anos e sete meses de idade. Utilizaremos para as análises a escrita

produzida pela criança e as tentativas de interpretação das grafias.

Como pode ser observado, a escrita de Ana Paula Morais não pode ser lida. Podemos

reconhecer apenas o registro de alguns numerais: o numeral um escrito por extenso e o

numeral 2 escrito três vezes. Ela registrou o título da poesia com os segmentos de letras “a uou

ipad maip”. Para registrar o primeiro verso, que é composto com as mesmas palavras do título,

registrou as mesmas grafias usadas para escrever o título. Os segmentos de letras “da saluia”,

registrados na mesma linha do primeiro verso, corresponderam ao segundo verso “é uma

mochila amarela”. A criança estava preocupada com a aparência da escrita e, por isso, colocou

espaços em branco entre os segmentos de letras. Podemos notar o uso de uma e duas letras

para escrever os segmentos de letras usados para representar os versos do poema.

A tentativa de interpretação da escrita ocorreu da seguinte forma:

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Ana Paula M.: A mochila de Isabela

O que que guarda dentro dela?

Um colar.

E um diário (aponta a sexta linha do registro onde está escrito o numeral “UM”

por extenso).

Duas canetas (aponta o numeral 2 e a escrita que se segue, na sétima linha de

grafias. Aponta o numeral 2 na mesma linha, passa a apontar a oitava linha,

volta ao registro do numeral 2). Duas ca, borrachas.

P.: Mas não começa com CA?

Ana Paula M.: (Observa os registros).

P.: Duas canetas e dois...

Ana Paula M.: (Fica pensativa por algum tempo). Não lembro.

P.: Então, continue.

Ana Paula M.: O que será que ela guarda nela?

Tinha um bilhete da Luana.

Um, um, um, de chaveiro (aponta a penúltima linha de registros). Um, um.

E tinta verde e tinta preta (deixa de apontar a palavra “um” que reconhece).

E 2 chicletes e uma, uma (aponta a letra “P” que inicia o segmento de letras

após o registro do segmento “UM” que foi lido) e um pão com mortadela.

A aluna começou a enunciar os versos do poema, valendo-se unicamente da memória.

Por isso, no início, não apontou as grafias. Na sexta linha, começou a apontar os registros. O

registro do numeral “um”, por extenso, proporcionou a lembrança do verso “um diário”,

porém o verso que motivou a escrita foi “um chaveiro, uma fivela”. Entretanto, isso não é

muito importante, pois o registro da quantidade por extenso possibilitou a recordação de um

verso que, também, era composto com esse numeral. Em seguida, ela enunciou “duas canetas”

baseando-se no registro do numeral “2”. Ocorreu o mesmo ao apontar os segmentos gráficos

correspondentes a “dois cadernos”. Na mesma linha, observou, mais uma vez, a escrita do

numeral 2, leu a sílaba inicial “ca”, mas, como nenhum desses elementos lhe ajudava a

lembrar o verso, leu “borrachas”. Como percebemos que reconhecia a sílaba “ca”,

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perguntamos se a palavra lida começava com essa sílaba. Diante dessa situação, disse que não

lembrava o verso. Continuou a atividade e observamos como repetiu “um, um” na tentativa de

lembrar os versos compostos com a quantidade. Como não conseguiu lembrar mais nenhum

verso, abandonou o registro da quantidade, apontou outro para enunciar um verso que não foi

composto utilizando quantidades. Finalmente, apontou as grafias que correspondiam ao

registro dos dois últimos versos e lembrou os versos. Consideramos que os registros dos

numerais “2” e “um” ajudaram a lembrança desses versos associados ao fato de serem os

últimos versos do poema. Desse modo, fica evidenciado que a criança se relacionava com os

símbolos usados para representar as quantidades para lembrar os versos.

Assim, como na atividade anterior, o segundo exemplo demonstra que a representação

de numerais por extenso pode auxiliar a recordação dos significados registrados.

Observaremos, primeiro, o registro da aluna Ana Paula Sampaio e, em seguida, analisaremos

como os registros ajudaram a recordar o conteúdo.

Aparentemente as grafias produzidas pela aluna são inexpressivas. No entanto,

podemos observar, na segunda linha de grafias, a palavra “um” escrita três vezes. Na

penúltima linha, podemos verificar o registro da mesma palavra. Ao produzir o registro,

observamos que a aluna analisou as unidades da linguagem oral no plano verbal e escreveu

letras correspondentes às unidades analisadas. O tipo de relação estabelecida era na maioria

entre sílabas e letras, mas usou, também, uma letra para representar duas sílabas. As vogais

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foram utilizadas para registrar a maior parte das sílabas pronunciadas. Vejamos como a aluna

se relacionou com os registros.

Ana Paula S.: A (aponta a letra A, escrita isoladamente no primeiro segmento de registros),

mochila de (fica parada por alguns minutos para lembrar o nome da menina),

Mariela (aponta todo o segmento escrito na primeira linha).O (aponta a letra U

que inicia o segmento de letras escrito na segunda linha de grafias), que você

guarda dentro dessa mochila? (aponta as grafias UIEADLA UM ABIEUIA

registradas na segunda linha). Um (aponta a palavra registrada UM). Um

chaveiro. Diário (aponta BCDO) um diário e (aponta a letra E), um (aponta a

letra S). Um tablete de chocolate. I, a, p, a (tenta ler observando a letras, mas não

consegue e fica parada).

P.: A escrita está te ajudando a lembrar o que você escreveu?

Ana Paula S.: Tá. E um chocolate e um (aponta as letras IU que serviram para registrar o que

foi lido) estojo de aquarela, um estojo de aquarela e dois cadernos, três canetas

(pára, novamente, diante do registro da palavra UM). Um tem mais dentro de sua

mochila? (pára).

P.: O que está escrito no final?

Ana Paula S.: (Não continua a interpretação).

Conforme constatamos, a aluna leu a letra “a”, usada para representar o artigo que

inicia o título do poema e, em seguida, apontou a segunda linha, interpretando a letra “u”,

usada para representar o artigo “o”, e enunciou o “o que você guarda nela”. Ao apontar a

palavra “um”, também se lembrou de um verso composto com a palavra, “um chaveiro”.

Quando apontou o segmento de letras “bcdo” e leu “diário, um diário”, lembramos que, no

momento do registro, usou essas grafias para escrever as palavras lidas. Em seguida, decifrou

algumas letras e não continuou a atividade. Ao questionarmos se a escrita estava ajudando a

lembrar, disse que estava e decidiu continuar a atividade. Assim, observamos que a

representação da quantidade por extenso possibilitou a lembrança dos versos “um chaveiro” e

“um tablete de chocolate”. A criança também apontou letras que possibilitaram a confirmação,

no registro, do verso que estava sendo lembrado, como no caso dos artigos “a” e “o”. Leu

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ainda o último registro expressivo “um”, mas não enunciou o verso com sentido “um tem mais

dentro de sua mochila”.

Vejamos ainda a atividade realizada por Jéssica Fernanda. Ela não tentou se relacionar

com a escrita para lembrar os versos, mas, a partir da nossa intervenção, conseguiu apontar

onde havia escrito alguns versos. A menina tinha sete anos e dois meses no momento em que

elaborou a escrita.

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Como podemos observar, Jéssica Fernanda escreveu os numerais “2 e 1”

adequadamente. Ao registrar as palavras “dois cadernos”, escreveu “2 cade”. Dessa forma, a

primeira sílaba da palavra “caderno” foi escrita de maneira correta e, na segunda, omitiu

apenas a letra “r”. No último segmento de grafias, escreveu o numeral “1” e, em seguida,

escreveu o mesmo numeral por extenso. Ela colocou espaços em branco para separar os

segmentos de letras usados para escrever cada enunciado. Algumas letras foram escritas

isoladamente. É importante notar que escreveu as letras “s e v” isoladamente. Houve poucas

situações em que as crianças grafaram as consoantes dessa forma. Na maioria das situações

estudadas, as crianças grafaram as vogais isoladamente. Vale ressaltar ainda que a criança

falava baixinho, durante o registro do poema, e, dessa forma, verificamos que tentava

estabelecer relações entre as unidades da linguagem e as grafias, mas, mesmo sendo

estimulada a falar em voz alta, continuou falando da mesma forma. Apontaremos como

realizou a atividade ao ser incentivada a ler o poema.

Jéssica F.: (Observa os registros por algum tempo). A mochila.

P.: Aponta o que você está lendo.

Jéssica F.: A mochila da Daniela (aponta cada segmento de letras usado para escrever o

título correspondente às palavras verbalizadas). A mochila de Mariela é amarela (aponta as

letras que foram escritas na segunda linha). (Pára por alguns instantes e aponta as grafias

escritas na terceira linha).

P.: A escrita ajuda a lembrar?

Jéssica F.: Não.

P.: Tem alguma coisa no texto que você escreveu que ajuda?

Jéssica F.: (Mantém o dedo sobre os registros escritos na terceira linha e não responde

à pergunta).

P.: Aqui. (Aponta onde aparece o numeral 2 registrado, juntamente com as sílabas

iniciais da palavra caderno). Você sabe o que escreveu aqui?

Jéssica F.: Não sabe.

P.: E aqui? (Aponta onde foi escrito dois chicletes).

Jéssica F.: Dois chicletes.

P.: Com você sabe o que está escrito?

Jéssica F.: (Não responde à pergunta).

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P.: E embaixo? (Mostra onde foi escrito o último verso).

Jéssica F.: E um pão com mortandela.

P.: E aqui? (Volta ao primeiro registro indicado).

Jéssica F.: (Fica silenciosa e observa os registros).

P.: Tenta ler o que você escreveu.

Jéssica F.: (Fica silenciosa por um longo tempo e por isso encerramos a atividade).

Como observamos, a aluna enunciou o título e apontou as primeiras grafias para cada

palavra verbalizada. O mesmo não ocorreu, no entanto, para o segmento de letras usado para

grafar o primeiro verso. É interessante notar que usou grafias diferentes para grafar o título e o

primeiro verso que eram compostos com as mesmas palavras. Como não prosseguia na

atividade, perguntamos se a escrita auxiliava a lembrança dos versos. A aluna respondeu que

não ajudava. Insistimos para que observasse os registros “2 cade” referentes às palavras “dois

cadernos”. Essas grafias, também, não ajudaram a lembrar o verso e ela disse que não sabia o

que havia registrado. Apontamos ainda os dois últimos segmentos de grafias usados para

escrever os dois últimos versos da poesia e a menina lembrou exatamente o que havia sido

registrado. Sendo assim, observamos que o registro de numerais, nesses contextos, remeteu

aos significados que motivou a escrita. Porém, esse mesmo registro, em outro contexto, não

propiciou a lembrança.

Analisaremos ainda a atividade realizada por Manuelly. Ela tinha oito anos de idade e a

sua escrita não era legível.

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Na escrita elaborada por Manuely, podemos notar que apenas os numerais “2” e “3”

podem ser lidos. A criança não usou as mesmas letras para escrever as palavras que

compunham o título e o primeiro verso do poema. Com exceção da palavra Mariela,

representada em três contextos com a grafia “mela”, não ocorreu outra indiferenciação na

escrita. Colocou espaços em branco entre os segmentos de grafias usados para escrever a

poesia e, ao pedirmos que lesse o que escreveu, fez a seguinte tentativa:

Manuely: A mochila de Mariela (aponta a primeira linha de registro). A mochila de Mariela

era amarela (aponta a segunda linha de registros e parte da terceira linha). Ela

guardava três cadernos, três canetas (leu onde escreveu os numerais). Guardava tinta

verde tinta preta. E uma boneca de flanela (lê até o segmento MELA, fica parada

apontando esse segmento registrado, no início da sexta linha). Esqueci!

P.: Esqueceu? A escrita não está te ajudando a lembrar?

Manuely: Não.

P.: Por que ela não está te ajudando?

Manuely: Tô esquecendo de tudo.

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P.: Mas eu não disse para você escrever com atenção, porque você iria usar a escrita para

poder lembrar?

Manuely: Disse.

P.: E aí?

Manuely: Porque eu esqueci dessa parte aqui (aponta o segmento MELA escrito no início da

sexta linha).

Manuely, inicialmente, rememorou os versos, mas também os numerais registrados

indicaram onde deveria ler “três cadernos e três canetas”, mesmo tendo grafado os numerais

“dois e três”. Enunciou mais dois versos e não continuou a atividade. Insistimos para que

observasse a escrita para lembrar os versos; só conseguiu rememorar mais alguns versos sem o

apoio da escrita.

Enfim, as atividades destacadas mostram que a representação de quantidades, por meio

de numerais, possibilitava a lembrança dos versos, corroborando as nossas observações. A

análise acrescenta ainda um dado importante: as crianças, nessa época, estavam aprendendo,

na sala de aula, a escrever os numerais por extenso. A grafia memorizada, conforme vimos,

havia sido do numeral “um”. As crianças passaram, então, a registrar a quantidade por extenso

e esse registro possibilitava a lembrança dos versos compostos com a quantidade, confirmando

que o registro de palavras conhecidas pelas crianças auxiliavam a recordação.

3.2 Representações para as palavras cuja grafia as crianças não dominavam

Como no item anterior, observamos que as crianças que dominavam a escrita alfabética

elaboravam representações para as palavras cuja escrita ortográfica não conheciam.

Analisaremos essa questão a partir da atividade realizada por três crianças. Começaremos pela

atividade desenvolvida por Hugo. É importante apresentarmos a atividade realizada por essa

criança, porque os trabalhos elaborados durante a pesquisa são muito interessantes e

reveladores dos processos que se formam nas crianças, durante a fase inicial de alfabetização.

Ele tinha sete anos e quatro meses quando escreveu a poesia.

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Hugo dominava a escrita alfabética. Observamos, nas atividades de escrita da

brincadeira e do reconto, que a linguagem estava presente durante o registro. A análise da

linguagem possibilitou verificar que o aluno a utilizava como recurso para lembrar as letras

correspondentes às unidades da linguagem oral que eram pronunciadas. Verificamos que, no

início do registro do poema, a linguagem era mais freqüente, mas, à medida que foi

escrevendo, a linguagem já não era mais necessária para a elaboração dos registros e, por isso,

foi diminuindo até desaparecer completamente.

Na escrita elaborada pela criança, podemos observar que trocou letras (f/v; n/l; ch/j;

nh/ch), escreveu segmentos de letras que não expressam significados, por exemplo, o verso “e

um pão com mortadela” que foi registrado por “i um beo cor morerdéla”, omitiu letras na

escrita de palavras (aubu - álbum; chavero - chaveiro), acrescentou letras em algumas

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palavras, etc. Porém, essas grafias não impossibilitaram a realização da leitura do poema.

Vejamos:

Hugo: A mochila de Mariela. A mochila de Mariela. É uma mochila amarela. O que ela

guarda nela (lê apontando o la). La. Mochila de Mariela tem, tem (aponta a palavra

guarda) álbum (volta) álbum de figurinhas, um chaveiro, uma fivela e tin, ti, ti, tinta

verde, tinta preta e um estojo de a, a, a, ca, a, carela. Ainda tem mais Mariela le, le,

nessa mochila, a, a, mu, amarela. Tem buleca de flanela e um bilhete de Is, a Is, Is, Is,

pra. Não, consigo, não! Isabela! Um chocolate em trabela, dois chicletes e um p, peu,

pão mor, mor, tan um pão com mortandela.

O aluno leu pausadamente, atento ao que estava escrito. Usou representações gráficas

inexpressivas para algumas palavras do poema, mas essas representações não se tornaram um

empecilho para que realizasse a leitura. No último verso “e um pão com mortadela”, a criança

soletrou, silabou e, em seguida, lembrou o verso, mesmo tendo elaborado representações que

não expressavam o significado das palavras que compunham o verso. O mesmo ocorreu para

representações usadas para as palavra boneca (bulela) e flanela (fralela). Observamos, na

atividade de reconto, que Hugo não conseguiu ler com sentido. O texto enunciado, apoiado na

memória, em algumas situações, não era confirmado na escrita e, também, a leitura de

palavras, no texto, não garantia a lembrança dos enunciados. Na verdade, ao ser incentivado a

ler o reconto, a criança se relacionava com a escrita para lembrar o texto e, ao mesmo tempo,

apenas rememorava os versos, pois não conseguia interpretar as grafias usadas para

representar as palavras. Essa oscilação entre os dois meios usados para recordar o texto

possibilitou enunciações sem sentido.

Hugo elaborou a leitura do poema apoiado na escrita. Com relação às grafias que não

expressavam o significado das palavras registradas, podemos dizer que foram lidas, porque

havia um conjunto de grafias expressivas que garantia a sua leitura. Hugo leu o poema com

sentido demonstrando que se relacionava com a escrita para lembrar o poema.

Analisaremos agora a atividade realizada por Luís Carlos. Comparada à escrita de

Hugo, existem mais grafias que não expressam os significados das palavras registradas.

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Contudo, leu alguns versos. As palavras que podiam ser lidas possibilitaram a interpretação

das grafias inexpressivas. Ele tinha sete anos e sete meses de idade. Vejamos:

A criança representou as quantidades por meio de numerais e por extenso. Trocou

letras (r/l; m/b; ch/j); usou representações para as palavras que não expressavam os seus

significados: representou as palavras “guarda, preta, aquarela, flanela, tablete e pão de” por

meio dos segmentos “xda, ditai, axile, faimela, tabaila e joide”, respectivamente. Omitiu

letras, na escrita de palavras, etc. Porém, conseguiu ler alguns versos do poema, apontando

adequadamente onde os registrou.

Luiz Carlos: A mochila de Mariela. A mochila de Mariela é uma mochila amarela (aponta

corretamente a escrita). O (aponta a letra U, pára e fica sem saber o que está

escrito). Um álbum de figurinha (lê até o registro de NELA), um álbum de

figurinha (aponta até o final da segunda linha). (Fica por algum tempo parado

tentando ler o registro XDA, usado para escrever a palavra guarda). D (Desiste e

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muda para a quarta linha usada para os registros). Dois cadernos, três canetas,

tinta verde e preta. E uma (pára diante do registro da palavra estojo). E um estojo

de (pára novamente).

P.: E um estojo de aquarela.

Luiz Carlos: E uma boneca de (pára e fica apontando os registros no final das linhas que

restam).

P.: A escrita está te ajudando a lembrar?

Luiz Carlos: Tá.

P.: Então termina a leitura.

Luiz Carlos: Dois chi (pára novamente).

P.: O que você quis escrever?

Luiz Carlos: (Fica parado apontando a escrita).

P.: Dois chicletes.

Luiz Carlos: E um pão com mortadela.

Assim, as trocas de letras que ocorreram no título e nos dois primeiros versos não

impossibilitaram que a criança os lesse. No terceiro verso, apontou a letra “u” e leu “um álbum

de figurinhas”; logo percebeu que o verso lido foi registrado no segmento seguinte e, por isso,

repetiu a leitura, apontando até o final da linha. Indicou, por algum tempo, as grafias que usou

para representar a palavra “guarda”. É importante observar que usou essas mesmas grafias, em

dois contextos, mas isso não o ajudou a lembrar e, por isso, deixou de apontar as grafias que se

seguiam e passou para a quinta linha. Leu “dois cadernos e três canetas; tinta verde e preta”,

conforme registrado. Apontou as grafias “ditai” para a palavra “preta”, assim como apontou “i

um joide comotepola” para o verso “e um pão com mortadela”. É importante destacar que, em

dois contextos, a criança usou o mesmo segmento de grafias para representar a palavra

“guarda”. Assim, durante o registro, a criança cuidou para não diferenciar a representação de

uma mesma palavra que se apresentava em contextos diferentes. É o caso também das

palavras “mochila e Mariela” representadas, por meio de “boxila e Maliela”, respectivamente.

No entanto, no momento em que foi incentivado a usar a escrita para lembrar os versos do

poema, a representação usada para a palavra “guarda” não ajudou na recordação.

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Dessa forma, as atividades analisadas confirmam que as crianças que dominavam a

escrita alfabética elaboravam representações para as palavras que não expressavam os seus

significados. Essas representações inexpressivas, no entanto, eram interpretadas no texto.

Se analisarmos essa situação, podemos dizer que as crianças que efetuam a leitura de

grafias inexpressivas realizam a leitura de modo semelhante aos adultos alfabetizados. Quando

lemos um texto e nos relacionamos com a escrita com essa finalidade, em situações em que

conhecemos o sentido do texto, não nos detemos ao registro de cada palavra; muitas vezes,

durante a leitura, usamos uma palavra com o mesmo significado daquela que foi escrita e,

também, não conseguimos observar muitas incorreções na escritas e estas passam

despercebidas. Pensamos que, com as crianças que interpretavam as grafias inexpressivas,

ocorria algo semelhante. As crianças conheciam o sentido do texto escrito, a maioria das

palavras era interpretada e, por isso, o uso de uma ou outra grafia inexpressiva não prejudicava

a interpretação.

Analisemos a atividade realizada por Nicole, porque a maneira como buscou

interpretar as grafias é muito interessante. Ela estava realmente preocupada em se relacionar

com a escrita para lembrar o poema. Ela tinha sete anos e quatro meses de idade.

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Como pode ser visto, a criança representou a palavra “mochila”, nos quatro contextos,

com as grafias “buxela”. Algumas palavras que compõem os versos não podem ser lidas

(guarda - laplna; dois cadernos - docaquido; estojo - epojo), pois não expressam os

significados das palavras anotadas. Há, ainda, na escrita, trocas, omissões e acréscimos de

letras. Vejamos como a aluna se relacionou com a escrita para lembrar o texto. As palavras e

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sílabas escritas nos parênteses servirão para mostrar como a criança apontava a escrita durante

a leitura.

Nicole: A Mochila amarela.

A mochila de Mariela

É uma mochila amarela

O que ela guarda nela?

A (A) bum (GU) de (DE) figurinha (VIGURIA)

Que (QUA) da (DA) um (U) colar (COLA) de (DE) conchinha (COXIA)

Um (U) chaveiro (XCAVERO) e (E) uma (UMA) fivela (VIVELA)

Do (DO) ca (CA) qui (QUI) do (DO) e (E) três (TRE) caneta (CANETE)

Tinta (TITA) verde (VEDE) e (E) preta (PRETA)

E (E) do (DO) jo (JO) de (DE) aquorela

Aidate maze Mariela

Nessa buxela amarela

Tem boneca de fanela

Um diário

E um bilhete de Isabela

Um chocolate é xalente

Doze xe

E upo o de motodela, mortadela.

A aluna leu o título e os três primeiros versos. Do quarto ao nono verso apontou ora a

palavra a ser lida, ora as sílabas que compunham as palavras. Dessa forma, a troca e as

omissões de letras, nesses contextos, não impossibilitaram a interpretação dos versos. No

entanto, ao apontar as grafias que correspondiam a “dois cadernos”, deteve-se ao escrito e

decifrou as grafias “do ca qui do”. O mesmo ocorreu para as representações das seguintes

palavras e termos: estojo (edojo), ainda tem mais Mariela (ainda temaze Mariela), mochila

(buxela), tablete (xalente), dois (doze), e um pão com mortadela (e upo o de motodela).

Assim, a atividade realizada pela menina mostra que ela buscou se deter aos registros

para lembrar o poema. Por isso, decodificou algumas grafias inexpressivas, ou seja, a aluna

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decodificou os símbolos visuais em símbolos sonoros, lendo segmentos de sílabas sem

significado. Acreditamos que o fato de insistirmos para que se relacionasse com a escrita para

lembrar o texto proporcionou tal conduta. Isso ocorreu também na atividade de registro do

reconto.

3.3 Interpretação dos artigos e da preposição “de”

Durante a realização da atividade, observamos crianças que grafavam os artigos

definidos (o e a) e a preposição “de” convencionalmente. Essas grafias começaram a exercer

uma certa influência nos enunciados produzidos pelas crianças ao serem incentivadas a ler as

grafias registradas.

Mostraremos a escrita elaborada por Marianne e como se relacionou com ela para ler o

poema. A menina tinha sete anos e oito meses de idade.

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Como pode ser verificado, a menina escreveu o título do poema e o primeiro verso com

as mesmas grafias. A palavra “Mariela” foi representada por “Marila e Marla”. A criança

usou, ainda, conforme observamos, durante o registro, as letras “mu” para representar o

numeral “um” e a palavra “uma”. Escreveu a preposição “de” corretamente no título, no

primeiro verso e nas quarta e oitava linhas de grafias. Escreveremos a sua escrita e

mostraremos como a apontou.

A bolsa de Mariela

1a A MULI DE MARILA

A bolsa de Mariela é um pu a

2a A MULI DE MARILA É MU PU A

o que você guarda nela?

3a MARLU U MORI É NIAMO NARIA

De tinta preta e

4a DE LIAU MONI NARIA MU EADE AEAE

amarela por que mar

4a MU FAFIO MU LIAM AUMU MU EIALI

Você guarda nela

6a LIAE VIAO LIAE TAIEA IMU MU IMONIA

Mar, a Marie a tem chocolate

7a A MARA A VIME TEA MARLA ÉMF A

Ma, chocolate Mariela é um de um

8a MU VIA MARIA É MUNI DE EIMLA MU

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Bilhete de Mariela um

9a MIVIO VIA MU VIAMARI E MARILA MU

O que mais você guarda nela

10a MUNARA ÉA EALIA VIEF VI TAERI VI

Um livro.

11a UM AENIA

O texto produzido pela aluna, após ser incentivada a ler o texto registrado, foi o

seguinte:

A bolsa de Mariela

A bolsa de Mariela é um pu, o

O que você guarda nela?

De tinta preta e amarela.

O que mais você guarda nela?

Por que mar, você guarda nela

Mar, a, marie a tem chocolate

Ma, chocolate, Mariela é um de um

Bilhete de Mariela um

O que mais você guarda nela

Um livro.

A menina apontou as grafias correspondentes ao título do poema e enunciou: “a bolsa

de Mariela”. Apontou a segunda linha, e repetiu o enunciado anterior, pois estavam

registradas as mesmas grafias do título. Leu a letra “é” e, em seguida, o segmento “mu”, usado

para representar a palavra “uma”. Depois, decifrou as grafias “pu a”. Apontou, então, a

terceira linha, e enunciou o verso “o que você guarda nela?”. Na quarta linha, leu a preposição

“de”, mas esta não ajudou a lembrar o verso e, por isso, enunciou “de tinta verde e amarela”.

Apontou até a quarta grafia, na quinta linha. Continuou enunciando “por que mar você guarda

nela?”. Deixou de apontar dois segmentos de grafias no final da sexta linha. Apontou a sétima

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linha, enunciando “mar, a, Mariela a”. Parou por algum tempo, e disse “tem chocolate”.

Apontou a oitava linha, ficou parada por algum tempo e disse “ma, chocolate, Mariela é um de

um bilhete (nona linha, primeiro segmento de letras) de Mariela um o que mais você guarda

nela? Um livro.

Desse modo, a atividade realizada por Marianne evidenciou que as palavras que

possuíam duas e uma letra eram lidas podendo ou não auxiliar a recordação do poema. A

grafia “mu” usada para representar a quantidade e o artigo dificultou a rememoração de

algumas partes do texto e, ao mesmo tempo, possibilitou a enunciação de versos sem sentido.

Com relação à primeira situação, podemos observar, no oitavo segmento, que enunciou “ma

chocolate Mariela é um de um” em conseqüência dos registros. Com relação à segunda, leu

“um livro”. Não foi esse o conteúdo registrado, mas o registro da quantidade por extenso

possibilitou a evocação do conteúdo. Além disso, a representação de palavras, em mais de um

contexto, com o mesmo segmento de grafias, auxiliou a lembrança do primeiro verso. Quando

perguntamos se a escrita havia ajudado a recordar, a aluna disse “mais ou menos”, porque não

havia entendido “direito a frase que escreveu”.

Podemos concluir este item afirmando algumas das análises elaboradas, nos itens um e

dois: as crianças que não dominavam a escrita alfabética usaram numerais para representar as

quantidades e os símbolos numéricos auxiliaram a lembrança dos versos. A essa conclusão

pode ser acrescentada que a representação de quantidades por extenso também auxiliou a

lembrança. Notamos, ainda, que a indiferenciação na escrita de uma mesma palavra, registrada

em mais de um contexto, nem sempre auxiliava a recordação do verso e que a presença de

palavras, no poema, que haviam sido estudadas pelas crianças, na sala de aula, não garantiu

que estas fossem escritas convencionalmente.

Verificamos que as crianças que tinham o domínio da escrita alfabética elaboravam

representações inexpressivas para as palavras cuja grafia não conheciam. Essas grafias eram

lidas no texto. Observamos ainda que esse mesmo tipo de representação era decodificado, sem

levar em conta o significado das palavras anotadas.

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4 O registro do texto sobre a escola

No mês de outubro, organizamos a quarta atividade que foi realizada pelos sujeitos

envolvidos no estudo. Participaram do trabalho trinta alunos. As crianças que não

participaram, exceto uma, já dominavam a escrita alfabética e se relacionavam com a escrita

para recordar o texto.

Propusemos às crianças a produção oral e registro de um texto que foi intitulado A

escola. Organizamos os procedimentos para orientação da atividade, a partir de dois

momentos: no primeiro momento, todas as crianças produziram oralmente o texto sobre a

escola e a pesquisadora o registrou; no segundo momento, após conclusão da produção oral e

registro, as crianças escreveram o texto que haviam produzido oralmente. Dessa forma, o

segundo momento ocorreu alguns dias após a produção oral e registro do texto pela

pesquisadora e foi conduzido da seguinte maneira:

a) conversamos com as crianças sobre o texto que produziram e perguntamos se

lembravam o seu conteúdo;

b) como não podiam lembrar o conteúdo, lemos o texto produzido e explicamos que

podíamos lembrar, porque efetuamos o registro, escreveram o texto;

c) pedimos, então, às crianças que escrevessem o texto com atenção para que,

também, pudessem ler ao final do registro.

Assim, a organização da atividade em dois momentos teve por finalidade criar uma

situação demonstrativa do objetivo da escrita: ser lida e, portanto, ajudar a recordação do texto

que não poderia ser lembrado sem o auxílio da escrita. Enfatizaremos, neste item, que as

crianças que se relacionavam com a escrita para recordar o texto elaboravam, no plano verbal,

a análise das unidades da linguagem oral e escreviam letras correspondentes às unidades

analisadas. Dessas crianças algumas tinham o domínio da escrita alfabética e outras não

possuíam esse domínio. Focalizaremos, ainda, que as crianças que não se relacionavam com a

escrita para lembrar o texto elaboravam a análise das unidades da linguagem oral no plano

verbal. Essa análise teve um papel importante, pois possibilitou a superação da atividade

gráfica baseada na reprodução das características externas da escrita.

O resultado da atividade indicou que dezesseis crianças se relacionavam com a escrita

para lembrar o texto e quatorze não se relacionavam com a escrita para recordar o significados

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anotados. Constatamos também que dezesseis crianças realizavam o registro silenciosamente e

quatorze falavam durante o registro.

4.1 As crianças se relacionavam com a escrita para recordar o texto

Conforme mencionamos, dezesseis crianças se relacionavam com os registros para

recordar o texto. Verificamos que nove delas falavam consigo mesmas, durante o registro, e

sete escreviam silenciosamente. A linguagem identificada, no primeiro grupo, evidenciou que

as crianças elaboravam a análise das unidades constituintes da linguagem oral no plano verbal,

e que esta atuava como recurso para auxiliar a lembrança das letras correspondentes às

unidades sonoras pronunciadas. Nos dois grupos, identificamos crianças que dominavam a

escrita alfabética e crianças que não possuíam tal domínio.

a) As crianças falavam consigo mesmas durante o registro do texto

Examinaremos, inicialmente, a atividade desenvolvida por Hugo. Vejamos como

escreveu o texto. Ele tinha sete anos e cinco meses de idade.

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A escola

Eu gosto muito da escola, porque tem lição

e as minhas professoras são muito boazinhas.

Às vezes, os inspetores colocam a gente de castigo,

mas é porque a gente faz arte. A minha

sala é limpinha e muito bonita. Eu quero a-

prender a ler e a escrever. Eu sou alfa-

betizado!

Como mostramos no item anterior, Hugo dominava a escrita alfabética. Cometeu, no

entanto, erros por falta de domínio dos padrões ortográficos que regem a escrita alfabética.

Isso, porém, não impossibilitou a leitura do texto sobre a escola. Vejamos como realizou a

atividade de registro.

P.: O título do texto que você produziu é a escola.

Hugo: (Registra A ESCOLA).

P.: Eu gosto muito da escola,

Hugo: (Registra EU GOSTO MUITO DA ESCOLA).

P.: Porque tem lição.

Hugo: (Registra e fala PORQUE TEM LISÃO).

P.: E as minhas professoras.

Hugo: (Registra E AS, fala baixinho a frase, palavra por palavra), minhas (registra MILHAS),

pro (registra PROFESSORAS).

P.: São muito boazinhas.

Hugo: (Registra SÃO MUITO BOASILHA)...

As atividades desenvolvidas por Hugo, no decorrer da pesquisa, mostraram que, no

início, a linguagem ocorria com mais freqüência, durante o registro dos textos. Nesta etapa do

trabalho, é possível observar que ele pronunciava algumas palavras e sílabas que parecia não

saber exatamente como escrever. Assim, houve uma diminuição da linguagem, à medida que a

criança adquiriu um maior domínio da escrita. As observações anteriores evidenciaram que a

linguagem atuava como recurso que auxiliava a lembrança da letra que deveria ser escrita para

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representar as unidades da linguagem oral, analisadas pela criança no plano verbal. Nas

primeiras atividades, repetia para ele mesma uma unidade e o fato de ouvir a sua pronúncia

ajudava-o na recordação. Desse modo, a lembrança das letras que deveriam ser registradas não

era direta, mas mediada pela linguagem que ocorria durante o registro. Hugo já começou a

escrever sem precisar usar tal artifício para lembrar as letras. A recordação ocorre de forma

mais direta, porém, para isso, foi necessário um longo percurso de aprendizagem, ou seja, ele

precisou aprender e decorar as letras convencionalmente usadas para representar as unidades

menores da linguagem oral.

A atividade realizada por Bruno Marques evidencia que as crianças que não

dominavam a escrita alfabética falavam consigo mesmas durante o registro e algumas grafias

auxiliavam a recordação do texto que motivou a escrita. Observemos a escrita elaborada pelo

aluno.

A escola

A escola é muito boa para brincar, para merendar e para fazer a lição.

A escola é muito bonita. Ela é boa para fazer Educação Física

e para jogar bola. A escola é muito boa.

Na escrita do aluno, podemos ler a palavra bola, registrada convencionalmente. As demais

grafias não podem ser lidas. No entanto, como veremos, a criança se relacionou com as

grafias, aparentemente inexpressivas, para lembrar o texto. Mostraremos como Bruno efetuou

o registro acima.

P.: A escola é muito boa.

Bruno M.: (Registra e fala a frase A E PO AS I RPBN).

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P.: Pode falar mais em voz alta. Para merendar.

Bruno M.: (Registra BATO REFC).

P.: E para fazer a lição.

Bruno M.: (Registra IPOAO).

P.: Terminou?

Bruno M.: (Confirma acenando com a cabeça).

P.: A escola é muito bonita.

Bruno M.: (Registra A E E M, volta e coloca o ponto após a segunda letra E., coloca o ponto

após a letra M, registra E TGOTONG, apaga a letra G e registra as letras HO).

P.: Ela é muito boa para fazer Educação Física.

Bruno M.: (Registra E TOXO A). E (registra a letra E) du (registra a letra D), ca (registra a

letra C e as letras FINCO).

P.: E para jogar bola.

Bruno M.: (Registra EPO NO EDHNO. BOLA).

P.: A escola é muito boa.

Bruno M.: (Registra A E E, M, E O S FINO).

Como pode ser visto, em alguns momentos, foi possível evidenciar, por meio da

linguagem, as relações que a criança estabelecia entre as unidades sonoras e as letras. Na

situação identificada, grafou uma letra para as sílabas pronunciadas, utilizando letras que

compõem as sílabas pronunciadas. No entanto, na maioria do tempo, somente repetia para si

mesmo a frase que deveria ser escrita e, em outras situações, escrevia silenciosamente.

A criança, mesmo tendo produzido, com exceção da palavra bola, grafias inexpressivas,

mostrou, ao ser incentivada a ler o texto, que as grafias “A E E. M.” se referiam, em duas

situações, à palavra “escola”. Usou essas grafias para representar essa palavra nas frases “a

escola é muito bonita” e “a escola é muito boa”. Isso pode ser explicado pelo fato de que,

todos os dias, as crianças escreviam o nome da escola na sala de aula. As primeiras palavras

desse nome eram abreviadas Escola Municipal de Educação Básica (E.M.E.B.); assim, ele

utilizou, mesmo de maneira inadequada, essas letras para representar a palavra “escola”. Isso

provocou um problema, no início da leitura, pois representou, no primeiro enunciado, “a

escola é muito boa”, a palavra escola com outras grafias. Vejamos:

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A e (pára de ler, repete as letras verbalizadas e não continua a leitura)

1o A E PO AS I R PBN E BA TO REFCI POAO

Assim, começou interpretando o artigo “a” e a letra “e” da palavra “escola”, mas como

escreveu essa última palavra em dois contextos, usando outras grafias, não continuou a

atividade. Como não prosseguia, perguntamos o que estava escrito na linha seguinte. A criança

apontou, por alguns minutos, as primeiras letras e disse que escreveu:

A escola é muito boa para brincar

2o A E E. M. E TGOTONOHO E TOXO A EDCFINCO

(Escreve a letra E sobre a letra I)

E é boa para merendar. E a escola é boa.

3o E PONO EDHNO . BOLA A E E. M. E. OS FINO

Dessa forma, apontou os segmentos A E E. M. E duas vezes, para a palavra escola.

Além disso, como mencionamos, algumas crianças sabiam que o fonema [i], em posição

átona, é representado com a letra “e”, por isso, ele escreveu a letra “e” sobre a letra “i”,

registrada no início do terceiro segmento de grafias. Ao apontar a palavra “bola”

correspondendo à palavra “merendar”, perguntamos se estava escrito a palavra lida. Ele

respondeu que estava escrita a palavra “bola”, apontou, novamente, o segmento de letras A E

E. M. E. para a palavra “escola”. Assim, utilizou, com base nas experiências de sala de aula,

um segmento de grafias para representar a palavra escola e essas grafias possibilitaram a

lembrança de dois enunciados: “a escola é muito boa para brincar”, que não havia sido escrito

onde apontou, e o enunciado “a escola é boa”, que motivou o registro das grafias apontadas.

As duas atividades analisadas demonstram que as crianças estavam em níveis de

elaboração da escrita completamente diferentes. Hugo possuía o domínio da escrita alfabética

e Bruno Marques não possuía esse domínio. No entanto, ambos, ao serem incentivados a ler o

texto, se relacionavam com a escrita para recordar o texto e, também, falavam durante o

registro. Como vimos, a linguagem não era usada com muita freqüência pelas duas crianças.

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No caso de Hugo, porque já havia adquirido um maior domínio quanto às letras que devem ser

usadas para representar as unidades sonoras. Bruno Marques, no entanto, não havia adquirido

esse domínio, mas o fato de efetuar a análise, em algumas situações, das unidades silábicas

ajudou-o a registrar letras que compunham essas sílabas.

Analisaremos mais duas atividades. A primeira é de uma criança que escrevia usando a

escrita alfabética. A segunda escreveu utilizando as letras do alfabeto, mas não representava os

fonemas por meio delas. Independentemente do tipo de escrita usada, a linguagem estava

presente durante o registro e ambas as crianças se relacionavam com a escrita para lembrar o

texto. Analisaremos, primeiramente, a escrita de Natália. Ela estava com sete anos e dez meses

de idade.

A aluna usou a escrita alfabética para registrar o texto. No entanto, cometeu erros

decorrentes da falta de domínio das normas ortográficas. Usou grafias inexpressivas:

representou as palavras gulosa com o segmento “goloze”; inspetor com o segmento “ipelo”; a

gente com o segmento “a geta”; sempre pelo segmento “sepa”. Vejamos como elaborou a

escrita.

P.: O título do texto é a escola.

Natália: A (registra a letra A), es (registra a sílaba ES), co (registra as sílabas COLA).

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210

P.: A escola é muito legal.

Natália: A (registra a letra A), escola (registra a palavra ESCOLA). Errei (apaga e escreve,

novamente a sílaba LA).

P.: É muito legal.

Natália: E (registra a letra É), mui é o M e o U?

P.: É o M e o U.

Natália: (Registra a sílaba MU), to é o T e O, to (registra a sílaba TO), legal, le (registra a

sílaba LE), ga, ga (registra a sílaba GA) [...] gente, ge , ja, je, o G e O?

P.: O G e o E.

Natália: Deixa a gente (registra as sílabas GETA).

P.: Brincar.

Natália: Bra, bre, bri, bra, bre, bri. E o B e I? (registra as sílabas BICA).

P.: A professora dá lição para a gente estudar.

Natália: A (registra a letra A), pro, pa, pro (registra a sílaba PE). O F e o E?

P.: É.

Natália: (Registra a sílaba FE). Professo. É o SO?

P.: (Confirma).

Natália: (Registra a sílaba SO), professora (registra a sílaba RA).

P.: Dá lição para a gente estudar.

Natália: Dá (Registra a sílaba DA), li é o L e o I?

P. Confirma.

Natália: (Registra as sílabas LISA).

Como pode ser visto, a linguagem estava presente durante toda a atividade de registro.

Dessa forma, os movimentos de escrita eram precedidos pela análise de uma unidade da

linguagem oral correspondente às letras grafadas. Podemos observar que não repetiu a

seqüência silábica para auxiliá-la a recordar as letras que deveriam ser usadas para representar

as unidades sonoras com a mesma freqüência que nas atividades analisadas anteriormente. No

entanto, a linguagem continuava sendo um recurso que auxiliava a lembrança das letras que

deveria usar e, também, objetivava estabelecer comunicação com a pesquisadora para saber se

as letras eram adequadas às sílabas. Houve uma diminuição da linguagem, porque a criança

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211

pareceu estar mais segura quanto às letras que deveria usar. Por isso, recitava menos as

famílias silábicas e, em algumas situações, apenas a pronúncia das sílabas era suficiente para

que lembrasse as letras que deveria usar para representá-las. Ela usou a escrita para recordar o

texto, mas demorou para definir os significados de algumas grafias em função do modo como

foram escritas.

A escola

1o A ESCOLA

A escola é muito legal

2o A ESCOLA É MUITO LEGAU

As merendeiras faz comida

3o AS MEREDERAS FAZE COMIDAGOLOZE

Gos O inspetor deixa a gente brincar

4o O EPELO DEXA A GETA BICA

A professora da lição para

5o A PEFESORA DA LISA PARA

A gente estudar e brin goto de des lis, li, lisa, lição

6o A GETA ESTUDA EU GOTO DAS LISA

E não godo, go, to, goto, goto de brin, brin, brincar, briga

7o EU NÃO GOTO DE BIGA

Ela. Tá certo? Brincar de muito

8o TEM MUTA

Brigar, brincar, tá certo? na escola há muita briga, sa, se, o si? Sipa.

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9o BIGA NA ESCOLA A MIGINHA SEPA

Fica, ficarbrigando comigo

10o FICAVA BIGADO COMIGO

A aluna iniciou a leitura com base na escrita. Leu o título do texto “a escola” e a

primeira frase “a escola é muito legal”. Na segunda frase, “as merendeiras fazem comida

gostosa”, leu “as merendeiras faz comida”. Dessa forma, deixou de ler a palavra “gostosa”,

representada pelo segmento “goloze”, escrito sem ser separado da palavra “comida”. Depois,

começou a pronunciar a palavra que deixou de ler, para as grafias que correspondiam à palavra

“inspetor”. Percebeu o seu equívoco e leu a frase “o inspetor deixa a gente brincar”. Em

seguida, leu, de acordo com a escrita, “a professora dá lição para a gente estudar”. Começou a

enunciar uma frase que completava a anterior e, mais uma vez, percebeu que as grafias

correspondiam a uma outra palavra. Leu, então, “goto”, “des” para o segmento “das” e “lição”

para a grafia “lisa”, produzindo a frase “e brin, goto de, des lis, li, lisa, lição”. Com dificuldade

leu a frase seguinte “e não godo, go, to, goto, goto de brin, brin,, brincar, briga”, pois teve que

silabar. Ao ler a palavra “ela” para o segmento “em”, ficou em dúvida e, por isso, perguntou

se estava correta. Leu para os segmentos restantes “brincar de muito brigar, brincar na escola

há muita briga, sa, se, o si? Sipa. Fica, ficar brigando comigo”. A dificuldade encontrada na

leitura das palavras ocorreu em função da forma como foram escritas e possibilitou, também, a

produção de enunciados sem sentido no final do texto. É importante ressaltar que a aluna

apontou todas as grafias para realizar a atividade. Esse é um avanço importante, porque, nas

atividades anteriores, os enunciados do texto eram elaborados a partir da leitura de uma

palavra. Assim, mesmo tendo elaborado enunciados sem sentido para algumas partes do texto,

ela tentou efetivamente se relacionar com a escrita para lembrar o texto, diferentemente do que

fez quando tentou interpretar os textos sobre a sua brincadeira preferida e sobre o reconto.

Vejamos a atividade desenvolvida por Marianne. Ela tinha sete anos e nove meses de

idade e ainda não dominava a escrita alfabética, mas se relacionou com grafias, no texto, que

possibilitaram a lembrança dos enunciados.

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A escola

A escola ensina a ler. Também tem refeições muito gostosas.

Tem Educação Física. As professoras são legais,

ensinam a ler e a escrever. A escola tem muitos

livros que a gente pode ler. Aprendemos tudo com as professoras.

Fazemos, às vezes, festinha de aniversário na classe.

Marianne utilizou as grafias “enoea” para representar a palavra escola, nos três

contextos em que foi escrita, e registrou a palavra livro ortograficamente. A representação

usada para a palavra escola foi a única indiferenciação no texto. Vejamos como ocorreu a

atividade de registro.

P.: O título do texto que você produziu é a escola.

Marianne: Es (registra a letra E), co la (registra as letras NOEA).

P.: A escola ensina a ler.

Marianne: A (registra a letra A), E (registra a letra E), cola (registra as letras NOEA), en

(registra as letras QE), sina (registra a sílaba NE), a (registra a letra A), ler (registra

as letras ENE).

P.: Também tem refeições muito gostosas.

Marianne: (Registra o segmento de grafias NECA COMA E A NA e repete a frase).

P.: As professoras são legais.

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Marianne: A (registra as letras AS), pro (registra o segmento de letras SONENO ES A

SAENE e repete a frase).

P.: Ensinam a ler e a escrever.

Marianne: Ensinam (registra o segmento de letras NEMA E AENE MAERE).

P.: A escola tem muitos livros que a gente pode ler.

Marianne: A (registra a letra A), es (registra a sílaba EN), co (registra a letra O), la (registra o

segmento de letras EA QENE CETO), li (registra a sílaba LI), vro (registra a sílaba

VRO), que (registra as letras QE), a (registra o segmento de letras AEM MAERE).

P.: Aprendemos tudo com as professoras.

Marianne: A (registra a letra A), pren (registra o segmento de letras E RIO), tudo com

(registra o segmento de letras DOPES DEME).

P.: Fazemos, às vezes, festinha de aniversário na sala.

Marianne: (Registra o segmento de letras VEVE, apaga a letra E e escreve S, escreve as letras

AS), vezes (registra o segmento de letras VERPE).

P.: Escreveu?

Marianne: (Acrescenta o segmento de letras PEPA).

Assim como na atividade realizada pela Natália, a linguagem estava presente durante o

registro. Em alguns momentos, apenas repetiu as palavras que deveriam ser registradas. Em

outras, observamos que a unidade analisada era a sílaba que era representada por uma ou duas

letras. Usou, nessas situações, as vogais pertencentes à sílaba para representá-la. Em alguns

momentos, apenas repetia o enunciado que foi escrito ao final do registro. Vejamos como se

relacionou com os registros.

A escola

1o A ENOEA

A escola que ensina ler e a

2o A ENOEA QENE A ENE NECA COMA

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escrever A vezes fazemos

3o EANA AS SONENO ES ASAENE NEMA

festinha de a niversário na

4o E AENE MAERE A ENOEA QENE CETO

Marianne rememorou, para os segmentos de grafias escritos nas segunda, terceira e

quarta linhas, os enunciados do texto, mas apontou, na segunda linha, as grafias

correspondentes à palavra escola. Contudo, isso não ocorreu ao indicar o mesmo segmento,

usado para representar a palavra escola, na quarta linha. Ao apontar a palavra livro, escrita

convencionalmente, no quinto segmento, disse “escola”. Percebeu que essa palavra não foi

escrita e, por isso, reorganizou os enunciados para ler a palavra e disse “livro para a gente ler”.

Vejamos:

escola

Livro para a gente poder ler

5o LIVRO QGAEM MAERE A ERIO DOPES DEME

Às vezes fazemos festinha de aniversário

6o VEVS AS VERPE PEPA

Ao final, disse que a escrita havia ajudado a lembrar o texto “mais ou menos, porque

não entendi muito bem a minha letra”. Disse ainda que as palavras “escola, livro e fazemos”

ajudaram na lembrança e, portanto, na leitura. De fato, ela apontou corretamente, em dois

contextos, as grafias correspondentes à palavra escola e reorganizou os enunciados para ler a

palavra “livro”. Apenas as letras “as”, na última linha de registro, não corresponderam,

durante a escrita, à palavra “fazemos”.

As atividades analisadas evidenciaram que, independentemente da escrita usada, a

linguagem tinha a função de auxiliar as crianças a lembrar as letras que deveriam ser grafadas

para as unidades pronunciadas. Evidenciamos ainda que, muito antes, de as crianças terem o

domínio da escrita alfabética, relacionavam-se com os registros produzidos para os textos para

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recordá-lo. Nas situações examinadas, verificamos que as palavras escritas ortograficamente e

os registros usados para representar uma mesma palavra e, diferentes contextos auxiliavam a

lembrança dos enunciados do texto que motivou o registro ou de outro com o mesmo sentido.

b) As crianças escreviam silenciosamente

As duas atividades que serão analisadas mostrarão que as crianças que se relacionavam

com a escrita para recordar o texto que motivou os registros escreviam silenciosamente

independentemente do tipo de escrita usada. Mostraremos, primeiramente, a escrita elaborada

por Jonathan. Ele tinha o domínio da escrita alfabética e registrou o texto silenciosamente.

Vejamos o texto:

Como pode ser visto, a criança apropriou-se da escrita alfabética, de normas que regem

essa escrita e escreveu o texto silenciosamente. Desse modo, como mencionamos, algumas

crianças não elaboravam de modo manifesto a análise das unidades constituintes da linguagem

oral. Jonathan é uma dessas crianças: registrou silenciosamente os textos sem verbalizar as

análises elaboradas durante todas as atividades de registro. Ele leu o texto sobre a escola.

Analisaremos a atividade de José Carlos. Ele tinha nove anos de idade e não dominava

plenamente a escrita alfabética. No entanto, algumas palavras podem ser interpretadas. Em

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outras atividades realizadas pela criança, a linguagem estava presente durante o registro, mas

ela escreveu o texto sobre a escola silenciosamente. Examinemos a sua escrita.

A escola

A escola é muito boa

e todas as professoras também.

Os alunos são bons

e querem aprender.

Eles são interessados na aula.

A professora ensina a fazer a lição.

A gente vai aprendendo.

Eu estou aprendendo a ler.

A criança usou o mesmo segmento de grafias “a elecola” para representar as palavras a

escola que foram escritas em dois contextos (no título e no primeiro enunciado). Podemos ler

as palavras “boa” e “alunos”. Vejamos como elaborou a escrita.

P.: O título do texto é a escola.

José Carlos: (Registra a A ELECOLA).

P.: [...] A escola é muito boa.

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José Carlos: (Registra A ELECOLA É BOA).

P.: E os professores também.

José Carlos: (Registra o segmento de letras IROIMO).

P.: Os alunos são bons.

José Carlos: (Registra a palavra ALUNOS).

P.: Os alunos são bons.

José Carlos: (Permanece sem escrever).

P.: Terminou?

José Carlos: (Confirma acenando com a cabeça).

P.: E querem aprender.

José Carlos: (Registra o segmento de letras É AIDE).

P.: Eles são interessados na aula.

José Carlos: (Registra os segmentos ELE TELESA MALA).

P.: A professora ensina fazer a lição.

José Carlos: (Registra A TICÃO).

P.: E a gente vai aprendendo.

José Carlos: (Registra A TECÃO DO).

P.: Eu estou aprendendo a ler.

José Carlos: (Registra EADOALERO).

Desse modo, o aluno realizou a atividade silenciosamente. Limitou-se a escrever cada

enunciado que foi ditado. Observamos que, para as frases “os alunos são bons” e “a professora

ensina a lição”, escreveu apenas as palavras “alunos” e “a ticão”, respectivamente.

Acreditamos que pensava que os registros dessas palavras auxiliaria a lembrança. Ao terminar

o registro, pedimos que lesse o texto.

A escola

1o AELECOLA

A escola é boa

2o A ELECOLA É BOA

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Os professores são bons.

3o IROINO

E os alunos também.

4o ALUNOS

5o É AIDE

Eles estão aprendendo

6o ELETELESAMALA

a lição

7o A TICÃO

A. Eu estou aprendendo a ler.

8o ATECÃO A . OO

9o E ADOA LERO

José Carlos organizou os enunciados produzidos com base nos registros possíveis de

serem interpretados. Ele leu o título do texto “a escola” e, em seguida, leu o enunciado “a

escola é boa”. Para o terceiro segmento de grafias, enunciou “os professores são bons”, com

base na memória. No quarto segmento, apontou a palavra “alunos” e enunciou a frase “e os

alunos também”. Ele deixou de apontar o quinto segmento e, para o sexto, apontou a palavra

“eles”, cujo registro é “ele” e enunciou “eles estão aprendendo a lição”. As palavras a lição

corresponderam aos segmentos “a ticão”. O enunciado foi evocado no momento, mas a

criança não deixou de apontar os segmentos “a ticão”, para as palavras a lição. Na última

frase, leu a letra “a”, mas elaborou o restante do enunciado com base na memória “A. Eu estou

aprendendo a ler”.

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Como observamos, José Carlos registrou apenas a palavra alunos para a frase “os

alunos são bons” e para a frase “a professora ensina a lição” também registrou apenas as

grafias “a ticão”. Com base no registro da palavra alunos, enunciou a frase que motivou o

registro. No sexto segmento, enunciou uma frase, evocada no momento, com base no registro

da palavra “ele” e apontou as grafias “a ticão” para os segmentos de letras usados para

representar as palavras a lição. Enunciou “eles estão aprendendo a lição”. A criança não disse

a frase que motivou o registro, mas conseguiu, a partir da palavra “ele” e do segmento de

letras “a ticão”, enunciar uma frase com sentido. Durante o registro do texto, questionamos o

fato de escrever apenas uma palavra para os enunciados, mas ele pareceu estar seguro de que

esse único registro auxiliaria a lembrança do texto. Na realidade, o aluno criou um artifício

interessante para lembrar o texto. Como não sabia escrever todas as palavras, escreveu apenas

uma palavra conhecida, pois acreditava que essa escrita o ajudaria a recordar os enunciados

compostos com as palavras.

4.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para recordar o texto

Das quatorze crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto,

cinco falaram consigo mesmas durante o registro e oito escreveram silenciosamente.

Analisaremos as atividades realizadas por três crianças incluídas nesta categoria. Mostraremos

os registros elaborados pelas crianças e, em seguida, como ele ocorreu. Vejamos,

primeiramente, a escrita de Rafaela. Ela tinha sete anos e nove meses de idade.

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A escola

A escola é muito bonita.

Eu acho os livros legais.

Eu acho o pátio legal, porque tem vários brinquedos:

tem bambolê, jogo de memória e bola.

Eu não como a sopa, porque é muito quente.

Tem que pôr mais segurança na escola,

porque, no pátio, uma criança machuca a outra

e duas pessoas não dão conta de olhar.

A criança não usou as mesmas grafias para representar a palavra escola, nos quatro

contextos em que foi escrita. Não podemos relacionar as grafias com o conteúdo que motivou

a escrita, mas Rafaela diferenciou os segmentos de letras usados para escrever o texto.

Podemos observar, ainda, que colocou espaços em branco entre os segmentos de grafias

usados para escrever o texto. Outro aspecto que chama a atenção é o fato de escrever letras

isoladamente: grafou a letra “é” em dois contextos; a letra “e” foi registrada em três

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contextos, sendo duas vezes escrita no início das linhas; a letra “a” foi escrita separada das

grafias correspondentes à palavra “escola”; a letra “o” foi registrada em um contexto separada

das outras grafias. Desse modo, as letras escritas isoladamente foram as vogais. Na escrita são

essas as letras que aparecem isoladas nos textos.

Já evidenciamos que as crianças que não se relacionavam com a escrita para recordar o

texto organizavam a escrita a partir dos princípios qualitativos e quantitativos. Entretanto, as

crianças que colocavam espaços em branco entre os segmentos de grafias registravam duas ou

uma letra isoladamente. O uso de uma letra por Rafaela, em algumas situações, foi propiciado

pelas relações que estabelecia entre essas letras e as unidades da linguagem oral. Ao escrever o

primeiro enunciado do texto, registrou o artigo “a” separado das grafias usadas para

representar a palavra escola, porque a criança sabia a letra que deveria ser usada para

representar o artigo. Assim, notamos que o registro das vogais, em algumas situações, foi

propiciado pela análise das unidades sonoras e, em outras, era resultado da reprodução das

características externas da escrita. É interessante observar ainda como a aluna acentuou a letra

“é” em dois contextos. Ela elaborou a escrita da seguinte maneira:

P.: O título do texto é a escola.

Rafaela: (Registra o segmento de letras ANTA).

P.: [...] A escola é muito boa.

Rafela: A escola (registra as letras A EOCA), é muito boa (registra as letras CDA É OLFC).

P.: Eu acho os livros legais.

Rafaela: (Registra os segmentos de letras E AFRILCA O ELCISL E CLLXZ).

P.: Eu acho o pátio legal, porque tem vários brinquedos.

Rafaela: (Registra os segmentos de letras E FOFA BERF SÉLRIE ACELSZ).

P.: Tem bambolê, jogo da memória e bola.

Rafaela: (Registra os segmentos de letras OTGFEX EXUOE BOBO).

P.: Eu não como sopa porque é muito quente.

Rafaela: (Registra o segmento de letras DEGX TOEOE).

P.: Tem que pôr mais segurança na escola.

Rafaela: (Registra o segmentos DTDILC ESR CIA OM).

P. Porque no pátio uma criança machuca a outra.

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Rafaela: (Repete a frase e registra o segmentos LIT BMA É).

P. E duas pessoas não dão conta de olhar.

Rafaela: (Registra os segmentos de letras RACETC LOES e repete a frase).

A linguagem estava presente durante a escrita do texto. Nem sempre era possível ouvir

e entender o que dizia, mas verificamos, por meio do que foi possível ser ouvido, que repetia

cada enunciado antes ou após o seu registro. A criança dizia para ela mesma o que deveria

escrever ou o que havia escrito. Dessa forma, não elaborava, no plano verbal, a análise das

unidades da linguagem oral, mas, como mencionamos, o registro de algumas vogais

corresponderam às sílabas que iniciavam a primeira palavra dos enunciados do texto.

A aluna diferenciou as grafias usadas para escrever o texto, mas isso não possibilitou

uma relação funcional com a escrita. Também a superação do princípio quantitativo,

proporcionada, em algumas situações, pelas relações que estabelecia entre as unidades da

linguagem oral e as letras, não possibilitou a emergência de escritas expressivas e, portanto, de

grafias que auxiliassem a recordação dos enunciados do texto. Dessa forma, rememorou o

texto sem o auxílio da escrita. Solicitamos, então, conforme combinado, que lesse o texto que

registrou:

“O título da história

A, esqueci, a sopa da escola é muito quente.

Tem gosto muito dos livros da escola.

Tem bambolê, jogo da memória, bola.

Que tem mais. Tem que ter mais segurança na escola.

E que uma criança machuca a outra”.

Rafaela apontou a escrita como se brincasse de ler, mas não se relacionou com as

grafias para recordar o texto. Observamos que se esforçou para lembrá-lo, mas não pôde ainda

usar as grafias como recurso mnemônico.

Analisemos agora o texto de Ricardo. Ele tinha nove anos e nove meses de idade e

produziu a escrita a seguir para o texto elaborado oralmente:

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A escola

A escola é um lugar que nós aprendemos.

A escola é um lugar que a gente brinca.

A escola é um lugar que a gente come.

Ela tem banheiro.

O professor xinga quando faz bagunça e quando briga.

Quando dá o horário vai embora e as mães vêm buscar.

Como pode ser constatado, Ricardo representou as palavras a escola com as mesmas

grafias “aionri”, na primeira e segunda linha. Ele não colocou separações entre as grafias

usadas para escrever o texto e a linguagem estava presente durante o registro. Vejamos:

Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra I), co (registra a letra O), a escola (registra

as letras NR).

P.: A escola é um lugar que nós aprendemos.

Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra I), co (registra a letra O) e.

P.: A escola é um lugar que a gente brinca.

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225

Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra E), a escola é (registra a letra O), um lu

(registra as letras RL).

P.: Que a gente brinca.

Ricardo: Que (registra a letra E), a (registra a letra A), gente (registra as letras PNFI), brinca.

P.: A escola é um lugar que a gente come.

Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra R), cola (registra a letra O), é (registra a letra

R, apaga e registra a letra E). Um, um (registra a letra L), lo (registra a letra O), gar

(registra a letra A), que (registra a letra P), nóis (registra a letra N), a (registra as

letras AC).

P.: Que a gente come.

Ricardo: (Apaga a letra C), ga (registra as letras LI), co (registra as letras OML).

P.: Ela tem banheiro.

Ricardo: Ela, e (registra as letras RLA), tem, T (registra a letra L), banhe, nhe (registra as

letras EV), a escola tem (registra a letra O).

P.: O inspetor xinga quando faz bagunça e quando briga.

Ricardo: O (registra as letras CLR). O inspetor xinga quando (registra o segmento de letras

ROEVIOLNL)...

Como pode ser visto, a criança representava as sílabas que eram pronunciadas com

uma ou duas letras. As vogais registradas pertenciam às sílabas analisadas verbalmente. Desse

modo, a escrita elaborada pela criança não foi organizada a partir da reprodução das

características externas da escrita, mas a partir das relações que estabelecia entre as unidades

da linguagem oral e as letras. Ricardo analisou as unidades da linguagem oral e as representou,

demonstrando que compreendia que a escrita é um simbolismo de segunda ordem; porém, em

algumas situações, também repetiu para ele mesmo o enunciado e escreveu letras

aleatoriamente. Ao solicitarmos que lesse, enunciou o texto de modo semelhante à Rafaela:

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226

“Ricardo

A escola é lugar que nos aprende.

A escola tem banheiro. O pro

O professor quando a gente bagunça o professor xinga, quando a gente briga também.

A mãe vem buscar quando dá o horário”.

A criança rememorou o texto sem o auxílio da escrita e os registros foram apontados

aleatoriamente. É importante acentuar que a compreensão de que as letras representam

unidades da linguagem oral não é acompanhada, no início, pela capacidade de usar a escrita

como recurso para lembrar o texto. Rafaela e Ricardo têm uma certa compreensão de que a

escrita representa a linguagem oral, mas apenas rememoram os textos sem o auxílio da escrita.

Por último, examinaremos a atividade realizada por Adriano. Ele escreveu silenciosamente e

elaborou a escrita abaixo para o texto que produziu oralmente. Ele tinha oito anos e quatro

meses de idade.

A escola

A escola é muito boa.

Ela faz as criança aprender muito.

Ainda as crianças têm uma hora para brincar.

Eu gosto da merenda

e os professores são muito bons.

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227

As grafias não podem ser interpretadas. No entanto, Adriano usou quase as mesmas

letras para representar as palavras a escola no título e no primeiro enunciado. Ele diferenciou a

escrita ao registrar cada enunciado, variou as letras numa mesma cadeia e usou um número

maior de letras para representar os enunciados do texto em relação ao número de letras usado

para representar o título, composto com apenas duas palavras. O texto foi registrado conforme

será descrito:

P.: [...] Escreva a escola.

Adriano: (Escreve AE com letra cursiva).

P.: Use letra de forma, tá?

Adriano: (Continua usando o mesmo tipo de letra e registra o segmento BOSA).

P.: Muito bem! Agora, eu gostaria que você usasse letra de forma [...] A escola é muito boa.

Adriano: (Registra AEBOA E U, conta quantas letras grafou e registra ÃO).

P.: Terminou?

Adriano: (Confirma).

P.: Ela faz as crianças aprenderem muito.

Adriano: (Registra as letras E A, volta, registra uma letra antes da letra A, apaga as duas

últimas letras, registra a letra S cursiva, as letras AGAIB, apaga e escreve DOUSO).

P.: Ainda as crianças têm uma hora para brincar.

Adriano: (Registra a letra A, volta e registra as letra I, continua e registra as letras

SAUOAIH).

P.: Eu gosto da merenda.

Adriano: (Registra as letras EQAÉBA).

P.: E os professores são muito bons.

Adriano: (Registra as letras IOVSOIAO).

Podemos observar que Adriano estava preocupado com a quantidade de letras que

deveria registrar, pois contou as letras que havia escrito para o primeiro enunciado “a escola é

muito boa”. Ao escrever os enunciados do texto, usou o mínimo de oito letras e, ao registrar o

título do texto, grafou seis letras. Ao final do registro, solicitamos, conforme combinamos, que

lesse o que escreveu. A criança ficou silenciosa e, depois, disse que a escrita não ajudava a

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recordar o texto. Assim, as diferenciações na escrita não possibilitaram a emergência de

grafias expressivas.

Conforme mencionamos, de modo geral, durante o estudo, observamos um aumento da

linguagem que surgia durante o registro dos textos, seguido de uma diminuição, à medida que

as crianças se apropriavam da escrita, assim como verificamos a inexistência desse tipo de

linguagem durante a fase inicial de alfabetização. Identificamos dois tipos de linguagem,

durante a atividade de registro dos textos: egocêntrica e comunicativa. Vigotski, com base na

análise que elaborou do trabalho realizado por Piaget A linguagem e o pensamento na criança,

diz que esse autor não atribuiu nenhuma função importante para a linguagem egocêntrica no

desenvolvimento infantil.

Es un lenguaje para uno mismo, para la propria satisfacción, que podría no manifestarse, y

cuja ausencia no modificaría nada esencial en la actividad infantil. Se puede decir que este

lenguaje infantil, subordinado por completo a motivos egocéntricos, es casi incomprensible

para quienes rodean al niño, es algo así como un sueño verbal de éste o, cuando menos,

producto de su mente, más próxima a la lógica de las ilusiones y de los sueños que a la del

pensamiento realista (1993, p. 49).

Ainda de acordo com Vigotski (1993), por ser funcionalmente inútil, Piaget considera

que o destino da linguagem egocêntrica é atrofiar-se e desaparecer próximo à idade escolar.

No entanto, esse autor argumenta que as suas investigações possibilitaram uma outra

interpretação com relação à função e ao destino da linguagem egocêntrica. Ela se converte, no

curso de uma atividade social, em um instrumento do pensamento, pois a criança elabora a

solução de uma atividade na qual é introduzida uma dificuldade, no plano verbal. Nesse

sentido, a linguagem egocêntrica pode ser considerada uma etapa transitória na evolução para

a linguagem interna/interior. Como um fenômeno de transição, segundo Vigostski, a

linguagem egocêntrica não desaparece: interioriza-se, transformando-se em linguagem

interior. Por meio da análise da linguagem egocêntrica, observou que ela é semelhante à

linguagem interior em sua estrutura e direção: é condensada, abreviada, contendo elementos

suficientes para que a criança a entenda e está dirigida para a própria criança, pois não tem a

finalidade de estabelecer comunicação com as outras pessoas.

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Para Vigotski, a linguagem na criança é essencialmente social. A linguagem

egocêntrica surge no curso do desenvolvimento infantil, devido à diversificação da orientação

da linguagem. A linguagem comunicativa permanece dirigida para as outras pessoas e a

linguagem egocêntrica passa a ser dirigida para a própria criança. Dessa forma, a linguagem

egocêntrica é social, porque, na realidade, as crianças passam a elaborar, consigo mesmas, as

formas sociais de comportamento, ou seja, estas se deslocam para a esfera das funções

individuais. A linguagem egocêntrica é compreendida, então, do ponto de vista genético, como

o momento de transição das funções sociais para as funções psicológicas.

Consideramos que as interpretações de Vigotski nos ajudam a entender a função da

linguagem que ocorria durante o registro dos textos. As crianças elaboravam, por meio da

linguagem, a análise das unidades da linguagem oral e registravam símbolos correspondentes

a essas unidades. Desse modo, foi possível observar como as relações entre o oral e o escrito,

constituídas socialmente, se deslocaram para o plano individual, pois as crianças começaram a

elaborá-las consigo mesmas. Porém, é importante esclarecer que ao apontarmos que as

relações entre as unidades sonoras e símbolos alfabéticos foram constituídas socialmente não

significa somente dizer que essas relações precisam ser ensinadas para os alunos possam

aprendê-las e, por isso, têm que ser reconstituídas no plano social, entre as pessoas, mas,

sobretudo, significa dizer que é uma produção social, resultado da atividade coletiva de outras

pessoas ao longo da história da humanidade. Assim, análise que elaboramos que ocorria,

durante o registro, evidencia que o processo de desenvolvimento infantil direciona-se do social

para o individual, ou seja, as funções elaboradas socialmente se tornam funções do próprio

indivíduo.

Como apontamos, observamos uma diminuição da linguagem egocêntrica, à medida

que as crianças se apropriavam da escrita. As análises de Vigotski mostram que essa redução

se refere apenas a uma das características da linguagem egocêntrica: a sua vocalização.

El lenguaje , por tanto, se convierte en interno antes psíquica que físicamente. Esto

nos permite aclarar cómo tiene lugar el proceso de formación del lenguaje interno.

Se inicia en la diferenciación de las funciones del lenguaje, el lenguaje egocéntrico

se va segregando del social, a través de su reducción paulatina y concluye com su

transformación en lenguaje interno (1993, p. 57).

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As crianças, certamente, continuam a elaborar as análises sem manifestá-las até que a

escrita adquira novamente “o caráter de simbolismo direto, passando a ser percebida da

mesma forma que a linguagem oral” (Vigotski, 1989a, p. 132), ou seja, à medida que a criança

aprende as letras que são usadas para representar as unidades menores da linguagem oral, não

precisará mais de efetuar a análise das unidades constituintes da linguagem oral e passará a

representar diretamente os significados que pretende anotar. As atividades evidenciam ainda

que a análise das unidades da linguagem oral não é feita de maneira direta, mas se desenvolve

por meio da linguagem que, por sua vez, auxilia a lembrança das letras que devem ser usadas

para grafar as unidades analisadas no plano verbal.

Para concluir este item, é importante enfatizar que percebemos que as crianças que

não usavam a escrita alfabética se relacionavam com os registros para recordar o texto. Desse

modo, antes de a criança ter esse domínio, ao ser incentivada a se relacionar com a escrita para

fins psicológicos, descobre o uso instrumental da escrita. Por outro lado, observamos, ainda,

que as crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto também

analisavam as unidades da linguagem oral no plano verbal e, dessa forma, estabeleciam

relações entre o oral e o escrito. A análise elaborada não possibilitava a emergência de grafias

expressivas, mas propiciou a superação da atividade gráfica baseada unicamente na

reprodução da aparência externa da escrita.

5 O registro do texto sobre a história em seqüência

Iniciamos a última atividade do trabalho com as crianças no mês de novembro.

Solicitamos que elas produzissem oralmente um texto sobre uma história em seqüência,

escolhida pelas próprias crianças, do livro de Eva Furnari intitulado A bruxa atrapalhada.

Inicialmente, conversamos com elas, na sala de aula, sobre o tipo de história, sobre outros

livros produzidos pela autora e apresentamos algumas informações sobre a escritora. As

crianças escolheram duas histórias para realização da atividade: O telefone e O pirulito.

A atividade de produção oral e registro do texto foi encaminhada em dois momentos:

no primeiro momento, as crianças manuseavam o livro, escolhiam a história e produziam

oralmente uma nova história que era registrada pela pesquisadora. Ao final da produção e

registro, líamos o texto para as crianças. O segundo momento foi orientado da seguinte forma:

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a) solicitamos às crianças que registrassem o texto que haviam produzido oralmente;

b) pedimos, ainda, que elaborassem, com atenção, o registro, pois, ao final da escrita,

deveriam ler o texto que escreveram.

Participaram da atividade trinta e sete crianças que freqüentavam a classe no mês de

novembro. Optamos pela participação de todas as crianças para termos uma visão ampla do

que ocorreu com elas durante o ano letivo. Assim, com base na atividade realizada,

concluímos que vinte e oito crianças usavam a escrita como recurso para recordar o texto e

nove rememoravam o texto. No início do ano, a partir da análise da primeira atividade

realizada (registro da brincadeira), identificamos doze sujeitos que se relacionavam com os

registros para recordar o conteúdo do texto. É importante lembrar que quatro crianças que

participaram da primeira atividade foram transferidas para outras escolas. Desse modo,

participaram da última atividade trinta e três crianças que faziam parte do grupo inicial.

Considerando esse grupo, verificamos que houve um aumento significativo no número de

crianças que passou a se relacionar com as grafias para ler o texto que registravam (26

crianças).

Analisaremos, finalmente, neste último item, apenas as atividades das crianças que se

relacionavam com a escrita para lembrarem o texto registrado. Esta última análise irá

corroborar a tese de que as crianças, durante a fase inicial de alfabetização, relacionam-se com

as grafias usadas para registrar o texto, mesmo antes de terem o domínio da escrita alfabética.

Mostraremos as atividades realizadas por quatro crianças, priorizando o momento em

que eram incentivadas a ler o texto que escreveram. Iniciaremos pela atividade desenvolvida

por Fernanda. Anteriormente, mostramos que o registro de palavras ortograficamente pode

possibilitar a lembrança do conteúdo do texto. Na atividade realizada pela aluna, verificamos

que ela reelaborou os enunciados do texto, a partir da identificação de uma palavra registrada

ortograficamente. Observaremos a escrita produzida pela criança e o texto que motivou os

registros. A criança tinha sete anos e dez meses de idade.

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232

O telefone

A bruxinha estava dormindo.

O gato estava acordado

e pegou a varinha da bruxa.

Depois, ele transformou o telefone em lanche

e o vaso em coca.

Ele jogou a varinha no chão

e comeu o lanche.

A bruxa acordou,

a varinha estava no chão.

O gato olhou para cima

e deixou a garrafa no canto.

Podemos observar que a criança diferenciou as grafias usadas para escrever as frases.

No entanto, escreveu as vogais, no início das frases, separando-as de outras grafias usadas

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233

para representar o texto. A maioria das vogais registradas corresponde aos artigos; foi escrita

ainda a conjunção “e” que iniciou uma das partes do texto. Essas representações resultaram da

análise que a criança elaborava dessas unidades.

A aluna escreveu a palavra gato duas vezes. No terceiro segmento de grafias, registrou

“gota” e, no décimo primeiro, escreveu “gato”. Grafou ainda, no oitavo segmento, as letras

que compõem a palavra gato, alterando as suas posições, mas, nesse caso, o registro não

correspondia à palavra “gato”. As palavras “telefone, bruxa e lanche” apareceram mais de uma

vez no texto, mas não foram representadas, nesses contextos, com as mesmas grafias. Vejamos

como se relacionou com as grafias para lembrar o texto:

O telefone

1o U TEBOE

A bruxinha estava dormindo

2o A BOTA E BTO

O gato estava acordado

3o O GOTA E PTABO

E o telefone

4o E PTODE E FRNO

Ni lanche

5o TEDBEZF

E o vaso

6o LUERA

Ni coca

7o E RNABBP

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E jogou a varinha no chão.

8o E TOBENMSV

A gatinho olhou para a cima.

9o A GTOA (acrescenta as letras) TBN

Não. (Volta ao registro anterior e lê “A bruxinha acordou”)

Olhou para cima.

10o A NOTBDA

O gatinho de a varinha estava no chão.

11o O GATO DEBBA

E ela viu a varinha.

12o EBRNMAO

Como pode ser visto, para o primeiro segmento de grafias, enunciou o título do texto

(“o telefone”). Todas as crianças que se relacionavam com os registros para lembrar o texto

liam o primeiro segmento de grafias para o título da história. A posição das grafias, ou seja, o

fato de serem registradas no início contribuiu para isso. Para o segundo segmento, enunciou “a

bruxinha estava o dormindo. O gato”. O enunciado é exatamente aquele que motivou o

registro, acrescido pelas palavras “o gato”. Podemos dizer que ela memorizou esse conteúdo e,

por isso, o enunciou. Ao passar para o terceiro segmento, observou que estava escrito “O

gato”, repetiu essas palavras e enunciou o conteúdo que motivou o registro “O gato estava

acordado”. No quarto segmento, observamos que interpretou a letra “e”, mas não sabia como

continuar o enunciado a partir da leitura da letra. Recorreu, então, exclusivamente à memória

para dar continuidade à atividade. Destacamos ainda o que ocorreu ao apontar o oitavo

segmento. Ela leu a letra “a”, em seguida, percebeu que estavam escritas as letras que

compõem a palavra “gato” e decidiu acrescentar as letras “tbn” para enunciar a frase “gatinho

olhou para cima”. É interessante observar que as letras apontadas como correspondentes à

palavra “gatinho” foram usadas para representar a frase “a bruxa acordou”. Começou a ler o

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nono segmento pronunciando a letra “a”. De repente, disse que não era aquilo, retomou o

oitavo segmento, enunciou a frase “a bruxinha acordou” e, para o nono segmento, disse que

estava escrito “olhou para cima”, completando a frase iniciada. Novamente, diante da palavra

“gato” (décimo segmento), enunciou “o gatinho de a varinha estava no chão”. Dessa forma,

produziu um enunciado sem sentido, resultado da interpretação da grafia “de”. Como é visível,

a criança leu o artigo “a” e a preposição “de” elaborando construções como “a gatinho”

(primeira leitura elaborada do oitavo segmento de grafias) e “o gatinho de a varinha estava no

chão”. De modo geral, as crianças interpretaram as letras registradas correspondentes aos

artigos e à preposição “de”. No entanto, nem sempre a leitura dessas palavras auxiliara a

lembrança do texto. Muitas vezes, proporcionava a enunciação de frases sem sentido.

Podemos dizer que os enunciados elaborados pela criança são constituídos, a partir da

interpretação de grafias no texto e, também, do texto que consegue reproduzir de memória. A

presença, no texto, de grafias expressivas possibilitou a reorganização dos enunciados, e a

lembrança do texto registrado ou de outro evocado no momento.

A atividade desenvolvida por Jéssica Mendes confirma as nossas observações no

decorrer do trabalho. A criança representou uma mesma palavra com o mesmo segmento de

grafias, em mais de um contexto, e essa representação possibilitou a lembrança do conteúdo

que motivou a escrita. Observemos a escrita da aluna.

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O pirulito

A bruxinha e seu amigo estavam chupando pirulito.

Ela estava conversando com o seu amigo

e a formiga levou o pirulito dela.

A bruxinha ficou assustada e resolveu transformar a formiga em um elefante.

O elefante e o pirulito ficaram grandes.

Assim, a aluna escreveu “pilo” e “boxa” para as palavras pirulito e bruxa,

respectivamente. Repetiu esses mesmos segmentos de grafias todas as vezes que escreveu as

palavras. A palavra gato foi escrita ortograficamente. Ela interpretou os registros com base nas

indicações que se seguem.

O pirulito

1o O PILO

A bruxa estava (pára) chupando pirulito.

2o A BOXA GATO E DSIC PILO

E que estavam conversando, e a formiga pegou o pirulito dela

estavam conversando

3o E QUI GISO QISO E AFNCA LSI O PILO

A bruxa ficou assustada

E resolveu transformar num elefante

4o A BOXA A SOAIA E RESO PLS AFSL ELOFE

E pirulito grande.

5o E EASE E O PILO FHESE

Desse modo, leu o título da história “o pirulito”. Apontou o segundo segmento e

enunciou a frase “a bruxa estava chupando pirulito”, assinalando corretamente o segmento “a

boxa” para as palavras a bruxa. No momento em que apontou a palavra “gato”, enunciou

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“estava”. Ela pareceu perceber que não era essa a palavra e, por isso, ficou silenciosa por

alguns segundos, mas decidiu continuar a atividade e apontou, para o último segmento,

reproduzido do título (“pilo”), para a palavra pirulito. Para o terceiro segmento, enunciou “e

que estavam conversando e a formiga pegou o pirulito dela”. Veja que a leitura das palavras “e

que” corresponde ao seu registro e o segmento de letras correspondente à palavra pirulito

também foi lido.

Apontou o quarto segmento, enunciou “a bruxa ficou e assustada”. Novamente,

apontou os segmentos correspondentes às palavras “a bruxa”, leu a letra “e”, mas teve que

completar com a palavra “assustada” para produzir um enunciado com sentido. A leitura

parece deixá-la insatisfeita, por isso, retomou as grafias a partir da letra “e” e leu “e resolveu

transformar num elefante”. As grafias usadas para escrever as palavras elefante (“elofe”) e

“resolveu” (“reso”) possuíam letras usadas para compor a palavra na sua forma convencional.

A criança reconheceu que ali estavam escritas as palavras “resolveu” e “elefante” e

reorganizou os enunciados.

Para o quinto segmento, enunciou “E pirulito grande”. Ela deixou de apontar três

segmentos de letras e leu o registro correspondente à palavra pirulito. A criança produziu o

texto abaixo para a sua escrita:

“O pirulito

A bruxa estava chupando pirulito.

E que estavam conversando e a formiga pegou o pirulito dela.

A bruxa ficou e assustada e resolveu transformar num elefante.

E pirulito grande”.

Assim, ela se relacionou com a escrita para lembrar a história. O texto final pode ser

compreendido, com exceção da última frase, porque novamente estava registrado o segmento

de letras correspondente à palavra “pirulito” que ela não deixou de considerar. Gostaríamos de

destacar, mais uma vez, que a criança compreendia que representamos as mesmas palavras,

nos vários contextos, com o mesmo segmento de letras e o uso das mesmas grafias para

representar uma mesma palavra adquire um caráter expressivo e auxiliava a recordação do

texto.

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A atividade desenvolvida por Vanessa é muito interessante. Vejamos a escrita

produzida pela criança:

O pirulito

A bruxinha e o gato estavam chupando pirulito. De-

pois, a bruxinha colocou o pirulito em cima do banco.

Veio a formiguinha e carregou o pirulito.

A bruxinha viu, pegou sua varinha

e fez plim.

A formiguinha virou um elefante.

Como pode ser visto, a aluna representou a palavra pirulito, nos três contextos,

praticamente com as mesmas letras. Escreveu “piulito, iulito e iulito”. Dessa forma, omitiu a

letra “p”, nas duas últimas grafias. Usou ainda para representar a palavra formiguinha as

grafias “fuiza” em dois contextos. A palavra gata pode ser lida, mas deveria ter sido escrita a

palavra gato. Vejamos como ocorreu a atividade:

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Pi, ru, li, to.

1o PIULITO

A bruxinha e o gato estavam chupando pirulito de

2o A BAXNA E GATA ETAVÃN XUBUIULITO DE

Pos colocou o pirulito no. Não! Sofá.

3o BOI A BAXNA DO UIULITO NÃO SIMADO BADO

Depois veio uma formiguina e carregou.

4o VA UMA FUIZA ICROUIULITO

A bruxinha pegou sua varinha, varinha.

5o A BUXNARI PGOUAVAIM

Faltou a letra “e” aqui (acrescenta a letra)

E fez prim.

6o E FIFI

E depois a formiguinha virou um elefante.

7o A FUIZA RIOVELEUMTA

Assim, leu para o primeiro segmento de grafias a palavra “pirulito”, apontando as

letras usadas para representar as unidades silábicas. Para os segundo e terceiro, enunciou “a

bruxinha e o gato estavam chupando pirulito”. Depois, colocou o pirulito no sofá”. Apontou o

segundo segmento e o modo como registrou as palavras não impossibilitou a leitura. No

terceiro segmento de grafias, apontou o registro da palavra bruxinha e disse a palavra

“colocou”, deixou de apontar um dos segmentos e produziu um texto próximo do que

motivou o registro.

Apontou o quarto segmento e enunciou “depois veio uma formiguinha e carregou”. Ela

apontou o segmento usado para registrar a palavra “formiguinha”. No quinto segmento,

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apontou os segmentos correspondentes às palavras enunciadas “a bruxinha pegou a sua

varinha”. Ao continuar a frase, apontou o sexto segmento, percebeu que faltava a letra “e”,

necessária para completar a frase que estava sendo produzida. Então, escreveu a letra e leu “e

fez prim”. Concluiu a atividade com a frase “e depois a formiguinha virou um elefante”.

Como pode ser visto, acrescentou as palavras “e depois” para garantir a seqüência do texto.

Podemos observar que a criança se relacionou com a escrita para lembrar o texto e buscou

orientar a leitura a partir dos registros.

A escrita elaborada por Manuely evidencia, também, o surgimento de grafias

expressivas, porque são repetidas no texto para representar uma mesma palavra.

O pirulito

A bruxinha e o gato estavam

chupando pirulito. A formiguinha

pegou o pirulito da bruxinha

e levou embora. A bruxinha

resolveu transformar a formiguinha em um

elefante. E a mágica aconteceu! A

formiga virou um grande elefante.

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Assim, a aluna representou as palavras bruxinha e pirulito, com os segmentos “baxa” e

“nlbto”, respectivamente; registrou a palavra gato ortograficamente. As palavras elefante e

formiguinha foram escritas duas vezes no texto, mas grafadas de formas diferentes. Manuely

colocou separações entre os segmentos de letras usados para escrever o texto, demonstrando

que se apropriou dessa característica da escrita. A leitura que realizou será mostrada a seguir:

O pirulito O pirulito

1o O BIN OEI NLBTO

A bruxinha e o gato esta

2o A BAXAE E O GATO ETES

Vam chu pando pirulito

3o ELT O NLBTO A NVOA

E a for miga pegou o pirulito da bruxinha

4o PEIGO O NLBTO WGB BAXA

E a bruxinha resolveu a bruxinha

5o E CONTO NTON A BAXA

Re soveu transformar em um grande

6o HPI ZAZL BOMA DEM UM EAE

Elefante e a mágica aconteceu

7o LTE E A METW ACETCO A

Ele transformou num grande elefante.

8o COME A UM CECL EDE

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Como vimos, ela repetiu duas vezes o título do texto e correspondeu segmentos de

letras deferentes para as mesmas palavras “O pirulito”. Para o segundo segmento, enunciou “a

bruxa e o gato esta” e apontou as palavras “a bruxa e o gato” para as suas grafias. No quarto

segmento, ao perceber a escrita da palavra bruxa, apontou o segmento “wbb” para as palavras

“pegou o pirulito da” e apontou o segmento correspondente à palavra “bruxinha”. No entanto,

no quarto segmento, indicou, para a palavra “bruxinha”, grafias que não foram usadas para

escrever essa palavra.

Começou a enunciar uma frase, mas reorganizou o enunciado ao observar, no mesmo

segmento, o registro da palavra bruxinha. Dessa forma, o uso das mesmas grafias para

representar uma mesma palavra provocou a reorganização dos enunciados que estavam sendo

elaborados e contribuiu para ajudar na lembrança do texto.

Analisaremos, por último, a atividade realizada por Ana Paula Morais:

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O telefone

A bruxinha estava dormindo

e o gato pegou sua varinha mágica.

O gato fez o telefone

e o vaso de flor sumir.

Apareceram um sanduíche e uma garrafa de refrigerante.

O gato comeu o sanduíche

e bebeu o refrigerante.

Saiu um barulho estranho da barriga do gato.

e a bruxinha acordou.

Conforme podemos observar, ela escreveu a palavra gato convencionalmente, usou as

mesmas grafias “brxu” para representar a palavra bruxa e as grafias “caco” para representar a

palavra refrigerante. Da mesma forma que Manuely, a criança colocou espaços em branco

entre os segmentos de letras usados para representar o texto. No caso da menina, as letras

escolhidas para registrar as palavras das frases foram baseadas na análise que elaborou

verbalmente das unidades da linguagem oral. Desse modo, o registro dos artigos separados por

espaços em branco originaram-se dessa análise. Ela repetia cada sílaba que compunha as

palavras e registrava uma letra para cada uma. Ela se relacionou com a escrita da maneira que

se segue para lembrar o texto:

A bruxinha estava do

2o A U BRXU ETAVA UAIANO

Min gato pegou su a varinha mágica

3o I U GATO PAUO UO A FAIA NA BAICA

O gato fez o telefone

4o U GATO FA U TALACO

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244

Sei mir de (não) depois

De flor

E o vaso de flor

So bre

5o IA U FAVO DE FORO UOAO IAFA

A pa receu um sanduíche e um refrigerante

6o A PA RACO UM COVOAIO IA UM CACO DE FAGA

O gato co meu o sanduíche

7o U GATO DO MALA O CACOIA

E bebeu o o refrigerante

8o IA NENE U FAFI G CACO

A barriga do gato fez um barulho estranho.

9o I SAIA UM BAUO IARANO DA BAIO UO GATO

E a bruxinha a cordou

10o IA A UO BRXU A CODO

A aluna disse o título do texto, mas não apontou onde estava lendo. Passou a indicar as

grafias, na segunda linha, em função da nossa sugestão. Após a nossa sugestão, apontou e

interpretou as vogais registrada, no início das linhas, com exceção da vogal registrada na

quarta linha. Apontou as grafias usadas para representar as palavras bruxa e refrigerante e leu

essas palavras. Algumas palavras registradas com letras que pertencem a sua escrita

convencional também foram interpretadas.

Assim, as atividades evidenciam o surgimento de grafias expressivas: as palavras

escritas ortograficamente, o uso de um mesmo segmento de grafias para representar uma

mesma palavra, o uso de letras que compõem a sua escrita ortográfica para escrever uma

palavra e o registro de artigos e da preposição “de” adquirem um caráter expressivo e, dessa

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forma, auxiliam a lembrança do conteúdo que motivou a escrita, quando as crianças são

incentivadas a se relacionarem com as grafias usadas para escrever os textos.

Acreditamos que temos uma base empírica consistente que confirma as análises que

elaboramos ao longo deste capítulo. O próximo capítulo terá por finalidade sintetizar as nossas

descobertas durante o estudo. Acreditamos que a síntese que será elaborada, assim como as

análises que foram construídas, irão contribuir para a compreensão do processo de apropriação

da linguagem escrita pelas crianças na fase inicial de alfabetização.

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246

Capítulo VIConsiderações finais

Após os primeiros trabalhos realizados por Luria sobre o desenvolvimento da escrita

nas crianças, na década de vinte, como parte de um empreendimento teórico mais amplo,

somente a partir da década de setenta, houve uma proliferação de estudos, no campo da

Psicologia, que incorporaram a linguagem escrita como objeto de conhecimento. Dessa forma,

passaram-se quase cinqüenta anos desde o trabalho realizado por Luria até “a incorporação da

escrita como objeto de estudo psicológico” (Landsmann, 1995, p. 165).

Este estudo tomou por base as descobertas de Luria sobre o desenvolvimento da

escrita na criança e a concepção de linguagem escrita que orientou os seus estudos e buscou

analisar os processos que se constituem nas crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem

incentivadas a estabelecer uma relação funcional com a escrita, ou seja, quando incentivadas a

usá-la com função mnemônica. Desse modo, focalizamos a linguagem escrita, como um

sistema de signos que serve de apoio às funções psicológicas, especificamente, à memória.

Para Luria, “a escrita é uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins psicológicos; a escrita

constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar, transmitir idéias e

conceitos” (1988, p. 146).

Discutimos, no Capítulo III, que o desenvolvimento cultural na criança ocorre

simultaneamente com o desenvolvimento orgânico. Segundo Vigotski, “a particularidade e a

dificuldade do problema do desenvolvimento das funções psíquicas reside no fato de que

essas duas linhas de desenvolvimento estão integradas na ontogênese formando um processo

único e complexo” (tradução nossa) (1987, p. 33). No entanto, esses dois processos

(biológico/cultural) não se confundem. Eles são distintos em sua essência e natureza, mas

progridem simultaneamente formando um processo único, no qual se desenvolvem, nas

crianças, os seus órgãos naturais e os órgãos artificiais criados ao longo da história humana.

Nesse sentido, Vigotski diz que “cada função psíquica ultrapassa os limites do sistema

orgânico de ativação que lhe é próprio e começa seu desenvolvimento cultural dentro dos

limites de outro sistema de ativação completamente novo” (tradução nossa) (p. 43), pois a

criação e a utilização de signos constituem as formas humanas de atuação e as diferenciam da

atividade animal. O autor chama de signos os meios artificiais que auxiliam a solução de

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qualquer tarefa psicológica. A linguagem escrita é um desses meios artificiais criados pela

humanidade ao longo de sua história que auxiliam a recordação e serve, assim, como recurso

para a memória. Segundo Luria,

em contraste com um certo número de outras funções psicológicas, a escrita pode ser

definida como uma função que se realiza, culturalmente, por mediação. A condição mais

fundamental exigida para que uma criança seja capaz de tomar nota de alguma noção,

conceito ou frase é que algum estímulo, ou insinuação particular, que, em si mesmo, nada

tem que ver com esta idéia, conceito ou frase, é empregado como um signo auxiliar cuja

percepção leva a criança a recordar a idéia etc., à qual se refere (1988, p. 145).

Desse modo, os símbolos alfabéticos desempenham um papel funcional auxiliar, pois a

escrita é usada para fins psicológicos. Parafraseando Luria, ela constitui, na nossa sociedade, o

uso funcional das letras do alfabeto para recordar, transmitir idéias e conceitos. A partir da

concepção de que a linguagem escrita é um sistema de signos que serve como apoio às

funções psicológicas, planejamos atividades de produção oral de textos e registros dos

mesmos textos para observarmos como as crianças se relacionavam com a escrita, durante a

fase inicial de alfabetização. Assim, não organizamos, previamente, frases e palavras a serem

escritas pelas crianças com o objetivo de intervir no modo como escreviam, pois elas próprias

produziram os textos que escreveram (apenas na terceira atividade escolhemos um poema a

ser escrito pelas crianças cuja finalidade foi buscar confirmação para as descobertas apoiadas

nas duas primeiras atividades), mas criamos situações em que as crianças eram incentivadas a

lembrar o texto por meio da escrita. Acreditamos que as atividades realizadas pelas crianças

constituem uma base empírica consistente, pois possibilitaram a observação dos processos de

desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças e, portanto, a observação do percurso que

leva à utilização funcional da escrita e das condições que proporcionaram o surgimento de

grafias expressivas.

De acordo com Luria, a criança que já aprendeu, na escola, as letras do alfabeto

compreende que pode usar signos para escrever, mas não entende ainda como fazê-lo. Por

isso, “começa com uma fase de escrita não diferenciada pela qual já passara muito antes”

(1988, p.181), ou seja, as crianças usam as letras do alfabeto para escrever, mas ainda são

incapazes de usá-las para recordar, expressar idéias ou conceitos. Como vimos, durante o

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estudo, uma criança (Laudicéia, p. 179), diante da atividade de escrita, estava “apenas

preocupada em ‘escrever como os adultos’; para ela, o ato de escrever não [...] era um meio

para recordar” (Luria, 1988, p. 149). A criança escreveu os textos produzidos oralmente com

grafias quase totalmente indiferenciadas. Durante os registros, para cada enunciado do texto,

escreveu uma linha com essas grafias, murmurou palavras inaudíveis e, ao final, apontou as

grafias para lembrar o texto. Sabemos que não usou a escrita como recurso mnemônico, mas

seus atos retratavam as atitudes dos adultos ao escreverem e ao lerem. Assim, a atividade

gráfica da criança é baseada na imitação dos atos dos adultos; como não aprendeu os atributos

psicológicos da escrita que, na situação estudada, se concretizava na sua função individual,

recurso para lembrar, mobilizou mecanismos naturais: rememorou de maneira direta, sem o

auxílio dos registros, o texto que produziu oralmente.

De acordo com Vigotski (1987), as formas culturais de comportamento têm raízes nas

formas naturais. A imitação é uma atividade que existe nos animais inferiores, assim como o

uso de instrumentos para solução de tarefas simples. Contudo, a diferença radical entre o

homem e o animal é que este último não é capaz de desenvolver suas capacidades intelectuais

a partir da imitação. Na criança, “pelo contrário, o desenvolvimento que parte da colaboração,

mediante a imitação, é a fonte de todas as propriedades especificamente humanas de

consciência” (tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 241). Os processos de imitação, para esse

autor, são complexos e, por isso, não devem ser vistos unicamente como formação de hábitos,

pois a imitação requer uma certa compreensão do significado da ação do outro. “Na realidade

[escreve Vigotski] a criança, que não sabe compreender, não poderá imitar o adulto que

escreve” (1987, p. 147). A criança, inicialmente, realiza a atividade a partir da imitação dos

atos dos adultos, porque jamais poderia dominar de imediato a linguagem escrita, em toda a

sua complexidade. Assim, ela usa símbolos arbitrários para representar os enunciados do texto

que produziu oralmente, mas não mantém uma relação funcional com esses símbolos.

Entendemos como arbitrária, a relação entre o símbolo e o simbolizado, oposta ao motivado.

“Quando uma relação é motivada, o convencional é um agregado opcional à sua possível

interpretação; existe a possibilidade de poder interpretar um símbolo motivado embora não

tenha havido convenção a respeito do mesmo [...], mas quando a relação é arbitrária, só pode

ser sustentada por uma convenção” (Landsmann, 1995, p. 135). Desse modo, os signos

lingüísticos são arbitrários e convencionais, pois a relação que mantém com o simbolizado não

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249

é motivada, ou seja, não existe uma relação natural externa entre os símbolos e o simbolizado.

Os signos lingüísticos são o resultado de um acordo social sobre sua interpretação e usos.

Laudicéia foi a única criança que produziu grafias indiferenciadas ao registrar os

textos. Os outros sujeitos, que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto,

diferenciavam as grafias ao escreverem. Até mesmo uma criança que combinou a pictografia e

as letras do alfabeto, ao registrar o texto sobre a sua brincadeira preferida, diferenciou as séries

de letras usadas para escrevê-lo.

Assim, é importante destacar que observamos uma criança (Jéssica Fernanda, p. 115)

que combinou os símbolos alfabéticos e a pictografia (a escrita é icônica quando a criança

desenha os objetos existentes no mundo para representá-los) ao escrever o texto. No entanto,

as letras grafadas eram diferenciadas. Ao ser incentivada a lembrar o texto que motivou a

escrita, recordou um texto muito próximo daquele que motivou o registro e, para cada

enunciado lembrado, apontou um segmento de letras. Certamente a lembrança foi propiciada

pela pictografia; sabemos, no entanto, que a criança conhecia o texto de cor, sendo suficiente

repeti-lo e apontar cada série de letras registradas. Sabemos ainda que, provavelmente, no

futuro, ela se lembrará do texto que registrou ao observar o desenho da amarelinha. O que

certamente não ocorreria se não tivesse desenhado.

O fato de a criança combinar as letras do alfabeto e a pictografia ao escrever o texto

não significa que não compreendia as distinções entre as formas icônicas e não icônicas de

representação. Ela compreendia; tanto que tinha dúvidas se deveria desenhar ou escrever e

apontou as letras ao ser incentivada a lembrar o texto. Acreditamos, conforme discutimos no

Capítulo V, que o conteúdo foi determinante para que a criança escolhesse, também, a

pictografia para registrar a explicação sobre a brincadeira. Luria averiguou que a quantidade, a

forma, o tamanho, a cor, etc. foram os fatores, introduzidos no conteúdo das frases e palavras

a serem escritas, que proporcionaram a dissolução da produção gráfica elementar e induziram

as crianças a usarem a escrita como recurso para lembrar as frases e palavras anotadas. A

quantidade e a forma foram os principais fatores que levaram ao uso da pictografia, ou seja,

“através desses fatores, a criança, inicialmente, chega à idéia de usar o desenho [...] como

meio de recordar e, pela primeira vez, o desenho começa a convergir para uma atividade

intelectual complexa. O desenho transforma-se, passando de simples representação para meio,

e o intelecto adquire um instrumento novo e poderoso na forma da primeira escrita

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diferenciada” (Luria, 1988, p. 166). Consideramos que, se esses mesmos fatores estivessem

presentes no conteúdo dos textos a serem escritos pelas crianças que usavam letras para

escrever, poderiam proporcionar o retorno à pictografia. A atividade realizada pela aluna veio

fortalecer essa visão, pois, no texto elaborado oralmente pela criança, as formas apareciam

conciliadas numa mesma palavra com o fator tamanho (quadradão, quadradinho), o que, em

nossa opinião, levou a criança a desenhar as formas e tamanhos expressos nas palavras do

texto.

Como mencionamos, com exceção de Laudicéia, todas as crianças diferenciavam as

grafias ao escreverem os textos. Tais diferenciações evidenciam uma mudança na atividade

gráfica, se considerarmos que, inicialmente, é baseada na imitação dos atos dos adultos ao

escreverem. No momento em que as crianças começam a diferenciar as grafias usadas para

escrever, a atividade gráfica passa a ser regulada, ou seja, para escrever não é suficiente anotar

letras indistintas, aleatórias e casuais: é necessário anotá-las observando uma certa

organização que, no momento, é definida, conforme nosso entendimento, pela apropriação das

características externas da escrita. Nesse sentido, a mudança objetiva na escrita evidencia

mudanças na atividade gráfica. As crianças adquirem um maior domínio sobre o seu próprio

comportamento que, inicialmente, era espontâneo, baseado na imitação.

De acordo com os estudos de Ferreiro e Teberosky, no segundo nível de evolução da

escrita, a hipótese fundamental da criança é que “para poder ler coisas diferentes (isto é,

atribuir significados diferentes) deve haver uma diferença objetiva nas escritas [grifos das

autoras]” (1989, p. 189). Assim, as crianças acreditam que a escrita é legível quando possui

quantidade e variedade de letras, ou seja, elas usam mais de duas letras para escrever as

palavras e variam as letras numa mesma cadeia. Como algumas crianças dispõem de um

repertório reduzido de letras conhecidas, a única maneira de responder às exigências de

legibilidade é por meio de variações de posição na ordem linear das grafias.

Os nossos resultados também apontam que a natureza das diferenciações na escrita são

qualitativas e quantitativas, conforme assinalam as autoras. As crianças usavam três ou mais

letras para escrever (o menor número observado, durante o nosso estudo, foi quatro letras) os

enunciados dos textos e variavam as letras conhecidas numa mesma cadeia. Contudo, não

podemos afirmar, de acordo com Ferreiro & Teberosky (1989), que essas exigências definiam

a legibilidade do escrito, porque, apesar do esforço das crianças para distinguir as grafias

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usadas para anotar os enunciados do texto e para variar as letras numa mesma cadeia, elas

sabiam que a escrita não podia ajudá-las a recordar o texto anotado e, por isso, rememoravam-

no sem o auxílio da escrita ou diziam que a escrita não poderia ajudá-las. Nesse sentido, as

crianças usavam os símbolos alfabéticos para representar o texto, mas a simbolização se

baseava na reprodução das características externas da escrita. Observamos que alguns alunos,

na tentativa de reprodução desses aspectos, colocavam espaços em branco entre segmentos de

letras usados para grafar os textos. As séries de letras separadas pelos espaços em branco eram

compostas por duas e uma letra sem observar o princípio quantitativo. Dessa forma, a

aparência da escrita era semelhante à escrita de um texto grafado convencionalmente.

Contudo, as distinções nos registros não possibilitaram a emergência de grafias

expressivas e, conseqüentemente, que as crianças estabelecessem uma relação funcional com a

escrita. Como mencionamos, Luria (1988), diversamente, notou que as diferenciações nos

registros, propiciadas pela introdução de determinados fatores no conteúdo das frases e

palavras que eram escritas pelas crianças, possibilitaram a emergência da escrita expressiva,

porque os símbolos usados para registrar as palavras e frases passaram a refletir os

significados anotados; desse modo, levaram as crianças a estabelecer uma relação funcional

com eles. É importante ter em mente que as observações de Luria foram fundamentadas nas

atividades desenvolvidas pelas crianças que não haviam aprendido as letras do alfabeto. Essa é

uma diferença essencial entre o estudo realizado pelo autor e o estudo que realizamos: as

crianças, sujeitos da nossa pesquisa, participavam de um processo escolar de alfabetização e

usavam as letras do alfabeto que estavam sendo aprendidas, na escola, para escrever. Nesse

sentido, as diferenciações na escrita evidenciaram a superação da atividade gráfica inicial,

baseada na imitação dos atos dos adultos ao escreverem, mas não levaram as crianças a se

relacionarem com a escrita para lembrar o texto, como nas investigações desenvolvidas por

Luria.

Assim, com base nas atividades realizadas com as crianças, na fase inicial de

alfabetização, podemos concluir que, de início, produzem grafias indiferenciadas ao tentarem

imitar os atos dos adultos quando escrevem e apenas rememoram, de maneira direta e sem

auxílio da escrita, o texto que motivou o registro ao serem incentivadas a usá-lo para fins

mnemônicos. A mudança na atividade gráfica ocorreu quando as crianças passaram a

organizar as grafias com base na reprodução da aparência da escrita. Assim, o movimento de

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mãos, ou seja, os atos produzidos durante o registro, deixa de ser aleatório, casual e

meramente imitativo, porque a reprodução das características externas da escrita exige que as

crianças passem a exercer um controle sobre ele. Elas passam a escolher as letras adequadas

para escrever, com base, inicialmente, nos princípios quantitativos e qualitativos, e a definirem

onde deverão ser colocados os espaços em branco na escrita.Vimos como agem se a sua

escrita não estiver de acordo com os princípios organizadores: apagam, dizem que erraram,

contam as letras e se mantêm fiéis aos critérios estabelecidos. Dessa forma, diferenciar a

escrita exige uma ação deliberada por parte da criança. Com relação a isso, Vigotski, ao

discutir a estrutura das funções psicológicas superiores, diz que

Es maravilloso por sí mismo el hecho de que el hombre goce de una extraordinaria libertad

en el sentido de la ejecución premeditada de cualesquiera acciones, incluidas las que no

tienen sentido [grifos nossos]. Esta libertad es característica del hombre civilizado. Ella

está presente en el niño, y, es probable que lo esté también en la gente primitiva [...], y

separa al hombre de los animales que le son más cercanos, de una manera mayor que su

intelecto superior. Esta distinción se reduce, por lo tanto, a la presencia en el hombre del

fenómeno de dominio sobre su conducta (1987, p. 134).

As crianças não compreendem o significado funcional da escrita, pois ainda não

aprenderam como usá-la para recordar, mas organizam deliberadamente as letras usadas para

representar os enunciados do texto que devem ser anotados. Contudo, a mudança na atividade

gráfica não altera o modo como as crianças lembram o texto que motivou os registros. Elas

continuam a rememorar sem o auxílio da escrita ou simplesmente dizem que a escrita não

pode ajudá-las a lembrar.

A superação da atividade da escrita, baseada na reprodução das características externas

dos textos escritos convencionalmente, começou a ocorrer no momento em que as crianças

passaram a organizar a escrita a partir de correspondências que estabeleciam entre o oral e o

escrito. Assim, elas começaram, com base nos conhecimentos que estavam sendo aprendidos

na sala de aula, a relacionar as letras anotadas com as unidades constituintes da linguagem oral

que eram pronunciadas. No início, essa aprendizagem não possibilitou que as crianças

usassem a escrita com função mnemônica, mas permitiu que a organizassem a partir dessa

análise e não mais a partir da reprodução das características externas da escrita. É importante

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notar que a dissolução da atividade gráfica baseada na reprodução das características externas

da escrita está relacionada diretamente com a escolarização e, portanto, com a aprendizagem

da leitura e da escrita.

A escrita, produzida com base nessa análise, era, em alguns casos, aparentemente, mais

atrasada, pois as crianças passavam a repetir letras numa mesma cadeia (principalmente, as

vogais em função das correspondências elaboradas); mas, por detrás dessa aparência, havia

um modo de operar com a escrita que revelava o início da compreensão do seu simbolismo.

De acordo com Vigotski, conforme mencionamos, a escrita é um simbolismo de segunda

ordem. “Isso significa que a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que

designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das

relações das entidades reais” (1989a, p. 120).

A linguagem surge ao longo do desenvolvimento filogenético e do desenvolvimento

ontogenético, com função essencialmente comunicativa. As crianças, desde muito pequenas,

usam a linguagem com essa finalidade, mas não conseguem pensar sobre ela, pois, de acordo

com Delfior, isso “significa sair do seu uso comunicativo para prestar atenção nas formas da

linguagem em si mesmas” (tradução nossa) (1998, p. 6). A escrita exige que as crianças

comecem a tomar consciência da linguagem oral ou, como assinala Vigotski, ao comparar a

linguagem oral e a linguagem escrita, requer que a criança passe “a tomar conhecimento da

estrutura sonora da palavra, desmembrá-la e reproduzi-la, voluntariamente, em signos”

(tradução nossa) (1993, p. 231). Dessa forma, escrever demanda uma ação analítica

deliberada por parte da criança, exigindo que pense sobre a linguagem. Quando as crianças e

os adultos falam, ainda segundo Delfior, normalmente o fazem sem “ter consciência de que

estão utilizando palavras, de que estas são compostas por unidades menores” (tradução nossa)

(1988, p. 6). A autora cita a analogia elaborada por Luria para explicar como as crianças são

insensíveis à estrutura da linguagem:

as palavras seriam como uma janela de cristal por meio da qual a criança olha o mundo

que a rodeia, sem que essas palavras sejam objeto de sua consciência e sem suspeitar que

tenham sua própria existência ou sua própria estrutura (tradução nossa) (p. 8).

Porém, quando as crianças iniciam a alfabetização, passam a tomar consciência, a

pensar/refletir sobre a linguagem oral e começam a desenvolver um conjunto de habilidades

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metalingüísticas, em particular a denominada de consciência fonológica. Segundo Delfior, o

termo consciência fonológica pode ser tomado em sentido estrito e amplo. No sentido estrito

“se refere ao conhecimento que cada pessoa tem sobre os sons de sua própria língua”

(tradução nossa) (1988, p. 11). No sentido amplo, trata “da habilidade de identificar,

segmentar e manipular de forma intencional as unidades constituintes da linguagem oral”

(tradução nossa) (p. 11). Adotamos, neste estudo, o termo no seu sentido amplo.

Delfior assinala ainda que as discussões em torno da consciência fonológica residem

em determinar quais são as unidades constituintes da linguagem oral:

Alguns autores (Jiménez & Ortiz, 1995) consideram como unidades fonológicas as

palavras, as sílabas e os fonemas e defendem a existência de uma consciência léxica, uma

consciência silábica e uma consciência fonêmica como partes da consciência fonológica; a

maioria dos autores, no entanto, estão de acordo que a consciência fonológica se refere às

unidades que compõem as palavras, portanto, sílabas e fonemas (Gombert, 1990; Morais,

Alegria & Content, 1987) (...). Outros , como Turnmer y Rohl (1991) só aceitam o fonema

como objeto de análise da consciência fonológica (tradução nossa) (1998, p. 12).

Durante o trabalho realizado, vimos o surgimento da consciência fonológica: as

crianças elaboravam, no plano verbal, a análise das unidades constituintes da linguagem oral e

escreviam letras correspondentes às unidades analisadas. No início, a análise elaborada não

possuía uma regularidade, pois as crianças pronunciavam enunciados inteiros do texto que

eram ditados, pronunciavam palavras, pronunciavam sílabas e escreviam segmentos de letras

correspondentes ao que era pronunciado. A quantidade de letras anotadas, também, não

possuía uma regularidade. No entanto, para este estudo, mais importante do que analisar as

regularidades nas relações entre o oral e o escrito e discutir quais são as unidades da

linguagem oral que fazem parte da consciência fonológica, durante a fase inicial de

alfabetização, é evidenciar que o fato de as crianças passarem a organizar a escrita não mais

pela reprodução de seus atributos externos, mas pelas correspondências que elaboravam entre

as unidades da linguagem oral e as letras anotadas, produz a superação da atividade gráfica

baseada na reprodução das características externas da escrita. Elas começam a elaborar para si

mesmas um conhecimento que a humanidade levou muito tempo para construir: as letras do

alfabeto passam a representar a linguagem oral.

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Nesse sentido, não podemos deixar de enfatizar a importância da linguagem nesse

processo, pois se converteu em meio de pensamento para as crianças e atuou como recurso que

auxiliava a lembrança das letras que deveriam ser grafadas e, por isso, estava a serviço da

atividade realizada. Observamos, conforme discutimos, que a linguagem presente durante os

registros era de dois tipos: comunicativa e egocêntrica. A primeira tinha por objetivo

estabelecer contato com a pesquisadora para receber confirmação sobre as letras que deveriam

ser usadas para escrever uma palavra e para confirmar onde deveriam ser colocados, na

escrita, os espaços em branco. A segunda era para a própria criança e a auxiliava na lembrança

das letras que deveriam ser escritas para representar uma determinada unidade da linguagem

oral. Por isso, as crianças repetiam oralmente essas unidades, o que levava à percepção das

letras que deveriam ser grafadas.

Segundo as hipóteses de Vigotski, “a linguagem egocêntrica surge no curso de um

processo social, quando as formas sociais de comportamento, as formas de cooperação

coletiva, se deslocam para a esfera das funções individuais da criança” (tradução nossa) (1993,

p. 57). Para o autor, esse fenômeno de transição das formas sociais de atuação para a esfera da

atividade psíquica é uma lei geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores.

Assim, a linguagem egocêntrica traduz essa transição, está a serviço da orientação mental, da

compreensão consciente. Ainda de acordo com Vigotski, Piaget não havia atribuído nenhuma

função importante à linguagem egocêntrica. No entanto, concluiu que essa linguagem que,

para Piaget, é um reflexo do pensamento egocêntrico e que desaparece próximo dos sete anos,

é fundamental, pois converte-se em um instrumento do pensamento. Nas situações observadas,

as crianças analisavam, no plano verbal, as unidades que compõem a linguagem oral para,

depois, escreverem os símbolos alfabéticos correspondentes às unidades analisadas. Dessa

forma, as crianças começaram a elaborar para si mesmas essa relação, constituída no plano

social, modificando completamente o caráter da sua atividade. Veja, por exemplo, a atividade

realizada por Vanessa (p. 130). Ela pronunciava cada sílaba antes de grafar as letras escolhidas

para representa-la. Como conhecia as vogais, escrevia as vogais pertencentes às sílabas

pronunciadas.

Vigotski diz ainda que o destino da linguagem egocêntrica é transformar-se em

linguagem interna. Em termos gerais, “a linguagem egocêntrica surge da insuficiente

individualização da linguagem, inicialmente, social, de sua incipiente separação e

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diferenciação, de sua inespecificidade [...] A linguagem egocêntrica é um ponto situado em

curva ascendente cujo ponto culminante está por chegar” (tradução nossa). (Vigotski, 1993, p.

314). Assim, interpreta a progressiva diminuição do coeficiente da linguagem egocêntrica,

observada neste estudo, como “sintomas de progresso evolutivo; não é o fim, mas o

nascimento de uma nova forma de linguagem [grifos do autor]” (p. 313 ). As crianças que

deixavam de analisar as unidades da linguagem oral de maneira manifesta, por meio da

linguagem egocêntrica, não deixaram de realizar essa análise durante os registros, após a

interiorização dessa linguagem. Como assinala o autor, “interpretar a progressiva diminuição

do coeficiente da linguagem egocêntrica como se fosse um sintoma de sua desaparição é supor

que as crianças deixam de contar quando deixam de fazê-lo com os dedos e em voz alta e

passam a fazê-lo mentalmente” (tradução nossa) (p. 312).

Acreditamos que uma análise profunda da linguagem egocêntrica poderá contribuir

para que possamos compreender, no curso da aprendizagem da leitura e da escrita, como as

crianças elaboram para si mesmas a análise das unidades da linguagem oral e, portanto, quais

são as unidades fonológicas analisadas e como as representam por meio dos símbolos

alfabéticos. No entanto, conforme mencionamos, tendo em vista o objetivo deste estudo, é

essencial enfatizar a importância dessa análise, que se desenvolve no plano verbal, e que, em

algumas crianças, não se realiza de maneira manifesta na orientação da atividade gráfica, pois

propiciou a dissolução da atividade gráfica baseada na reprodução das características externas

da escrita. No início, a análise das unidades da linguagem oral não possibilitou que a criança

se relacionasse com a escrita para lembrar o texto que motivou o registro. As crianças

continuavam a rememorar o texto sem o auxílio da escrita, ou não enunciavam o texto, porque

argumentavam que a escrita não poderia ajudá-las.

As condições que propiciaram o surgimento de grafias que refletiam os significados

que as crianças deveriam anotar foram observadas a partir da presença de alguns fatores no

conteúdo dos textos elaborados oralmente pelas crianças. Nesse sentido, é importante lembrar

que Luria mostrou que o aparecimento das diferenciações nos registros proporcionou a

emergência da escrita simbólica, pois esta adquire “um significado funcional e começa

graficamente a refletir o conteúdo que a criança deve anotar” (1988, p. 181). Por sua vez, a

superação da escrita não-diferenciada resultou da introdução de fatores, no conteúdo das frases

e palavras que deveriam ser escritas, tais como: quantidade, forma, tamanho, cor, etc.

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257

De maneira semelhante, observamos que determinados fatores, presentes no conteúdo

dos textos, propiciaram que os símbolos alfabéticos passassem a refletir os significados

registrados. No entanto, tais fatores não levaram às diferenciações nas grafias. De maneira

diversa, eles provocaram não-diferenciações nos símbolos usados para escrever as palavras e

foram esses símbolos que possibilitaram que as crianças estabelecessem uma relação funcional

com a escrita e, desse modo, lembrassem os enunciados do texto que motivaram os registros.

Dentre os fatores destacados por Luria (1988), que levaram às diferenciações dos

registros, o único observado, neste estudo, foi o de quantidade. Quando as crianças tinham que

escrever quantidades, estas eram representadas por meio de numerais ou por extenso. Ambas

as representações auxiliavam a lembrança dos enunciados que motivaram os registros ou de

outros com o mesmo sentido. Os símbolos usados pelas crianças envolvidas no estudo de

Luria, para representar as quantidades, no entanto, não eram os mesmos usados pelas crianças

que participaram do nosso estudo. As crianças, sujeitos da pesquisa realizada por Luria,

usavam símbolos que expressavam diretamente as quantidades. Por exemplo: Brina, ao

escrever a frase “há duas arvores”, traçou, primeiro, dois riscos e, em seguida, desenhou os

galhos das árvores. No caso das nossas crianças, elas representaram as quantidades por meio

de símbolos arbitrários: numerais e palavras que estavam sendo aprendidos na escola.

Verificamos ainda que os artigos indefinidos (um e uma) foram representados por meio dos

símbolos numéricos e estes possibilitaram a lembrança dos enunciados do texto quando as

crianças eram incentivadas a estabelecer uma relação funcional com a escrita.

No mesmo sentido, a presença de uma mesma palavra que se repetia no texto propiciou

que as crianças passassem a representar essa palavra com uma mesma cadeia de letras, nos

contextos em que eram escritas. Essa forma de representar as palavras possibilitou que os

símbolos usados passassem a refletir os significados anotados, garantindo a lembrança da

própria palavra, do enunciado do texto composto com ela, de outro enunciado com o mesmo

sentido ou de um enunciado que era evocado no momento. A primeira vez, durante o estudo,

que observamos o surgimento de grafias expressivas foi na atividade desenvolvida por Hugo

(p. 96). Ele representou as quantidades e as palavras que se repetiram no texto sobre a sua

brincadeira preferida com os símbolos numéricos e com uma mesma cadeia de letras,

respectivamente. Apesar de sua escrita não ser legível para os outros, as grafias se tornaram

expressivas para Hugo e possibilitaram a lembrança do texto que motivou o registro.

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258

As indiferenciações nas grafias usadas para representar as palavras evidenciam que as

crianças aprenderam que uma mesma palavra deve ser sempre escrita com a mesma cadeia de

letras, ou seja, não existem diferenciações nos símbolos usados para representar uma mesma

palavra. Dessa forma, observamos que as crianças que participaram deste estudo, no início,

diferenciavam a escrita a partir da reprodução dos aspectos externos da escrita. Essas

diferenciações não proporcionaram o surgimento de grafias expressivas. Quando as crianças

começaram a indiferenciar os símbolos usados para representar as quantidades, os artigos

indefinidos e uma mesma palavra que se repetia no texto, estes adquiriram um caráter

expressivo, pois refletiam os significados anotados e levaram as crianças a estabelecerem uma

relação funcional com a escrita. Além disso, as representações usadas pelas crianças

evidenciam que aprenderam que não há distinções nos símbolos usados para escrever uma

mesma palavra e nos símbolos numéricos usados para representar as quantidades.

Outro fator que propiciou o surgimento de símbolos que expressavam os significados

anotados foi a presença de palavras nos textos cuja grafia as crianças conheciam. Nesse caso,

escreviam as palavras convencionalmente ou com letras que compunham a sua escrita

convencional. Isso ocorre porque, à medida que as crianças participam das atividades de

alfabetização, memorizam algumas palavras ou algumas letras que compõem as palavras que

estão sendo estudadas. Quando uma dessas palavras se apresentava no texto, era escrita

convencionalmente ou com as letras lembradas e possibilitavam a recordação dos enunciados

do texto. Quando as crianças representavam as palavras com apenas algumas letras que

compunham a sua escrita convencional, as mesmas letras eram utilizadas nos diferentes

contextos em que as palavras eram escritas.

Durante as últimas atividades realizadas com as crianças, notamos que os registros dos

artigos definidos (o/a) e da preposição “de” eram lidos pelas crianças, podendo exercer ou não

influência na lembrança dos enunciados do texto. Dissemos, anteriormente, que algumas

crianças, ao registrarem os textos, colocavam espaços em branco entre os segmentos de letras

usados para grafá-los. Como, no início, tentavam reproduzir a aparência externa dos textos,

registravam duas ou uma letra. As letras grafadas isoladamente eram compostas com

consoantes/vogais e vogais. Fernanda (p. 183) registrou duas letras ao compor as séries de

grafias escritas para representar os enunciados do texto sobre a sua brincadeira preferida.

Como vimos, ela compôs as séries de duas letras com consoantes/vogais. No nosso sistema de

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escrita, as palavras que são escritas com duas letras são registradas com consoante/vogal, ou

com vogal/consoante e as palavras registradas com uma letra são escritas com apenas uma

vogal. O fato de a criança escrever consoante/vogal para as séries compostas com duas letras

demonstra o quanto ela está atenta à aparência da escrita. No entanto, quando as crianças

começaram a compreender que as letras representam unidades da linguagem oral, os registros

das vogais “o” e “a” passaram a corresponder aos artigos definidos “o” e “a” usados na

composição do texto. Dessa forma, ao serem incentivadas a lembrá-lo, interpretavam essas

letras. Em algumas situações, a leitura ajudava na lembrança dos enunciados do texto; em

outras, auxiliava a confirmação dos enunciados rememorados e, também, dificultava a

elaboração de enunciados com sentido.

A representação da preposição “de” pelas letras correspondentes não era resultado de

uma análise dos fonemas que compõem essa palavra. Na realidade, as crianças haviam

memorizado as letras que deveriam ser usadas para representá-la. A sua interpretação, no

entanto, proporcionava a confirmação de um texto elaborado sem o apoio da escrita e

dificultava a enunciação de textos com sentido; no entanto, não observamos nenhuma situação

em que provocou a lembrança do enunciado.

Assim, as quantidades, os artigos, as palavras que se repetiam e as palavras cuja escrita

a criança dominava, presentes no conteúdo dos textos produzidos oralmente pelas crianças,

propiciaram o surgimento dos símbolos expressivos. Todos esses elementos passaram a ser

representados, pelas crianças, durante o registro, com símbolos indistintos, possibilitando

estabelecessem uma relação funcional com esses símbolos.

De modo geral, evidenciamos que as crianças que não aprenderam a natureza

alfabética do sistema de escrita se relacionavam com a escrita para lembrar o texto que

motivou o registro, mostrando que, quando são incentivadas a estabelecer uma relação

funcional com as grafias, aprendem o uso instrumental da escrita. Poderíamos imaginar que, a

partir do momento em que compreendem a natureza alfabética do sistema de escrita, ou seja,

entendem que o que representamos com as letras são os fonemas, a solução para o problema

de recordar o texto registrado estaria resolvida, pois já seriam capazes de ler o que escreveu.

No entanto, não foi isso que observamos, pois essa compreensão não propiciou um

aprimoramento significativo no modo como as crianças se relacionavam com a escrita para

lembrar o texto que motivou o registro. Assim, evidenciamos que o desenvolvimento da

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escrita não é um processo em que uma nova aprendizagem leva automaticamente ao

aprimoramento de outros processos envolvidos na aprendizagem da linguagem escrita, mesmo

porque esse é um processo complexo que envolve a análise dos fonemas e a escrita de letras

correspondentes, mas envolve, também, a compreensão de que não há correspondência

biunívoca entre sons e letras e vice-versa. Segundo Soares, a transferência da linguagem oral

para a forma gráfica da escrita, ou seja, no processo de estabelecimento de relações entre sons

e símbolos gráficos, “não há correspondência unívoca entre o sistema fonológico e o sistema

ortográfico na escrita portuguesa (um mesmo fonema pode ser representado por mais de um

grafema; e um mesmo grafema pode representar mais de um fonema)” (1986, p. 26).

Luria (1988) e Vigotski (1989a) afirmaram que o desenvolvimento da escrita na

criança não segue uma linha evolutiva linear e de constante aperfeiçoamento, o que impõe

grandes dificuldades para o seu estudo. Porém, em nossa opinião, o que parece ser uma

dificuldade é, em primeiro lugar, um pressuposto essencial do materialismo histórico e

dialético que afirma a atividade dos indivíduos. Nessa perspectiva, os indivíduos ativamente

transformam a realidade e são transformados por ela. Em segundo lugar, esse desenvolvimento

traduz claramente as particularidades e descontinuidades do desenvolvimento cultural nas

crianças, pois esse desenvolvimento ocorre juntamente com o desenvolvimento orgânico. O

próprio Vigotski concluiu acertadamente, a partir desse pressuposto, que, se quisermos captar

as particularidades do desenvolvimento infantil em toda a sua complexidade e riqueza, é

necessária uma mudança radical nas concepções de desenvolvimento que fundamentam os

estudos psicológicos. Para o autor, o desenvolvimento

é um processo dialético complexo que se caracteriza por uma periodicidade múltipla, por

uma desproporção no desenvolvimento das distintas funções, por metamorfoses ou

transformações qualitativas de umas formas em outras, pelo complicado entrecruzamento

dos processos de evolução e involução, pela relação entre fatores internos e externos e pelo

intricado processo de superação das dificuldades e de adaptação (tradução nossa) (1987,

p. 151).

Assim, as crianças que demonstravam ter o domínio da escrita alfabética, ao serem

incentivadas a ler o texto, compreendiam a instrução, mas apresentaram maneiras diversas de

se relacionar com a escrita para realizar tal objetivo. Observamos uma criança (Alessandra, p.

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261

86) que interpretou apenas algumas palavras que podiam ser lidas e, dessa forma, não

enunciou partes completas do texto, porque sabia que a escrita serve como recurso para a

memória; mas a maioria dos símbolos grafados não expressava os seus significados. Desse

modo, a criança se limitou a ler as grafias expressivas. Como comentamos, não há

correspondência biunívoca entre sons e letras e vice-versa no sistema de escrita do Português;

o fato de ela descobrir que a escrita representa unidades menores da linguagem oral não é

suficiente para que a criança saiba escrever e ler. Para que sua escrita expresse corretamente os

significados que desejou anotar, é necessário que aprenda os padrões ortográficos que regem a

escrita alfabética. Obviamente, as crianças não irão aprender a ortografia imediatamente; para

aprendê-la, será necessário um longo tempo de aprendizado que começa na fase inicial de

alfabetização, estendendo-se por quase toda a vida. Lemle (1989), partindo do ponto de vista

da Lingüística, apresenta uma maneira interessante de condução do ensino, durante a

alfabetização, que leva em conta as relações entre sons e letras e vice-versa. Retomando o

exemplo da aluna, podemos dizer que, como sabia que a escrita deve refletir os significados

das palavras que desejou anotar e a sua escrita não os expressava, leu apenas as grafias

expressivas.

Observamos, também, crianças que elaboravam a interpretação dos enunciados do

texto a partir da leitura de uma palavra. Assim, essas crianças se relacionavam com a escrita

como as crianças que não tinham o domínio da escrita alfabética. A presença no texto de uma

grafia expressiva proporcionava a lembrança do enunciado do texto que motivou o registro ou

de outro com o mesmo sentido. Natália (p. 89) realizava a leitura dessa maneira. A leitura de

uma palavra possibilitava a lembrança do enunciado que motivou o registro. Por outro lado,

observamos crianças que liam palavras expressivas, o que propiciava a lembrança de um

enunciado do texto e, por isso, deixavam de apontar os registros ou os apontavam

aleatoriamente; como sabiam a função da linguagem escrita, retomavam os registros e, ao

fazerem isso, não conseguiam encontrar as palavras correspondentes ao texto enunciado. Por

isso, liam uma nova grafia expressiva, lembravam um novo enunciado, retomavam as grafias,

mas não encontravam grafias correspondentes. Desse modo de se relacionar com a escrita

resultava a enunciação de textos fragmentados e sem sentido. Hugo (p. 151) realizou a leitura

do reconto dessa maneira.

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Verificamos crianças que elaboravam representações para algumas palavras do texto

que não podiam ser lidas. Entretanto, as cadeias de letras inexpressivas eram interpretadas.

Uma criança (Nicole, p. 202), no entanto, ao mesmo tempo em que lançou mão desse

expediente, interpretando as grafias inexpressivas, decodificou algumas cadeias de letras

anotadas, ou seja, as seqüências de letras foram decodificadas em símbolos sonoros que, por

sua vez, não expressavam significados. Dessa forma, parafraseando Vigotski (1989b), a

criança produziu sons vazios para as letras anotadas. O significado de uma palavra escrita,

segundo o autor, é seu componente indispensável, pois é por meio dos significados das

palavras que se realiza a função mediadora da linguagem escrita, de representação das

entidades reais e suas relações e de comunicação entre as pessoas. Dessa forma, a leitura

realizada pela criança fez com que se perdesse o elo com a realidade e com as outras pessoas

com as quais se pretende inter-agir por meio da escrita. Os sons emitidos pela criança

deixaram de ser signos, se considerarmos, conforme Bakhtin (1992), que a função do signo é

significar; sem a significação, o signo não é signo e a palavra não é uma palavra; perde-se a

atividade psíquica e sobra o ato fisiológico, não esclarecido pela consciência. Enfim, o modo

como as crianças se relacionavam com os registros demonstra que a compreensão do caráter

alfabético da escrita não é acompanhada mecanicamente da habilidade de ler e escrever como

nos adultos.

Em síntese, podemos concluir: a) no início, a “criança assimila a experiência escolar de

forma puramente externa, sem entender ainda o sentido e o mecanismo do uso de marcas

simbólicas” (Luria, 1988, p. 188) que constituem o uso funcional das letras do alfabeto para

recordar, transmitir idéias ou conceitos. Por isso, a criança opera por meios naturais: imita os

atos dos adultos ao escreverem e apenas rememora o texto sem o auxílio da escrita; b) logo

depois, aprende as características externas da escrita e a tentativa de reprodução dessas

características proporciona uma mudança na atividade gráfica. A escrita deixa de ser indistinta

para ser organizada a partir de critérios. Ao escrever, é necessário colocar espaços em branco

entre os segmentos de letras; é necessário variar as letras em cada cadeia e, em um

determinado momento, a criança grafa os enunciados do texto com uma quantidade mínima de

letras. Desse modo, a criança reproduz a forma externa da escrita, mas não compreende que

ela é um meio para recordar os significados anotados; por isso, rememora o texto sem o

auxílio da escrita; c) quando as crianças passam a organizar as grafias a partir da análise das

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263

unidades constituintes da linguagem oral, a quantidade de letras registradas e a escolha das

letras a serem escritas passam a ser reguladas pelas relações que estabelece entre o oral e o

escrito. Os símbolos alfabéticos passam a ser empregados consciente e voluntariamente para

representar as unidades da linguagem oral. No entanto, o esforço empregado pela criança, no

início, não possibilita que estabeleça uma relação funcional com a escrita; d) a presença de

determinados fatores no conteúdo dos textos que eram produzidos oralmente pelas crianças

propiciou o surgimento de símbolos indiferenciados que, por sua vez, levaram as crianças a

usar a escrita como recurso para lembrar os enunciados do texto que motivou os registros; e)

por fim, observamos que a aprendizagem de que as letras representam os fonemas não levou a

um aprimoramento no modo como as crianças se relacionavam com a escrita, pois, para que

leiam e escrevam como os adultos, será necessário que aprendam os padrões ortográficos que

regem a escrita alfabética.

Dessa forma, a história da escrita da criança é a história de como ela aprende a

empregar essa forma cultural complexa para si e para os outros. Vigotski, no manuscrito

Psicologia concreta do homem, diz: “compare a carta - para si no tempo e para o outro; ler a

própria anotação - escrever para si - significa relacionar-se para si como para o outro. Etc., etc.

Isto é a lei geral para todas as funções psicológicas superiores [grifos do autor]” (2000, p.

26). José Carlos, uma das crianças que participou da pesquisa, um dia nos questionou sobre

quando saberia ler. Não tivemos dúvida em dizer que seria quando nós (ele, eu e todas as

outras pessoas) pudéssemos ler o que ele escreveu e ele, também, pudesse ler o que eu e os

outros escrevemos. Na última atividade realizada pelo aluno, após ler o que havia escrito,

perguntou se poderíamos ler o que ele escreveu. Então, lemos o que havia escrito. Ele ouviu a

leitura, sorriu e disse que havia aprendido a ler. Perguntamos como sabia se havia aprendido.

Ele respondeu que eu havia lido o seu texto. José Carlos, na realidade, percebeu que aprendeu

a usar a escrita para si como os outros a utilizam e, por isso, todos, inclusive ele, podiam ler a

sua escrita. Isso o deixou muito contente, pois repetia a primeira série pela segunda vez.

A alfabetização é um processo complexo, que envolve a apropriação de um conjunto

de processos que precisa ser ensinado. Diferentemente da aprendizagem da linguagem oral,

não é suficiente que as crianças tenham nascido em um meio social onde vivem pessoas

letradas para que venham a aprender a ler e a escrever. Os processos que se constituem nas

crianças, durante a fase inicial de alfabetização, resultam das relações com as outras pessoas

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264

(adultos ou outras crianças) que os ensinam a ler e a escrever. Do ponto de vista pedagógico, é

essencial ter em mente que a capacidade de usar a escrita para si como os outros a utilizam não

surge e se desenvolve da mesma forma que os órgãos do corpo. Uma criança que passa a usar

as letras para escrever as suas idéias, as alheias, para recordar e para intervir sobre os outros

precisa vivenciar inúmeras situações em que as pessoas lêem e escrevem para elas e as

incentivam a ler e a escrever. Desse modo, de acordo com Vigotski, “a escrita deve ter

significado para as crianças [...] deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para

a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como um hábito de

mãos e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem” (1989a, p. 133).

Por fim, é importante ressaltar que este estudo mostrou, conforme Vigotski, que o

desenvolvimento infantil, durante a fase inicial de alfabetização escolar, baseia-se na idéia de

que as funções psicológicas se desenvolvem e não são assimiladas na sua forma acabada.

Além disso, seguem um caminho particular, pois se produzem nas condições escolares, que

constituem “uma forma singular de cooperação do professor com a criança” (1993, p. 183).

Evidenciamos como as crianças escrevem e se relacionam com a escrita durante essa

fase, ao serem incentivadas a usá-la como recurso para memória. O foco das análises, os

procedimentos usados na condução das atividades de produção oral e registro dos textos

originaram-se do trabalho realizado por Luria (1988) que indicou que, a partir do momento em

que as crianças usam as letras para escrever até o momento em que passam a dominar a escrita

convencional, existem processos que se constituem nelas de interesse da pesquisa psicológica.

Acreditamos que conseguimos mostrar, com o estudo realizado, a pertinência da indicação de

Luria e, portanto, tornar evidentes os processos que se constituem nas crianças, na fase inicial

de alfabetização, que levam à utilização da escrita como recurso para lembrar.

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Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.

(Dissertação Mestrado)

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10 _____. Reflexões sobre alfabetização. 16. ed. São Paulo: Autores Associados, 1990. 102

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11 FERREIRO, Emília; TEBEROKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:

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12 EMÍLIA, Ferreiro. Processos construtivos de apropriação da escrita. In: FERREIRO,

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13 FURNARI, Eva. O amigo da bruxinha. São Paulo: Moderna, 1995. 32 p..

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18 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 2. ed. Rio de

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p.

30 ______. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988, v. 1.

31 MARX, Karl; ENGELS, Frederich. A ideologia alemã (Fuerbach). 10. ed. São Paulo:

Hucitec, 1996.

32 PIAGET, Jean. A linguagem e o pensamento na criança. 4 ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1986. 212 p.

33 PINO, Angel. As categorias de público e privado na análise do processo de internalização.

Educação & Sociedade, Campinas, Revista Quadrimestral de Ciência da Educação, n. 42,

p. 315-327, ago. 1992.

34 ______. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do

psiquismo humano. Cadernos CEDES. Campinas: Papirus, n. 24, p. 32-43, 1991.

35 ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. 2 ed. São Paulo:

Salamandra, 1999. 60 p.

36 SMOLKA, Ana Luíza Bustamante. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das

práticas sociais. Cadernos CEDES, Campinas: Centro de Estudos e Sociedade,

UNICAMP, n. 50, p. 26-40, 2000.

37 SOARES, Magda Becker. Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. Brasília:

INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), 1991. 155 p.

38 ______. As muitas facetas da alfabetização. Cadernos de pesquisa. São Paulo: Fundação

Carlos Chagas, n. 52, p. 19-24, 1985.

39 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 6 ed. São

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268

Paulo: Editores e Autores Associados, 1997. 128 p.

40 VEER, René Van Der; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Loyola,

1996. 479 p.

41 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas

superiores. Cuba: Editorial Científico Técnica, 1987. 215 p.

42 ______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 168 p.

43 ______. Obras escogidas. Tomo II, 1993. 484 p.

44 ______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

45 ______. Psicologia concreta do homem. In: Educação & Sociedade, Campinas: Cedes,

ano XXI, n. 71, p. 21-44, jul., 2000.

46 ______. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 524 p.

47 ______. Comportamento do macaco antropóide. In: VYGOTSKY, Liev Semionovich;

LURIA, Alexandr Ramonovich. Estudos sobre a história do comportamento: símios,

homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 55-92.

48 ______. O homem primitivo e seu comportamento. In: VYGOTSKY, Liev Semionovich;

LURIA, Alexandr Ramonovich. Estudos sobre a história do comportamento: símios,

homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.93-150.

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269

ANEXO A

ROTEIRO DO FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA

Este instrumento de pesquisa foi usado para coletar informações destinadas à

caracterização da escola-campo.

1. Nome da escola: ________________________________________________________

2. Endereço: _____________________________________________________________

3. Ano de fundação: _______________________________________________________

4. Aspecto físico

a) Número de salas de aula: __________________________________________________

b) Condições das salas de aula: _______________________________________________

_________________________________________________________________________

_________________________________________________________________________

_________________________________________________________________________

c) Possui biblioteca? ________________________________________________________

d) Possui sala ambiente? ____________ Quais? __________________________________

_________________________________________________________________________

_________________________________________________________________________

e) Possui salas de professores, sala de direção e da coordenação pedagógica?

_________________________________________________________________________

f) Possui refeitório? _________________________________________________________

5. Recursos humanos

a) Número de professores por turno

Matutino: ______ Vespertino: ______ Noturno: ______

Número de alunos

Educação Infantil: ____________ Ensino Fundamental: ______________

Média de alunos por turma: ____________________

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270

b) O corpo técnico-administrativo é composto por: _______________________________

_________________________________________________________________________

c) Número de turmas por série/turno:Matutino Vespertino Noturno

4 anos ________ _________ _______

5 anos ________ _________ _______

6 anos ________ _________ _______

1a série ________ _________ _______

2a série ________ _________ _______

3a série ________ _________ _______

4a série ________ _________ _______

d) Número de faxineiras e merendeiras: _______________________________________

_________________________________________________________________________

5. Recursos materiais

a) Tipo de material pedagógico existente na escola: ________________________________

____________________________________________________________________________

______________________________________________________________________

b) Recursos audiovisuais: ____________________________________________________

____________________________________________________________________________

______________________________________________________________________

6. Histórico da escola:

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271

ANEXO B

FOLHA DO DIÁRIO DE CAMPO

O diário de campo foi um instrumento de pesquisa destinado ao registro das

observações realizadas na sala de aula.

Escola: _________________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

Horário: ________________________________________________________________

1. Observações:

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272

ANEXO C1

ROTEIRO DA ENTREVISTA COM A PROFESSORA

Este instrumento de pesquisa foi utilizado para coletar as informações para a

caracterização da professora da classe envolvida no estudo.

1. Sexo:

masculino ( )

feminino ( )

2. Idade:

abaixo de 25 anos ( )

entre 26 e 30 anos ( )

entre 31 e 35 anos ( )

entre 36 e 40 anos ( )

mais de 40 anos ( )

3. Você trabalha em:

uma só escola ( )

duas escolas ( )

três escolas ou mais ( )

4. Nesta escola você é:

profissional efetivo ( )

profissional contratado ( )

profissional com designação temporária ( )

outros ( )

Especificar: _______________________________________________________________

1 Os itens usados para caracterização da professora foram retirados do relatório de pesquisa, intitulado A implantação doprojeto CEFAM no Espírito Santo, coordenado pelas professoras Janete M. Carvallho e Regina H. S. Simões.

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273

5. Além de trabalhar nesta (s) escola (s), você exerce outra atividade profissional?

Sim. ( )

Não. ( )

Se sua resposta foi afirmativa, qual é essa atividade? _______________________________

6. Sua formação acadêmica está em nível:

( ) médio - tipo de curso ______________________________

( ) licenciatura curta - tipo de curso ______________________________

( ) licenciatura plena - tipo de curso ______________________________

( ) pós-gradução/aperfeiçoamento (menos de 360 horas)

( ) pós-graduação/ especialização (360 horas ou mais)

( ) mestrado

( ) outros

Especificar: _______________________________________________________________

_________________________________________________________________________

7. Sua experiência como professor (a):

( ) abaixo de 2 anos

( ) entre 2 até 5 anos

( ) entre 5 até 7 anos

( ) entre 7 até 10 anos

( ) acima de 10 anos

8. Sua experiência profissional foi adquirida:

( ) na docência em nível fundamental (1a a 4a séries)

( ) na docência em nível fundamental (5a a 8a séries)

( ) na docência em nível médio

( ) na docência e em funções técnicas de ensino

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274

9. Você participou de outros cursos que tenham contribuído para a sua formação como

professor (a)?

( ) Sim.

( ) Não.

Se sua resposta foi afirmativa, indique quais, citando três, por ordem de relevância, e

indicando a carga horária correspondente:

_________________________________________________________________________

10. Você é vinculado ao sindicato?

( ) Sim.

( ) Não.

11. Assina jornais, revistas, periódicos?

( ) Sim.

( ) Não.

Se sua resposta foi afirmativa, quais? ___________________________________________

____________________________________________________________________________

______________________________________________________________________

12. Participa de congressos, seminários ou encontros similares?

( ) Sempre.

( ) Às vezes.

( ) Nunca.

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275

13. Suas atividades culturais mais freqüentes são:

SEMPRE ÀS VEZES NUNCA

( ) ( ) ( ) - ouvir rádio

( ) ( ) ( ) - assistir à TV

( ) ( ) ( ) - assistir A vídeo

( ) ( ) ( ) - ir ao cinema

( ) ( ) ( ) - ir ao teatro

Especificar outras, caso haja:

( ) ( ) ( ) -

( ) ( ) ( ) -

( ) ( ) ( ) -

14. Suas leituras mais comuns:

SEMPRE ÀS VEZES NUNCA

( ) ( ) ( ) - jornais locais

( ) ( ) ( ) - jornais do País

( ) ( ) ( ) - periódicos da área de educação

( ) ( ) ( ) - livros didáticos

( ) ( ) ( ) - livros variados sobre educação

( ) ( ) ( ) - periódicos diversos

Especificar outras se ocorrerem:

( ) ( ) ( ) -

( ) ( ) ( ) -

( ) ( ) ( ) -

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276

ANEXO D

ROTEIRO DO FORMULÁRIO PARA A CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

Este formulário foi o instrumento de pesquisa usado para coletar informaçõesdestinadas à caracterização das crianças.

1. Nome da criança: ________________________________________________________

2. Endereço completo: ______________________________________________________

3. Idade:

6 anos ( )

7 anos ( )

8 anos ( )

+ de 8 anos ( )

Especificar a quantidade de meses: _____________________________________________

4. Sexo:

feminino ( )

masculino ( )

5. Já estudou?

Sim. ( )

Não ( )

Especificar onde e quanto tempo estudou: _______________________________________

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277

6. Programas favoritos:

Rádio: ___________________________________________________________________

TV: _____________________________________________________________________

7. Tipo de material escrito que possui em casa:

LivroS ( )

Revistas ( )

Jornais ( )

Outros: ___________________________________________________________________

8. Diversão preferida da criança: ______________________________________________

Especificar: _______________________________________________________________

_________________________________________________________________________

9. Pessoas que moram com o (a) aluno (a): ______________________________________

10. Profissão do pai: ____________________ Grau de instrução: _________________

Trabalho atual: ________________________ Renda mensal: ____________________

11. Profissão da mãe: ___________________ Grau de instrução: _________________

Trabalho atual: ________________________ Renda mensal: ____________________

12. Profissão do responsável: ____________ Grau de instrução: ________________

Trabalho atual: _______________________ Renda mensal: ___________________

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278

13. A criança trabalha?

Sim. ( )

Não. ( )

Especificar onde, quantas horas diárias, salário: __________________________________

_________________________________________________________________________

14. Número de irmãos:

nenhum irmão ( )

um irmão ( )

dois irmãos ( )

três irmãos ( )

mais de três irmãos ( )

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279

ANEXO E

CARTA ENVIADA AOS PAIS

Este instrumento foi encaminhado à casa das crianças envolvidas na pesquisa para

completar os dados do ANEXO D

Escola Municipal de Educação Básica

Senhores pais ou responsáveis

Contamos com a sua colaboração para o preenchimento do formulário que se segue:

1. Nome da criança: __________________________________________________

2. Profissão do pai: _______________________________________________________

3. Até que série o pai cursou na escola? _______________________________________

4. Profissão da mãe: _______________________________________________________

5. Até que série a mãe cursou na escola? _______________________________________

6. Renda familiar: _________________________________________________________

Atenciosamente,

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280

ANEXO F

CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

Nas tabelas que se seguem estão organizadas as informações coletadas por meio dos

ANEXOS D e E destinados à caracterização das crianças envolvidas no estudo.

Tabela 1 – Distribuição dos alunos segundo a idade

Idade F %Abaixo de 7 anos7 anos8 anosAcima de 8 anos

00231204

058,9830,7610,26

Total 39 100

Tabela 2 – Distribuição dos alunos segundo o sexo

Sexo F %FemininoMasculino

2217

56,4143,59

Total 39 100

Tabela 3 – Distribuição das crianças se estudaram ou não anteriormente

Escolaridade anterior F %SimNão

3801

97,442,56

Total 39 100

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281

Tabela 4 – Distribuição dos alunos conforme a idade em que começaram a estudar

Idade que começou a estudar F %Menos de 4 anos4 anos5 anos6 anos7 anos8 anosMais de 8 anos

00150713030100

038,4617,9533,34 7,69 2,56

0Total 39 100

Tabela 5 – Distribuição dos alunos segundo os programas de rádio e televisão favoritos

Programas de rádio etelevisão favoritos

F %

MúsicasNovelasDesenhosRatinhoAngélicaXuxaChavesGuguFilmesReino de DeusCelso PortioliElianaSandy e JúniorHebeDisney Club

281011060403020202010101010101

71,8034,4928,2113,5910,26 7,69 5,12 5,12 5,12 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56

Obs.: Esta tabela não apresenta total de cem por cento, porque um mesmo sujeito poderia ter

preferência por mais de um programa. O percentual foi calculado tomando por base os 39

sujeitos, pois todos possuíam rádio e/ou televisão em suas casas.

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282

Tabela 6 – Distribuição das crianças por tipo de material escrito que possuíam em casa

Tipo de material escrito F %RevistaLivroJornal

252109

73,5261,7626,47

Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento, porque um mesmo sujeito poderia termais de um tipo de material escrito. O percentual foi calculado tendo por base 34 sujeitos queadmitiram ter algum tipo de material em suas casas.

Tabela 7 – Distribuição dos alunos conforme os títulos de livros, revistas e jornais quedisseram possuir em casa

Títulos de livros, revistas eperiódicos

F %

GibisLivro didáticoCarasDesfileVejaChapeuzinho VermelhoOs três porquinhosBíbliaJornal da farmácia

541111111

31,2525,00 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25

Total 16 100Obs.: A maioria das crianças não soube especificar os títulos dos livros, revistas e jornais quedisseram possuir em suas casas. O cálculo do percentual foi feito tomando por base o total detítulos citados.

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283

Tabela 8 – Distribuição das crianças quanto à diversão preferida.

Diversões preferidas F %Brincar de bonecaNadarPega-pegaBrincar de carrinhoAndar de bicicletaBrincar de casinhaParqueCorre cutiaPular cordaConversar com amigosJogar bolaEstátuaBrincar com amigosVirar piruetaFazer a lição de casaEsconde-escondeBrincar de balançoSoltar pipaAndar a cavaloBrincar com o irmãoJogar bolaBrincar com ursinhoAssistir à televisão

87544433322111111111111

20,5117,9412,8210,2610,2610,26 7,69 7,69 7,69 5,12 5,12 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56

Obs.: Esta tabela não apresenta total de cem por cento, porque um mesmo sujeito possuía maisde uma diversão preferida. Os percentuais foram calculados tendo por base 39 sujeitos.

Tabela 9 – Distribuição das crianças conforme as pessoas que moram em sua casa

Pessoas que moram em suacasa

F %

Pais e irmãosPais, irmãos e outros parentesUm dos pais e irmãosUm dos pais, irmãos eparentes

260704

02

66,6817,9410,26

5,12Total 39 100

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284

Tabela 10 – Distribuição dos sujeitos de acordo com a ocupação do pai

Ocupação do pai F %PedreiroAuxiliar de produçãoServente de pedreiroAutônomoFrentistaMontador de produçãoVendedorColhedor de laranjaColocador de broquetesMarcineiroChapa de caminhãoArrumadorAjudante de caminhãoMetalúrgicoOperárioImpressorFunileiroMotoristaServiços gerais

09050303020201010101010101010101010101

24,3213,54 8,11 8,11 5,41 5,41 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70

Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.

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285

Tabela 11 – Distribuição das crianças conforme a ocupação das mães

Ocupação da mãe F %Do larEmpregada domésticaServiço geralMerendeiraPajemFaxineiraMerendeiraCostureira

1811020201010101

48,6529,73 5,41 5,41 2,70 2,70 2,70 2,70

Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base trinta e sete sujeitos, porque duascrianças não devolveram os formulários enviados para as suas casas.

Tabela 12 – Distribuição dos alunos conforme a renda familiar

Renda familiar F %1 até 2 salários2 até 3 salários3 até 4 salários4 até 5 salários5 até 6 saláriosMais de 6 saláriosNão declararam a rendaDesempregados

0408040303030705

10,8121,6210,81 8,11 8,11 8,1118,9113,52

Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.

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286

Tabela 13 – Nível de escolarização do pai

Grau de instrução do pai F %Quarta série completaQuarta série incompletaOitava série completaOitava série incompletaMédio completoMédio incompletoSuperiorNão estudou

0910051100010001

24,3227,0313,5229,73

0 2,70

0 2,70

Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.

Tabela 14 – Distribuição dos alunos conforme o grau de instrução da mãe

Grau de instrução da mãe F %Quarta série completaQuarta série incompletaOitava série completaOitava série incompletaMédio completoMédio incompletoSuperiorNão estudou

0712041201000001

18,9132,4410,8132,44 2,70

00

2,70Total 37 100

Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.

Tabela 15 – Distribuição das crianças de acordo com o número de irmãos

Número de irmãos F %Um irmãoDois irmãosTrês irmãosMais de três irmãosNenhum irmão

1410060504

35,8925,6415,3912,8210,26

Total 39 100

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287

ANEXO GBRINCADEIRA PREFERIDA

Este instrumento foi utilizado para registrar as instruções da brincadeira escolhida

pelas crianças.

Escola Municipal de Educação Básica

Nome da criança: _________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

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288

ANEXO HRECONTO

Este instrumento foi usado para registrar a história recontada pelas crianças.

Escola Municipal de Educação Básica

Nome da criança: _________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

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289

ANEXO I

POEMA

Este instrumento de pesquisa foi usado para registrar o poema verbalizado pelas

crianças, após a apresentação oral do mesmo pela pesquisadora.

Escola Municipal de Educação Básica

Nome da criança: _________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

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290

ANEXO J

A ESCOLA

Este instrumento foi usado para registrar o texto, produzido verbalmente pelas

crianças, sobre "a escola".

Escola Municipal de Educação Básica

Nome da criança: _________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

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291

ANEXO L

HISTÓRIA EM SEQÜÊNCIA

Este instrumento foi usado para registrar a história, contada pelas crianças, sobre a

seqüência de gravuras do livro de Eva Furnari O amigo da bruxinha.

Escola Municipal de Educação Básica

Nome da criança: _________________________________________________________

Data: ___________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________

____________________________________________________________________________