O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA EM...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAÇÃO
TESE DE DOUTORADO
O PROCESSO DE APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEMESCRITA EM CRIANÇAS NA FASE INICIAL DE
ALFABETIZAÇÃO ESCOLAR
Cláudia Maria Mendes Gontijo
Campinas2001
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Agradecimentos
Ao professor Sérgio, pela crença na realização do estudo e pelas orientações.
Ao professor Pino, pelos sábios ensinamentos.
À professora Joelma que abriu as portas da sua sala de aula para a realização deste
estudo.
Às crianças que participaram do estudo, por me ensinarem como aprendem a ler e a
escrever.
Aos meus pais, José Elias e Vilma, pela vida.
Às minhas filhas, Larissa, Lays e Luana, sempre preocupadas em me possibilitar
condições para a escrita deste trabalho.
Ao Leonardo, interlocutor atento e incansável.
À Alina, leitora dedicada.
Aos amigas, Marisa, Amarílio e Tony, que tanto me incentivaram.
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SUMÁRIO
Resumo vii
Abstract ix
Introdução 1
Capítulo I - Trajetória: persistência de questões 4
Capítulo II - O problema 9
Capítulo III - Definindo a perspectiva teórico-metodológica 13
1 O biológico e o cultural no desenvolvimento infantil 13
2 Sobre o processo de apropriação 19
3 Mediação semiótica 29
4 Com referência à metodologia 34
4.1 Implicações metodológicas 37
Capítulo IV - Escola, rituais, professora e crianças 40
1 A escola 40
2 Mais rituais 43
3 As professoras da classe 48
4 As crianças 49
5 O trabalho de alfabetização desenvolvido na sala de aula 53
Capítulo V - O processo de apropriação da linguagem escrita 64
1 O registro da brincadeira 64
1.1 A escrita é usada como recurso para a memória 72
1.2 As crianças não se relacionam com a escrita para lembrar o texto 107
1 O registro do reconto 124
2.1 A escrita é usada como recurso para a memória 126
2.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o reconto 165
4
3 O registro do poema 172
3.1 A representação de quantidades por meio de numerais e por extenso 174
3.2 Representações para as palavras cuja grafia as crianças não dominava 183
3.3 Interpretação dos artigos e da preposição ”de” 191
4 O registro do texto sobre a escola 195
4.1 As crianças se relacionavam com a escrita para recordar o texto 196
4.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para recordar o texto 212
5 O registro do texto sobre a história em seqüência 222
Capítulo VI - Considerações finais 238
Referências 257
ANEXOS 261
5
Resumo
Este trabalho teve por finalidade investigar os processos que se constituem nas
crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a estabelecer uma relação
funcional com a escrita, ou seja, quando incentivadas a usar a escrita com função mnemônica.
Dessa forma, partimos da concepção de que a linguagem escrita, usada na nossa sociedade, é
um sistema de signos que serve de apoio às funções intelectuais, especificamente à memória.
Para a realização da pesquisa, partimos da observação do trabalho realizado na sala de aula,
pela professora e crianças de uma classe da primeira série do Ensino Fundamental. Após as
observações, planejamos, juntamente com a professora da classe envolvida no estudo, cinco
atividades de produção oral de textos e seus registros pelas trinta e nove crianças, sujeitos do
trabalho, para observarmos como se relacionavam com a escrita. Assim, não organizamos,
previamente, frases e palavras a serem escritas pelas crianças com o objetivo de intervir no
modo como escreviam, mas criamos situações em que elas eram incentivadas a estabelecer
uma relação funcional com a escrita. Com base nas atividades desenvolvidas pelas crianças
durante o ano letivo, concluímos que, no início, a “criança assimila a experiência escolar de
forma puramente externa, sem entender ainda o sentido e o mecanismo do uso de marcas
simbólicas” que constituem o uso funcional das letras do alfabeto para recordar, transmitir
idéias ou conceitos. Por isso, a criança opera por meios naturais: imita os atos dos adultos ao
escreverem e apenas rememora o texto sem o auxílio da escrita. Logo depois, aprende as
características externas da escrita e a tentativa de reprodução dessas características
proporciona uma mudança na atividade gráfica. Então, a escrita deixa de ser aleatória, casual e
indistinta para ser organizada a partir de critérios: ao escrever, é necessário colocar espaços
em branco entre os segmentos de letras, é necessário variar as letras em cada cadeia e, em um
determinado momento, a criança grafa os enunciados do texto com uma quantidade mínima de
letras. Desse modo, ela reproduz a forma externa da escrita, mas ainda não compreende que
ela é um meio para recordar os significados anotados; por isso rememora o texto sem o auxílio
da escrita. No momento em que a criança passa a organizar as grafias a partir da análise das
unidades da linguagem oral, a quantidade de letras registradas e a escolha das letras a serem
escritas passam a ser reguladas pelas relações que estabelece entre o oral e o escrito. Os
símbolos alfabéticos passam a ser empregados consciente e voluntariamente para representar
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as unidades da linguagem oral, o que não possibilita que a criança estabeleça uma relação
funcional com a escrita. A presença de determinados fatores no conteúdo dos textos que foram
produzidos oralmente pelas crianças propiciou o surgimento de símbolos indiferenciados que,
por sua vez, possibilitaram o uso da escrita como recurso para lembrar os enunciados do texto
que motivou o registro. Finalmente, observamos que a aprendizagem do caráter alfabético da
escrita não proporciona um aprimoramento brusco no modo como as crianças se relacionam
com a escrita para lembrar o texto; para tal, é necessário que aprendam os padrões ortográficos
que regem a escrita alfabética.
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Abstract
This work had the objective of investigating the processes triggered in children during the
initial phase of literacy, when encouraged to establish functional relation with writing, that is,
upon receiving incentive in using writing in its mnemonic function. Being so, we initially
assume that written language as used within society, is a sign system which supports the
intellectual functions, more specifically the memory. In order to achieve this study we initially
observed the type of class work occurring between the teacher and the children in a first grade
elementary classroom. Observations made, we planned five activities along with the teacher
involved in the study, for oral production of texts and the written accounts of the 39 children
involved in the study, seeking to analyze how they deal with the writing task. Being so, we
chose not to previously set words and phrases to be written by the children so as not to
interfere in the writing process. On the other hand, the children were stimulated in establishing
a functional relation with writing. Based on the activities which were developed by the
children over the school year, we concluded that, in the beginning, the “child assimilates the
scholastic experience in a purely external manner, yet not understanding the sense and
mechanism in the use of symbols” which constitute functional use of the letters of the alphabet
in order to register or transmit ideas and concepts. This is why the child operates through
natural means: imitating adult acts upon writing and simply being prompted through a text
without written aid. Shortly thereafter, the child learns the external characteristics of writing
and the attempt to reproduce these characteristics fosters a change in graphic activity. Thus,
writing ceases to be random, casual and indistinct to become organized according to standards:
upon writing, it is necessary to leave spaces in blank between the segments of letters, it is
necessary to vary letters in each chain, and at a certain point in time, the child etches the
expression of the text using a minimal amount of letters. In this manner, the child reproduces
the external form of writing, though he/she does not understand that it is a means for
registering the meanings; and then simply remembers the text without depending on written
aid. From the moment the child begins to organize its graphics according to analysis of the
units of oral language, the amount of letters registered and the choice of letters to be written
become regulated by the relations he/she establishes between oral and written language.
Alphabetic symbols start being used in a conscious and voluntary manner in order to represent
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the units of oral language, which does not necessarily enable the child to establish a functional
relation with writing. The presence of certain factors within the content of the texts which
were orally produced by the children, fomented the appearance of differentiated symbols
which in turn enabled the use of writing as a resource for remembering the expressed within
the text which motivated the account. Finally, we observed that the learning of the alphabetical
character of writing does not furnish a sudden excellence in the way in which children relate
with writing in remembering the text; in order to do so, it is necessary that they learn the
orthographic patterns which rule alphabetic writing.
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Introdução
A partir da década de 80, com a divulgação, no Brasil, dos estudos de Ferreiro &
Teberosky sobre a gênese da leitura e da escrita, as concepções tradicionais de alfabetização,
baseadas na visão de que a aprendizagem da linguagem escrita é um processo de associação de
símbolos gráficos a sons da fala e, por isso, um processo mecânico de repetição de letras ou
sílabas e seus respectivos segmentos sonoros, passaram a ser questionadas com mais
intensidade.
A crise histórica da Psicologia, principalmente da objetivista, e o reiterado fracasso
escolar das crianças de escolas públicas na fase inicial de alfabetização contribuíram para que
a teoria de Ferreiro & Teberosky, orientada para pressupostos interacionistas, na perspectiva
psicogenética, encontrasse campo fértil para divulgação e aceitação no meio educacional. As
próprias pesquisadoras assinalaram que as elaborações que construíram eram as primeiras no
sentido de “proceder a uma revisão completa de nossas idéias sobre a aprendizagem da língua
escrita, a partir das descobertas da psicolingüística contemporânea” (1989, p. 25) e também as
primeiras a vincular esses conhecimentos “com o desenvolvimento cognitivo, tal como é visto
na teoria de Piaget” (p. 25).
Além disso, apontam que essa nova forma de conceber a alfabetização, considerando o
sujeito que aprende e, portanto, a sua atividade, tem “como fim último o de contribuir na
solução dos problemas de aprendizagem da lecto-escritura na América Latina, e o de evitar
que o sistema educacional continue produzindo futuros analfabetos” (Ferreiro & Teberosky,
1989, p. 32). Entretanto, as expectativas de resolver os problemas denominados por Ferreiro &
Teberosky (1989) de seleção social e expulsão encoberta gerados pela distribuição desigual
de oportunidades educacionais não se concretizaram e muitas crianças que são matriculadas
nas escolas continuam sem aprender a ler e a escrever, porque a solução para o problema do
fracasso escolar durante a alfabetização exige não apenas mudanças nas concepções de ensino
e aprendizagem, mas demanda, sobretudo, empenho e vontade dos Poderes Públicos no
sentido de garantir as condições para que o sistema educacional possibilite a efetiva
aprendizagem.
No entanto, é evidente que não podemos deixar de ressaltar a contribuição da teoria
psicogenética de aprendizagem da leitura e da escrita, uma vez que essa teoria contribuiu para
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romper as concepções tradicionais de aprendizagem da linguagem escrita e possibilitou que os
professores alfabetizadores começassem a refletir sobre a participação da criança no processo
de aprendizagem e sobre o trabalho que realizavam para ensinar as crianças a ler e a escrever.
O estudo que realizamos sobre a apropriação da linguagem escrita pelas crianças, em
fase inicial de alfabetização, pretende contribuir com as reflexões em torno desse processo,
por meio de uma análise que leva em conta os pressupostos da perspectiva Histórico-Cultural
na Psicologia. Dessa forma, concordando com esses pressupostos, assumimos que a
alfabetização é um processo histórico e social de formação, nas crianças, da linguagem
escrita.
Sabemos que os fundamentos que norteiam os estudos de Ferreiro & Teberoky (1985)
são notadamente construtivistas. Esta é
... é uma concepção ou uma teoria que privilegia a noção de ‘construção’ de conhecimento,
efetuada mediante interações [grifo nosso] entre o SUJEITO (aquele que conhece) e
OBJETO (sua fonte de conhecimento) - buscando superar as concepções que focalizam
apenas o empirismo [...] ou a pré-formação de estruturas... (Bregunci, [199-], p. 15).
Assim, a principal categoria que orienta os estudos com pressupostos construtivistas é
o interacionismo, que implica noções de adaptação e de equilíbrio na relação organismo com
o meio. Do ponto de vista da Perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia, o modelo
interacionista não possibilita “a compreensão da relação histórico-social entre objetivação e
apropriação que caracteriza a especificidade do desenvolvimento humano tanto do ponto de
vista do gênero humano quanto do indivíduo” (Duarte, 1993, p. 108).
Consideramos que a formação, nos indivíduos, dos resultados do desenvolvimento
histórico e social realiza-se por intermédio de mediações entre o indivíduo e o gênero humano,
sendo essas mediações exteriores ao organismo e não resultado da herança genética. Por isso,
a análise que nos propomos a realizar do processo de alfabetização levará em conta o processo
de apropriação, pois as crianças não se adaptam à linguagem escrita, mas se apropriam dela.
Elas tomam para si esse conhecimento e a prática educativa de alfabetização é mediadora
dessa apropriação. De acordo com Leontiev (1978, p. 169), “a diferença fundamental entre os
processos de adaptação em sentido próprio e os de apropriação reside no fato de o processo de
adaptação biológica transformar [grifo nosso] as propriedades e faculdades específicas do
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organismo bem como o seu comportamento de espécie. O processo de apropriação é diferente,
pois “o seu resultado é a reprodução [grifo do autor], pelo indivíduo, das aptidões e funções
humanas, historicamente formadas” (p. 169). Assim, é por meio do processo de apropriação
que os indivíduos tornam seus os resultados do desenvolvimento sócio-histórico da
humanidade e, portanto, a linguagem escrita.
Este trabalho será organizado em seis capítulos. No primeiro capítulo, situaremos este
estudo no contexto da nossa trajetória acadêmica e profissional. No segundo, apresentaremos a
questão central que orienta a pesquisa, tomando por base o estudo de Luria sobre o
desenvolvimento da escrita na criança, qual seja, os processos que se constituem nas crianças
durante a fase inicial de alfabetização, quando são incentivadas a usar a escrita para fins
psicológicos. No terceiro capítulo, discutiremos os pressupostos teórico-metodológicos da
Perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia que orientaram o estudo. Inicialmente,
abordaremos a questão do biológico e cultural, pois a compreensão dessa relação é
fundamental para entendermos o processo de formação nos indivíduos dos resultados do
desenvolvimento histórico. O quarto capítulo é meramente descritivo e terá por finalidade
caracterizar a escola-campo e a sala de aula onde foi realizado o estudo, descrever o cotidiano
da escola e da sala de aula, caracterizar os sujeitos envolvidos no estudo (professora e
crianças) e identificar o método de alfabetização utilizado pela professora para ensinar as
crianças a ler e a escrever. No quinto capítulo, apresentaremos a base empírica do trabalho.
Esse capítulo foi organizado em cinco partes, considerando as atividades de produção de texto
realizadas pelas crianças durante o ano letivo. Assim, ele foi organizado a partir das atividades
de registro da brincadeira preferida das crianças, do registro do reconto, do registro do poema,
do registro do texto sobre a escola e do registro do texto sobre uma história em seqüência. No
último capítulo, sintetizaremos as nossas principais descobertas ocorridas durante o trabalho,
enfatizando os processos que se constituíram nas crianças participantes deste estudo, quando
eram incentivadas a usar a escrita para fins mnemônicos.
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Capítulo I
Trajetória: persistência de questões
A alfabetização é um processo que esteve no centro das nossas preocupações.
Inicialmente, como professora alfabetizadora, essas preocupações estavam orientadas para a
descoberta de métodos de ensino mais adequados. À medida que nos apropriávamos dos
conhecimentos acerca da gênese da linguagem escrita nas crianças, começamos a analisar,
principalmente, as elaborações de Ferreiro e Teberosky sobre a evolução da escrita
confrontando-as com as produções escritas das crianças das escolas onde trabalhamos. Nossas
primeiras indagações acerca da pertinência dos estudos das autoras nasceram da observação e
acompanhamento das produções escritas das crianças que ensinávamos a ler e a escrever. A
primeira questão que nos chamou a atenção foi o fato de não verificarmos o processo
evolutivo proposto por Ferreiro & Teberosky (1989) nas produções textuais das crianças. Era
possível observá-lo na escrita de palavras e pequenas frases, quando os procedimentos
utilizados pelas autoras para sugerir a interpretação das grafias eram também usados.
Essa questão era intrigante, porque, como já apontamos, uma das preocupações iniciais
com relação à alfabetização estava ligada à prática educativa, ou seja, à busca de métodos
mais adequados para ensinar as crianças a ler e a escrever. Havíamos, a partir de estudos
acerca das críticas aos métodos de alfabetização (principalmente os sintéticos), decidido pela
necessidade de as crianças aprenderem a ler e a escrever tendo por base os textos. Muitos
autores apontavam a centralidade da leitura e produção de textos no ensino da Língua
Portuguesa. Dentre eles, podemos citar João Wanderley Geraldi, que teve uma influência
importante na redefinição da nossa prática educativa, pois, com base nas suas aulas, na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e, depois, por meio da leitura do seu livro
Portos de passagem, publicado após as belas exposições realizadas durante o curso,
delineamos uma metodologia de alfabetização baseada na leitura e produção de textos.
Estávamos certa de que formaríamos leitores e escritores por meio dessa forma de atuar junto
com as crianças, durante a fase inicial de alfabetização.
Ao mesmo tempo, no final da década de 80 e início da década de 90, no Estado do
Espírito Santo, as discussões sobre a alfabetização giravam em torno dos estudos de Ferreiro
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& Teberosky sobre a gênese da escrita na criança. Durante o curso de Especialização em
Alfabetização, realizado na PUC de Belo Horizonte (MG), foi possível, também, aprofundar
os estudos sobre as elaborações dessas autoras.
Assim, com base nos conhecimentos que acumulamos acerca da alfabetização e na
análise das produções escritas das crianças, construímos as primeiras questões que, mais tarde,
se tornariam objeto de estudo, desenvolvido durante o curso de Mestrado em Educação, na
Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação da professora Janete Magalhães
Carvalho.
Durante os estudos realizados no curso de Mestrado, concluímos que as questões,
inicialmente, formuladas para o trabalho, foram elaboradas sobre princípios teóricos que
objetivavam a busca de estágios e processos de desenvolvimento únicos e lineares para todas
as crianças, pois, na realidade, buscávamos investigar os processos evolutivos que poderiam
ser verificados por meio do registro de textos pelas crianças. À medida que as nossas questões
de estudo foram se aprofundando, passamos a considerar a necessidade de buscar novas
orientações teórico-metodológicas para fundamentar o estudo.
Desse modo, decidimos aprofundar estudos sobre a Perspectiva Histórico-Cultural na
Psicologia, na busca de delineamentos de pressupostos teórico-metodológicos que pudessem
orientar a nossa investigação sobre a apropriação da linguagem escrita. Diante da escassez das
obras de Vigotski, no Brasil, e da impossibilidade de articular a base teórica do nosso estudo a
partir das obras a que tivemos acesso na época, o livro de Leontiev (1978), intitulado O
desenvolvimento do psiquismo tornou-se uma das fontes privilegiadas para explicação dos
fenômenos observados durante a coleta de informações; da mesma forma, o artigo de Luria
(1988), O desenvolvimento da escrita na criança, foi fundamental para delinear a metodologia
que seria usada durante o trabalho empírico.
O relatório final do estudo, desenvolvido durante o curso de Mestrado, intitulado A
apropriação da linguagem escrita, mostra a tentativa de confrontar os resultados do nosso
estudo com as elaborações de Ferreiro e Teberosky. Não iremos apontar todas as questões
tratadas no relatório, mas consideramos pertinente enfocar a análise que elaboramos acerca do
que denominamos, na época, de internalização da linguagem escrita. Os procedimentos
metodológicos usados para a coleta das informações seguiram delineamentos semelhantes aos
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utilizados por Luria (1988) para investigar o desenvolvimento da escrita nas crianças pré-
escolares.
Participaram do estudo crianças que estavam matriculadas na etapa inicial do Bloco
Único, correspondente à primeira série do Ensino Fundamental. As atividades realizadas pelas
crianças consistiram, na primeira etapa, do registro de uma parlenda (versos populares) e, na
segunda etapa, do registro de frases que retratavam situações cotidianas da escola. Era pedido
às crianças que escrevessem os versos e as frases de modo que pudessem, após o registro, com
a ajuda das grafias, recordar o conteúdo que motivou a escrita.
Desse modo, o aspecto focalizado pela atividade realizada pelas crianças estava
relacionado com o uso funcional das grafias, ou seja, como as crianças passam a usar as letras
para fins psicológicos. No entanto, durante o processo de registro da parlenda e das frases,
constatamos que as crianças elaboravam as relações de simbolização entre as grafias e
unidades da linguagem por meio da fala. Como essa descoberta era muito interessante e estava
de acordo com os nossos propósitos iniciais – confrontar os resultados do nosso estudo com as
teorizações de Ferreiro e Teberosky – analisamos como as crianças, durante a apropriação da
escrita, na escola, compreendem as relações entre o oral e o escrito.
Com base no material coletado, elaboramos três categorias de análise que mostram a
dinâmica do processo de apropriação/internalização das correspondências entre letras e
unidades da linguagem. Na primeira categoria, incluímos as crianças que: a) usaram letras
para escrever o texto; b) produziram a escrita silenciosamente, isto é, não usaram a fala para
organizar a escrita que estava sendo elaborada; c) não utilizavam os registros produzidos para
ajudar a lembrar o conteúdo do texto. Na segunda categoria, foram incluídos os sujeitos que:
a) como na primeira categoria, o registro não os ajudava a recordar o conteúdo do texto; b)
usavam a fala para regular a ação de escrever: os segmentos gráficos registrados
correspondiam a determinados segmentos sonoros produzidos oralmente; c) não usavam a
escrita como recurso para auxiliar a recordação do conteúdo do texto. Desse modo, o segundo
item é o que diferenciava a atividade dos sujeitos incluídos na segunda categoria, se
comparada à primeira. As crianças tentavam estabelecer uma relação de simbolização entre os
segmentos gráficos e os segmentos sonoros, por meio da fala, mas não interpretavam a escrita
produzida. Na terceira categoria, foram incluídas as crianças que realizaram a atividade
silenciosamente. O silêncio só era quebrado quando tinham dúvidas sobre a grafia de uma
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palavra e, por isso, perguntavam à pesquisadora que letra deveria ser usada para escrever.
Nesse caso, a escrita ajudava a recordar o conteúdo registrado.
Assim, com base nos dados empíricos, coletados durante a realização das atividades de
registro, verificamos que a fala que orienta e organiza a atividade de escrita fornece elementos
novos para a compreensão de como as crianças, ao longo do processo de alfabetização,
compreendem as relações entre o oral e o escrito.
Conforme demonstraram Ferreiro & Teberosky (1989) e Ferreiro (1992, 1995), o
período de fonetização da escrita é constituído pela elaboração de três hipóteses: silábica,
silábico-alfabética e alfabética. A hipótese silábica, para Ferreiro (1995), constitui-se pela
tentativa de estabelecer correlação entre a escrita e a fala. Entretanto, a correspondência
elaborada pela criança é imprecisa, pois, para cada sinal gráfico produzido, corresponde uma
sílaba da palavra. A hipótese silábico-alfabética se caracteriza por uma forma de escrever que
revela a transição entre a concepção silábica e a concepção alfabética da escrita. A última
hipótese se caracteriza pela escrita alfabética, ou seja, a criança “compreendeu que cada um
dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba, e realiza
sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever” (Ferreiro &
Teberosky, 1989, p. 213).
É importante lembrar que os resultados obtidos pelas pesquisadoras originaram-se de
situações de pesquisa em que as crianças escreviam palavras e pequenas frases.
Imediatamente, após o registro, as crianças liam a escrita elaborada. A correlação entre os
segmentos gráficos e os segmentos sonoros foi observada, fundamentalmente, por meio da
leitura efetuada pelas crianças.
Como demonstram nossas investigações, as relações entre segmentos gráficos e
segmentos sonoros são elaboradas no plano verbal, por meio da fala. Por isso, consideramos
que, se quisermos compreender essas relações, é necessário analisar a linguagem que orienta e
organiza a atividade de escrita. Em nenhum momento solicitamos que as crianças fizessem a
análise verbalmente. Essa foi uma iniciativa das crianças envolvidas no estudo que nos
pareceu surpreendente e reveladora dos seus reais esforços na busca de compreensão das
relações entre as letras e as unidades da linguagem.
Não obtivemos evidências que comprovem que essas tentativas de correspondência
entre segmentos gráficos e unidades sonoras, elaboradas pelas crianças, por meio da fala,
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sigam o curso evolutivo proposto por Ferreiro e Teberosky. No entanto, acreditamos, com
base nas informações obtidas, na impossibilidade de definir estágios para a apropriação da
linguagem escrita, pois as funções mentais superiores são constituídas e reconstituídas nas
condições sociais em que esse fenômeno se desenvolve e, por isso, dependem das práticas
sociais de alfabetização.
Vigotski (1989a) assinala que a linguagem escrita é um sistema de signos que está
relacionado com contextos extralingüísticos. O estudo que realizamos enfocou a sua relação
com contextos lingüísticos. Dessa forma, a questão do uso funcional da escrita, ou seja, como
as crianças, durante a fase inicial de alfabetização, relacionam-se com a escrita para fins
psicológicos, não foi abordada e, por isso, decidimos orientar os estudos deste trabalho para
essa questão.
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Capítulo IIO problema
Luria (1988) descreveu, no seu trabalho sobre o desenvolvimento da escrita, como
crianças que não estavam participando de um processo escolar de alfabetização passaram a
usar sinais, marcas e desenhos como símbolos, pois estes adquirem um significado funcional;
começam a refletir o conteúdo registrado e, portanto, possibilitam a lembrança das frases ou
palavras que motivaram os registros. Esse autor diz que o período primitivo por ele estudado
chega ao fim quando a criança inicia o processo de escolarização. No entanto, não está
completamente certo da sua afirmação, pois considera que, entre o período de elaboração das
primeiras formas simbólicas de representação e a elaboração da escrita na sua forma cultural,
existe um longo período particularmente interessante para a pesquisa psicológica.
Interessado por esse período, Luria descreveu alguns dados de pesquisa coletados com
crianças que conheciam algumas letras do alfabeto, mas que ainda não podiam escrever
convencionalmente usando as letras conhecidas. Com base nesses dados e no estudo sobre a
pré-história da escrita, afirmou que
a escrita não se desenvolve, de forma alguma, em uma linha reta, com um crescimento e
aperfeiçoamento contínuos. Como qualquer outra função psicológica cultural, o
desenvolvimento da escrita depende, em considerável extensão, das técnicas de escrita
usadas e eqüivale essencialmente à substituição[grifo nosso] de uma técnica por outra
(1988, p. 180).
Centraremos nossas ponderações, inicialmente, na primeira parte da citação:
entendemos que Luria considerava que a criança, antes de participar de um processo escolar
de alfabetização, compreende que pode usar sinais, marcas, desenhos, etc. como símbolos,
pois estes passam a expressar significados que a criança desejou registrar; mas isso não
possibilita que utilize esses conhecimentos quando é exposta às formas culturais de escrita, ou
seja, quando começa a aprender, na escola, o sistema de escrita usado socialmente. Para o
autor, é exatamente a substituição de uma técnica por outra que leva a um aprimoramento das
habilidades de ler e escrever. Porém, a aprendizagem de uma nova forma de escrita
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“inicialmente atrasa, de forma considerável, o processo de escrita, após o que então ele se
desenvolve mais até um nível novo e mais elevado” (Luria, 1988, p. 180).
Assim, para Luria, as crianças iniciam o desenvolvimento da escrita mesmo antes de
estarem expostas a um processo escolar de aprendizagem da linguagem escrita. Esse período,
anterior à aprendizagem escolar, é denominado de pré-história da escrita e é constituído por
estágios que podem, de uma maneira geral, ser traduzidos pela seguinte explicação:
No começo, a criança relaciona-se com coisas escritas sem compreender o significado da
escrita; no primeiro estágio, escrever não é um meio de registrar algum conteúdo
específico, mas um processo autocontido, que envolve a imitação de uma atividade do
adulto, mas que não possui, em si mesmo, significado funcional. Esta fase é caracterizada
por rabiscos não-diferenciados; a criança registra qualquer idéia com exatamente os
mesmos rabiscos. Mais tarde – e vimos como se desenvolve – começa a diferenciação: o
símbolo adquire um significado funcional e começa graficamente a refletir o conteúdo que
a criança deve anotar (Luria, 1988, p.181).
Ao iniciar o processo de escolarização, a criança é exposta à aprendizagem do sistema
de escrita usado socialmente. Tendo que utilizar essa nova forma de escrita, Luria acredita que
as crianças passam pela mesma fase primitiva, ou seja, retomam uma escrita indiferenciada e,
dessa forma, usam as letras que estão sendo aprendidas para aprender, mas não conseguem
estabelecer uma relação funcional com elas. Nesse sentido, o desenvolvimento da escrita não é
um processo linear e de contínuo aperfeiçoamento, pois a aprendizagem dos símbolos
alfabéticos, na fase inicial de alfabetização, propicia o retorno às formas primárias de as
crianças se relacionarem com os registros.
Concordamos com o autor: de fato, no início da alfabetização escolar, as crianças
escrevem usando as letras que estão sendo aprendidas, mas ainda não conseguem estabelecer
uma relação funcional com elas. Em um trabalho anterior (Gontijo, 1996), mostramos que um
grupo de crianças que participou do nosso estudo usava letras para escrever um texto, mas
estas não possibilitavam a lembrança dos textos que motivaram a escrita.
Ainda de acordo com Luria (1988), o desenvolvimento da escrita é dependente da
substituição de uma técnica de escrita por outra. Conforme nosso entendimento, o autor se
refere a duas técnicas de escrita: uma elaborada pela criança pré-escolar, que se caracteriza
pelo uso de sinais, marcas, pontos, desenhos, etc. como símbolos que possibilitam a
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recordação dos significados anotados. Essa é uma forma primitiva de registro, possui um
caráter espontâneo, pré-histórico, pois não se constitui a partir das formas culturalmente
desenvolvidas de escrita que são aprendidas na escola. A outra eqüivale às formas culturais,
ou seja, ao sistema de escrita elaborado ao longo da história social e que depende de uma ação
sistemática e intencional para que as crianças venham se apropriar delas.
Tendo em vista a tradução portuguesa do texto de Luria sobre o desenvolvimento da
escrita nas crianças, deparamos-nos com uma questão (Luria, 1988): o uso do termo
substituição para se referir à passagem das formas primárias de escrita elaboradas pelas
crianças para as formas culturais. Não sabemos até que ponto o termo substituição é usado na
tradução do texto de Luria (1988) correspondendo corretamente ao termo usado no trabalho
original. Em um outro texto, ao explicar os processos que levam ao desenvolvimento das
formas culturais na criança, usa o termo superação. A questão será tratada no próximo
capítulo de maneira geral, mas é importante assegurar que o termo superação entendido, no
contexto do modelo teórico que orienta os estudos da Perspectiva Histórico-Cultural na
Psicologia, é mais apropriado para explicar a dinâmica do desenvolvimento cultural na
criança.
O desenvolvimento da escrita, na sua forma cultural, começa, para Luria (1988),
quando a criança entra para a escola e começa a aprender o alfabeto. Nesse momento, no
entanto, a criança passa por uma fase que se caracteriza pela incapacidade de se relacionar
com a escrita de maneira funcional, ou seja, ela é incapaz de usar, no começo da
aprendizagem, a escrita como instrumento que lhe permite recordar os significados anotados.
Como mencionamos, nós mesmos observamos que isso ocorre com as crianças que estão
participando de um processo inicial de alfabetização escolar.
Nesse sentido, é fundamental a indicação do autor de que “a partir do momento em que
uma criança começa, pela primeira vez, a aprender a escrever até a hora que finalmente
domina essa habilidade há um longo período, particularmente interessante para a pesquisa
psicológica” (1988, p. 180). Visando a contribuir para a compreensão dos processos que
possam se constituir nas crianças, nesse período, propusemos este estudo que teve por
finalidade investigar como as crianças escrevem e se relacionam com a escrita, durante a fase
inicial da alfabetização, ao serem incentivadas a usá-la para fins mnemônicos.
Escolhemos para participar da pesquisa a professora e as crianças de uma classe de
20
primeira série do Ensino Fundamental, da rede pública de ensino. Elegemos essas crianças,
porque sabemos que a maioria usa as letras do alfabeto para escrever, mas elas não dominam a
linguagem escrita. Para evidenciar os processos que se constituem nas crianças, foi necessário
planejar atividades de produção de textos para serem realizadas pelos alunos e investigar como
se relacionavam com a escrita, após serem incentivados a utilizar a escrita para lembrar o texto
que motivou o registro.
21
Capítulo III
Definindo a perspectiva teórico-metodológica
De modo geral, a proposta desta pesquisa foi investigar a apropriação da escrita pelas
crianças matriculadas na primeira série do Ensino Fundamental. Sendo assim, essa proposta
remete à perspectiva teórica que orientou o estudo, pois consideramos que o uso do termo
apropriação está vinculado à abordagem teórica que fundamenta os trabalhos da Perspectiva
Histórico-Cultural na Psicologia. Consideramos ainda que a adoção de uma determinada
perspectiva teórica corresponde a uma maneira específica de olhar, analisar, explicar e intervir
sobre os processos que ocorrem nas crianças ao longo do seu desenvolvimento. Por isso, antes
de discutirmos a categoria de análise escrita no título deste estudo, enfocaremos como
compreendemos, com base na Perspectiva Histórico-Cultural, a questão do biológico e cultural
no desenvolvimento infantil, pois acreditamos que essa compreensão é fundamental para
entendermos as categorias de apropriação e mediação que orientaram a pesquisa.
1 O biológico e o cultural no desenvolvimento infantil
A Perspectiva Histórico-Cultural, elaborada pela escola de Vigotski, fornece os
pressupostos que contribuem para romper dualismos que marcaram os estudos na Psicologia e
para compreendermos que não existem mecanismos internos de conhecimento da realidade
independentes das relações sociais historicamente situadas.
Certamente, os estudos de Vigotski não constituem uma obra acabada. O próprio
Vigotski, segundo Leontiev, Luria e Tieplov (1987), estava consciente da incompletude de seu
programa de estudos. Entretanto, os estudos desse autor “fornecem um conjunto de
pressupostos, fundados no materialismo-histórico e dialético, e algumas elaborações teóricas
que definem as grandes linhas do que pode ser considerado um novo paradigma
epistemológico” (Pino, [199-], p. 13-14), principalmente se considerarmos os estudos
desenvolvidos por Luria e Leontiev, dois dos seus mais importantes companheiros na busca de
elaboração de uma nova Psicologia.
Segundo Luria (1996, p. 151), o estudo do desenvolvimento ontogenético deve levar
22
em conta que este é resultado de uma
evolução complexa que combina pelo menos três trajetórias: a da evolução biológica desde
os animais até o ser humano, a da evolução histórico-cultural, que resultou na
transformação gradual do homem primitivo no homem cultural moderno, e a do
desenvolvimento individual de uma personalidade específica (ontogênese), com o que um
pequeno recém-nascido atravessa inúmeros estágios, tornando-se escolar e a seguir um
homem adulto cultural.
Para a análise da evolução biológica, Vigotski (1996) baseou-se nas idéias de Marx e
Engels sobre a história humana. De acordo com Leontiev, Engels acreditava na idéia de uma
origem animal para o homem, conforme elaborada por Darwin, mas mostrou, também, que o
homem é distinto dos seus antepassados animais “e que a hominização resultou da passagem à
vida numa sociedade organizada na base do trabalho; que esta passagem modificou a sua
natureza e marcou o início de um desenvolvimento que, diferentemente do desenvolvimento
dos animais, estava e está submetido não às leis biológicas, mas às leis sócio-históricas [grifos
do autor]” (1978, p. 262). Para Marx, os homens e os animais realizam uma atividade
produtiva, porém, “o animal se identifica imediatamente com sua atividade vital; não se
distingue dela; é ela. O ser humano torna sua atividade vital, ela mesma, objeto de sua vontade
e de sua consciência” (apud Konder, 1992, p. 104). O homem é um ser natural e pertence à
natureza, mas a sua atividade produtiva permite-lhe adquirir “uma relativa autonomia no que
faz, passa a fazer escolhas, a tomar iniciativas e assumir riscos. Nesse sentido, o ser humano
tem um modo peculiar de assumir a sua espécie [grifos do autor] (que é o gênero humano)”
(Konder, 1992, p.104). Ele produz universalmente, ou seja, produz também livre das
necessidades físicas – e de fato só assim produz de maneira verdadeiramente humana.
Nessa perspectiva, a invenção e o uso de ferramentas no trabalho demarcam “o fim da
etapa orgânica de desenvolvimento comportamental na seqüência evolutiva [...] e [tornam-se]
o principal pré-requisito psicológico do desenvolvimento histórico do comportamento”
(Vigotski, 1996, p. 52). Analisando os experimentos de Köhler sobre o uso de instrumentos
pelos animais, Vigotski concluiu que esse uso nunca se desenvolve em trabalho. Por isso, “o
uso de instrumentos na ausência do trabalho é o que mais aproxima o comportamento do
homem e do macaco e, ao mesmo tempo, o que mais os afasta” (1996, p. 87).
Assim, a invenção e o uso de instrumentos são os fundamentos para a construção de
23
uma nova forma de inter-ação com a natureza, mas não definem o processo histórico de
desenvolvimento da humanidade. Para que esse processo seja iniciado, é necessário que essas
atividades se desenvolvam em situação de trabalho. De acordo com Duarte, o trabalho “é
originariamente uma atividade imediatamente coletiva, exige, portanto, a atividade
comunicativa. A atividade de comunicação foi, ao longo da história primitiva, se objetivando
em processos que geraram a linguagem” (1993, p. 33). Desse modo, o uso de instrumentos no
trabalho permitiu ao homem controlar a natureza e o surgimento da linguagem permitiu-lhe
dominar o seu próprio comportamento e o de outros homens. O uso dos signos constitui, dessa
forma, “o conteúdo principal de toda história do desenvolvimento cultural” (Vigotski, 1996, p.
91). Nessas condições, o desenvolvimento do homem é definido pela história social e não mais
por leis naturais. “O homem e a humanidade libertam-se [...] do ‘despotismo da
hereditariedade e podem prosseguir o seu desenvolvimento num ritmo desconhecido no
mundo animal’” (Leontiev, 1978, p. 264).
O início de um novo processo de desenvolvimento – histórico-cultural – produziu
mudanças extraordinárias no homem e na natureza. Ao agir sobre a natureza e em relação com
outros homens, munidos dos instrumentos técnicos e dos signos, o homem cria uma natureza
completamente nova, ao mesmo tempo em que modifica e transforma a si mesmo, adquirindo
um controle cada vez maior sobre as forças da natureza e produzindo uma variedade de
capacidades e necessidades que se tornam o ponto de partida de novo autodesenvolvimento.
Dessa forma, a apropriação da cultura, produzida pelo homem, ao longo de sua história
social, tornou-se um requisito fundamental para a humanização. Podemos dizer, concordando
com Leontiev, “que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando
nasce não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no
decurso do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (1978, p. 267).
O processo de desenvolvimento histórico não coincide com o processo de evolução
biológica no decurso da história humana, mas, na criança, essas duas linhas evolutivas estão
fundidas, formando um processo único e complexo. Isso significa que o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores, o desenvolvimento cultural na criança, apóia-se sobre os
processos de maturação e crescimento, formando um todo único. “Como o desenvolvimento
orgânico tem lugar em um meio cultural, ele se converte em um processo biológico
condicionado historicamente. Por outro lado, o desenvolvimento cultural adquire um caráter
24
particular e incomparável, já que se realiza simultaneamente com a maturação orgânica,
portanto seu portador é o organismo da criança que amadurece e cresce [grifos e tradução
nossos]” (Vigotski, 1987, p. 40).
Assim, a apropriação pelas crianças dos resultados do desenvolvimento histórico, das
produções humanas, ocorre simultaneamente com o processo de desenvolvimento biológico.
Por isso, o desenvolvimento cultural na criança adquire um caráter particular, peculiar,
específico, que não deve ser comparado ao desenvolvimento da espécie humana (filogenético)
e ao processo histórico de construção da cultura pelos homens, pois não é uma recapitulação
desses processos: ele é também obra da própria criança que se desenvolve.
Luria (1996), ao descrever o desenvolvimento cultural, diz que a criança passa por
quatro fases que podem ser encontradas em quase todos os processos desde os mais simples
até os mais complexos. A primeira fase é caracterizada pelas formas naturais de
comportamento, ou a fase primitiva. Essa fase diferencia-se das demais pela incapacidade da
criança de usar funcionalmente os meios culturais disponíveis. Na segunda fase, denominada
fase ingênua, a criança utiliza determinados meios culturais que lhe são apresentados, mas não
compreende a sua função. No terceiro estágio, “a criança compreende a possibilidade de um
uso instrumental ativo dos meios culturais” (1996, p. 219). No estágio do uso interno de meios
culturais, quarto estágio, “as técnicas externas e signos culturais aprendidos na vida social [...]
[tornam-se] processos internos” (p. 219).
De modo geral, a visão de Vigotski e de Luria sobre o desenvolvimento da
criança pode ser resumida assim: “todas as crianças [passam] por um estágio de
desenvolvimento ‘natural’ caracterizado pela incapacidade da criança para fazer uso dos meios
culturais disponíveis. Como as crianças dessa idade não usam esses instrumentos, elas podem
ser chamadas de ‘primitivas’, no sentido de pré-culturais” (Veer e Valsiner, 1996, p. 248). À
medida que a criança cresce, estando imersa em relações sociais que lhe propiciam a
aprendizagem, passa a fazer uso dos meios culturais disponíveis e a exercer um domínio, cada
vez maior, sobre os seus próprios processos mentais.
Vigotski e seus colaboradores ao definir as fases para o desenvolvimento
infantil, deixaram à mostra que distinguiam (pelo menos em uma etapa de seus estudos) os
processos naturais de desenvolvimento, que estão diretamente ligados aos processos
biológicos, dos processos culturais, que dependem das apropriações, no decorrer do
25
desenvolvimento ontogenético. Luria, Leontiev e Tieplov assinalam que essa distinção,
criticada na época, teve de fato lugar nos trabalhos de Vigotski, assim como nas investigações
de seus colaboradores. Contudo, a proposição de etapas para o desenvolvimento infantil, que
distinguiam os processos naturais e culturais, “es realmente inconsistente, pues, resulta que
también, en los niños de la edad más temprana, los procesos psíquicos se forman bajo la
influencia de la comunicación verbal con los adultos que los rodean y, por lo tanto, no son
'naturales'” (1987, p. 7). Desse modo, para esses autores, as apropriações que ocorrem, a partir
do nascimento, resultam das relações que as crianças estabelecem com as outras pessoas.
Luria, Leontiev e Tieplov argumentam ainda que a contraposição não estava presente
nas proposições metodológicas gerais de Vigotski.
Al contrario, Vigotskij, al exponer sus puntos de vista teóricos, desarrollaba insistentemente
la idea de que estas 2 formas sólo se pueden separar por medio de la abstracción: 'Ambos
planos del desarrollo, el natural y el cultural, coinciden y se vierten uno el outro (...) Dado
que el desarrollo orgánico se realiza en un medio cultural, se convierte, por tanto, en un
proceso biológico condicionado históricamente' (1987, p. 7).
Sendo assim, para Vigotski (1987), as formas naturais (orgânicas) e as superiores
(culturais) se desenvolvem simultaneamente constituindo um processo único. A análise que
Vigotski (1987) desenvolveu sobre a história do desenvolvimento do gesto indicativo ilustra
adequadamente a sua concepção sobre o desenvolvimento cultural. Para ele, o gesto indicativo
é, inicialmente, apenas um movimento de agarrar fracassado, dirigido a um objeto de interesse
da criança. Quando a criança tenta pegar o objeto, ela não tem a intenção de estabelecer
contato com as outras pessoas ou de intervir em seus comportamentos. No entanto, esse
movimento é interpretado pelas outras pessoas que estão à sua volta e adquire uma
significação, no contexto das relações, que no princípio é externa, mas se transforma para a
própria criança no que ele é para os outros. O movimento torna-se um gesto indicativo.
Segundo esse autor, a criança é a última a se conscientizar da função que os seus movimentos
assumem no interior das relações sociais. Assim, eles adquirem a função de indicação para os
outros e, só mais tarde, transformam-se em indicação para a própria criança.
Conforme exemplificado, na ontogênese, o desenvolvimento cultural e o
desenvolvimento biológico ocorrem simultaneamente, formando um processo único. Isso,
26
segundo Vigotski (1987), constitui toda particularidade do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores na criança. O desenvolvimento cultural se apóia sobre um tipo
específico de desenvolvimento biológico (humano), que possibilita e torna as apropriações
possíveis, e as crianças, por nascerem imersas em um mundo cultural criado pelos seus
antepassados e nas relações sociais que tornam as apropriações possíveis, iniciam o seu
desenvolvimento cultural antes de terem encerrado seu desenvolvimento biológico. Desse
modo, o desenvolvimento infantil, desde a mais tenra idade, não está ligado unicamente ao
inventário biológico da criança e não pode ser compreendido a partir deste. A história do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores nas crianças deve levar em conta as
formas historicamente elaboradas de pensamento, como estas vão se constituindo num
organismo que se desenvolve, por meio das relações que estabelecem com as pessoas que as
rodeiam. No próximo item, discutiremos o processo que possibilita a constituição nas crianças
das formas culturais.
Se as duas formas de desenvolvimento (cultural e biológico) estão integradas na
ontogênese, então, como estas se relacionam, produzindo formas cada vez mais superiores de
conduta? Vigotski, ao discutir a relação entre as formas superiores e inferiores, diz que “la
relación entre las formas superior e inferior puede ser expresada de la mejor manera por el
reconocimiento de lo que en dialéctica se conoce bajo el nombre de superación” (1987, p.126).
O termo superação significa, na Língua Portuguesa, “ato ou efeito de superar”. Superar, por
sua vez, significa vencer, destruir, dominar. Vigotski (1987) recorda que o significado dessa
expressão no alemão é, em primeiro lugar, eliminar, negar, mas ela significa também
conservar. Dessa forma, o termo superação tem sentidos contraditórios. Com base nos
sentidos que lhe são atribuídos no alemão, é possível dizer que os processos elementares e as
leis que os regem permanecem, são conservados nas formas culturais. O exemplo do
desenvolvimento do gesto indicativo é ainda ilustrativo. O movimento inicial realizado pela
criança (gesto de agarrar) continua a existir independentemente do sentido que lhe é atribuído
e, para realizá-lo, é necessário que se coloquem em ação as forças do seu corpo. No interior
das relações sociais, ele se torna um gesto indicativo, adquirindo a qualidade de signo para os
adultos e, depois, para as crianças que passarão a utilizá-lo para se relacionarem com as outras
pessoas e alcançar um determinado objetivo (por exemplo, um brinquedo).
Segundo Vigotski (1987), a decomposição dos processos superiores em partes, ou seja,
27
a análise dos processos elementares, não possibilita a compreensão das particularidades
específicas das formas superiores e das leis que os regem (a visão de que o todo não surge da
soma das partes é um pressuposto básico da dialética). Assim, se isolarmos o movimento que
está na base do gesto indicativo e analisarmos as leis que o regem, não obteremos a sua forma
superior. O movimento passa a ser um gesto indicativo para os outros que o interpretam como
tal. Dessa forma, são as pessoas que, inicialmente, dão significados ao movimento da criança
sendo essa significação atribuída ao movimento, o elemento que possibilita compreender a
relação entre os processos biológicos e culturais e, portanto, a passagem do biológico para o
cultural sem, contudo, suprimir os primeiros, pois permanecem na base de qualquer função
cultural e, sem eles, o desenvolvimento não seria possível.
Em síntese, é possível dizer, com base nas elaborações dos autores da Perspectiva
Histórico-Cultural, que o desenvolvimento infantil é um processo particular, porque as duas
linhas de desenvolvimento - cultural e biológico - estão integradas e, dessa forma, formam um
processo único. As funções psicológicas superiores se formam a partir dos processos
biológicos presentes no organismo humano. No entanto, essas funções não podem ser
compreendidas a partir dos processos biológicos, pois, nas formas culturais/superiores de
atuação
el signo y el modo de su utilización son un todo o foco que determina funcionalmente y por
completo el proceso. De un modo análogo a como el uso de uno u otro instrumento dicta
toda la estructura de la operación laboral, el carácter del signo utilizado aparece como
aquel momento fundamental en dependencia del cual se constituye todo el resto del
proceso (Vigotski, 1987, p.131).
2 Sobre o processo de apropriação
O preceito do caráter mediado dos processos psíquicos conduz necessariamente à
constatação de que esses processos são constituídos, primeiro, entre as pessoas para, depois, se
tornarem funções do próprio indivíduo. Se é assim, é necessária a existência de um processo
que possibilite a conversão para o plano individual das funções que são construídas no plano
social. Vigotski, ao longo dos seus trabalhos (aqueles a que tivemos acesso durante a
elaboração deste estudo), denomina esse processo de internalização; Leontiev (1978) o chama
28
de apropriação e diz que esse é o principal conceito introduzido por Vigotski na Psicologia.
Não consideramos o termo internalização adequado, se considerarmos a corrente filosófica
que orienta os trabalhos do autor, mas acreditamos que o seu uso, por Vigotski, revela a sua
impossibilidade de empenhar-se na elaboração de termos apropriados.
Contudo, o uso do termo internalização, pelos autores da Perspectiva Histórico-
Cultural, tem gerado discussões sobre sua adequação. Pino (1992, p. 315) discute essa questão
e assinala que
a adequação ou não do uso de um determinado conceito a um determinado modelo teórico
depende da função semântica que ele desempenha nesse modelo: contribuindo à construção
do sentido da teoria ou, ao contrário, servindo a sua ocultação, distorção ou ambigüidade.
No primeiro caso pode afirmar-se em princípio, que é adequado. No segundo, porém,
parece mais consistente reconhecer que não é um termo adequado, podendo constituir um
verdadeiro obstáculo epistemológico.
O termo internalização, por ser usado para explicar os processos que possibilitam a
conversão da atividade social, interpsíquica, em atividade individual, intrapsíquica, ou seja, o
caráter social dos processos psíquicos, pressuposto diferenciador da perspectiva Histórico-
Cultural na Psicologia de outros modelos que colocam no próprio indivíduo a origem das
funções psíquicas superiores, é considerado, pelo autor, um termo não adequado no contexto
do modelo teórico que inspira essa perspectiva. Pino (1992) assinala ainda que o uso do termo
internalização é freqüente na literatura psicológica e, desse modo, foi usado em diferentes
contextos teóricos, o que coloca a questão sobre sua adequação no contexto do modelo teórico
que orienta os estudos na Perspectiva Histórico-Cultural.
O conceito de internalização, para Pino, “veicula uma visão dualista e naturalista do
homem e do social” e, com base em Wertsch, assinala que “reintroduz [...] o debate de um dos
mais antigos e persistentes problemas da psicologia: o da conceitualização da relação entre
atividade externa e atividade interna” (1992, p. 316). Contudo, acredita que a questão
subjacente ao debate da relação entre atividade interna e atividade externa é mais profunda,
“pois a relação interno/externo tem que ver com a concepção que se tem do homem, situado
no eixo das coordenadas natureza & cultura, ou ordem biológica & simbólica” (p. 316). Nesse
sentido, a preocupação de Pino com o uso do termo internalização é, por um lado,
29
compreensível e extremamente procedente, mas, por outro lado, sabemos que os trabalhos de
Vigotski estão inseridos no materialismo histórico e dialético e, em termos filosóficos, Marx
já havia elaborado a crítica ao idealismo e a todo materialismo precedente principalmente, nas
Teses sobre Feuerbach, exatamente pela incapacidade de reconhecerem que a atividade
teórica existe na prática social dos homens e, por isso, a atividade prática e a atividade teórica
não se opõem e nem são independentes. Marx, escreveu na primeira Tese:
A falha principal, até aqui, de todos os materialismos (incluindo o de Feuerbach) é que o
objeto, a realidade efetiva, a sensibilidade, só é percebido sob a forma do objeto ou da
intuição; mas não como atividade sensivelmente humana, como prática, e não de maneira
subjetiva. É por isso que o lado ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo –
que, naturalmente, não reconhece como tal a atividade efetiva, sensível – em oposição ao
materialismo. Feuerbach procurou objetos pensados: porém não captou a própria atividade
humana como atividade objetiva. É por isso que só considera, em A essência do
cristianismo [grifos de Labica], a atitude teórica como verdadeiramente humana, enquanto
que a prática apenas é percebida e fixada em sua manifestação sordidamente judia. É por
isso que ele não compreende o significado da atividade ‘revolucionária’, da atividade
prático-crítica (Marx, apud Labica, 1990, p. 30-1).
De acordo com a análise de Konder, a primeira Tese de Marx “rompe, declaradamente,
com ‘todo o materialismo’ elaborado até então [...] rompe inclusive com o materialismo de
Feuerbach (que tinha ajudado Marx a ajustar contas com o idealismo de Hegel)” (1992, p.
114). Para Marx, conforme mostra Konder, Feuerbach distinguia “a atividade teórica,
espiritual, digna, rica de potencialidades, da ‘cabeça’; e a prática egoísta, grosseira, ‘passiva’,
‘judaica’, interesseira” (p.114) e, dessa forma, “não reconhecia que a consciência é sempre
consciência de um ser consciente ativo [grifos do autor], cujo modo de existir consiste em
intervir transformadoramente na realidade” (p. 114). Tomando a atividade humana (prática e
teórica) como fenômenos distintos, Feuerbach não consegue perceber que a atividade
subjetiva/teórica existe objetivamente. Nesse sentido, para Marx, “o defeito de Feuerbach
estava na sua incapacidade de enxergar a importância da atividade real dos homens como
essencial para a compreensão do pensamento humano” (Konder, 1992, p. 115).
Vásquez ainda mostra que, a “primeira Tese tende a contrapor o materialismo
tradicional e o idealismo no modo de conceber o objeto, e, portanto, a relação cognoscitiva do
30
sujeito com ele” (1997, p. 151). Assim, para Marx, o materialismo tradicional postula que a
imagem dos objetos impressa na consciência do sujeito cognoscente é a do objeto em si. Desse
modo, o sujeito tem um papel passivo e é isso que Marx tem em mente, conforme Vásquez,
ao mostrar a necessidade de substituir o objetivismo do materialismo tradicional “por uma
concepção de realidade, do objeto, como atividade humana, como prática, ou seja,
subjetivamente. O objeto do conhecimento é produto da atividade humana, e como tal – não
como mero objeto de contemplação – é conhecido pelo homem” (p. 152).
O idealismo percebeu, por outro lado, o papel ativo do sujeito. “O sujeito não capta
determinados objetos, em si, mas produtos de sua atividade”. Marx, na visão de Vásquez, “tem
presente a concepção idealista do conhecimento que Kant inaugurou, e segundo a qual o
sujeito conhece um objeto que êle mesmo produz” (1997, p. 152-3). No entanto, essa atividade
do sujeito é reconhecida no idealismo como “a do sujeito consciente, pensante; daí ser ela
considerada abstratamente, já que não inclui a atividade prática, sensível, real” (Vásquez,
1977, p. 153). Marx elabora uma concepção do objeto como resultado da atividade subjetiva,
mas não entendida abstratamente e sim como atividade real dos homens. Dessa forma,
“conhecer é conhecer objetos que se integram na relação entre o homem e o mundo, ou entre o
homem e a natureza, relação que se estabelece graças à atividade prática humana” (Vásquez,
1977, p. 153). A prática, para Marx, “é fundamento e limite do conhecimento e do objeto
humanizado que, como produto da ação, é objeto do conhecimento” (Vásquez, 1977, p. 154).
Fora da prática está a natureza em seu estado bruto e, assim o é, porque permanece em sua
existência imediata, como natureza em si, ou seja, sem sofrer a ação humana.
Isso não significa que Marx não reconheça a existência de uma natureza à margem da
práxis. “Ele nega é que o conhecimento seja mera contemplação, à margem da prática. O
conhecimento só existe na prática, e é o conhecimento de objetos nela integrados, de uma
realidade que já perdeu, ou está em vias de perder, sua existência imediata, para ser uma
realidade mediada pelos homens” (Vásquez, 1977, p. 155). Dessa forma, Marx afirma a
externalidade dos objetos, traduzida em termos de conhecimentos, idéias, valores, etc. e
declara que o homem é um ser que se faz homem na medida em que torna sua, por meio da
apropriação, a humanidade que não lhe é impigida ao nascer, o que traduz a dinâmica do
processo de transformação dos objetos e autotransformação dos homens, o que torna as
objetivações ser do homem.
31
Vigotski iniciou a elaboração dos seus estudos na década de vinte, portanto, em um
momento em que surgia a grande crise na Psicologia em função do choque entre as duas
direções tomadas nesse campo. Segundo Luria, no texto O problema da linguagem e a
consciência, a crise
consistiu em que a psicologia praticamente dividiu-se em duas disciplinas independentes,
Uma, a 'psicologia descritiva' ou 'psicologia da vida espiritual' ('Geisteswissenschaftliche
Psychologie'), reconhecia as formas superiores complexas da vida psíquica, mas negava a
possibilidade de sua explicação e limitava-se à sua fenomenológica ou descrição. A outra, a
psicologia 'explicativa' ou científica natural ('Erklärende Psychologie'), entendia que sua
tarefa era a construção de uma psicologia cientificamente fundamentada, mas se limitava à
explicação dos processos psíquicos elementares, negando-se, em geral, a qualquer classe
de explicações das formas mais complexas da vida psíquica [grifos do autor] (1987, p. 20).
A saída da crise, de acordo com Luria (1987), estava na conservação do estudo das
formas mais complexas de consciência pela Psicologia, mas garantindo o seu enfoque
materialista, ou seja, que essas formas complexas originam-se da atividade real dos homens.
Assim, Vigotski, na busca de construção de uma nova Psicologia fundada nos pressupostos do
materialismo histórico, formula uma saída para a grande crise vivida pela Psicologia:
para explicar as formas mais complexas de vida consciente do homem é imprescindível
sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do
comportamento 'categorial', não nas profundidades do cérebro ou da alma, mas sim nas
condições externas da vida e, em primeiro lugar, da vida social, nas formas histórico-
sociais da existência do homem [grifos do autor] (Luria, 1987, p. 20-1).
Marx já havia dito que a atividade consciente tem origem na atividade prática dos
homens, pois dessa atividade vital originam-se as formas de conduta humana independentes
dos motivos biológicos. Vigotski, então, busca as raízes da atividade psicológica nos signos
que se constituem na atividade material e social dos homens. Nesse sentido, Vigotski
procurando explicar como as funções sociais se convertem em funções o próprio indivíduo
enfatiza os processos semióticos que têm existência nas relações e se constituem nas relações
sociais.
32
De acordo com Marx e Engels, a apropriação resulta do fato de as forças produtivas
adquirirem uma existência objetiva, independente dos indivíduos e das formas naturais.
Portanto, “a apropriação destas forças nada mais é do que o desenvolvimento das capacidades
individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção. A apropriação de uma
totalidade de instrumentos de produção é, exatamente, por isso, o desenvolvimento de uma
totalidade de capacidades nos próprios indivíduos” (1996, p. 105). Nesse sentido, destacam
ainda que essas forças somente são reais no intercâmbio e relação entre os indivíduos. Assim,
o termo apropriação expressa explicitamente os vínculos dos trabalhos de Vigotski e de seus
colaboradores com o pensamento filosófico que orientou os estudos desses autores. Smolka,
ao se propor a “discutir um certo modo de conceber e elaborar teoricamente a questão da
apropriação, não estritamente ligada ao construto de internalização, mas relacionada
principalmente ao problema da significação [grifos da autora]” (2000, p. 129), assinala que “o
termo apropriação adquire relevância teórica especialmente quando embasado no materialismo
histórico-dialético” (p. 28).
O pressuposto de que a explicação das formas superiores do psiquismo deve ser
buscada nas formas de vida socialmente constituídas não pode conduzir à interpretação de que
o homem é fruto da realidade, exercendo um papel passivo em frente a ela. O mundo com o
qual as pessoas se relacionam, por intermédio das outras pessoas, não é uma realidade em si,
ou seja, um mundo que não sofreu a ação humana, mas é constituída pelos próprios homens
numa atividade em que estes modificam a natureza, a si mesmos e aos seus semelhantes.
Nesse sentido, Vigotski ressalta que as funções psicológicas superiores, no seu
desenvolvimento são subordinadas às regularidades históricas. Estar subordinadas às
regularidades históricas, não significa estar apenas comprometida com o passado, mas esta é
uma condição que se define por sua projeção no futuro. A concepção de história do
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, presentes nos estudos de Vigotski e,
anteriormente, na obra de Marx, conduz, portanto, à centralidade da práxis humana, atividade
do homem distinta da atividade animal por ser duplamente livre: das determinações biológicas
e hereditárias e para produzir de maneira planejada e premeditada. Dessa forma, Vigotski, no
trabalho intitulado A consciência como problema da psicologia do comportamento, assinala
que a novidade do comportamento humano em relação ao comportamento animal é o fato de o
“homem [...] [adaptar] ativamente o meio a si mesmo”, enquanto os animais “adaptam-se
33
passivamente ao meio”. (Vigotski, 1996, p. 65). Segundo o autor,
a aranha que tece a teia e a abelha que constrói as colméias com cera o farão por força do
instinto, como máquinas, de um modo uniforme e sem manifestar nisso uma atividade maior
do que nas outras reações adaptativas. Outra coisa é o tecelão ou o arquiteto. Como diz,
Marx, eles construíram previamente sua obra na cabeça; o resultado obtido no processo de
trabalho existia idealmente antes do começo do trabalho (1996, p. 65).
A práxis, segundo Konder “é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se
afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la transformando-
se a si mesmos” (1992, p.115). Nessa acepção, a práxis não compreende apenas a atividade
pela qual o homem se relaciona com a natureza, por intermédio dos instrumentos, transforma-
a, dando-lhe uma forma humana, mas compreende, também, a atividade intersubjetiva,
comunicativa, que possibilita aos homens transformarem a si mesmos e aos seus semelhantes.
Vigotski, a partir dessa visão histórica, entendeu que a atividade essencial humana se
baseia no uso de instrumentos e dos signos, mas enfocou o signo, pois nele está a possibilidade
de compreensão da gênese dos processos psíquicos. A utilização dos signos proporciona uma
reorganização dos processos naturais que se desenvolvem no indivíduo, potencializando-os,
transformando-os e possibilitando um maior controle sobre o seu próprio comportamento e
dos outros.
Dessa forma, as crianças não se apropriam dos resultados do desenvolvimento histórico
imediatamente. Conforme mencionamos, esse processo é mediado pelas relações que são
estabelecidas com as outras pessoas no decorrer de suas vidas. Vigotski (1987) diz que é por
meio dos outros que nos convertemos em nós mesmos, o que significa dizer que toda atividade
interna foi antes externa, foi para as outras pessoas o que é para nós. Para Vigotski, falar que
uma função foi externa é falar que ela foi social. “Qualquer função psíquica superior foi
externa, porque foi social antes de ser interna; antes de ser propriamente uma função psíquica
consistiu em uma relação social entre duas pessoas (tradução nossa)” (1887, p. 161). Essa
idéia é uma paráfrase da sexta Tese de Marx que diz:
34
Feuerbach converte a essência religiosa na essência humana. Porém a essência humana
não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade efetiva, ela é o
conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real
efetiva, é conseqüentemente obrigado:
1. A fazer abstração da história e a fixar o sentimento religioso para si, e a pressupor
um indivíduo humano abstrato-isolado.
2. A essência só pode então ser percebida como ‘gênero’, como universalidade
interna, implícita, ligando os numerosos indivíduos de maneira natural [grifos de Labica]
(Labica, 1990, p. 33).
Assim, Vigotski afirmou que “la naturaleza psicológica del hombre constituye un
conjunto de relaciones sociales, trasladadas al interior y que se han convertido en funciones de
la personalidad y en formas de su estructura” (1987, p. 162). A paráfrase da sexta Tese deve
ser compreendida como a afirmação do caráter mediado dos processos psicológicos, porque as
significações, função do signo, só existem entre as pessoas. É importante ressaltar ainda que as
funções não perdem o seu caráter social quando se tornam próprias de um indivíduo particular.
Em Marx, a idéia da não oposição entre o social e o individual é apontada, no terceiro de seus
Manuscritos económico-filosóficos (1844):
Mesmo quando eu sozinho desenvolvo uma actividade científica, etc., uma actividade que
raramente posso levar a cabo em directa associação com outros, sou social, porque é
enquanto homem que realizado tal actividade. Não é só o material da minha actividade –
como também a própria linguagem que o pensador emprega – que me foi dado como um
produto social. A minha própria [grifos do autor] existência é actividade social. Por
conseguinte, o que eu próprio produzo é para sociedade que o produzo e com a consciência
de agir como ser social (p. 195).
Nesse sentido, o indivíduo é um ser social, porque todas as produções humanas que se
encontram fora do homem e que constituem o requisito fundamental para a humanização das
novas gerações são produtos da vida social. Dessa forma, como assinala Duarte (1993, p. 77),
“o que caracteriza a atividade humana enquanto uma atividade social não é o fato do indivíduo
agir de forma imediatamente coletiva, mas sim o fato de que os elementos constitutivos da
atividade são objetivações sociais”.
Finalmente, de acordo com Leontiev, Vigotski introduziu na Psicologia a idéia “de que
35
o principal mecanismo do desenvolvimento psíquico, na criança, é o mecanismo da
apropriação [grifo nosso] das diferentes espécies e formas sociais de actividade
historicamente constituídas” (1978, p. 155). Essa categoria, oriunda da tradição filosófica
marxista, contrapõe-se ao conceito de adaptação e equilibração para explicar o
desenvolvimento do psiquismo. Como mencionamos, a adaptação, segundo Leontiev, é o
“processo de modificação [grifo do autor] das faculdades e caracteres específicos do sujeito e
do seu comportamento inato, modificação provocada pelas exigências do meio” (1978, p. 320)
e, por isso, não explica o desenvolvimento no indivíduo das aquisições da herança cultural. A
apropriação, no entanto, “é o processo que tem por resultado a reprodução [grifo do autor]
pelo indivíduo de caracteres, faculdades e modos de comportamentos formados
historicamente” (p. 320).
Para Leontiev, “a natureza do homem é ao mesmo tempo natural e social” (1978,
p.160), pois conforme discutimos, sem as propriedades naturais resultantes do
desenvolvimento biológico, o desenvolvimento sócio-histórico, provavelmente, não seria
possível. Os mecanismos hereditários e inatos são, portanto, condições que tornam as
apropriações possíveis sem, contudo, determinar a sua composição ou a sua qualidade
específica, pois os resultados da prática social e histórica dos homens não se acumulam ou se
fixam da mesma forma que as propriedades da espécie, por herança genética. Eles surgem sob
a forma material objetiva, como objetivações que se concretizam sob uma forma exterior e,
por isso, as crianças precisam apropriar-se delas para reproduzirem em si mesmas as
aquisições do desenvolvimento histórico. Porém, a apropriação só se torna possível se as
relações das crianças com o mundo das objetivações forem mediatizadas pelas relações com as
outras pessoas. Por sua vez, as relações entre pessoas se realizam por intermédio da
linguagem, sendo, portanto, relações de comunicação.
Dessa forma, é por meio da linguagem que medeia as relações entre as crianças e o
mundo humano e as relações das crianças e as outras pessoas que as apropriações se efetivam
possibilitando que as crianças descubram progressivamente a significação social dessas
objetivações. A comunicação é tão essencial para o processo de apropriação que Leontiev
(1978), recorrendo ao curso de Piéron sobre a hominização, comenta que, se fossem destruídas
todas as pessoas adultas da face da Terra e só restassem as crianças pequenas e as
objetivações, a história seria interrompida e teria que ser recomeçada, pois a continuidade da
36
história deve-se à transmissão para as novas gerações da cultura humana por meio da
comunicação que se desenvolve entre as pessoas.
A proposição de que a linguagem e, portanto, as significações refletidas nela é a
mediadora do processo de constituição nos indivíduos particulares das funções que se
constituíram ao longo da história humana possibilitou romper concepções que isolavam a
atividade intelectual da atividade exterior, considerando a primeira como “manifestação de um
princípio espiritual particular – o mundo da consciência, oposto ao mundo da matéria e da
extensão” (Leontiev, 1978, p. 117). Essa concepção idealista que opõe espírito e matéria
influenciou determinadas correntes da Psicologia que postulam a oposição e a independência
da atividade intelectual/interior em relação à atividade prática/externa.
Segundo Leontiev, “a concepção tradicional do psiquismo distingue dois tipos de
fenómenos e processos. Os primeiros são fenómenos e processos interiores, que encontramos
em nós; as imagens sensíveis, os conceitos, as sensações e também os processos de
pensamento, da imaginação, da memorização voluntária, etc.” (1978, p. 140) e os outros são
fenômenos e processos que constituem o mundo da matéria e da extensão. “São a realidade
concreta que circunda o homem, o próprio corpo deste, os fenómenos e processos fisiológicos
que se realizam nele. Este conjunto constitui o domínio do físico, o mundo da ‘extensão’” (p.
140). Nessa visão, somente os primeiros, pelo seu caráter supostamente subjetivo, seriam
objetos de estudo da Psicologia. Por outro lado, a separação entre os fenômenos internos e
externos também serviu de base para a elaboração de um sistema psicológico que se dedicou a
estudar os fenômenos ou reações que são visíveis no homem. Vigotski contrapõe-se às visões
que se baseiam na idéia de um psiquismo como essência com existência própria. Para esse
autor, as funções psíquicas formam-se nos indivíduos, a partir das relações que estes
estabelecem com as outras pessoas e, portanto, por meio da mediação sígnica que possibilita
os processos de comunicação.
Assim, são duas as condições para que as apropriações tornem-se possíveis: as
propriedades biológicas herdadas e a comunicação com outras pessoas que ocorre por meio da
linguagem. “A criança, no momento do seu nascimento, não passa de um candidato à
humanidade, mas não a pode alcançar no isolamento: deve aprender a ser um homem na
relação com os outros homens” (Leontiev, 1978, p.239). A linguagem não é apenas um meio
de comunicação entre os homens. Ao longo do desenvolvimento histórico, ela passa a refletir a
37
realidade na forma de significações, pois sintetiza/cristaliza as práticas sociais, sendo,
portanto, simultaneamente, objeto de conhecimento e mediadora do processo de apropriação
das produções humanas.
3 Mediação semiótica
Como discutimos, para Vigotski, “qualquer função no desenvolvimento da criança
aparece em cena duas vezes, em dois planos: primeiro como algo social, depois como algo
psicológico; primeiro entre as pessoas, como uma categoria interpsíquica, depois na criança
como uma categoria intrapsíquica (tradução nossa)” (1987, p. 161). Dessa forma, em termos
psicológicos, a apropriação é o processo que torna possível a transição para o plano individual,
das funções que, no início, foram construídas no plano social.
Toda função psíquica foi, no princípio de seu desenvolvimento na criança, uma função
externa. O que significa dizer que ela foi social, pois se formou a partir das relações entre
pessoas. Um exemplo específico desse processo, citado por Vigotski, é a linguagem. No
princípio, ela é uma das formas de comunicação entre as crianças e as pessoas que vivem à sua
volta, “mas, no momento em que a criança começa a falar para si, pode se considerar como a
transposição da forma coletiva de comportamento, para a prática do comportamento
individual” (tradução nossa) (1987, p.112), ou seja, a criança começa a exercer sobre si mesma
a ação que, antes, era exercida por outras pessoas. A função que estava dividida entre duas
pessoas se constitui, na criança, de forma unificada.
Para Pino (1992), no entanto, as análises disponíveis não são suficientes para auxiliar a
compreensão e a explicitação do que é apropriado e do processo de apropriação. Contudo, com
base em Vigotski, diz que o que é apropriado são as significações e, dessa forma, o processo
de apropriação é de natureza semiótica. Nesse sentido, considera que o conceito de mediação
semiótica pode fornecer elementos para a compreensão do processo de apropriação, porque
esse conceito
38
Em primeiro lugar, revela-nos que tanto as interações sujeito-objeto – relações
epistemológicas – quanto às interações sujeito/sujeito – relações eminentemente
comunicativas – não são nem diretas nem imediatas, mas mediatizadas por ‘instrumentos
semióticos’. Em segundo lugar, que essa função mediadora dos ‘instrumentos semióticos’
(os signos) é papel da significação, não do significante nem do referente. Em terceiro lugar,
que, em razão da natureza da significação, ela acontece no próprio ato de comunicação,
qualquer que seja a forma como esta torna. Mesmo tratando dos significados das palavras
– as zonas mais estáveis da significação – não só eles são reconstituídos cada vez no
próprio ato da comunicação como admitem variações – ou sentidos, zonas menos estáveis
da significação – em função da subjetividade de cada um dos agentes do processo de
comunicação [grifos do autor] (Pino, 1992, p. 322).
Dessa forma, o que torna possível a constituição, no plano individual, das funções
psíquicas, é a mediação por intermédio dos signos. O signo que, no início do desenvolvimento
histórico da humanidade, nasceu da necessidade de os homens comunicarem-se e interferirem
sobre os outros, no processo de desenvolvimento infantil, é, também, um meio de conexão das
funções psíquicas que torna a apropriação possível.
Vigotski (1987) assinala que a invenção e o uso dos signos apresentam uma analogia
com a invenção e o uso de instrumentos, pois ambos expressam o caráter mediado das relações
humanas. Os signos nasceram da necessidade de os homens comunicarem-se com os seus
parceiros e de intervirem sobre eles e os instrumentos resultaram da ação do homem sobre a
natureza. Desse modo, signos e instrumentos são mediadores das relações construídas pelos
próprios homens para garantir a continuidade da história e a reprodução da espécie. No
entanto, o autor assinala que a analogia entre o signo e o instrumento não deve levar à
identificação desses conceitos, pois eles se diferem quanto à orientação: o instrumento é um
diretor da atividade externa do homem e, por isso, está dirigido para o domínio da natureza,
enquanto o signo é um meio de intervenção sobre si mesmo e sobre as outras pessoas e, dessa
forma, está dirigido para a atividade interna.
Vigotski (1987) chama de signo qualquer estímulo criado artificialmente pelo homem
que seja um veículo para o domínio da conduta alheia ou própria. A especificidade da
conduta humana resulta desta atividade fundamental: criação e utilização de signos. No plano
da linguagem, Bakhtin (1992) ajuda-nos a esclarecer essa questão e, por isso, as suas
elaborações têm uma importância fundamental. Para esse autor, a realidade psíquica/interior é
39
a do signo e é por meio deste que o organismo e o mundo se encontram. O signo é um
fenômeno do mundo exterior, resultado das práticas sociais humanas, portanto o conteúdo da
atividade psíquica origina-se da realidade exterior e está impregnado por ela.
Afirma ainda que “os signos só podem existir em um terreno interindividual” (Bakhtin,
1992, p. 35). Isso significa que eles constituem-se entre indivíduos “que estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social)” (p. 35). Se o conteúdo do
psiquismo é o signo, constituído no terreno interindividual, a explicação para o psiquismo,
para a atividade psíquica deve ser elaborada a partir dessa realidade. A consciência, segundo
Bakhtin,
adquire forma e existência nos signos criados por um grupo no curso de suas relações
sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da
comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a
consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra,
o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o
simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os
signos lhe conferem (1992, p. 35-6).
Ainda de acordo com Bakhtin (1992), o material semiótico da vida interior, da
consciência (discurso interior) é a palavra, a linguagem. A palavra, que resulta do consenso
entre indivíduos, constitui material veiculável pelo corpo. Nesse sentido, a realidade psíquica
é definida em termos da significação, pois esta é a função do signo; sem isso, o signo não é
signo e a palavra não é palavra. Sem a significação, não existe atividade psíquica.
Por significação, [...] entendemos os elementos da enunciação reiteráveis e idênticos cada
vez que repetidos. Naturalmente, esses elementos são abstratos: fundados sobre uma
convenção, eles não têm existência concreta independente, o que não os impede de formar
uma parte inalienável, indispensável, da enunciação (p. 129).
Dessa forma, as significações mantêm uma dependência direta com os contextos onde
são produzidas e, portanto, com o contexto interlocutivo. Bakhtin (1992) assinala que a
diferença entre o signo interior e signo exterior reside no fato de a significação realizada por
40
meio da atividade psíquica/interior se dirigir para o próprio indivíduo. Apesar de o conteúdo
semiótico do psiquismo se constituir na prática social dos homens e, portanto, refletir a lógica
e as leis da interação semiótica de um grupo social, ele pertence também ao sistema do
psiquismo individual. Assim, o signo interior, que é a palavra, o discurso interior, assemelha-
se mais “às réplicas de um diálogo. Não é por acaso que os pensadores da Antigüidade já
concebiam o discurso interior como um diálogo interior” (Bakhtin, 1992, p. 63). A linguagem,
a palavra são signos por excelência. É especialmente por meio da linguagem que as pessoas
agem umas sobre as outras num processo contínuo de autotransformação. Por isso, a
linguagem é uma das mais importantes criações da humanidade.
Neste estudo, focalizamos a linguagem escrita como signo e como tal “possuidora de
significado que artificialmente serve aos sujeitos como apoio às funções psicológicas”
(Azenha, 1995, p. 65). Smolka e Góes, ao analisarem algumas características do processo de
produção de texto em crianças que cursavam os anos iniciais de escolarização, consideram,
com base em Vigotski, que a linguagem escrita, mesmo se tratando de um sistema de
produção de linguagem distinto da linguagem oral, tem funções comunicativa e individual
assim como a linguagem oral. “A função individual se estabelece, inicialmente, quando a
escrita é feita apenas para si, utilizada como recurso de memória (coisas para lembrar) de auto-
organização (coisas para orientar) ou de fruição (coisas para expressar)” (p.68). As autoras
argumentam ainda que “depois, também a escrita para o outro assume uma função individual,
de natureza bem mais complexa, ao permitir que o sujeito desenvolva uma atitude de análise
ante seu discurso e pensamento. Nesse processo a função comunicativa da escrita contribui
para aprimorar a função individual, a de organizar e regular o próprio pensamento” (1992,
p.68).
Evidenciamos, neste estudo, a função individual da escrita, focalizando os processos
que se constituem nas crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a usar a
escrita como recurso mnemônico, como recurso para lembrar. Muitos autores, na década de
setenta, buscaram investigar os processos que se desenvolvem na criança durante esse período,
que começa pelo uso de letras para escrever até o momento em que passa a dominar a forma
cultural da escrita. O estudo de Ferreiro e Teberosky (1989), mais recentemente divulgado no
Brasil, focalizou esse período. Entretanto, essas autoras se detiveram na análise das tentativas
de as crianças relacionarem o oral e o escrito e nas diferentes formas como compreendem essa
41
relação. Desse modo, enfocaram a escrita como um sistema de signos relacionados
especificamente com o contexto lingüístico.
A escrita está ligada a esse contexto e é fundamental que as crianças que estão sendo
alfabetizadas compreendam essa relação. Durante o estudo, observamos como essa
compreensão é fundamental para a superação de uma atividade gráfica baseada na reprodução
das características externas da escrita. Vigotski, ao escrever algumas considerações sobre a
pré-história da linguagem escrita, aponta pertinentemente que a escola tem ensinado as
“crianças a desenhar as letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem
escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se
obscurecendo a linguagem escrita como tal” (1989a, p. 119). A mecânica do ler e escrever,
para Vigotski, está ligada aos processos de codificação da língua oral em escrita (escrever) e
de decodificação da língua escrita em língua oral (ler). Desse modo, refere-se a um processo
de representação de fonemas em grafemas (escrever) e de grafemas em fonemas (ler). Assim,
as práticas de ensino que levem em conta apenas esses processos, para Vigotski (1989a),
obscurecem o que é essencial na linguagem escrita. A essência da escrita está no fato de que
esta é um sistema de símbolos e signos. A escrita constitui, segundo Vigostski um simbolismo
de primeira e segunda ordens. Ele explica esse simbolismo dizendo:
isso significa que a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam
os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das relações e
entidades reais. Gradualmente, esse elo intermediário (a linguagem falada) desaparece e a
linguagem escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as
entidades reais e as relações entre elas (1989a, p. 120).
A citação, reproduzida no parágrafo anterior, pode parecer incoerente com a visão
apresentada por Vigotski de que a escola enfatiza apenas a mecânica do ler e escrever,
deixando de apresentar, portanto, o que é essencial na linguagem escrita: a sua relação com
contextos extralingüísticos. Acreditamos que não há incoerência, pois ele quer se referir às
práticas de ensino que se limitam a ensinar a linguagem escrita como um processo unicamente
de associação entre as respostas sonoras e sinais gráficos, reduzindo a aprendizagem ao nível
sensório. A linguagem escrita representa os sons da fala e, como mencionamos, essa é uma
aprendizagem necessária, mas não pode ser reduzida a essa relação, senão será esvaziada das
42
significações que possibilitam a realização das suas funções.
4 Com referência à metodologia
A definição de uma abordagem metodológica que leve em conta a perspectiva teórica
que orienta o estudo não é uma tarefa fácil para o investigador; porém, necessária para garantir
uma busca profunda e radical das determinações e mediações históricas que constituem o
fenômeno social a ser destacado na pesquisa. Neste trabalho, partimos dos preceitos
fundamentais da Psicologia Histórico-Cultural e, por isso, consideramos que os pressupostos
que orientam o método instrumental ou método histórico-genético são adequados para o
estudo da apropriação da linguagem escrita pelas crianças na fase inicial de alfabetização.
O método instrumental foi elaborado por Vigotski para estudar o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores. Ele “é um método histórico-genético que proporciona a
investigação do comportamento de um ponto de vista histórico” (1996, p. 98). O autor chama
a atenção para que o “método instrumental nada tem em comum (exceto o nome) com a teoria
da lógica instrumental de J. Dewey e outros pragmatistas” (p. 99).
Esse método, segundo Vigotski,
não estuda apenas a criança que se desenvolve, mas também aquela que se educa [...]. A
educação não pode ser qualificada como do desenvolvimento artificial da criança. A
educação é o domínio artificial dos processos de desenvolvimento. A educação não apenas
influi em alguns processos de desenvolvimento, mas reestrutura as funções do
comportamento em toda sua amplitude (1996, p. 99).
. Nesse sentido, o método instrumental “estuda o processo de desenvolvimento natural e
da educação como um processo único e considera que seu objetivo é descobrir como se
reestruturam todas as funções naturais de uma determinada criança em um determinado nível
de educação” (1996, p. 96). Assim, o método instrumental
43
procura oferecer uma interpretação de como a criança realiza em seu processo
educacional o que a humanidade realizou no transcurso da longa história do trabalho, ou
seja, ‘põe em ação as forças naturais que formam sua corporeidade [...] para assimilar
desse modo, de forma útil para sua própria vida, os materiais que a natureza lhe brinda’
(1996, p. 96).
Partindo do princípio do caráter mediado dos processos psíquicos, Vigotski considera
que esses processos somente podem ser estudados no seu desenvolvimento histórico-genético.
Para Vigotski (1987), estudar um fenômeno historicamente significa estudá-lo em seu
movimento, ou seja, à medida que ele se desenvolve. O estudo histórico de um fenômeno
possibilita “abarcar na investigação o processo de desenvolvimento de alguma coisa, em todas
as suas fases e transformações – desde que surge até o seu desaparecimento (tradução nossa)”
(1987, p. 74). Somente por intermédio do estudo histórico, é possível, portanto, descobrir a
natureza e a essência dos fenômenos.
Essa última consideração conduz à visão de que os processos psíquicos devem ser
analisados tendo por base três pressupostos:
a análise do processo e não das coisas; a análise, que descobre o enlace e a relação
dinâmico-causal real, e não a análise que decompõe os traços externos do processo,
portanto, uma análise explicativa e não descritiva e, por fim, a análise genética, que
regressa ao ponto de partida e restabelece todos os processos do desenvolvimento de uma
determinada forma que, em seu aspecto presente, já aparece como uma fossilização
psicológica (tradução nossa) (Vigotski, 1987, p. 113).
Com relação ao primeiro pressuposto, relacionado com a análise dos processos e não
das coisas, Vigotski esclarece que a Psicologia de sua época tratava sempre o fenômeno
estudado como uma coisa conhecida e a tarefa do investigador residia na decomposição da
coisa em partes. Na perspectiva do autor, os fenômenos psicológicos deveriam ser analisados
como processos, nos seus diferentes momentos. O segundo postulado em que se apóia a
concepção de Vigotski, sobre a análise dos processos psicológicos, consiste na contraposição
das tarefas descritivas e explicativas. Dessa forma, considerava que a “tarefa verdadeira das
análises em qualquer ciência é, precisamente, descobrir os enlaces e as relações dinâmico-
causais reais, que estão na base de qualquer fenômeno (tradução nossa)” (1987, p.109).
44
Desse modo, a tarefa do pesquisador não deve se restringir à descrição dos fenômenos,
na forma como esses aparecem aos olhos do observador. Com base em Engels, argumenta que
toda ciência seria supérflua se a essência dos fenômenos coincidisse com sua aparência. Por
isso, as manifestações externas de um determinado fenômeno devem ser submetidas à
explicação, para que se descubra a sua essência, ou seja, as relações reais (internas e externas)
que possibilitam o surgimento e o desenvolvimento de um fenômeno. O terceiro postulado que
deve fundamentar as análises dos fenômenos psicológicos baseia-se na idéia de que o
investigador deve analisar processos e não condutas já fossilizadas ou mecanizadas.
Os três postulados, considerados por Vigotski (1987) fundamentais para o estudo
histórico-genético do psiquismo humano, retratam a sua preocupação na construção de uma
metodologia adequada à Psicologia que pretendeu elaborar, fundada no materialismo histórico
e dialético. Por isso, a partir do pressuposto de que os processos psicológicos só poderiam ser
compreendidos historicamente, apontou ainda que, para romper comportamentos
mecanizados, é necessário que a tarefa a ser solucionada pela criança, durante as
investigações, esteja além de sua capacidade, ou seja, não pode ser solucionada com as
habilidades que ela possui no momento e deve propiciar ainda a utilização de instrumentos
auxiliares para efetuá-las.
O método instrumental ou histórico-genético, segundo Vigotski (1996), pode utilizar
procedimentos técnicos de investigação, tais como, a observação e a experimentação. A
observação possibilita que o pesquisador observe como os processos psíquicos explicitam-se e
formam-se nos indivíduos por meio da práxis.
Com relação à experimentação, o próprio Vigotski (1987) aponta os seus limites e
assinala que sempre devemos nos perguntar como se desenvolve, nas condições de vida real,
um processo analisado em condições experimentais. Nesse sentido, Leontiev (1988), ao
analisar as questões metodológicas relativas ao desenvolvimento do psiquismo infantil,
assinala que esse desenvolvimento é determinado pela vida da criança, pelo desenvolvimento
dos processos reais desta vida. E, por isso,
45
ao estudar o desenvolvimento da psique infantil, nós devemos, por isso, começar analisando
o desenvolvimento da atividade da criança como ela é construída nas condições concretas
de vida. Só com este modo de estudo pode-se elucidar o papel tanto das condições externas
de sua vida, como das potencialidades. Com esse modo de estudo, baseando-se na análise
do conteúdo da própria atividade infantil em desenvolvimento, é que podemos compreender
de forma adequada o papel da educação e da criação [grifos nossos], operando
precisamente em sua atividade, em sua atitude diante da realidade, e determinando,
portanto, sua psique sua consciência (1988, p. 63).
Nessa perspectiva, o processo de apropriação da linguagem escrita deve ser estudado
nas condições reais em que ele ocorre. Dessa forma, buscamos analisar como esse fenômeno
se desenvolve nas crianças que estão participando de um processo formal de aprendizagem.
Sabemos, conforme assinala Marx, que as condições concretas, nas quais os indivíduos
constroem sua vida, têm dificultado a plena humanização, pois esse processo desenvolve-se
sob relações de dominação, exclusão e alienação. Na escola, e no que se refere à apropriação
da linguagem escrita, isso não é diferente. Porém, nessa perspectiva, os processos de
produção e divulgação de conhecimento não renunciam aos conflitos; buscam evidenciá-los,
pois isso é imprescindível na luta pela transformação das relações sociais marcadas pela
alienação e exclusão.
4.1 Implicações metodológicas
O estudo da apropriação da linguagem escrita e a opção metodológica adotada
colocam alguns problemas, pois, com base nos pressupostos metodológicos da Perspectiva
Histórico-Cultural, é possível supor que o (a) pesquisador (a) poderá criar situações em que
serão propostas às crianças tarefas que buscarão evidenciar o processo de apropriação da
escrita. Essas tarefas deverão levar em conta os pressupostos dessa perspectiva, anteriormente
mencionados: estar além das capacidades já aprendidas pelas crianças e propiciar a
utilização/criação de mecanismos auxiliares para a realização da tarefa. Por outro lado, o (a)
pesquisador (a) poderá optar pela observação do processo analisado no contexto em que se
desenvolve, ou seja, poderá observar como as crianças aprendem a utilizar a escrita na sala de
aula.
Luria (1988), durante o estudo que realizou sobre a pré-história da escrita, optou por
46
procedimentos metodológicos que consistiam na produção de registros que deveriam ser
elaborados de modo a possibilitar a lembrança de um conteúdo: a tarefa era lembrar uma série
de palavras ou frases que não podiam ser reproduzidas oralmente sem a ajuda de um
mecanismo auxiliar. Esse encaminhamento possibilitou ao autor observar as fases pelas quais
a criança passa até chegar a utilizar marcas, pontos, desenhos, etc. como símbolos,
identificando os mecanismos que ajudavam a recordar os significados anotados. Sendo assim,
as crianças que participaram do trabalho desenvolvido pelo autor não estavam inseridas em
um processo de escolarização, aprendendo o sistema de símbolos, convencionalmente, usado
para escrever. Além disso, o desenvolvimento dos registros produzidos pelas crianças foi
observado em condições em que foram necessárias intervenções específicas, ou seja, a
introdução no conteúdo das frases e palavras que eram escritas pelas crianças de fatores
(forma, quantidade, cor, etc.) que possibilitaram o surgimento de grafias expressivas.
Assim, uma solução metodológica para a realização deste trabalho poderia ser a
proposição de tarefas para as crianças, com base nos delineamentos metodológicos da
pesquisa desenvolvida por Luria (1988). Outra solução seria partir para um estudo que
consistiria na observação da prática escolar de alfabetização e, assim, verificar como esse
fenômeno se desenvolve na criança na sala de aula. Assim, optamos, para encaminhamento
deste estudo, por procedimentos que foram desenvolvidos da seguinte forma: foram realizadas
observações na sala de aula com o objetivo de identificar como o processo de alfabetização se
desenvolvia naquele contexto e, também, adotamos procedimentos que se basearam na
proposição de tarefas para as crianças envolvidas no estudo, que consistiram na produção oral
de textos e, em seguida, no registro do texto produzido oralmente. Retomaremos, no próximo
capítulo, de forma detalhada, os procedimentos utilizados para o encaminhamento do que
denominamos de atividades de produção de textos, mas, de modo geral, as atividades
consistiram nas seguintes etapas: a) elaboração de um texto oral pelas crianças e registro pela
pesquisadora; b) registro do texto pela criança; c) tentativa de interpretação das grafias
registradas pelas crianças, após serem incentivadas a usar a escrita como recurso mnemônico.
Desse modo, a análise que elaboramos do processo de apropriação da linguagem escrita, partiu
das informações coletadas durante as observações do trabalho cotidiano desenvolvido pelos
alunos e pela professora, na sala de aula, privilegiando-se as atividades que envolviam o
trabalho com a linguagem escrita, e, fundamentalmente, das informações coletadas durante as
47
atividades de produção de textos, planejadas com a professora da classe, e orientadas pela
pesquisadora com cada criança individualmente. Com base no objetivo do estudo, analisamos,
principalmente, o que ocorria no momento em que as crianças registravam os textos
produzidos oralmente (movimentos de registro e emissões verbais) e o momento, após o
registro, em que buscavam se relacionar com a escrita para lembrar o texto. Dessa forma, a
escrita produzida pelas crianças também se tornou um material privilegiado para as análises. A
atividade de produção de texto foi proposta às crianças durante cinco momentos do ano letivo.
Apenas, no terceiro momento, pedimos que escrevessem um poema já elaborado previamente.
Sabemos que a aprendizagem da linguagem escrita na escola marca o início de um
novo processo, em que a maioria das tarefas realizadas pelas crianças passa a exigir o uso do
sistema de escrita. Assim, as atividades propostas às crianças, durante a alfabetização, trazem
para elas o desafio de lidar com uma das mais importantes produções simbólicas: a escrita. A
simples escrita de uma lista de palavras, por exemplo, coloca a necessidade da utilização desse
mecanismo artificial. Assim, priorizamos as atividades de produção de texto, porque tal
atividade coloca para a criança a necessidade de usar a escrita para finalidades psicológicas.
Além disso, a produção de textos possibilita aos indivíduos, historicamente situados, a
enunciação de seu ponto de vista sobre a realidade, pois o discurso produzido pelas crianças,
no texto, não é uma mera reprodução dos discursos já constituídos e nem mesmo uma
produção única de um indivíduo particular. Os textos se constituem, pois, articuladamente às
formas já constituídas de perceber e pensar a realidade e que se renovam em cada discurso.
48
Capítulo IV
Escola, rituais, professora e crianças
No início da pesquisa, consideramos importante: a) caracterizar a escola-campo e a
sala de aula; b) descrever o cotidiano da escola e da sala de aula; c) caracterizar os sujeitos
envolvidos no estudo (professora e crianças); d) caracterizar o método de alfabetização
utilizado pela professora para ensinar as crianças a ler e a escrever. Não pretendemos elaborar
uma análise pormenorizada dessas informações. Nosso objetivo com essa descrição é mostrar
as características da escola, professora e alunos envolvidos na pesquisa. Sabemos, que essas
informações nos colocam diante de uma realidade que se repete em muitas escolas públicas
brasileiras. No entanto, existem aspectos que são próprios, específicos de cada escola e dos
sujeitos que participaram deste estudo. Por isso, consideramos conveniente contextualizar a
realidade para não incorrermos no risco de estabelecer generalizações que nem sempre
traduzem as particularidades e características das escolas públicas e dos atores que estão
presentes nesses contextos.
1 A escola
Para realização da pesquisa, escolhemos uma escola da rede pública municipal de uma
cidade do interior de São Paulo. O caráter público da escola foi o único critério utilizado para
sua escolha. A escola está situada em um bairro periférico e foi incorporada à rede municipal
no ano de 1996. A arquitetura da escola é a mesma dos CAICs, construídos para atender os
alunos do Ensino Fundamental. A escola, na época de sua fundação, objetivava atender os
alunos na faixa etária de quatro a seis anos; porém, em 1999, ela passou a atender os alunos
das séries iniciais do Ensino Fundamental.
Para a caracterização da escola, utilizamos um questionário (ANEXO A) que foi
preenchido pela pesquisadora, com base em uma entrevista realizada com a diretora da escola
e com a coordenadora pedagógica. As perguntas que compunham o questionário visavam a
obter informações sobre os aspectos físicos e sobre os recursos humanos e materiais. As
informações sobre a rotina da escola foram obtidas por meio da observação das atividades que
49
se desenvolviam diariamente na escola. Essas observações foram escritas no diário de campo
(ANEXO B) e transcritas para esta parte do trabalho.
A escola possuía vinte e seis salas de aula funcionando em cada um dos dois turnos
(matutino e vespertino), somando um total de cinqüenta e duas salas de aula. Funcionavam
ainda mais três turmas no turno noturno, atendendo alunos que não tiveram acesso à rede
regular de ensino na idade própria ou que não puderam concluir o ensino fundamental
(suplência da 1a a 4a séries).
A maioria das salas de aula encontrava-se em ótimo estado de conservação. Entretanto,
alguns professores tinham que realizar seu trabalho com as crianças em salas improvisadas o
que impunha grandes dificuldades. Isso porque os espaços destinados, no projeto original dos
CAICs, à biblioteca, ao depósito e às salas ambientes foram transformados em salas de aula.
Dessa forma, espaços mais amplos, como o da biblioteca, abrigavam quarenta alunos em fase
de alfabetização (primeira série).
Havia ainda, na escola, uma única sala que foi transformada em biblioteca, refeitório
para os funcionários, sala de vídeo e sala para planejamento das aulas. Essa sala deveria ser
destinada às atividades de Artes e, por isso, possuía grandes bancadas feitas de cimento e pias
para lavagem dos materiais utilizados nas aulas. Os livros de literatura infantil, dicionários,
enciclopédias e os livros para estudo dos professores estavam arrumados nas estantes, no
início do ano, sem o menor cuidado. Com a chegada do inspetor de alunos, no segundo
semestre do ano, os livros foram arrumados e catalogados, conforme o tipo de obra.
As reuniões de planejamento das atividades escolares eram feitas no horário inverso,
ou seja, os professores que lecionavam no turno vespertino planejavam suas atividades, uma
vez por semana, no turno matutino e vice-versa. Essas reuniões eram realizadas na sala
mencionada no parágrafo anterior e na sala da coordenadora pedagógica. Uma das salas
destinada às reuniões foi transformada em sala para as atividades de reforço das crianças que
apresentavam um baixo desempenho escolar. Existia ainda uma sala para a direção e outra
para a secretaria. O refeitório era amplo, com bancos e mesas para as refeições.
Quanto aos recursos humanos, a escola possuía 31 professores atuando no turno
matutino, 31 no turno vespertino e três no noturno. A média de alunos por turma, segundo a
direção da escola, era de trinta e cinco; havia 684 alunos estudando nas turmas de Educação
Infantil e 988 estudando nas turmas do Ensino Fundamental, totalizando 1.672 alunos.
50
O corpo técnico-administrativo era formado por uma diretora, uma vice-diretora, uma
coordenadora pedagógica, dois inspetores (contratados no segundo semestre) uma secretária e
um auxiliar administrativo para atender aos três turnos. A escola possuía ainda três faxineiras
que cuidavam da limpeza nos três turnos e quatro merendeiras que atendiam, também, os três
turnos.
No Ensino Fundamental funcionavam, nos turnos matutino e vespertino, sete turmas de
primeira série, sete turmas de segunda série, seis turmas de terceira série e oito turmas de
quarta série, somando um total de vinte e oito turmas. Na Educação Infantil, funcionavam
quatro turmas que atendiam as crianças na faixa etária de quatro anos, dez turmas para alunos
na faixa etária de cinco anos e oito turmas que atendiam alunos na faixa etária de seis anos.
Quanto aos recursos audiovisuais, segundo a direção, a escola possuía quatro
televisores, dois vídeos e um aparelho de som. Apenas dois dos televisores encontravam-se na
escola. No entanto, o televisor e o vídeo eram pouco usados, pois ficavam em lugares que se
destinavam à realização de outras atividades.
Tendo em vista o número de alunos em cada turno, a rotina da escola era difícil e
marcada por rituais que visavam a garantir a disciplina e a ordem. Todos os dias, às sete horas,
o sinal anunciava o horário da entrada dos alunos do Ensino Fundamental. Em fila e guiados
pelas professoras, todas as crianças dirigiam-se ao refeitório para o desjejum. Do refeitório, os
alunos eram encaminhados para as salas de aula. Uma nova entrada é anunciada. Dessa vez, os
alunos da Educação Infantil. O ritual é o mesmo: às sete horas e trinta minutos, dirigiam-se
para o refeitório e, em seguida, para a sala de aula.
Durante o primeiro semestre, às nove horas e trinta minutos, começavam os horários
dos três recreios que existiam na escola. Primeiro, as professoras da Educação Infantil saíam
das suas salas, durante quinze minutos, para o seu recreio. Após os quinze minutos de
descanso, retornavam às suas classes e levavam os seus alunos para merendarem no refeitório.
As professoras das primeiras e segundas séries deixavam suas salas, às nove horas e quarenta e
cinco minutos, para o seu horário de descanso e lanche e retornavam às dez horas para
levarem as crianças para merendar. O mesmo ocorria com as professoras das turmas de
terceira e quarta séries. Durante o recreio das professoras, os alunos ficavam sozinhos nas
salas de aula realizando alguma atividade proposta pela professora. No entanto, não era bem
isso que acontecia: devido ao barulho, facilitado pela estrutura do prédio, a partir das nove
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horas e trinta minutos até às dez horas e trinta minutos, quando terminavam os recreios dos
professores e dos alunos, era difícil desenvolver qualquer trabalho nas salas de aula.
O tempo de recreio das crianças era ocupado, quase exclusivamente, com a merenda e
com a ida ao banheiro. Mesmo os alunos que não queriam merendar tinham que ficar sentados
esperando os colegas que merendavam. As professoras de cada turma ficavam no pátio,
durante os poucos minutos que sobravam para as brincadeiras. No entanto, não havia
brincadeiras. Na realidade, havia muitas brigas entre os alunos e correrias.
Após o recreio de todas as turmas, a escola voltava a uma certa calma. Às onze horas e
trinta minutos, os alunos da Educação Infantil voltavam para suas casas e, às doze horas, os
alunos do Ensino Fundamental faziam o mesmo.
Essa rotina durou até o final do primeiro semestre. No começo do segundo semestre,
conforme mencionamos, a rede de ensino admitiu inspetores escolares. Com a chegada de dois
deles, um para cada turno, continuaram a existir três recreios: o primeiro começava às nove
horas e trinta minutos (Educação Infantil), o segundo começava às dez horas (primeira e
segunda séries) e o terceiro começava às dez horas e trinta minutos (terceira e quarta séries);
porém os professores não eram mais responsáveis pelo controle das crianças nesse horário. Os
recreios passaram a ter duração de vinte minutos, com intervalos de dez minutos entre um e
outro para que os alunos pudessem regressar às suas salas.
2 Mais rituais
A classe envolvida neste trabalho era uma das turmas da primeira série do Ensino
Fundamental. A definição da classe ocorreu, em uma reunião, no início do ano, após
apresentação para toda a equipe da escola do projeto de pesquisa. Dessa forma, foram os
próprios profissionais que atuavam na escola que definiram a classe onde foi realizado o
trabalho.
Após a definição da classe, passamos a coletar as informações sobre as crianças que
constavam da ficha de matrícula e certidões de nascimento. Terminada essa coleta, iniciamos
nossas observações da sala de aula. O trabalho realizado pelos alunos e professora foi filmado,
transcrito e algumas situações serão descritas neste item. Iniciaremos pela atividade cotidiana
que se desenrolava nesse espaço.
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Assim que as crianças chegavam à sala de aula, eram iniciados novos rituais que
começavam por uma música, cantada por todos. Em seguida, repetiam as normas da classe
para, então, iniciar a escrita do cabeçalho (nome da escola, nome da cidade, data, número de
alunos que estavam presentes, nome do ajudante do dia e nome do próprio aluno). Somente
após essas atividades, a professora iniciava novas atividades.
Descreveremos como se desenvolvia essa rotina, com base nas filmagens que fizemos
no início do ano e, depois, escreveremos como era organizada a sala de aula, conforme
informações registradas no diário de campo. Omitiremos, na descrição que se segue, os nomes
da escola e da cidade onde foi desenvolvida a pesquisa.
Depois que entravam na sala de aula, a professora definia os lugares onde cada criança
deveria sentar-se. Aquelas que haviam faltado no dia anterior ficavam de pé aguardando que
todos os outros se sentassem para, depois, a professora indicar onde deveriam sentar. As
crianças, então, organizavam os materiais sobre a carteira e...
Professora: Em pé para cantar.
Crianças: (Todos cantam e fazem os gestos).
“Bom dia, ó professora!
De volta à escola estou.
Deixei a mamãe em casa
Agora, estudar eu vou.
Palma, palma, palma.
Pé, pé, pé.
Roda, roda, roda.
A escola boa é”.
Terminada a música, os alunos sentavam-se recitando os versos:
Em minha cadeira eu vou me sentar.
Bom dia, amiguinhos!
A aula já vai começar.
Bom dia, meu Deus querido
Viemos aqui para estudar.
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Nós queremos que o Senhor
Venha nos abençoar.
Após terminarem de recitar os versos, as crianças repetiam, todas juntas, as três normas
da classe.
Professora: Como vocês passaram o dia ontem?
Crianças: Bem.
Professora: Então tá. Regras da sala. Número um.
Crianças: Respeitar as pessoas.
Professora: Número dois.
Crianças: Não estragar as coisas.
Professora: Número três.
Crianças: Conversar na hora certa.
Ao terminarem de recitar as normas da classe, escreviam o cabeçalho, o número de
alunos que estavam presentes na classe, o número de alunos faltantes e o nome do ajudante do
dia. O ajudante do dia era responsável pela distribuição e coleta dos materiais utilizados
durante a aula. Vejamos como ocorria essa atividade diariamente.
Professora: Qual é o nome da nossa escola?
Crianças: Escola...
A professora escreve no quadro o nome da escola.
Professora: Agora todo mundo junto (aponta para que as crianças leiam).
Crianças: Escola...
Professora: Qual é o nome da nossa cidade?
Crianças: (Falam o nome da cidade).
A professora registra na lousa o nome da cidade.
Professora: Que dia é hoje?
Crianças: Trinta
Professora: Trinta de que mês?
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Crianças: Março.
Professora: De que ano?
Crianças: Dois mil.
Professora: Muito Bem! Hoje o tempo está...
Crianças: Sol.
Professora: Com sol.
Um aluno começa a tirar o agasalho.
Professora: Vamos contar quantos alunos têm.
Crianças e professora: Um, dois, três, quatro, cinco... vinte e oito.
Professora: Quantos alunos estão faltando?
Crianças: Vinte e oito.
Professora: Vinte e oito é quantos têm. Quantos estão faltando hoje?
Criança 1: Dezenove?
Professora: Não. São trinta e seis no total. Vinte e oito pra chegar a trinta e seis vai faltar
quanto?
Criança 2: Vinte e nove.
Criança 3: Dez.
Professora: Vinte e oito, vinte e nove... trinta e dois... (a professora vai contando nos dedos e
mostrando para as crianças. Algumas crianças fazem o mesmo).
Criança 4: Oito (mostra os dedos, pois terminara de contar primeiro).
Crianças e professora: Trinta e três, trinta e quatro... trinta e seis.
Professora: Vai faltar quanto? (mostrando os dedos da mão).
Várias vozes de crianças: dez, cinco, oito...
Professora: Oito alunos estão faltando (anota na lousa). Quem foi ajudante ontem?
Criança 4: O Adriano.
Criança 5: Alanderson.
Professora: Ontem foi o Alanderson (vai até a mesa e procura a lista de presença dos alunos
para saber qual é o próximo da lista). Quem é o ajudante hoje?
Crianças: Alessandra.
Professora: Alessandra. Muito bem! Fábio, troca de lugar com a Alessandra, por favor (a
ajudante ou o ajudante tinha um lugar específico para se sentar, mais próximo à
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lousa e, nesse dia, o Fábio ocupava o lugar da ajudante). Qual é a primeira letra do
nome da Alessandra?
Crianças: A, a, a.
Professora: E a última?
Crianças: A, a, a, a.
Professora: Quem mais da classe começa com “A”?
Criança 5: Adriano.
Professora: Andrey, Ana Paula, Alanderson, Alexandre.
Criança 5: Adriano.
Professora: Vamos contar quantas letras.
Crianças: Um, dois, três... dez (a professora aponta as letras enquanto os alunos contam).
Professora: Quantas letras?
Crianças: Dez.
Professora: Tem mais ou tem menos letras que o nome do Alanderson?
Crianças: Igual, igual.
Professora: Igual, por quê? Quantas letras tem o nome do Alanderson?
Crianças: Dez.
Professora: Eu vou passar o caderno e vocês começam a escrever o calendário.
Os alunos, então, escreviam o cabeçalho no caderno e, em seguida, a professora
entregava uma folha com o calendário do mês que era preenchido, a cada dia, com o numeral
correspondente ao dia do mês e com o desenho de como estava o tempo (ensolarado, chuvoso,
nublado, etc.).
Com relação ao espaço físico da sala de aula, o ambiente era amplo, com alguns
cartazes espalhados pelas paredes (letras do alfabeto, um cartaz dos ajudantes do dia e um
cartaz dos aniversariantes). Com o tempo, alguns outros cartazes foram colocados nas paredes
(textos estudados, famílias silábicas, calendário, etc.). A professora da classe mantinha à
disposição das crianças, para uso coletivo, lápis de cor, borrachas e lápis cera. Esses materiais
eram colocados sobre uma carteira no fundo da sala. A sala possuía ainda dois armários que
eram utilizados pelas professoras dos turnos matutino e vespertino. Durante o primeiro
bimestre, na maior parte do tempo, as carteiras eram organizadas em filas. Em alguns
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momentos, as crianças trabalhavam sentadas em duplas. A partir do segundo bimestre, a
professora dispôs as carteiras formando dois retângulos. Segundo a própria professora, essa
forma de organização inibiria as andanças na sala de aula. No segundo semestre, as carteiras
foram dispostas em filas.
3 As professoras da classe
Trabalhavam na classe onde estudavam os alunos envolvidos na pesquisa duas
professoras: uma responsável pelas aulas de Educação Física e outra responsável pelo
desenvolvimento das outras áreas do currículo. Havia duas aulas de Educação Física
distribuídas durante a semana. Não foi possível conhecer o trabalho da professora responsável
por essas aulas. Estávamos interessada pelas atividades desenvolvidas pela segunda
professora, relacionadas com a aprendizagem da linguagem escrita. Por isso, utilizamos um
questionário (ANEXO C) destinado à caracterização da professora responsável diretamente
por esse trabalho. O questionário visava a coletar informações para caracterização da
professora, tendo ainda por finalidade identificar dados sobre a formação/qualificação da
professora para o exercício da função. O questionário foi preenchido pela própria professora.
A professora responsável diretamente pela alfabetização das crianças era do sexo
feminino, com trinta anos de idade. Ela trabalhava apenas em uma escola, mas, às vezes,
substituía outros professores no horário inverso. Pertencia ao quadro de professores efetivos e
não exercia outra atividade profissional. Possuía licenciatura plena em Educação Física. Sua
experiência como professora era de dez anos de atuação, exercida unicamente na docência no
Ensino Fundamental (1a a 4a séries). Afirmou ter participado de cursos que contribuíram para a
sua formação, tais como: Classes de aceleração, práticas pedagógicas (90 horas) e Formação
de contadores de histórias. Disse ainda que era vinculada ao sindicato dos professores da rede
municipal de ensino. Quanto ao nível de informação por meio de leitura, afirmou que lia
jornais, revistas e periódicos. Os títulos citados foram as revistas Nova Escola, Veja e o jornal
Folha de São Paulo. Ela disse que, às vezes, participava de congressos, seminários ou
encontros similares. Suas atividades culturais mais freqüentes eram ouvir rádio (sempre),
assistir à TV (às vezes), assistir a vídeos (às vezes), ir ao cinema (às vezes) e ir ao teatro (às
57
vezes). Afirmou ainda que sempre lia jornais locais, periódicos na área da educação, livros
didáticos, livros variados sobre educação, periódicos diversos, romances, biografias e ficção.
Quanto à concepção de alfabetização da professora, acreditamos que pode ser
identificada no poema escrito para prefaciar o livro de histórias das crianças:
Ler e escrever é muito mais que juntar letras e formar palavras.
Ler é ver mais do que está escrito, é descobrir o que o outro pensou.
Escrever é poder deixar a nossa marca numa folha, num caderno, no mundo.
Ler e escrever é saber que isso foi construído aos poucos, com a ajuda de muitos e a
própria força de vontade.
É importante esclarecer que, no final do ano, elaboramos, juntamente com a professora
e as crianças da classe, um livro com as produções das crianças. Os textos, contidos no livro
foram produzidos durante as atividades de produção de textos, orientadas pela pesquisadora. O
livro foi intitulado pelas crianças de Nossas histórias. A organização do livro teve um caráter
pedagógico importante, durante a construção da base de informações para a pesquisa.
Consideramos que as crianças deviam produzir textos para que estes fossem, de alguma
maneira, publicados e lidos por outras pessoas e não apenas pela pesquisadora ou pela
professora. Por isso, no decorrer da pesquisa, planejamos duas estratégias de divulgação dos
textos: a primeira, já mencionada e, a segunda, por meio da confecção de um mural, intitulado
Nossas brincadeiras onde foram divulgados textos que versavam sobre essa temática.
4 As crianças
No início do trabalho, portanto, no momento da coleta de informações que constam
neste item, foram sujeitos da pesquisa trinta e cinco crianças que estavam matriculadas na
primeira série do Ensino Fundamental da escola escolhida. Porém, esse número variou durante
o ano e, assim, participaram do trabalho, durante o ano, trinta e nove crianças. No entanto, é
importante esclarecer que o número de crianças que participou das atividades de produção de
textos variou em função das matrículas novas e de transferências e, também, devido à própria
dinâmica estabelecida para a coleta.
Para caracterização das crianças envolvidas no estudo, utilizamos um formulário
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(ANEXO D) que foi preenchido por meio de consulta à ficha de matrícula e à certidão de
nascimento, existentes na Secretaria da escola, entrevista com as crianças e, por fim, foi
encaminhado um outro formulário (ANEXO E) aos pais ou responsáveis pelos alunos,
solicitando informações que não puderam ser obtidas por meio da consulta à ficha de
matrícula e da entrevista com as crianças. Apenas dois formulários encaminhados não foram
devolvidos. Descreveremos as informações coletadas sobre todas as crianças que participaram
da pesquisa e, assim, estaremos considerando as transferências e matrículas novas que
ocorreram durante o ano, pois todas essas crianças participaram em algum momento do
trabalho desenvolvido. As informações obtidas sobre os alunos foram organizadas em tabelas
(ANEXO F).
Participaram da pesquisa, conforme dito, trinta e nove crianças. A idade dessas
crianças variava entre sete e dez anos, havendo vinte e três (58,98 por cento) crianças na faixa
etária de sete anos, doze (30,76 por cento) com oito anos e quatro (10,26 por cento) com idade
acima de oito anos. Desse modo, o número de crianças com distorção idade/série era pequeno
e como, na rede municipal, as séries iniciais do Ensino Fundamental são organizadas em ciclos
de dois anos, a presença desses alunos na turma justificava-se pelo fato de apresentarem,
segundo a professora, grandes dificuldades de aprendizagem. Esses alunos não se
diferenciavam dos outros alunos se considerarmos a altura e os conhecimentos sobre a
linguagem escrita. Havia ainda, na classe, vinte e duas (56,41 por cento) crianças do sexo
feminino e dezessete (43,59 por cento) do sexo masculino.
Das crianças que participaram do estudo, trinta e oito (97,44 por cento) haviam
estudado anteriormente e apenas uma (2,56 por cento) não havia estudado. A idade com que
os alunos começaram a freqüentar a escola, conforme dados contidos na ficha de matrícula,
variou entre quatro e oito anos. Quinze (37,47 por cento) crianças começaram a freqüentar
escolas de Educação Infantil com quatro anos, sete (17,94 por cento) com cinco anos e treze
(33,34 por cento) com seis anos. Desse modo, quatro não cursaram a pré-escola, três (7,69 por
cento) começaram a estudar com sete anos e uma (2,56 por cento) com oito anos. Apesar de a
maioria das crianças ter freqüentado a pré-escola, apenas uma, no início do ano escolar, sabia
ler e escrever.
Os programas de rádio favoritos apontados pelas crianças são Reino de Deus, músicas
sertanejas e baianas. Os programas de televisão preferidos pelas crianças são: Disney Club,
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desenhos, novelas, Chaves, Gugu, Xuxa, Sessão da Tarde, Angélica, Ratinho, Eliana, Sandy e
Júnior. É importante ressaltar que sete crianças não possuíam rádio em casa e duas não
possuíam televisão. A maioria das crianças (71,80 por cento) prefere ouvir no rádio programas
de músicas. Os programas de televisão que obtiveram índices significativos de preferência
foram: novelas (34,49 por cento), desenhos (28,21 por cento) e o programa do Ratinho (13,59
por cento).
Com relação ao tipo de material escrito que possuíam em casa, vinte e uma (61,76 por
cento) crianças disseram ter livros, vinte e cinco (73,52 por cento) falaram que possuíam
revistas e nove (26,47 por cento) que possuíam jornais. Sobre os títulos desses materiais, as
crianças mencionaram livros, tais como: Os três porquinhos, Chapeuzinho Vermelho e Bíblia.
Falaram ainda que possuíam livros didáticos fornecidos pela escola. Quanto aos jornais,
afirmaram que foram fornecidos pela professora da classe para recortarem palavras e letras.
Apenas uma disse que tinha o jornal da farmácia. Os alunos citaram os títulos das revistas
(Caras, Veja e Gibis) e informaram que eram trazidas por parentes dos seus locais de trabalho.
As crianças apontaram que as diversões preferidas são as brincadeiras de boneca,
carrinho, casinha, mamãe-filhinha, jogar bola, virar piruetas, pega-pega, esconde-esconde,
corre-cutia, estátua, pular corda. Uma criança afirmou que gostava de brincar de video-game.
Outras disseram que gostavam de ir ao parque, brincar com os amigos, andar de bicicleta,
conversar com amigos, fazer lição de casa, nadar no rio, brincar de balanço, soltar pipa, andar
a cavalo, brincar com o irmão, brincar de urso e assistir à televisão. As brincadeiras apontadas
com maior freqüência foram: brincar de boneca (20,51 por cento) e brincar de esconde-
esconde (17,94 por cento).
No que se refere às pessoas que moravam com as crianças, foi possível identificar
vinte e seis crianças (66,68 por cento) que viviam apenas com os pais e os irmãos, sete (17,94
por cento) que moravam com os pais, irmãos e outros parentes; quatro (10,26 por cento) com
um dos pais e irmãos; e duas (5,12 por cento) que viviam com um dos pais, irmãos e parentes.
Desse modo, o tipo de organização familiar era variado e nem sempre seguia os modelos
tradicionais.
As informações que se seguem relacionadas com as profissões e grau de instrução dos
pais e renda familiar foram organizadas com base no universo de trinta e sete sujeitos, pois
duas crianças não devolveram o formulário encaminhado para suas casas. As profissões dos
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pais, conforme formulário preenchido pelos próprios membros da família, eram variadas.
Havia pedreiros, serventes de pedreiro, operário, motoristas, entre outras. Quanto às profissões
das mães, foi interessante observar que um número significativo de mães exercia apenas
atividades no lar (dezoito mães), apesar dos baixos salários de seus parceiros. Cerca de onze
mães trabalhavam como empregadas domésticas e um número menos expressivo como
faxineiras, merendeiras, pajens, etc.
Conforme o mesmo formulário, a renda familiar era baixa. A maioria das famílias
sobrevivia com uma renda que variava entre um e até três salários. Desse modo, quatro
famílias (10,81 por cento) possuíam renda que variava entre um até dois salários, oito (21,62
por cento) possuíam renda entre dois e três salários, quatro (10,81 por cento) tinham renda
entre três e quatro salários, três (8,10 por cento) entre quatro até cinco salários, três (8,11 por
cento) entre cinco e seis salários e três famílias (8,11 por cento) possuíam renda superior a seis
salários. Ainda é importante ressaltar que sete (18,91 por cento) famílias não declararam a
renda familiar e cinco (13,52 por cento) afirmaram que ambos os pais estavam
desempregados.
Quanto ao nível de instrução dos pais e das mães, constatamos que era baixo, pois a
maioria dos pais e das mães possuía quarta série do Ensino Fundamental incompleta ou apenas
concluiu essa série. Assim, conforme dados fornecidos pelas famílias, foi possível constatar
que nove pais possuíam a quarta série completa, dez a quarta série incompleta, cinco a oitava
série incompleta, onze a oitava série completa, nenhum pai possuía o ensino médio completo e
um possuía o ensino médio incompleto. Dos pais, apenas um não havia estudado.
Com relação ao nível de instrução das mães, identificamos que sete mães possuíam a
quarta série completa, doze possuíam a quarta série incompleta, quatro possuíam a oitava série
completa, doze a oitava série incompleta, uma o ensino médio completo e nenhuma mãe
possuía o ensino médio incompleto. Apenas uma mãe nunca havia estudado.
O quadro descrito com relação ao nível de instrução dos pais é caótico: vinte e dois
pais não haviam concluído o Ensino Fundamental e trinta e quatro mães não concluíram essa
mesma etapa da Educação Básica. Esses resultados retratam a distribuição desigual da
educação no Brasil. Na realidade, a maioria dos pais teve acesso ao Ensino Fundamental, e
apenas um pai e uma mãe eram analfabetos; no entanto, é alto o número de pais que não
conseguiram avançar nos estudos.
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Verificamos ainda que quatro crianças (10,26 por cento) não possuíam nenhum irmão,
dez (25,64 por cento) possuíam um irmão, quatorze (35,89 por cento) possuíam dois irmãos,
seis (15,39 por cento) possuíam três irmãos e cinco (12,82 por cento) possuíam mais de três
irmãos. Se considerarmos a renda familiar e o número de irmãos, é possível concluir que há
predominância de famílias que viviam com renda insuficiente para o seu sustento. Com base
nos dados, vale destacar ainda que o índice de desemprego é alto. Cinco famílias não tinham
como sobreviver, pois os responsáveis pelo sustento da família encontravam-se
desempregados.
Com base nas informações descritas, constatamos que o nível socioeconômico e
cultural dos sujeitos envolvidos na pesquisa é baixo. Dessa forma, os dados mostram a
situação de pobreza em que tem vivido grande parte da sociedade brasileira.
5 O trabalho de alfabetização desenvolvido na sala de aula
Definir o método de alfabetização utilizado pela professora é algo extremamente
complicado, pois não existia uma forma sistemática de trabalho. Concepções de alfabetização,
de ensino e de aprendizagem misturavam-se na prática educativa. Além disso, o nosso
envolvimento com os sujeitos produziu algumas expectativas na professora, principalmente,
no sentido de participação no planejamento do trabalho que era desenvolvido com as crianças.
Não nos negamos a contribuir, pois percebemos que a nossa participação era necessária.
No início do ano, a professora começou o trabalho com as crianças por meio do estudo
das vogais. As atividades usadas para trabalhar esse conteúdo eram as mesmas que estão
presentes em um grande número de cartilhas, já suficientemente criticadas. Essa constatação
foi feita por intermédio da observação dos cadernos das crianças, pois, nesse momento, ainda
não havíamos começado o trabalho de pesquisa na escola.
Durante algum tempo, permanecemos na sala de aula sem poder observar o tipo de
trabalho desenvolvido pela professora com relação à alfabetização, pois as crianças eram
sempre instruídas a resolver tarefas de Matemática. Porém, com o passar das semanas, foi
possível observar que a professora trabalhava seguindo os delineamentos das cartilhas e, ao
mesmo tempo, propunha atividades de “produção de textos” coletivos e individuais, além de
outras atividades que serão mencionadas oportunamente. Mostraremos, com base nas
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filmagens que realizamos do trabalho desenvolvido pela professora, dois exemplos de como
era orientado o trabalho com esse tipo de produção.
“Produção de texto” coletivo a partir de uma gravura (17 de maio de 2000)
Na época em que os alunos realizaram a atividade de “produção de texto” que será
descrita, a temática que orientava as atividades, na sala de aula, era Brinquedos e brincadeiras.
Por isso, a professora levou para a classe uma gravura que mostrava duas crianças brincando
de casinha e disse aos alunos que eles iriam escrever um texto coletivo sobre a figura. Cada
criança falaria uma parte do texto que seria registrada pela professora na lousa. Ao final, todos
os alunos deveriam copiar o texto no seu caderno. As carteiras estavam organizadas formando
dois retângulos. A atividade ocorreu conforme será descrito:
Professora: O Adriano já começou (vira-se para a lousa e escreve). Uma menina. Uma menina.
Não é para escrever nada. É para ir escutando e pensando. Uma menina e um
menino estavam brincando de casinha (escreve, enquanto fala de maneira artificial,
ou seja, tentando estabelecer uma relação biunívoca entre sons e letras). Então,
vamos ler aqui todo mundo (aponta na lousa o texto). Jéssica, presta atenção,
porque você vai continuar a história. Todo mundo!
Professora e crianças: Um menino e uma menina estavam brincando de casinha (a professora
aponta a escrita e a leitura desenvolve-se de maneira artificial).
Professora: (Dirige-se à aluna). Fala, Jéssica. Tem gente que não está prestando atenção. Fala
(fecha o caderno da aluna que ainda escrevia o cabeçalho).
Jéssica: O papai foi trabalhar.
Professora: O papai foi trabalhar, né (vai para a lousa e escreve) O papai foi trabalhar (fala
pausadamente, enquanto registra a frase. Ao terminar, vira-se para as crianças e,
em seguida, aproxima-se de Luiz Carlos). Luiz Carlos, antes de trabalhar, o que
ele estava fazendo antes de trabalhar?
Luiz Carlos: Deu uma flor para a mamãe.
Professora: (Volta-se para a lousa e inicia o registro). E antes, e antes de sair. Pode ser?
Crianças: Pode.
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Professora: Deu uma flor para a mamãe. Tá ficando bonita a nossa história, viu. E aí, Sabrina?
O que aconteceu? (Pára em frente à criança).
Sabrina: (Fica silenciosa).
Professora: Olha lá (mostra a lousa). A mamãe gostou da flor?
Sabrina: Gostou.
Professora: O que ela ficou fazendo?
Sabrina: (Fala algo que não pode ser ouvido).
Professora: Hum?
Sabrina: (Repete e é ouvida pela professora que se dirige novamente para a lousa).
Professora: A mamãe estava dando banho na filhinha e gostou da flor. Como a gente pode
escrever isso? Daí então...
Criança 1: Ela gostou da flor.
Professora: Ela gostou da flor. (Fica silenciosa por alguns segundos). E dá banho na filha fica
para depois?
Crianças: Fica.
Professora: É. Então, vamos escrever. Ela... Olha o ponto final... Ela quem?
Crianças: A mãe.
Professora: Gostou muito da flor (escreve ao mesmo tempo que repete a frase). Alessandra, e
aí?
Alessandra: Ela guardou com carinho aquela flor.
Professora: Ela gostou muito da flor (lê o que havia escrito anteriormente). Então, vamos pôr
assim. Uma vírgula. E guardou com carinho. Então, tá. Chega de falar da flor.
Vamos falar, agora, o que a mamãe estava fazendo? (Dirige-se para Rafaela).
Rafaela: A mamãe estava dando banho na filhinha.
Professora: A mamãe estava dando banho na filhinha (repete e inicia o registro na lousa). A
mamãe estava dando banho na filhinha. Quem era a filhinha?
Crianças: A boneca, a boneca.
Professora: Então, a gente escreve que era uma boneca ou não precisa?
Crianças: Não precisa.
Professora: Então, deixa assim. E aí, Ana Paula? O que vai vir? A mamãe estava dando banho
na filhinha? E aí?
64
Ana Paula: (Move-se na cadeira sem responder).
Professora: O que mais você acha que a gente pode escrever?
Ana Paula: (Não diz nada).
Professora: Enquanto a mamãe estava dando banho na filhinha, quem que ficava olhando ela
ali (aponta para a gravura no alto da parede).
Andrey: O papai.
Ana Paula: O cachorro.
Professora: O cachorro, né. E o cachorro ficava observando.
Ana Paula: (Balança a cabeça afirmativamente).
Professora: Como é que ele pode se chamar?
Ana Paula: Betowen.
Professora: Hã?
Ana Paula: Betowen.
Professora: Betowen? A mamãe estava dando um banho na filhinha (lê o que estava escrito na
lousa) enquanto... Olha, eu vou pôr outra vírgula aqui. Enquanto que o cachorro
Betowen ficava olhando. É isso?
Crianças: É.
Professora: Ficava olhando. E aí, Manuely? O que mais?
Manuely: A filhinha gostou muito do banho.
Professora: A filhinha gostou muito. Você quer dar um nome para a filhinha ou não precisa?
Manuely: Balança a cabeça afirmativamente.
Professora: Como é que ela pode chamar, então?
Manuely: Bárbara.
Professora: (Volta-se para a lousa e repete a frase). A Bárbara gostou muito do banho.
(começa a escrever) A Bárbara gostou muito do banho. (Volta-se para Mariane).
Mariane, por que ela gostou do banho?
Mariane: Por que a água estava quentinha.
Professora: A Bárbara gostou muito do banho (lê e, em seguida, volta-se para Mariane).
Porque ela gostou muito do banho?
Mariane: Porque a água estava quentinha.
Professora: (Lê novamente). A Bárbara gostou muito do banho. (escreve) porque...
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Crianças: (Conversa entre as crianças).
Professora: Porque a água estava...
Criança: Quen...
Professora: Quen...
Criança: Tinha.
Professora: Tinha. Andrey e depois?
Andrey: (Mexe-se na cadeira, mas não responde).
Professora: Gabriela, eu já falei para você guardar esse livro, agora não é hora. E então
Andrey? Tem gente que não está prestando atenção.
Andrey: (Continua em silêncio).
Professora: Vamos ler. Presta atenção. Um menino e uma menina estavam brincando de
casinha. Ponto final. O papai foi trabalhar e antes de sair deu uma flor para a
mamãe. Ela gostou muito da flor e guardou com carinho. A mamãe estava dando
banho na filhinha, enquanto que o cachorro Betowen ficava olhando. Enquanto o
cachorro. Não tem esse ”que” aqui (apaga a palavra que). Enquanto o cachorro
Betowen ficava olhando. A Bárbara gostou muito do banho, porque a água estava
quentinha. E depois, Andrey?
Andrey: Ela gostou muito do banho.
Professora: Mas isso nós já escrevemos. Ela gostou muito do banho.
Andrey: (Fica em silêncio).
Professora: Fala, Natália.
Natália. Ela adorou o banho.
Professora: O quê?
Natália: Ela adorou o banho.
Professora: Então, gostou muito e adorar é a mesma coisa. Vanessa, fala alguma coisa?
Vanessa: Ela adorou tomar banho.
Professora: Não. Nós já escrevemos isso. Quem quer falar alguma coisa?
Várias crianças levantam a mão.
Crianças: Eu.
Professora: Você já falou. Quem não falou ainda? José Carlos! Não precisa mais falar do
banho da Bárbara. Fala, Tais.
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Taís: Ela ficou muito cheirosinha.
Professora: A água estava quentinha.
Fábio: Tia, eu sei qual era o nome dela.
Professora: Já foi o nome dela. Pera aí. A água estava quentinha e a Tais falou que ela ficou
muito cheirosinha. E ela ficou cheirosa, chei ro sinha. O que você estava falando,
Hugo?
Hugo: Depois ela foi comer.
Professora: (Volta-se para a lousa e escreve ao mesmo tempo em que repete a frase do Hugo).
Depois ela foi comer. Precisamos continuar a história ou a gente pode terminar?
Crianças: Pode terminar.
Professora: Pode terminar?
Crianças: Pode.
Professora: Como é que a gente pode terminar a história para ela ficar bem legal?
(Não obtém resposta).
Professora: Como a gente pode terminar?
Criança: O papai chegou do trabalho e viu...
(Enquanto isso, a professora ouve Natane falar)
Professora: Não. Se a gente escrever isso vai continuar a história e não vai terminar a história.
Vamos pensar um jeito de terminar a história.
(As crianças conversam)
Professora: Olha, o menino e a menina que estavam brincando. Eles gostaram de brincar?
Crianças: Gostaram.
Professora: Vocês acham que eles se divertiram brincando juntos de casinha?
Crianças: Divertiram.
Professora: Então, se a gente escrever que eles se divertiram muito. A gente pode terminar a
história assim?
Crianças: Pode.
Professora: Então, vamos escrever. Os dois se divertiram muito.
Criança: Ô tia, olha ela.
Professora: Muito nessa brincadeira. Agora, que nós terminamos a nossa história a gente tem
que inventar um nome para a história.
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Criança: A bela adormecida.
Professora: Bela adormecida? A gente não está falando de bela adormecida. Fala, Manuely.
Manuely: A casinha.
Professora: A casinha? Quem é que concorda com esse nome pra nossa história?
Crianças: Eu concordo (vários alunos levantam o dedo, a professora conta).
Professora: Um, dois, três... vinte e um. Então, vinte e um concordam, nove não concordam,
Então, vai ficar a casinha. (os alunos que levantaram o dedo comemoram e a
professora escreve). A ca si nha. Agora, vocês vão escrever o texto no caderno.
Crianças: Não!
Criança: Tudo isso?
Professora: Só isso. E depois fazer o desenho da brincadeira.
(Mais reclamações das crianças)
Professora: Vocês começam aqui (aponta na lousa, onde está escrito o título). José Carlos você
começa aqui. Colorido. Olha o parágrafo, ponto final, as vírgulas. Olha sempre
que tiver esse espaço aqui (aponta o parágrafo). Primeira série, presta atenção.
Sempre que tiver esse espaço aqui (aponta novamente) é para... Esse espaço se
chama?
Crianças: Parágrafo.
Professora: Parágrafo. Então, vamos ver se vão deixar parágrafo. Vocês querem que eu
marque os parágrafos?
Crianças. Queremos. Não.
Professora: Não precisa, né.
Crianças: Não.
Professora: Mas eu vou marcar assim mesmo. Eu vou fazer uma bolinha nos parágrafos. Não é
para vocês fazerem. Aqui é um parágrafo, aqui é outro. Vocês não precisam. É só
para vocês saberem onde é o parágrafo. Aí vocês deixam um espaço (marca todos
os parágrafos e mostra como está organizado o texto na lousa). Começa aqui
(aponta onde está escrito o título). Aí vem aqui (mostra o outro lado da lousa que
foi dividida em duas partes) até embaixo e sobe ali em cima. Qual é o problema,
Fábio?
Fábio: Eu não tenho lápis.
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Professora: Eu te dei dois lápis ontem. Eu te dei um que você quebrou. Depois te dei outro.
Onde foi que você enfiou o outro?
Fábio: O outro é aquele ali.
Como foi possível observar, por meio da longa descrição da atividade, a professora ia
pedindo que cada criança falasse uma parte que deveria compor o texto. Algumas vezes, as
crianças ficavam perdidas, sem saber como continuar e repetiam o que já estava escrito. No
entanto, a professora elaborava perguntas que conduziam e possibilitavam a elaboração do
texto.
A descrição da atividade permite alguns questionamentos: por que produzir um texto
que iria versar sobre uma das brincadeiras comuns entre as crianças daquela classe, a partir de
uma gravura? E ainda: por que não possibilitar que as crianças falem sobre como brincam de
casinha? É provável que as dificuldades para a continuidade do texto, por parte da crianças,
fossem minimizadas com esse procedimento. Por que não confiar nas experiências das
crianças? Por que não deixar que falem de suas próprias vidas? As respostas para todas essas
questões podem ser encontradas, talvez, na forma como, historicamente, vem sendo conduzido
o trabalho com a alfabetização. Atualmente, mesmo que a professora deixe o texto entrar na
sala de aula pela via da chamada “produção de textos”, consciente ou inconscientemente, tal
prática também acaba sendo controlada, como eram as letras, as sílabas, as palavras e os
pseudotextos que eram/são estudados durante a alfabetização.
A descrição que segue de uma outra atividade de “produção de texto” expressará, por
si mesma, com maior precisão, as condições em que se desenvolvia esse trabalho na sala de
aula.
“Produção de texto” individual sobre “dois namorados” (13 de junho de 2000)
No dia anterior à realização de produção de texto que será descrita (12 de junho), a
professora havia comentado sobre o Dia dos Namorados. Adriano falou que tinha uma
namorada e a professora perguntou-lhe se havia comprado um presente para ela. Ele sorriu e
disse que não. Após essa conversa, os alunos pintaram um desenho sobre O Dia dos
Namorados. No dia seguinte, a professora iniciou a proposta de produção de texto da seguinte
69
forma:
Professora: Nós já conversamos. O Adriano disse que tem uma namorada. Não sei quem...
Você deu o presente para a sua namorada, Adriano?
Adriano: Agora eu dei.
Professora: Agora ele deu o presente.
(Alguém fala, mas não é possível identificar e nem entender o que foi dito).
Professora: É. Agora, vocês vão escrever, então. Vão pular uma linha e vão escrever uma
história sobre dois namorados. O que eles conversaram, se não conversaram, se
um deu presente, se não deu presente. Cada um. Só que presta atenção. Não é para
escrever qualquer coisa. Primeiro, pensa na história. Vamos pensar: tem um
namorado que se chamava alguma coisa e uma namorada que se chamava outra
coisa; onde eles se conheceram; quando eles se conheceram; quando eles
começaram a namorar; quantos anos eles tinham; o que eles faziam; o que eles não
faziam. Tá combinado?
Crianças: Tá.
Professora: Antes de escrever tem que fazer o quê?
Criança 1: Pular uma linha.
Criança 2: Pensar.
Professora: Pensar. Pula uma linha também, mas pensa pra depois escrever e, pra pensar, a
gente não conversa. Façam o texto agora. Depois termina o caderno. Guarda o
caderno, Jéssica, Natália, Fábio. Pode começar. Quem terminar levanta a mão,
quando acabar (todas as crianças conversam nesse momento. Bruno conta algo
para Hugo e levanta as mãos).
Professora: Bruno, pra pensar a gente usa a cabeça e não a mão (a criança volta-se para a folha
diante de si. Algumas crianças circulam pela sala e outras iniciam a escrita. A
professora coloca um fundo musical).
Não nos deteremos numa análise minuciosa desse tipo de trabalho, pois sabemos que
Geraldi (1993) e outros autores, a partir da distinção entre produção de texto e redação, fez
uma análise fabulosa desse tipo de produção, considerando especialmente as condições que
devem ser levadas em conta para produzir um texto na escola. Contudo, é importante ressaltar
70
que, mesmo diante de propostas que podem parecer estranhas, as crianças produzem textos até
certo ponto interessantes e se esforçam para fazê-lo. Acreditamos que isso demonstra que as
crianças tentam incorporar as exigências da escola de modo a nela permanecer e, também,
compreendem que estão na escola para realizar as atividades sem questioná-las.
A partir da solicitação da nossa participação no planejamento e com as sugestões que
apresentamos, a professora passou a utilizar, em alguns momentos, um tipo de metodologia
denominada alfabetização a partir do texto, proposta por Carvalho (1989), no livro Guia
prático do alfabetizador. No entanto, havia dificuldades para colocar em prática o trabalho
planejado. Uma dificuldade estava ligada ao tempo pensado para realização de um plano e o
tempo usado efetivamente para desenvolver o trabalho. Dessa forma, atividades que eram
planejadas para serem desenvolvidas durante quatro dias, chegavam a atingir três ou quatro
semanas para sua realização. Isso porque o desenvolvimento do planejamento era
interrompido para realização de outros trabalhos não previstos. Não acreditamos que o
planejamento deva ser uma camisa-de-força e que não possa sofrer mudanças durante o seu
desenvolvimento, mas, se o trabalho educativo não for orientado de maneira sistemática,
intencional e visando a finalidades determinadas, poderá redundar em resultados desastrosos
para as crianças que precisam da escola para aprender. Na maioria das vezes, as atividades
eram justapostas sem uma organização, seqüência e sentido. Outras atividades eram propostas,
conforme as datas previstas no calendário (Dias das Mães, Páscoa, Festa junina, Dia dos
Namorados, etc.).
Enfim, na maior parte do tempo, as atividades que visavam a possibilitar a
aprendizagem da leitura e da escrita eram de treino (cópia de famílias silábicas estudadas, de
palavras e de letras), cópia de pequenos textos da cartilha usada, ditados para verificação da
aprendizagem de palavras estudadas, cópia de listas de palavras, etc.
Nesse contexto, é importante lembrar as afirmações de Saviani (1997):
a escola existe [...] para propiciar a aquisição de instrumentos que possibilitam o acesso ao
saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso ao rudimentos desse saber. Dessa
forma, as atividades escolares devem ser organizadas de modo a proporcionar a
apropriação de conhecimentos fundamentais à formação dos indivíduos. O conteúdo
fundamental da escola é 'ler, escrever, contar, os rudimentos das ciências naturais e das
ciências sociais (história e geografia)' (Saviani, 1997, p. 19-20).
71
Era possível perceber, por parte da professora, a “necessidade” (às vezes, imposta) de
realizar determinadas atividades que estavam de acordo com as determinações da Secretaria
Municipal de Educação. A prática adotada na rede de ensino era baseada nos pressupostos do
“construtivismo”, contra toda espécie de repetição e mecanicismo. Dessa forma, algumas
atividades atendiam às orientações do órgão central e as outras eram realizadas conforme os
modelos cartilhescos de alfabetização. Mais uma vez lembramos Saviani (1997), pois
independentemente dos modismos, o clássico da escola é a transmissão-assimilação do saber
sistematizado. Enquanto os profissionais das escolas oscilam entre formas tradicionais de
ensino e formas “inovadoras” adotadas pelos órgãos diretores, perde-se a finalidade do
trabalho educativo.
Mesmo assim, não podemos deixar de mencionar o esforço da professora na realização
de algumas atividades que eram importantes para o processo de aprendizagem: a partir do
segundo bimestre, criou um sistema de biblioteca na sua própria classe. Para fazer isso,
adquiriu, com recursos próprios, alguns livros, colocou-os em uma caixa, fez uma ficha para
empréstimo e toda segunda-feira fazia, na própria classe, os empréstimos e as devoluções dos
livros. Nesse dia, ela também lia um livro para as crianças e em outros dias da semana as
próprias crianças liam livros que foram emprestados da caixa-biblioteca. A iniciativa da
professora foi muito importante, pois, conforme verificamos, as crianças possuíam poucos
materiais escritos em suas casas. Ela organizou, ainda juntamente com as outras professoras da
primeira série, o que podemos chamar de “círculo de leitura” . Uma vez por semana, as turmas
reuniam-se no pátio da escola e as crianças liam histórias uma para as outras.
72
Capítulo V
O processo de apropriação da linguagem escrita
Para realização do trabalho proposto, elaboramos as atividades que foram
desenvolvidas pelas crianças durante o ano letivo. As atividades consistiram na produção oral
de textos que eram registrados pela pesquisadora e, depois, escritos pelas próprias crianças
envolvidas no trabalho. Organizamos cinco atividades durante o ano. Elas ocorreram nos
meses de maio, julho e agosto, setembro, outubro e novembro, sendo realizadas com os alunos
individualmente.
Participaram da pesquisa trinta e nove crianças, número que variou, durante a
realização de cada uma das atividades, em função das transferências, matrículas novas e de
acordo com o nosso próprio interesse de pesquisa.
Realizamos ao longo do ano cento e sessenta e oito atividades com as crianças.
Duraram em torno de trinta minutos cada uma. Todas foram filmadas e, depois, transcritas
para análise. Na primeira atividade, filmamos os três momentos: produção oral do texto pelas
crianças e registro pela pesquisadora, processo de registro do texto pela criança e como se
relacionavam com a escrita, após serem incentivadas a ler o texto. A partir da segunda
atividade, optamos por iniciar a filmagem pelo registro feito pela criança, porque o que ocorria
durante a produção oral do texto não era matéria de nosso interesse.
Diante da quantidade e riqueza das informações obtidas em cada uma das atividades,
agrupamos as crianças em duas categorias, de acordo com o objetivo do trabalho. Na primeira
categoria, incluímos as crianças que usavam a escrita como recurso para a memória e, na
segunda, incluímos as crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto.
Este capítulo será organizado tendo por base as cinco atividades realizadas com as
crianças. Começaremos pela atividade de registro das brincadeiras preferidas das crianças.
1 O registro da brincadeira
Após permanecermos na sala de aula durante algumas semanas, observando e
participando do trabalho desenvolvido pelas crianças e pela professora, iniciamos, no mês de
maio, a primeira atividade que consistiu na produção de texto oral pelas crianças,
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individualmente, e o registro dos mesmos. Participaram dessa atividade trinta e sete crianças
que freqüentavam as aulas durante o mês de maio.
No início do referido mês, planejamos, com a professora da classe, as atividades para
serem realizadas pelas crianças, na sala de aula, cuja temática era Brinquedos e brincadeiras.
Com base nessa temática e com o objetivo de articular a atividade de produção de texto com o
trabalho que estava sendo desenvolvido, decidimos propor às crianças que escrevessem sobre
as brincadeiras que estavam sendo objeto de estudo na classe. Essa proposta foi feita para
todas as crianças, ao mesmo tempo, na sala de aula. Elas gostaram da idéia e, então,
combinamos que cada uma escolheria e escreveria sobre a sua brincadeira preferida. Ao final
do trabalho, todas as produções seriam expostas em um mural intitulado Nossas brincadeiras.
Como não existia espaço disponível, na escola, para a realização do trabalho, no
primeiro dia, realizamos as atividades na sala da diretora. No entanto, não foi possível
continuar as atividades nesse espaço, pois a sala ficava localizada no segundo piso do prédio e
recebia o barulho das salas de aula que funcionavam no terceiro piso e das crianças que
passavam para encaminharem-se ao refeitório e ao pátio, prejudicando as filmagens que eram
realizadas durante a atividade. Assim, a partir do segundo dia, a Coordenadora Pedagógica
cedeu a sua sala para a realização das atividades.
Durante o tempo em que permanecemos na sala de aula, as crianças se familiarizaram
com os equipamentos usados (filmadora e tripé) no trabalho, e estes já não eram objetos de
interesse e, por isso, agiam naturalmente diante deles ao serem filmadas. Além disso, todas as
crianças sabiam o porquê da presença de uma outra pessoa na sala de aula, acompanhando e
participando das atividades. Naquele momento específico, sabiam que iriam escrever sobre as
brincadeiras que estavam sendo trabalhadas e sabiam ainda que, após a conclusão das
produções, estas seriam expostas no mural para que os outros alunos, os professores e os pais
pudessem conhecer as brincadeiras preferidas dos alunos da primeira série. Quando
terminamos o trabalho, a professora da classe construiu o mural e todos puderam conhecer o
trabalho realizado pelos alunos.
A atividade desenvolvida com os alunos foi orientada, tomando por base os seguintes
procedimentos:
a) Inicialmente, perguntamos às crianças quais eram as suas brincadeiras preferidas.
74
b) Em seguida, pedimos que imaginassem que teriam de ensinar a brincadeira
escolhida para colegas que não a conheciam. Era explicado ainda que deveriam
descrever oralmente a brincadeira de modo que pudéssemos registrá-la.
c) Após a conclusão da explicação e do registro, solicitamos que as crianças
escrevessem a brincadeira. Em casos de argumentos como “não sei escrever”,
pedimos que escrevessem como sabiam.
d) Quando as crianças demonstravam que estavam dispostas a realizar a atividade,
ditávamos o texto que havia sido registrado.
e) Ao término do registro da brincadeira, perguntamos se a escrita ajudava a lembrar o
conteúdo que escreveram e, em seguida, pedimos que lessem o texto registrado.
Durante as explicações das brincadeiras pelas crianças, ocorreram situações em que
não era possível registrar o que estava sendo falado, pois as crianças expressavam-se com
propriedade e rapidez, falavam demasiado baixo e, por isso, não podiam ser ouvidas e
compreendidas, usando palavras que tínhamos dificuldades em compreender, pois eram
próprias da comunidade da qual faziam parte. Nessas diversas situações, era necessário pedir
que as crianças repetissem o que foi dito para que o registro fosse efetuado. Outras crianças,
mesmo conhecendo as brincadeiras, tinham dificuldades em expressá-las de forma
compreensiva e precisavam da nossa ajuda para elaboração do texto.
Como o material seria exposto e lido pelos outros alunos que estudavam na escola,
pelos professores e pais, pedimos às crianças que imaginassem que ensinariam a brincadeira
para outras pessoas que não a conheciam. Essa conversa objetivava constituir os leitores dos
textos. Além disso, a criança era informada que o texto verbalizado seria registrado, o que
certamente produziu, para algumas crianças, mudanças no modo como expressaram a
brincadeira. No entanto, para a maioria, o fato de haver um registro e mesmo o fato de
saberem que outras pessoas iriam ler o texto não alterou suas formas de dizer e escrever.
Tornou-se, necessário, com isso, durante a produção oral, negociar como deveria ser escrito o
que estava sendo dito; confirmar se o registro elaborado traduzia, corretamente, o que foi
expresso; reler as partes do texto já composto para garantir a seqüência, pois os alunos
alteravam completamente o rumo daquilo que estava sendo dito. Quando as crianças diziam
ter concluído o texto, repetíamos a leitura para que confirmassem se o registro correspondia ao
75
que realmente queriam dizer. Para fins de ilustração, descreveremos detalhadamente o
trabalho inicial desenvolvido com um dos sujeitos.
P.: Como é que brinca de esconde-esconde?
Christopher: Você pega uma árvore, um poste ou senão pega um pau assim e, então, a gente
fica com o braço assim (coloca o braço no rosto para mostrar como é) e conta. Até
uma pessoa falar. Essa pessoa. A pessoa fala assim: conta até vinte. A pessoa que
tá lá assim na árvore (põe, novamente, a mão sobre o rosto) tem que contar até
vinte. Aí, na hora que a outra respondeu pode vir. Aí, a outra pessoa que tá lá na
árvore batendo tem que procurar o outro. Se o outro acha, tá com o outro. O
primeiro que achar o que tá batendo ele tem que procurar a pessoa que tá se
escondendo. Aí, a pessoa que achar o que bateu tem que procurar, se ele achar o
que tá se escondendo vai ter que bater.
P.: Eu queria, agora, que você falasse a brincadeira mais devagar, porque eu quero escrever do
jeito que você está falando. Eu quero escrever como é a brincadeira. Pra que eu
possa escrever, você precisa falar um pouco mais devagar.
Christopher: E tem uma pessoa. A gente enterra um pau ou senão bate na árvore ou num poste.
P.: Então, a gente enterra o quê?
Christopher: Ou a gente enterra o pau ou fica na árvore ou num poste.
P.: A gente enterra um pau (registra o que foi dito).
Christopher: Ou senão bate na árvore ou num poste.
P.: Ou senão bate na árvore ou num poste (registra o que foi dito).
Christopher: Aí a pessoa que tá no poste batendo ela tem que ficar assim: (põe o braço sobre o
rosto e mostra).
P.: Ficar assim, como?
Christopher: Ela não pode olhar quando a pessoa foi se esconder. Ela tem que ficar com o olho
fechado.
P.: A pessoa que está no poste batendo tem que ficar com o olho fechado?
Christopher: É.
P.: (Escreve). Pronto!
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Christopher: Aí essa pessoa que tá com o olho fechado, na hora que a outra pessoa foi se
esconder, ela tem que falar assim: conta até vinte. Senão conta até quanto quiser.
P.: Então, a pessoa...
Christopher: pode contar até o número que quiser.
P.: A pessoa que está o quê?
Christopher: Que está no poste batendo pode contar até o número que quiser.
P.: (Escreve). E aí?
Christopher: E aí, a outra pessoa que foi se esconder ela tem que falar, a pessoa que está no
poste, quer dizer, ela tem que falar: já vou eu.
P.: A pessoa que está no poste batendo pode contar até o número que quiser (lê o que foi
registrado).
Christopher: Aí, depois que ela contar até o número que quiser, ela tem que falar assim: já vou
eu.
P.: Depois, tem que falar: já vou eu! (registra). Muito bem!
Christopher: Aí, depois a pessoa que foi se esconder ela tem que esconder rápido, ela tem que
esconder num lugar muito, muito, muito escuro ou senão muito no lugar que ele
não foi senão o cara que estava batendo no poste ele vai achar ela.
P.: Então ele tem que se esconder num lugar...
Christopher: É. Num lugar que a pessoa que tá no poste nunca foi.
P.: Num lugar que a pessoa que está no poste... (registra).
Christopher: Aí se a outra pessoa acha, se a pessoa que está batendo no poste achar. Se a...
P.: Se a pessoa. Se a pessoa o quê?
Christopher: Que tá no poste, que tá lá no poste!
P. Se a pessoa que estava (escreve).
Christopher: É.
P.: No poste achar.
Christopher: Aí, vai tá com a pessoa que se escondeu [...] Se a pessoa que tava no poste
batendo achar, a pessoa vai tá, vai tá, vai tá. Ela vai ter que ir pro poste bater e a
pessoa que tava no poste vai ter que se esconder.
P.: (Escreve).
Christopher: Ela vai ter que ir para o poste.
77
P.: Ela vai ter que ir para o poste. Isso!
Christopher: E aí vai continuando, assim desse jeito aí.
P.: Muito bem! Vou ler para ver se é isso mesmo que você queria dizer: Esconde-esconde. A
gente enterra um pau ou senão a gente bate na árvore ou no poste. A pessoa que
está no poste batendo tem que ficar com o olho fechado. A pessoa que está no
poste batendo pode contar até o número que ela quiser. Depois, tem que falar: já
vou eu! A pessoa que foi esconder tem que esconder num lugar que a pessoa que
está no poste nunca foi. Se a pessoa que estava no poste batendo achar uma
pessoa, ela vai ter que ir para o poste. E vai continuando.
P.: É essa a brincadeira?
Christopher: (Balança a cabeça afirmativamente).
No contexto deste estudo, o momento inicial da atividade era fundamental, pois o fato
de as próprias crianças produzirem o texto que seria registrado rompe com um tipo de
procedimento de investigação da apropriação linguagem escrita que se baseia no registro de
frases e palavras pelas crianças, organizadas previamente pelos pesquisadores, com o objetivo
de interferir no modo como elas escrevem. Luria (1988) e Azenha (1995) utilizaram
procedimentos de pesquisa semelhantes que tinham, deliberadamente, o propósito de
influenciar o modo como as crianças registravam as palavras e as frases que eram propostas. O
tipo de procedimento usado, no contexto da pesquisa de Luria, pode ser justificado pelo fato
de esse autor ter trabalhado com crianças pré-escolares que não possuíam o domínio das letras
do alfabeto. No caso do estudo de Azenha, determinados conteúdos que deveriam ser escritos
possibilitaram a emergência da escrita pictográfica, como no estudo de Luria, mas, também,
provocaram o retorno a essa forma de escrita (pictográfica) quando a criança já utilizava
formas convencionais de registro (letras).
Vamos nos deter um pouco mais nessa questão para explicar os procedimentos
utilizados por esses pesquisadores na condução de seus estudos. Luria explicita que a tarefa do
experimentador é averiguar quais as atividades que deve propor às crianças, responsáveis por
produzir “a transição primária da fase difusa para o uso significativo dos signos” (1988, p.
164), ou seja, a tarefa é descobrir que tipo de atividade possibilita a emergência de registros
com caráter simbólico. Nesse sentido, afirma que havia um elemento fundamental que poderia
78
mudar os rumos do desenvolvimento da criança. Esse elemento era o conteúdo das frases e
palavras que eram escritas, o que levou Luria (1988) a delimitar o conteúdo como
determinante na mudança da orientação da escrita, produzida pelas crianças não foi
esclarecido no seu texto. No entanto, conforme explicitado, foram os fatores de número ou
quantidade e de forma, introduzidos no conteúdo das frases ou palavras, que fizeram com que
as crianças envolvidas nos experimentos desenvolvidos pelo autor superassem o caráter
imitativo e inexpressivo das escritas produzidas. É importante lembrar que as primeiras
escritas produzidas pelos sujeitos (crianças) tinham a forma de ziguezagues e traduziam, para
Luria (1988), apenas a imitação do ato de escrever dos adultos.
Assim, a dissolução da produção gráfica elementar, não diferenciada resultou da
introdução dos fatores de quantidade, forma, cor e tamanho no conteúdo das frases que
deveriam ser escritas pelas crianças. Para o autor, talvez, o primeiro fator que produziu tal
mudança tenha sido o de quantidade, principalmente quando acrescido do fator contraste. Por
isso, diz:
é claro que a produção gráfica, em si mesma, é ainda confusa, e a técnica ainda não
assumiu contornos precisos, constantes: se nós ditássemos outra vez, sem qualquer
referência à quantidade, obteríamos novamente um rabisco não diferenciado sem a
preocupação de representar um conteúdo particular por uma maneira particular (1988, p.
165).
Contudo, o primeiro passo havia sido dado para a emergência, em situações
experimentais, de escritas que começavam a expressar o conteúdo registrado, ou outro que era
evocado com base no registro. Isso era impressionante para o autor que buscava, sobretudo,
analisar e compreender a emergência da escrita simbólica.
Azenha (1995), como já foi dito, ao lançar mão dos procedimentos utilizados por Luria
(1988), também observou que a introdução de determinados fatores (forma, quantidade,
tamanho) no conteúdo das frases que eram escritas possibilitou o surgimento da pictografia,
uma forma de escrita que auxiliava a lembrança do conteúdo registrado. Porém, quando a
criança já fazia uso de letras convencionais, a introdução desses fatores fez, também, com que
a escrita fosse redirecionada e tomasse a forma da antiga pictografia.
79
Com base nos resultados dos estudos de Azenha (1995), consideramos que seria
inadequado propor às crianças envolvidas neste estudo a escrita de frases cujo conteúdo
pudesse levar à utilização das primeiras formas de escrita significativa. Mesmo que a autora
argumente que, no início, a escrita, usando-se letras do alfabeto, é apenas, aparentemente,
mais evoluída, pois “está associada a um funcionamento psicológico primário” baseado na
“imitação das características externas da escrita adulta”, nosso objetivo é investigar como, a
partir do uso de letras, as crianças desenvolvem plenamente esse tipo de escrita rumo ao seu
uso convencional. Assim, optamos por propor às crianças tarefas de registro de textos, pois,
conforme constatamos no trabalho que desenvolvemos durante o curso de Mestrado, esse tipo
de atividade não possibilitou que os sujeitos participantes de um processo de alfabetização
escolar retomassem formas antigas de registro.
No primeiro momento em que foi realizada a atividade de produção de textos, optamos
por escrever o texto que a criança compunha oralmente. Líamos o texto que estava sendo
produzido, durante o processo e ao final da produção oral. Isso demonstrava às crianças que as
suas idéias poderiam ser recuperadas integralmente, porque foram registradas. Em seguida,
dizíamos às crianças que deveriam escrever o texto. Após efetuarem o registro do texto
produzido oralmente, perguntávamos se a escrita as ajudava a lembrar o conteúdo registrado.
É importante ressaltar que, na primeira atividade, não incentivamos, explicitamente, que
escrevessem como os adultos, ou seja, que registrassem de uma forma que as ajudasse a
lembrar o conteúdo que motivou a escrita, mas possibilitamos toda uma situação em que o
texto produzido oralmente era registrado e recuperado por meio da leitura, para que o próprio
aluno observasse como a escrita pode auxiliar a lembrança do conteúdo do texto.
Tomando por base os procedimentos descritos, analisaremos a escrita elaborada pelas
crianças, o processo de registro do texto produzido oralmente e como as crianças se
relacionavam com a escrita ao serem incentivadas a ler o texto. Conforme mencionamos, esses
aspectos serão analisados a partir da organização de duas categorias de análise. Na primeira
incluímos as crianças que se relacionavam com a escrita para lembrar o texto que motivou o
registro e, na segunda, as crianças que não se relacionavam com a escrita com tal finalidade.
É importante ressaltar ainda que escreveremos os textos produzidos oralmente, logo em
seguida, à reprodução do texto escrito pela criança. A ordem em que os primeiros serão
escritos estará de acordo com a seqüência em que foram escritos pelas crianças.
80
Durante o registro da brincadeira, observamos que vinte e sete crianças realizavam a
atividade silenciosamente e dez falavam durante o registro, demonstrando que estabeleciam as
correspondências entre as unidades da linguagem oral e as letras que eram registradas. Essa
observação é interessante, pois sugere que o controle sobre a quantidade de letras registradas
para os textos era exercido por meio dessas correspondências que eram construídas por
intermédio da fala, durante a atividade de registro. Oportunamente, discutiremos a importância
da fala no processo de apropriação da linguagem escrita. Por enquanto é importante apontar
que, inicialmente, observamos que não existia uma inter-relação entre o tipo de escrita
elaborada, o fato de as crianças construírem correspondências entre o oral e o escrito, no início
da alfabetização, e como as crianças se relacionavam com a escrita, após serem incentivadas a
lembrar o texto que motivou a escrita. Isto é, a análise das atividades realizadas pelas crianças
mostrará que tanto as crianças que tinham o domínio do caráter alfabético da escrita como
aquelas que não tinham esse domínio usavam a escrita para lembrar os enunciados do texto,
estabeleciam correspondências entre os segmentos sonoros e as letras e escreviam sem
manifestar as correspondências estabelecidas.
1.1 A escrita é usada como recurso para a memória
Durante a primeira atividade de produção de textos, constatamos que doze crianças se
relacionavam com os registros para recordar o texto que havia sido escrito. No entanto, o tipo
de escrita produzida e o modo como esse grupo produziu os registros não foram semelhantes:
seis crianças possuíam o domínio da escrita alfabética e seis não possuíam esse domínio. Por
outro lado, seis crianças efetuaram o registro silenciosamente e seis falavam durante o registro
do texto.
a) As crianças que tinham o domínio da escrita alfabética
Havia seis crianças que dominavam a escrita alfabética, mas que não se relacionaram
com a escrita da mesma maneira para recordar o conteúdo registrado. Vejamos o registro
produzido por Natanne que, na época da produção, tinha seis anos e nove meses de idade.
81
Natanne optou por escrever sobre a brincadeira Escolinha e, conforme pode ser
observado, a escrita produzida é legível. Há três “incorreções” no texto: escreveu “escolnha”
para a palavra escolinha e, nesse caso, omitiu a letra “i”; escreveu “lisão” para a palavra lição;
e não acentuou o verbo “tem” que concorda com o sujeito “todos”. Assim como todas as
crianças que participaram deste estudo, ela não usou sinais de pontuação. No entanto, essas
“incorreções” não foram notadas pela aluna durante a leitura. Observemos como ocorreu o
registro do texto.
P.: Agora, você vai escrever sobre a brincadeira [...]. O nome da brincadeira é escolinha.
Natanne: (Escreve ESCOLINHA).
P.: Agora, você vai escrever: precisa de um caderno.
Natanne: Embaixo?
P.: Embaixo.
Natanne: (Escreve PRECE, apaga a letra E, escreve a letra I e continua AS DE UM
CADERNO).
P.: Uma lousa.
Natanne: (Escreve UMA LOUSA e usa o espaço embaixo).
P.: Giz e lápis.
Natanne: (Escreve GIZ E LÁPIS).
P.: Todos os que estão brincando de escolinha.
Natanne: (Escreve TODOS OS QUE ESTÃO BRINCANDO DE ESCOLNHA).
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P.: Têm que prestar atenção na lição.
Natanne: (Escreve TEM QUE PRESTAR ATENÇÃO NA LISÃO).
P.: E escrever tudo no caderno.
Natanne: (Escreve ESCREVER TUDO NO CADERNO).
P.: Muito bem! Você acha que a sua escrita ajuda a se lembrar do que escreveu?
Natanne: Acho.
P.: Então, leia.
Natanne: Escolinha. Precisa de um caderno, uma lousa, giz e lápis. Todos que estão brincando
de escolinha têm que prestar atenção na lição escrever tudo no caderno.
Durante o registro, Natanne fez uma pergunta para saber onde deveria escrever a frase
“precisa de um caderno”, corrigiu uma palavra, respondeu à pergunta feita pela pesquisadora e
leu o texto. Assim, podemos dizer que a conduta da aluna, considerando as condições dadas
para a realização da atividade, é semelhante à conduta de qualquer pessoa que domina a
linguagem escrita. Não tinha dúvidas de que a escrita lhe possibilitaria recordar o conteúdo
registrado e, por isso, leu o texto escrito. Natanne já alcançou um nível complexo de
desenvolvimento da escrita. Contudo, quatro crianças que tinham o domínio da escrita
alfabética não se relacionaram com a escrita da mesma maneira.
Analisaremos a produção de Alessandra. Ela decidiu que sua explicação seria sobre a
brincadeira Amarelinha. Vejamos a escrita da aluna. Escreveremos como foi dito, em seguida
à escrita elaborada pela criança, o texto produzido oralmente, na seqüência em que foi escrito
pela criança. Alessandra tinha sete anos e dois meses de idade na época em que produziu o
texto que se segue.
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Amarelinha
Ela é muito divertida a brincadeira.
Primeiro, a gente desenha a amarelinha.
Depois, a gente joga no número um e não pode pisar no número um.
Depois, a gente joga até o dez.
Depois, tem que começar tudo de novo.
Não pode pisar no risco.
Como pode ser visto, a escrita de Alessandra não possui o nível e elaboração dos
registros de Natanne. Com um certo esforço, é possível interpretar algumas palavras que
foram escritas e, se, o leitor souber que se trata de uma explicação de como se brinca de
Amarelinha, é possível apreender o sentido do texto apenas com as palavras que podem ser
lidas. A aluna representou a palavra a gente de três formas diferentes. Essa palavra foi escrita,
na primeira frase, com as letras “zete”, na segunda, com as letras “aelte” e, na terceira, com as
letras “tete”. O mesmo ocorreu com a palavra joga, grafada duas vezes no texto de formas
diferentes. Na primeira vez, escreveu “joga” e, na segunda, escreveu “jog”. Ocorreram ainda
junções e separações indevidas entre as palavras, trocas de letras, omissões de palavras, sílabas
e letras.
84
Analisemos como ocorreu a atividade de registro. É importante destacar que a parte
final da entrevista foi perdida, por um erro lastimável na gravação. Efetuaremos a análise
dessa parte da atividade desenvolvida pela criança, com base nos registros que fizemos.
P.: Então, agora, você vai escrever o texto sobre a brincadeira (...). O nome da brincadeira é
amarelinha.
Alessandra: (Escreve ANARÉRIHA).
P.: Agora, ela é muito divertida a brincadeira.
Alessandra: (Escreve É LA É MUITO DEVETIDE e repete as sílabas “tida” oralmente).
P.: O que você escreveu?
Alessandra: Ela é muito divertida.
P.: Primeiro a gente desenha a amarelinha.
Alessandra: (Escreve BIMEIRO A ZETE DÉ EHA, pára por duas vezes e pensa).
P.: Primeiro a gente desenha a amarelinha. Escreveu tudo?
Alessandra: (Acena com a cabeça afirmativamente).
P.: Então, lê.
Alessandra: (Começa a ler o início do texto).
P.: Não. Somente aqui (aponta a última frase que foi escrita).
Alessandra: Primeiro a gente desenha (percebe a falta da palavra amarelinha e escreve
AMARÉLIHA).
P.: Depois, a gente joga no número um e não pode pisar no número um.
Alessandra: (Escreve silenciosamente, mas pronuncia sons que têm dúvida, pára, pensa e
escreve DE POIS AELTE É JOGA NO NAIMEU É NÃO POPILI 1).
P.: Escreveu tudo?
Alessandra: (Balança a cabeça afirmativamente).
P.: Leia.
Alessandra: Depois a gente (pára de ler).
P.: O que foi?
Alessandra: Depois, a gente joga no número, não pode pisar.
P.: Está tudo escrito?
Alessandra: (Balança a cabeça afirmativamente).
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P.: Depois, a gente joga até o 10.
Alessandra: (Escreve DEPOS A ZETE JOG A TÉ O DES).
P.: Depois, tem que começar tudo de novo.
Alessandra: (Escreve DEPOS TEGUE GO MESA TUDE DE NOVO).
P.: Não pode pisar no risco.
Alessandra: (Escreve NÃO PODE PISAR NORICO).
P.: Essa escrita ajuda você a se lembrar do que você escreveu?
Alessandra: Um pouco.
P.: Por que um pouco.
Alessandra: (Hesita). É... porque cada vez que a gente vai escrevendo a gente esquece um
pouco.
A aluna realizou a leitura com muita dificuldade e com a nossa ajuda. Conseguiu ler
apenas algumas palavras, pois se deteve exclusivamente na escrita para realizar essa atividade.
Dessa forma, quando disse que a escrita ajudava a lembrar “um pouco”, estava certa, pois a
escrita não lhe ajudou a recordar o texto e, de uma certa forma, atrapalhou, pois, se não ficasse
tão ocupada em interpretar o que realmente estava escrito, poderia ter lembrado o texto. Diante
das grafias que não conseguia interpretar, parava e ficava a pensar com os olhos fixos sobre as
letras.
Durante o registro do texto sobre a brincadeira, no entanto, ela leu umas das frases
escritas e percebeu inclusive a falta de uma palavra. É o caso da frase “primeiro a gente
desenha a amarelinha”. Quando pedimos para ler o que havia escrito, percebeu que faltava a
palavra “amarelinha” e completou o registro. Nesse momento, ela se relacionou com as grafias
para interpretar a escrita.
Outro aspecto que deve ser mencionado na conduta de Alessandra, durante o registro,
foi o fato de realizar a atividade silenciosamente. Somente ao escrever a primeira frase “ela é
muito divertida”, repetiu, ao final do registro, as sílabas “tida” da palavra “divertida”. Desse
modo, a aluna não elaborou as correspondências entre as grafias e os segmentos sonoros por
meio da fala, mas sabemos que compreendia a natureza alfabética do sistema de escrita, pois
registrava para os fonemas uma letra correspondente. Podemos concluir que a criança sabia
86
que a escrita auxiliava a recordação do texto, mas a falta de domínio da escrita ortográfica
dificultou a realização da leitura e, por isso, leu apenas algumas palavras.
O terceiro exemplo que mostraremos é um dos mais interessantes que presenciamos
durante a pesquisa, pois a criança usava a linguagem como recurso para lembrar as letras que
deveriam ser usadas para grafar as sílabas pronunciadas. Natália tinha sete anos e cinco meses
na época em que realizou a atividade.
Batata quente
Pegar uma bolinha.
Uma criança tem que ficar de pé para dizer:
— Batata quente, quente, quente, quente.
Depois, aquele que queimar vai falar batata quente
no lugar do outro.
Como pode ser observado, na escrita produzida pela aluna, algumas palavras podem
ser interpretadas. Sabemos que ela explicou a brincadeira Batata quente e usou as letras “ce”
para escrever a sílaba “quen” da palavra quente. O primeiro enunciado “pega uma bola”
também pode ser lido integralmente, mesmo tendo dito, durante a produção oral, “pegar uma
bolinha”. Nas outras partes do texto, podemos observar representações para as palavras do
texto que não possibilitam a sua leitura e a utilização de uma mesma representação -
“batatacete” - para as palavras batata quente, nos três contextos em que foram escritas.
Vejamos como ocorreu o registro da brincadeira.
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P.: O nome da brincadeira é batata quente.
Natália: Ba (grafa as letras BA), bata (registra as letras TA), ta, é o t e o a de novo (registra as
letras TA), quen, ca, que, ca, que (registra as letras CE), batata quente, te, ta, batata
quente (registra as letras TE e fala como escreve).
P.: Pegar uma bolinha.
Natália: Pe, pa, pe. Separado não é?
P.: Pode escrever na outra linha.
Natália: (Registra a sílaba PE).
P.: Pegar uma bolinha. Você já escreveu o PE.
Natália: (Apaga e escreve a letra P novamente). Pe, gar. É o ga de gato?
P.: É o ga de gato.
Natália: Gar, pegar (registra a sílaba GA) pegar.
P.: Uma.
Natália: É o u e o m de macaco?
P.: É.
Natália: (Registra as letras UM).
P.: Uma bolinha.
Natália: Bo, ba, be, bi, bo (registra a palavra BOLA).
P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: uma criança tem que ficar de pé [...].
Natália: Uma cri, cra, cre, cri, ca, que, qui, uma cri, cri, cra, cre, cri, é o “K” e o “i”, né?
P.: Isso.
Natália: (Registra as letras CI). Uma cri, an, an. Como é o an?
P.: O “a” e o “n”.
Natália: Ah! O “n” de Natália?
P.: Isso o “n” de Natália.
Natália: (Registra as letras NA). Uma cri, an, ça, uma cri, an, ça tem uma cri, an, an, ça, ça, se,
si. É o “sa” de sapo, com o quê?
P.: Com o “a” , não é isso?
Natália: (Registra as letras SA).
P.: Uma criança...
Natália: Tem.
88
P.: Tem.
Natália: Te, tem (sussurra a família silábica) te, te. É o “t” e o “i”, né?
P.: É o “t”, isso!
Natália: (Registra as letras TU).
P.: Tem que.
Natália: Que, ca, que, qui, co. Pera aí. Ca, que. É o “k” e o “e”.
P.: Tem que...
Natália: Separado?
P.: Separado.
Natália: (Registra as letras CE).
P.: Ficar.
Natália: Fi, fa, fe, fi (registra as letra FI, apaga e acerta a letra F) ficar é o “K” e o “a”.
P.: De pé.
Natália: Pé, é “p” e o “e”.
P.: (Confirma).
Natália: Separado (registra a palavra PÉ). Pé.
P.: Você escreveu o quê?
Natália: Pé. Tem que ficar de pé.
P.: E aí não está faltando nada?
Natália: Aqui né (aponta entre as palavras fica e pé).
P.: O que está faltando aí?
Natália: É de ficar [...] tem que ficar de, da, de (escreve as letras DE) é o “d” e o “e”, separar
aqui (apaga e escreve a palavra pé separada) [...].
Não continuaremos a descrever o processo de registro, pois, com o que foi escrito, é
possível perceber todo o esforço da criança para elaborar a escrita. A linguagem estava
presente durante toda a atividade. Podemos dizer que havia dois tipos de linguagem: uma
direcionada para a pesquisadora para receber confirmação sobre a escrita de uma sílaba e
sobre onde deveria colocar os espaços na escrita; a outra visava a encontrar, por meio da
repetição oral das famílias silábicas, as letras correspondentes à sílaba que era pronunciada.
Desse modo, podemos dizer que a primeira era comunicativa, pois estava direcionada para
89
uma outra pessoa e a segunda era egocêntrica, porque a criança não se dirigia a nenhum
interlocutor em particular. Ambas, no entanto, estavam orientadas para a realização da
atividade proposta. Para Vigotski (1989b), os dois tipos de linguagem têm origens sociais, mas
possuem funções diferentes. A linguagem comunicativa tem a função de contato social, de
estabelecer comunicação com as outras pessoas. No caso de Natália, para receber confirmação
sobre as letras que deveriam ser escritas e sobre onde deveria colocar os espaços entre as
palavras. Assim, ao mesmo tempo em que a linguagem atuava sobre a outra pessoa, exigindo-
lhe um posicionamento, exercia uma ação sobre a própria criança que, ao receber a
confirmação, concluía a atividade. A linguagem egoncêntrica atuava como um recurso que lhe
permitia encontrar as letras adequadas à sílaba que desejava escrever. Podemos dizer que
atuava como signo, tal qual quando as crianças contam nos dedos para lembrar a grafia de um
numeral. Nesse sentido, a recordação da letra adequada à sílaba não se estabeleceu por meio
de um processo associativo direto entre as sílabas (unidades sonoras) e letras, mas foi mediada
pela linguagem.
A atividade de escrita tornou-se demorada e penosa para a menina que tinha que recitar
as famílias silábicas até encontrar as letras que desejava escrever. Isso fazia também com que
esquecesse o conteúdo da frase que deveria ser escrita e, por isso, tivemos que repetir as
palavras de cada frase. Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o texto que registrou,
disse que ajudava. Então pedimos que lesse o que escreveu.
P.: Leia o que você escreveu.
Natália: Batata quente (fala sem apontar a escrita). Tem que pegar uma bolinha (aponta onde
está escrito batata quente).
P.: Como?
Natália: Tem que pegar uma bolinha (aponta novamente onde está escrito batata quente).
P.: Está escrito isso aí?
Natália: É aqui, né? (aponta o início do texto corretamente).
P.: E em cima o que está escrito?
Natália: Batata quente.
P.: Então continua. O que mais está escrito?
90
Natália: Quente, quente, quente (apontando onde estava escrito “pega uma bola” ) batata
(aponta o nome da brincadeira). Tem que pegar uma bola (aponta onde está escrito
“pegar uma bola” ).
P.: Muito bem! E depois?
Natália: (Fica parada com o dedo apontando para o registro UM). Uma, uma criança tem que
ficar de pé, pé (aponta até o final da frase).
Uma criança tem que fi car de pé, pé
UM CIANSA TU CE FI CADE PÉ PA DE ZE
(Volta, aponta a palavra pé). Pé.
P.: Pé.
Natália: Pé (aponta a palavra pé). O que está escrito aqui (aponta as sílabas que foram escritas
após a palavra pé).
P.: O que está escrito depois da palavra pé?
Natália: (Volta a ler).
Uma cri ança tem que que ficar de pé
UM CIANSATU CE FICA DE PÉ PA DE ZE
P.: Onde está escrito pé, Natália?
Natália: Aqui (aponta corretamente).
P.: Então, como você está lendo lá na frente?
Natália: (Fica silenciosa com o dedo apontando para a palavra pé).
P.: Uma criança tem que ficar de pé...
Natália: Para pegar.
P.: É pegar que está escrito aí?
Natália: Não.
P.: E o que é?
Natália: (Permanece com o dedo apontando as letra PA e, em seguida, lê). Para de ze.
P.: Continua.
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Natália: Batata quente, quente, quente, quente (aponta corretamente).
P.: Muito bem!
Natália: (Continua tentando ler a próxima linha). O que é isso? (aponta BEPOS). Como é
mesmo?
P.: Depois.
Natália: De pois. (Fica um tempo parada tentando ler o próximo segmento, não consegue e,
por isso, lê as letras separadamente). A, Q, A, T, E.
É impressionante como produziu o registro e, depois, como tentou ler o texto.
Retomou, por duas vezes, a leitura no início do texto, mas, ao perceber que não conseguia ler,
decifrou as letras “a, q, a, t, e” correspondentes à palavra aquele, durante o registro.
Natália tentou lembrar o texto sem se relacionar com a escrita. Isso pode ser visto no
início, quando apontou as grafias correspondentes ao nome da brincadeira e disse “tem que
pegar uma bolinha”. Quando questionamos sobre o que estava escrito no início do texto,
observou os registros e respondeu “batata quente”, repetiu as palavras “quente, quente,
quente” e apontou onde havia escrito “pega uma bola”, enunciado que não correspondia ao
registro e nem mesmo ao texto produzido oralmente, mas que tem o mesmo sentido do
enunciado que motivou o registro. Ela mesma observou que as grafias não correspondiam aos
enunciados. Então, leu “tem que pegar uma bola”. Em seguida, iniciou a leitura a partir do
registro da palavra “uma”, representada com as letras “um”. Esse registro a auxiliou a se
lembrar do enunciado que foi escrito “uma criança tem que ficar de pé”, mas, como ela não
correspondeu as palavras pronunciadas aos respectivos segmentos de letras usadas para grafar
cada palavra, apontou até o final da linha. Ao observar o registro da palavra “pé”, antes do
final, retomou o início das grafias e verbalizou novamente o enunciado, sem conseguir
resolver a situação criada. A frase “uma criança tem que ficar de pé” deveria terminar no
registro da palavra “pé” e isso não ocorreu, pois ela concluiu a leitura no final da linha. A
situação criada é tão complicada que leu apontando o espaço em branco no final da linha como
correspondente à palavra “pé”. Então, repetimos o enunciado que estava sendo lido e isso foi
suficiente para que a criança continuasse dizendo “para pegar”. Entretanto, não era isso que
estava escrito e, após nova intervenção, leu “para de ze”. A criança decifrou os símbolos, pois
o enunciado que motivou o registro era “para dizer”. Em seguida, leu “batata quente, quente,
92
quente, quente” apontando os segmentos de letras usados para escrever essas palavras. Após
tentar ler os registros que se seguiam, sem conseguir, perguntou o que estava escrito e, diante
da resposta recebida, não conseguiu interpretar os segmentos de letras que foram escritos
posteriormente e, por isso, decifrou as letras. Fez várias tentativas para continuar a leitura, mas
não conseguiu ler o segmento de letras “a, q, a, t, e” que correspondia à palavra “aquele”.
Acreditamos que a criança já não lembrava os enunciados que foram registrados e, por
isso, não conseguiu prosseguir a atividade e a nossa informação sobre o que estava escrito não
contribuiu para ajudá-la. Contudo, constatamos que a leitura de uma palavra no texto
possibilitou a lembrança de um enunciado que compunha o texto. Vimos como a aluna se
relacionou com a escrita para enunciar “uma criança tem que ficar de pé”. A representação da
palavra uma com a grafia “um” possibilitou a lembrança dessa frase e a criança continuou a
ler sem se preocupar em corresponder as palavras pronunciadas oralmente com os registros
que se seguiam. No entanto, a observação de que a palavra pé não concluía os registros fez
com que retomasse a escrita. Desse modo, ao mesmo tempo em que a primeira grafia (“um”)
possibilitou a lembrança dos significados registrados e acionou um tipo de conduta, que
desconsiderava a escrita, o reconhecimento da palavra pé inibiu essa forma de conduta
levando a criança a considerar novamente o que estava escrito.
Alessandra, diferentemente de Natália, não enunciava o texto a partir da leitura de uma
palavra. Ela se detinha exclusivamente na escrita e, por isso, realizou a leitura de apenas
algumas palavras. Natália, por outro lado, elaborou os enunciados, a partir da leitura de uma
das palavras. Também, não conseguiu lembrar o texto a partir da informação sobre qual
palavra estava registrada. Tentou, então, interpretar a escrita, mas, como não conseguiu,
decifrou as letras. Natália se relacionou com a escrita para lembrar o texto, mas, inicialmente,
tentou lembrá-lo apoiando-se exclusivamente na memória. A mudança na sua atividade
ocorreu após a nossa intervenção.
Dessa forma, observamos que as crianças que tinham o domínio da escrita alfabética
não se relacionaram com a escrita da mesma maneira, ao serem incentivadas a ler o texto:
usavam apenas a escrita para recordar o texto (Natanne), liam algumas palavras que podiam
ser interpretadas (Alessandra) e se relacionavam com uma das palavras do texto para enunciar
os significados anotados ou decifravam letras, quando não podiam interpretar as grafias
(Natália).
93
b) As crianças que não dominavam a escrita alfabética
Verificamos que seis crianças não tinham o domínio da escrita alfabética, mas se
relacionavam com as grafias para recordar o texto que motivou o registro. Isso pode ser
evidenciado na atividade realizada por Hugo, Taís e Luís Carlos. Analisaremos, primeiro, a
escrita produzida por Hugo, em seguida, como se desenrolou a atividade de registro e como se
relacionou com a escrita para lembrar o texto. Ele tinha sete anos e um mês de idade na época
em que elaborou o registro.
Pular corda Precisa de três pessoas
e muito mais gente: duas para bater
e uma para cantar. Bater a corda devagar e, depois, rápido e uma pessoa canta:
Senhoras e senhores, põem a mão no chão.
Senhores e senhores, pulem com um pé só.
Quando acaba a música, a criança tem que sair.
A criança escreveu como é a brincadeira de Pular corda. Não há indícios, na escrita de
Hugo, que garantam a legibilidade do texto. Apenas podemos observar que foram usados
numerais para representar as quantidades e notar indiferenciações nas grafias dos dois
primeiros segmentos de letras escritos, no início das quarta e quinta linhas. No entanto, a
ilegibilidade é apenas aparente, pois essas escritas, que podem ser identificadas como
94
reprodução de letras aleatórias, orientaram a atividade de interpretação realizada por Hugo, ou
seja, elas adquiriram um caráter expressivo.
Observando ainda a escrita da criança, constatamos que colocava espaços em branco
entre os segmentos de letras. Acreditamos que essas separações foram ocasionadas pela
apropriação das características externas da escrita. Existem separações entre as palavras, na
escrita; a professora, na classe, enfatizava esse aspecto pedindo às crianças que pintassem os
espaços entre as palavras de um texto e, depois, copiassem observando as separações. Ela
ainda escrevia textos sem colocar separações entre as palavras, solicitava às crianças que
pintassem as palavras usando cores diferentes e, em seguida, copiassem colocando as
separações. Essas atividades, certamente, influenciaram a produção de Hugo. Ele ainda não
sabia usar as letras adequadamente, mas tentava fazer uso de conhecimentos sobre a escrita
que estavam sendo aprendidos na sala de aula.
Analisemos como ocorreu a atividade de registro realizada pelo aluno. Ela é
particularmente importante para os propósitos deste trabalho.
P.: Agora, eu gostaria que você escrevesse como é que brinca. Do jeito que você falou. Pra
isso, eu vou ditar para você o que você me disse. Está certo?
Hugo: (Concorda com um movimento de cabeça).
P.: (...) O nome da brincadeira é pular corda.
Hugo: (Escreve a letra P e começa a registrar a segunda letra). É com letra de forma. (Em
seguida, registra a letra A e escreve a letra P novamente) p. (Registra a letra A, pára,
pensa e, em seguida, registra a letra E, pára novamente, pega a borracha, apaga a letra
E, a substitui pela letra B e escreve, também, a letra O).
P.: Escreveu?
Hugo: (Concorda com um movimento de cabeça).
P.: O que você escreveu?
Hugo: Pular.
P.: Pular. Então, falta escrever corda.
Hugo: (Grafa LQ, pára um pouco, registra a letra A, pára, novamente, e registra as letras EA.
P.: Terminou?
Hugo: (Confirma).
95
P.: Está bem. Precisa de três pessoas.
Hugo: Três, três (escreve o número 3 invertido), pe (escreve a letra P, grafa as letras CO, pára
de escrever e, em seguida, escreve a letra A).
P.: O que você escreveu?
Hugo: Precisa de 3 pessoas (lê vagarosamente, silabando e sem apontar o registro).
P.: Aí você disse: precisa de três pessoas e muito mais gente,
Hugo: Mu (grafa BU, volta, lê tudo que foi escrito e grafa a letra A. Em seguida, lê
novamente, registra LA e pára de escrever).
P.: O que você escreveu?
Hugo: Pessoas.
P.: E aqui? O que está escrito? (aponta onde havia dito que tinha escrito pessoas).
Hugo: (Aponta o último registro). Aqui é muito mais.
P.: O quê? (a pesquisadora não compreende as últimas palavras).
Hugo: (Retorna ao início do texto e lê cada grupo de letras) Precisa de 3 pessoas e muito mais.
Falta gente.
P.: Gente.
Hugo: (Grafa as letras H e G, pára um pouco, grafa a letra I, pronuncia a palavra gente e grafa
as letra A e E. Pronuncia, novamente a palavra gente, aguçando o som da última
sílaba).
P.: Depois, você disse o seguinte: dois para bater.
Hugo: Dois. (Grafa o número 2, volta e grafa a letra I na palavra gente). Dois para. (Grafa as
letra P e A, pára de escrever e lê apontando) 2 para bater. (Grafa as letras PATA, apaga
a letra A, volta e lê) 2 para bater. (Grafa a letra E).
P.: Isso! Dois para bater e um para cantar.
Hugo: (Grafa o número 1, as letras PA) Can, can. (Grafa a letra H). Tar. (Grafa a letra A).
P.: Bater a corda devagar e, depois, rápido.
Hugo: (Escreve as letras PA e pára).
P.: Bater a corda.
Hugo: (Aponta e lê). Ba. (Escreve a letra T, volta e lê) te, te. (Grafa as letras A e HG, pára e
volta a ler a palavra bater apontando. Ao terminar, volta ao início do texto e aponta
96
primeiro onde está escrito o número 3 e lê). Três pessoas. (Em seguida, onde está
escrito o número 2 e lê). Duas pessoas para bater. (Grafa as letras EA).
P.: Depois, você disse: bater a corda devagar e, depois, rápido. Foi isso que você escreveu. E
uma pessoa canta.
Hugo: Uma pe. (Grafa o número 1. Em seguida, aponta o número um). Mas, aqui, já tá.
P.: Aí você escreveu um para cantar. Agora, você vai escrever: bater a corda devagar e,
depois, rápido e uma pessoa canta.
Hugo: Uma. (Grafa o número um). Pe. (Grafa as letra PE). So. (Grafa as letras HQ, volta, lê a
palavra que está sendo escrita e grafa a letra A).
P.: E uma pessoa canta. Você não escreveu uma pessoa?
Hugo: (Volta e lê fazendo corresponder segmentos sonoros às grafias produzidas) uma
(corresponde ao número 1), pes (corresponde às letra PE), so (corresponde às letras
HQ) canta.
P.: Isso! Canta.
Hugo: (Grafa as letras PIA).
P.: Canta?
Hugo: Confirma acenando a cabeça.
P.: Muito bem. Depois, você disse: senhoras e senhores, põem a mão no chão.
Hugo: (Escreve a seqüência de letras CQIC, dá um espaço e escreve as letras AI, volta, lê,
completa a segunda seqüência com as letras AIE e escreve as letras BAPAHU).
P.: O que foi que você escreveu?
Hugo: (Aponta cada seqüência grafada como correspondente a cada palavra). Senhoras e
senhores põem a. (Grafa a letra A). Mão, mão. (Grafa as letras PE). No. (Grafa as letras
BU). Chão. (Grafa as letras HE).
P.: Depois, você disse: senhoras e senhores, pulem com um pé só.
Hugo: (Copia o que escreveu anteriormente: CQIC AIAIE). Em. (Grafa as letras BA).
P.: Primeiro pulem (ao perceber que iria escrever em um pé só).
Hugo: (Volta, lê apontando). Senhoras e senhores pule. (Grafa as letras PA e apaga). Com um.
(Grafa o número 1). Um. (Grafa o número 1 novamente). Pé. (Grafa as letra PÁ). Só,
só. (Grafa as letras OQ).
P.: Com um pé só.
97
Hugo: (Confirma).
P.: E aí depois: quando acaba a música.
Hugo: Um. (Grafa as letras LA). Aca, ca. (Grafa a letra A) A. (Dá um espaço entre as letras
que foram escritas e grafa novamente a letra A). Um, um. (Grafa LI.) Acaba, música.
(Grafa as letras AI).
P.: Quando acaba a música, a criança tem que sair.
Hugo: A. (Grafa a letra A). Cri. (Grafa a letra I). An. (Grafa a letra I). An, ança. (Grafa as
letras PE). Criança tem. (Pára um pouco e, só depois, grafa as letras HI). Pronto, já
acabei!
P.: Então, lê o que você escreveu.
Hugo: Quando acaba a música a pessoa sa (grafa as letras AI).
Observamos que Hugo iniciou o registro dizendo para ele mesmo que deveria usar letra
de forma. Em seguida, escreveu as grafias correspondentes ao nome da brincadeira
silenciosamente. Começou o registro da frase “precisa de três pessoas” e registrou “ε pcoa”.
A partir dessa escrita, passou a elaborar, no plano verbal, as correspondências entre as letras
grafadas e as unidades da linguagem oral. Foi possível, então, observar que usou a letra “p”
para representar a sílaba “pes”, as letras “co” para representar a sílaba “so” e a letra “a” para
representar a última sílaba da palavra “pessoas” . Desse modo, escreveu uma ou duas letras
para representar as sílabas. As letras usadas nem sempre pertenciam à sílaba que estava sendo
registrada.
Assim, por intermédio da análise da linguagem que surgiu, durante o registro do texto,
identificamos o tipo de correspondência que estabelecia entre o oral e o escrito. Em algumas
situações usou duas letras para cada sílaba, mas não sabia as letras que deveria usar. O
trabalho na sala de aula, a partir das chamadas sílabas simples (compostas de consoante-
vogal), certamente influenciou o uso de duas letras para a representação das sílabas. Em outras
situações, usou uma letra para representar as sílabas. É importante notar ainda que a
linguagem não estava direcionada para outra pessoa; tinha a função de ajudar a criança a
lembrar as letras que deveriam ser usadas para representar a unidade silábica.
O fato de Hugo relacionar as letras às unidades sonoras que eram pronunciadas mostra
que já aprendeu que as letras representam unidades da linguagem oral, ou seja, já
98
compreendeu que existe uma relação de simbolização entre os sons e as letras. Essa é uma
compreensão importante e que, no caso da criança, precisava ser aprimorada pelas
aprendizagens escolares. Além disso, Hugo se relacionou com a escrita, durante o registro.
Nesse contexto, pareceu querer corresponder cada segmento de letras, que foi separado por
espaços em branco, às palavras que eram pronunciadas. No entanto, o uso de numerais, na
representação das quantidades, fez com que essa tentativa fracassasse e, por isso, acabou
modificando a atividade.
A compreensão de que os símbolos escritos representavam unidades da linguagem oral
não possibilitou, entretanto, a interpretação dos registros, quando incentivamos a criança a se
relacionar com a escrita para lembrar o texto. Observamos que a representação das
quantidades por meio de numerais e o uso de um mesmo segmento de letras para representar
as palavras que foram escritas em dois contextos foram os fatores que propiciaram a
lembrança do texto.
Ao terminar o registro, Hugo disse que a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o texto;
então, pedimos que lesse o texto produzido. Ele parou por alguns segundos e começou a
leitura. Reproduziremos a escrita de Hugo para mostrar como se relacionou com a escrita para
realizar a atividade. Escreveremos em azul os enunciados produzidos pela criança, em preto os
registros produzidos pelo aluno e numeraremos cada seqüência de registros para facilitar a
análise.
Pre cisa de (pára e relê o três) três pes
1a) PAPABO LQAEA ε PCOA
so as e, e (pára e pensa e, depois lê) duas para bater
2a) BUALA HGIAEI 2 PAPATE
E uma para can tar (pára e desiste de ler)
3a) 1 PAHA PATA HQAEA 1PEHQA PIA
senhoras e senhores põem a mão no chão
4a) CQIC AIAIE BAPAHU APEBUHE
99
senhoras e senhores pulem com um pé
5a) CQIC AIAIE BAPA 1 1 PÁOQ
só senhoras e senhores
6a) LAPA ALIAI AIHA IPEHI AI
Quando o aluno começou, novamente, no sexto segmento, a enunciar “senhoras e
senhores”, parou o enunciado, retomou o quinto segmento e repetiu: “pule com um pé só”.
Voltou a apontar o último segmento e bateu com os dedos sobre a mesa. Então, perguntamos o
que estava acontecendo e, de repente, lembrou-se do que havia escrito, apontou a escrita e
enunciou rapidamente: “quando acaba a música a pessoa sai”.
Retomando o início da atividade, como pode ser visto, Hugo não disse o nome da
brincadeira. Os dois primeiros segmentos de letras que, durante a atividade de registro,
correspondiam às palavras pular corda, foram apontados para a primeira frase. Ele começou o
texto pelo primeiro enunciado e este pareceu estar memorizado. O uso do título para garantir a
primeira enunciação não é aleatório, pois, como vimos, não registrou a palavra “precisa”.
Assim, na interpretação, apontou os dois primeiros segmentos de letras para a palavra precisa.
Quando enunciou a palavra “de” e apontou o numeral três, parou um pouco, leu “três” e
continuou dizendo a palavra “pessoas” que terminou no segundo segmento de letras da linha
seguinte. Novamente, ele parou diante do numeral dois, como se estivesse procurando lembrar
o enunciado ligado a esse numeral; lembrou-se da frase que foi escrita “e duas para bater”. A
terceira linha de registros é iniciada com o numeral 1. Hugo não teve dúvidas e enunciou “e
uma para cantar”. Parou diante do registro do numeral 1, mais uma vez, ainda, na terceira
linha de grafias, mas não conseguiu recuperar o conteúdo que estava ligado a ele. Então,
apontou a quarta linha e disse: “senhoras e senhores, põem a mão no chão”. Concluiu o
enunciado no final dessa mesma linha e apontou a quinta linha e disse “senhoras e senhores,
pulem com um pé só”. Como destacamos, os dois primeiros segmentos de letras, escritos no
início das quarta e quinta linhas, foram compostos com as mesmas letras, o que demonstra que
a criança sabia que para escrever as mesmas palavras são usadas as mesmas letras. Isso,
porém, não ocorreu com Alessandra que representou uma mesma palavra com segmentos de
letras diferentes. Na quinta linha, além dos segmentos usados para escrever “senhoras e
100
senhores”, o registro do numeral um também possibilitou a lembrança do enunciado “pulem
com um pé só”. Esse enunciado é concluído no primeiro segmento de letras, na sexta linha. A
criança então continuou dizendo “senhoras e senhores”, mas parou, pois percebeu que não era
isso que estava escrito. Apontou os registros, na quinta linha, e terminou o enunciado “pulem
com um pé só”. Ficou pensativo por algum tempo até lembrar-se do conteúdo que foi
registrado por último.
Pensemos um pouco mais na atividade desenvolvida pela criança. Quais foram os
elementos presentes, na escrita produzida pelo aluno, que ajudaram a lembrar o texto?
Certamente, foram as representações de quantidades por meio de numerais e a representação
das palavras “senhoras e senhores”, por duas vezes, com o mesmo segmento de letras. Isso
significa que os numerais e o uso de um mesmo segmento de letras para representar as
mesmas palavras assumiram a forma de signos que remeteu não só ao conteúdo que eles
próprios significam, mas possibilitaram a lembrança de outros conteúdos que estavam ligados
a eles, garantindo a enunciação de um texto com sentido.
Como mencionamos, Luria (1988) observou que o fator primário, introduzido no
conteúdo das frases e palavras que deveriam ser escritas pelas crianças, que possibilitou a
emergência da escrita expressiva foi a quantidade. Esse, também, foi um fator, presente no
texto a ser escrito por Hugo, que possibilitou a recordação do texto. No entanto,
diferentemente das crianças que participaram do trabalho realizado por Luria (1988), Hugo fez
uso do sistema numérico, que estava sendo aprendido, na escola, para representar as
quantidades.
A segunda criança que se relacionou com as grafias para lembrar o texto se apoiou na
escrita de uma palavra, grafada com letras que são usadas na sua escrita convencional.
Observemos os registros de Taís que, na época, tinha sete e cinco meses de idade.
101
A aluna escreveu colocando separações na escrita. Porém, somente a palavra olho,
mesmo escrita “incorretamente”, pode ser lida. Ela escreveu sobre a brincadeira Cobra-cega.
Analisemos o processo de produção dos registros acima e, em seguida, como a aluna se
relacionou com a escrita para lembrar o texto.
P.: Agora, você vai escrever o que me disse [...]. O nome da brincadeira é cobra-cega.
Taís: (Escreve PEAG PEIO e continua a escrever).
P.: O que você está escrevendo?
Taís: Cobra-cega. (Escreve TO e continua escrevendo ATUNE O OLIHO).
P.: E agora, o que você está escrevendo?
Taís: Tem que tampar o olho (aponta a escrita).
P.: Mas você tinha dito pra mim assim: pega um pano e tampa o olho.
Taís: (Aponta a escrita). Então, tá aqui.
P.: Onde está escrito?
Taís: (Mostra onde está escrito sem apontar os segmentos que disse corresponder a cobra-
cega).
P.: Agora, deixa eu ditar. Depois, tem que correr para a cobra não pegar.
Taís: (Escreve silenciosamente TAQNO E DE CANTA, volta e lê sussurrando o que escreveu.
Continua e escreve A PEAGBA. Muda de linha, registra PHA e CEPAHI). (Sussurra
enquanto escreve).
P.: Terminou de escrever o que eu ditei?
Taís: (Confirma com um movimento de cabeça).
P.: O que você está escrevendo agora?
Taís: Aí tem que tampar o rosto. Depois, sai correndo senão a cobra pega. (Continua
escrevendo, registra NEA, volta, lê sussurrando o que escreveu e, em seguida, registra
QCEA PEAGBA).
P.: Terminou?
Taís: (Confirma com um movimento de cabeça).
Como vimos, a aluna não esperou que ditássemos o texto que havia produzido
oralmente. Escreveu um outro texto que não é possível definir com clareza. Porém, a primeira
102
frase pode ser identificada, pois ela mesma afirmou que escreveu “tem que tampar o olho”.
Quando confirmou que havia terminado, perguntamos se a escrita ajudaria a lembrar o que
escreveu e ela disse que ajudaria. Então, pedimos que lesse o que foi escrito.
A criança produziu o registro do primeiro enunciado sem apontar os registros e, por
isso, sugerimos que apontasse, no texto, onde estava lendo. Após a nossa sugestão, apontou os
segmentos de grafias como correspondentes às palavras que estavam sendo lidas. O segmento
“oliho”, é apontado pela aluna referindo-se à palavra “olho”. Ao concluir a atividade,
perguntamos:
P.: Como você sabe que aí está escrito essas coisas?
Taís: (Hesita e não responde).
P.: Você sabe onde está escrita a palavra olho?
Taís: (Aponta corretamente).
P.: E cobra-cega?
Taís: (Aponta novamente os segmentos de letras que usou para escrever cobra-cega).
Com isso, entendemos que os outros registros foram apontados aleatoriamente, mas as
letras usadas para escrever a palavra olho eram expressivas. O mesmo ocorreu com os
registros usados para escrever cobra-cega. Nesse caso, apoiou-se no fato de terem sido essas as
primeiras palavras escritas. Talvez tivesse sido possível explorar mais o trabalho desenvolvido
pela criança se pudéssemos ouvir o que ela falava, durante o registro, pois, assim, saberíamos
exatamente o que escreveu.
Analisemos ainda a produção escrita de Luís Carlos. A atividade realizada pelo aluno
evidenciará a análise que elaboramos anteriormente. A sua idade, na época do registro, era de
sete anos e quatro meses de idade.
103
Esconde-esconde
Um colega bate cara.
Os outros meninos se escondem. Se o colega que bateu cara pegar um menino, ele diz:
— Um, dois, três, Alanderson. O Alanderson vai bater cara.
A criança escreveu sobre a brincadeira Esconde-esconde. Desse modo, registrou as
palavras que compõem o nome da brincadeira com as mesmas letras. Ao escrever o primeiro
enunciado “um moleque bate cara”, registrou o numeral “um” para representar o artigo. Se
observarmos a escrita, veremos que usou as letras do seu nome para compor o registro (i, o, s,
r, l, a). As letras “b e j” foram escritas apenas uma vez. A palavra “são” foi registrada duas
vezes. Ele conhecia bem essa palavra, pois a escrevia todos os dias no cabeçalho. Analisemos
o processo de registro.
P.: Agora, você vai escrever o que falou sobre a brincadeira [...]. O nome da brincadeira que
você me explicou é esconde-esconde. Vamos escrever?
Luís Carlos: Vamos. Do jeito que sabe?
P.: Do jeito que sabe.
Luís Carlos: (Escreve IOSR IOSR).
P.: Muito bem! [...] Aí você disse o seguinte: um colega bate cara.
Luís Carlos: (Escreve 1 - ROSI JURORIXBLOR). Pronto!
104
P.: Depois você disse: os outros meninos se escondem.
Luís Carlos: (Grafa as letras IOSRO). Pronto!
P.: Você escreveu aí os outros meninos se escondem?
Luís Carlos: (Não responde, continua escrevendo, grafa as letras SORA e pára de escrever).
P.: E aí você disse assim: se o colega que bateu cara pegar o menino, ele diz. Se o colega que
bateu cara.
Luís Carlos: (Continua na mesma linha, sem separar as palavras e escreve CARALOS).
Pronto!
P.: Se o colega que bateu cara pegar o menino.
Luís Carlos: (Escreve CRBEO). Pronto!
P.: Ele diz:
Luís Carlos: (Escreve ALDSÃO).
P.: Um, dois, três, Alanderson.
Luís Carlos: (Muda de linha e escreve ROAIOSAXR). Pronto!
P.: O Alanderson, então, vai bater cara.
Luís Carlos: (Escreve UARALSÃO). Pronto!
A criança escreveu o texto silenciosamente. Perguntamos, ao final do registro, se a
escrita ajudava a recordar o texto. Ele respondeu que ajudaria. Assim, pedimos que lesse o
texto.
P.: (...) Então, se a escrita ajuda a se lembrar da brincadeira, leia o que você escreveu.
Luís Carlos: Esconde-esconde.
P.: Onde está escrito esconde-esconde.
Luís Carlos: (Aponta corretamente). Aqui.
P.: Continua.
Luís Carlos: Um moleque bate cara (fica parado por algum tempo).
P.: O que mais está escrito?
Luís Carlos: Aí os outros se escondem.
P.: Onde está escrito um moleque bate cara.
Luís Carlos: (Mostra a última linha do texto). Aqui.
105
P.: Como você sabe que está escrito um moleque bate cara?
Luís Carlos: Porque eu escrevi.
P.: E o que mais você escreveu?
Luís Carlos: E aí o Alanderson bate cara.
P.: Onde está escrito e aí o Alanderson bate cara?
Luís Carlos: (Aponta novamente a última linha. Em seguida, o final da escrita anterior onde
aparecem algumas letras o nome do Alanderson).
Observamos que Luís Carlos apontou para o enunciado “o Alanderson bate cara” dois
segmentos de grafias. Primeiro, apontou “uaralsão” e, depois, “aldsão”. Observa-se que os
dois segmentos foram compostos com a palavra “são” que traduz a forma oral, usada pelas
crianças, para pronunciar a sílaba final do nome do colega. As crianças falavam “Alandersão”.
Além disso, no primeiro segmento apontado, podemos verificar a presença das letras “a” e “l”
que compõem a escrita de duas sílabas do nome. No segundo segmento apontado, ele
escreveu, também, a letra “d”, além das letras mencionadas. Por isso, o último segmento
apontado aproxima-se mais do registro da palavra. Desse modo, o uso de letras para
representar uma palavra que compõe a sua escrita convencional, acompanhado da sílaba “são”,
possibilitou ao aluno indicar onde escreveu a frase. É importante observar que a escolha das
letras usadas parar representar o nome do colega foi baseada na análise das unidades sonoras.
Antes de continuar a análise, é necessário sintetizar as idéias que foram abordadas.
Mostramos, inicialmente, que Alessandra possuía o domínio da escrita alfabética, mas
conseguiu ler apenas algumas palavras do texto. Na realidade, a criança procurava interpretar
apenas a escrita sem recorrer à memória e, desse modo, não conseguiu realizar a atividade.
Entretanto, foi a compreensão de que a escrita auxilia a recordação do texto e o fato de não
conseguir ler as palavras registradas, uma a uma, que a fizeram desistir da atividade. Natália,
por outro lado, também, compreendeu a função da escrita, mas não observava todas as
palavras escritas. Em uma situação, foi suficiente ler uma palavra para produzir o enunciado
completo, valendo-se da lembrança que a palavra lida evocava.
Outro aspecto que não podemos deixar de ressaltar diz respeito à habilidade que ambas
possuíam de identificar, segmentar e manipular de forma intencional as unidades constituintes
da linguagem oral para produzir a linguagem escrita. No entanto, o modo como elaboraram a
106
análise ocorreu de forma diferenciada. Natália elaborou essa análise de maneira manifesta
enquanto Alessandra escreveu silenciosamente. O modo como Natália elaborou a análise é
muito interessante, pois nos permitiu avaliar as unidades da linguagem que foram
consideradas para efetuar o registro. Ao mesmo tempo, mostrou que utilizava a linguagem
como recurso para auxiliar a lembrança das letras correspondentes às unidades da linguagem
pronunciadas.
As crianças que não possuíam o domínio da escrita alfabética também se relacionavam
com as grafias para recordar o conteúdo que motivou o registro. Com base nas atividades
analisadas, podemos concluir que a representação de quantidades por meio de numerais pode
contribuir para a recuperação do texto (contudo, nem sempre as crianças usavam esses
registros para recordar o conteúdo). Da mesma forma, observamos que uma mesma palavra,
representada em diferentes contextos, com o mesmo segmento de grafias, possibilitou a
lembrança do seu significado e, ao mesmo tempo, levou à recuperação de um enunciado
completo, ligado às palavras lidas. Também a representação de palavras com letras que
compõem a sua escrita ortográfica propiciou a lembrança da própria palavra e do enunciado
ligado ela. Os enunciados produzidos pelas crianças, ao se relacionarem com a escrita, eram
ou não os mesmos que motivaram os registros, mas os seus sentidos eram os mesmos. Assim,
podemos concluir que os fatores que possibilitaram a emergência de grafias expressivas foi a
presença, nos textos elaborados oralmente pelas crianças, de quantidades, palavras que se
repetiam e palavras que haviam sido estudadas pelas crianças.
c) As grafias possibilitaram a evocação de palavras que não foram escritas
Durante a realização da atividade com as crianças, identificamos uma situação única no
trabalho. No entanto, iremos analisá-la, pois nos pareceu muito interessante o modo como a
criança se relacionou com as grafias de forma a construir significados para as grafias que não
motivaram a escrita. Essa criança tinha oito anos e nove meses e estava repetindo a primeira
série pela segunda vez. Ele produziu o texto sobre uma brincadeira que denominou de
Amarelinha. Observemos a escrita produzida por José Carlos:
107
Amarelinha
Um tem que ficar em pé de um lado
E outro tem que ficar em pé do outro lado
Com uma corda nas pernas.
Outra pessoa entra dentro da corda
e fica pulando.
Os meninos levantam a corda enquanto a pessoa pula.
Como pode ser constatado, a criança utilizou um número reduzido de letras para
escrever a brincadeira. Ele usou as vogais e duas consoantes (d e t). Isso é surpreendente para
uma criança que tem uma trajetória escolar tão longa. Vejamos como ocorreu a atividade de
registro.
108
P.: Agora, você vai escrever o que você falou [...]. O nome da brincadeira é amarelinha.
Vamos escrever? Amarelinha [...].
José Carlos: O a (registra a letra A). Ma (registra AEOCA).
P.: Escreveu?
José Carlos: (Confirma).
P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: um tem que ficar em pé de um lado.
José Carlos: Um (registra a letra AIAI).
P.: Escreveu?
José Carlos: (Confirma).
P.: E outro tem que ficar em pé do outro lado.
José Carlos: (Escreve AIAIAO).
P.: Com uma corda nas pernas.
José Carlos: (Escreve ATIA).
P.: Outra pessoa entra dentro da corda.
José Carlos: (Escreve OTAATA).
P.: E fica pulando.
José Carlos: I (escreve IUOA).
P.: [...] Os meninos levantam a corda.
José Carlos: Meni (escreve OCAO). Escrevi.
P.: Escreveu? Mas eu escutei você falando só meni.
José Carlos: (Anota as letras OA).
P.: Os meninos levantam a corda enquanto a pessoa pula.
José Carlos: En (registra a letra E), quan (registra a letra A), t (registra a letra T), a pessoa
(registra a letra A), pu (registra a letra A), la (registra a letra A).
Ele iniciou a atividade identificando que o nome da brincadeira começava pela letra
“a” e escreveu essa letra. Em seguida, registrou as frases silenciosamente e, no registro da
última frase (“os meninos levantam a corda, enquanto a pessoa pula”), foi possível observar
que as grafias produzidas corresponderam apenas à frase “enquanto a pessoa pula”, pois ele
elaborou as correspondências entre as unidades sonoras e as letras, por meio da fala. As
relações que elaborou são entre uma sílaba e letra, uma sílaba e duas letras, uma palavra e uma
109
letra. Grafou letras que pertenciam a sílaba e, também, letras que não pertenciam. É o caso,
por exemplo, das letras que corresponderam à palavra “enquanto”. Ele escreveu a letra “e”,
correspondendo à sílaba “en”, as letras “oa” correspondendo à sílaba “quan” e a letra “t”
para a sílaba “to”. Na mesma frase, registrou as letras “aa” para a palavra “pula”. Vale
ressaltar que o fato de não variar as duas letras, nesse contexto, não foi problemático para o
aluno. Porém, para algumas crianças, isso era inaceitável.
Ao terminar o registro, perguntamos a José Carlos se a escrita ajudava a recordar o
texto que foi registrado. Ele afirmou que ajudava. Então pedimos que lesse.
P.: Você acha que essa escrita ajuda a lembrar o que está escrito?
José Carlos: Ajuda.
P.: [...] Então lê o que você escreveu?
José Carlos: Aqui? (aponta a escrita).
P.: É.
José Carlos: (Começa a ler no meio do registro).
P.: Não. Começa no início.
José Carlos: A, A, E, D, E, A.
P.: Lê alto.
José Carlos: A, A, E, D, A.
P.: E o que você queria escrever aí?
José Carlos: Amarelinha [...].
P.: Agora, tenta ler a segunda linha. O que você quis escrever aí?
José Carlos: A, I, A, I. Aqui tá escrito pi, pa.
P.: O quê?
José Carlos: Aqui tá escrito pipa só.
P.: Pipa?
José Carlos: É.
P.: E você quis escrever pipa?
José Carlos: Não.
P.: E está escrito pipa?
José Carlos: Tá.
110
P.: Por que você sabe que está escrito pipa?
José Carlos: Porque quando a professora escrevia lá na lousa ela colocava o A e o PI, não o
AI, o AI.
P.: E embaixo o que está escrito?
José Carlos: A, I, A, I mais A,O.
P.: E aí?
José Carlos: (Diz algo que não é compreendido)
P.: O quê?
José Carlos: A com o i.
P.: O que está escrito? (...)
José Carlos: Aí.
P.: Como você sabe?
José Carlos: Porque tem o A e o I.
P.: E embaixo o que está escrito?
José Carlos: A, T, IA (leu separadamente as duas primeiras letras e as duas últimas leu
conjuntamente).
P.: A, T, IA? Quando você estava escrevendo, foi isso que eu disse para você escrever?
José Carlos: Não.
P.: Como você escreveu isto?
José Carlos: (Sem resposta).
P.: [...] Embaixo, o que você escreveu?
José Carlos: D, T (pára) esses três aqui dá T, não dá D, T, A.
P.: O que foi que você escreveu?
José Carlos: D, T, A.
Como pode ser visto, no início, a criança decifrou letras e disse que ali havia escrito
“amarelinha”. Para o segundo segmento de letras (ai, ai), leu a palavra pipa. Ao ser
questionada sobre a leitura elaborada, disse que, quando a professora escrevia na lousa a
palavra pipa, “ela colocava o “a” e o “pi”, não o “ai”, o ai” . Dessa forma, José Carlos
lembrou-se de que as letras “a” e “i” são usadas para escrever a palavra pipa e, por isso, ali
estava escrita essa palavra. Leu também as palavras “ai” (terceiro segmento) e “a tia” (quarto
111
segmento) e sabia que não foi isso que desejou escrever. É interessante o fato de as grafias
provocarem a evocação de palavras que não motivaram o registro. Luria (1988) relatou algo
semelhante: as crianças que participaram dos seus experimentos também atribuíam
significados que não foram registrados aos sinais e marcas registradas. No caso de José Carlos,
algo que parecia uma série de letras grafadas aleatoriamente assumiu um caráter expressivo, se
considerarmos a análise que elaborou da escrita de modo a enunciar significados elaborados a
partir dos próprios registros. Ele tomou por base unicamente a escrita para enunciar as
palavras que disse estarem escritas.
Vale acrescentar que, ao retornarmos à sala de aula para guardar o equipamento que
utilizávamos durante as atividades, José Carlos contava para os colegas que havia lido. Como
os colegas não acreditavam, chamou-me para confirmar o fato. Ele tinha um grande sorriso no
rosto. Acreditava que havia lido e não estava totalmente equivocado, pois as grafias
possibilitavam a interpretação que elaborou. Na última atividade realizada pela criança, fez
questão de se certificar se havia aprendido a ler. Raras vezes, vimos a aprendizagem da
linguagem escrita provocar tanta alegria numa criança. Acreditamos que as atividades que
desenvolvemos com as crianças contribuíram para esse aprendizado, pois José Carlos se
esforçava para se relacionar com a escrita para ler o texto e, desse modo, mostrar que havia
aprendido a ler.
d) Desenhar e escrever
Por último, é importante mostrar o trabalho desenvolvido por Jéssica Fernanda. A
atividade elaborada por essa criança também é única no trabalho. Ela usou desenhos e letras
para registrar a explicação de como é desenhada a Amarelinha. Jéssica Fernanda tinha seis
anos e onze meses. Vejamos sua escrita.
112
Amarelinha
Coloca um quadradinho e faz o número um.
Coloca um quadrão perto do número um
e, depois, coloca um risco no meio.
Coloca o dois de um lado e o três do outro.
Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o quatro.
Faz outro quadradão e coloca o cinco e o seis.
Faz um quadradinho e coloca o sete.
Coloca um quadradão e coloca os números oito e nove.
Faz um quadradinho pequeno e coloca o número dez.
Como pode ser observado, a menina escreveu e desenhou, ao mesmo tempo, a
explicação dada de como é feito o desenho usado para brincar de Amarelinha. Analisemos
como isso ocorreu.
P.: Vamos escrever Amarelinha.
Jéssica F.: É pra desenhar?
P.: É pra escrever. A gente escreve usando o quê?
Jéssica F.: (Fica silenciosa).
113
P.: Você vai escrever amarelinha da mesma forma que você escreveu Jéssica Fernanda,
usando letras. É para escrever.
Jéssica F.: (Fica parada sem saber o que fazer).
P.: O que foi?
Jéssica F.: É pra escrever o que você escreveu?
P.: É pra escrever o que eu vou dizer para você. A primeira palavra que você vai escrever é o
nome da brincadeira, amarelinha.
Jéssica F.: (Escreve a letra C, fica parada por algum tempo). Eu não sei escrever.
P.: Mas você pode escrever do jeito que sabe. Tá bom?
Jéssica F.: (Então, continua escrevendo e registra as letras ARCÃO).
P.: Terminou de escrever amarelinha?
Jéssica F.: (Balança a cabeça afirmativamente).
P.: Então, você vai escrever agora: coloca um quadradinho e faz o número 1.
Jéssica F.: (Escreve as letras OCARHVCA).
P.: Escreveu coloca um quadradinho e faz o número um?
Jéssica F.: (Desenha um quadradinho e coloca o número 1 dentro).
P.: Coloca um quadrão perto do número 1.
Jéssica F.: Aqui? (aponta o quadradinho desenhado).
P.: Olha o que eu estou dizendo para você: coloca um quadrão perto do número um.
Jéssica F.: Escrever?
P.: É.
Jéssica F.: (Escreve as letras CARCNANCA).
P.: Terminou?
Jéssica F.: (Confirma).
P.: Coloca um quadrão perto do número 1 e, depois, coloca um risco no meio.
Jéssica F.: Aqui? (aponta novamente o desenho).
P.: E, depois, coloca um risco no meio.
Jéssica F.: (Desenha o que foi ditado e acrescenta os numerais 3 e 4 dentro dos quadros).
P.: Coloca o dois de um lado e o três do outro.
Jéssica F.: Coloquei (aponta o desenho).
P.: Você vai escrever ou você vai desenhar?
114
Jéssica F.: Desenhar.
P.: Mas eu quero que você escreva: coloca o dois de um lado e o três do outro.
Jéssica F.: (Escreve as letras CRNAHDSP).
P.: Pronto?
Jéssica F.: Confirma.
P.: Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o 4.
Jéssica F.: (Desenha o que foi falado).
P.: Vamos escrever isso agora. Depois, faz um quadradinho pequeno e escreve o número
quatro.
Jéssica F.: (Escreve DVTICA). Pronto!
P.: Faz outro quadradão e coloca o 5 e o 6.
Jéssica F.: (Escreve COVAVCRA).
A partir de então, ela escreveu os outros enunciados usando somente as letras. O que
aconteceu com Jéssica Fernanda? Ela não sabia a diferença entre as formas icônicas e não
icônicas de representação? Não acreditamos que ela não soubesse essa diferença. No entanto,
o seu texto poderia ser escrito por meio de desenhos e estes serviriam adequadamente para
explicar como era o desenho da Amarelinha. Talvez já tenha dado a mesma explicação,
desenhando. Essa maneira torna-se, inclusive, mais simples para dar tal explicação e facilita
ainda o entendimento daquele que pretende aprender a desenhá-la.
Acreditamos que o conteúdo registrado possibilitou a emergência da escrita
pictográfica, fazendo com que ela retomasse antigas formas de registro. Luria (1988) afirmou
que o conteúdo é fator preponderante para que as formas primárias e indiferenciadas de
registro adquiram um caráter simbólico e passem a expressar determinados conteúdos. Por
outro lado, com base na atividade realizada pela menina, confirmamos, também, que o
conteúdo pode proporcionar o retorno à escrita pictográfica em crianças que usam letras para
escrever. Como pode ser observado, no texto produzido oralmente pela criança, os fatores
forma e tamanho apareciam conciliados numa única palavra (quadradinho, quadradão) ou
separadamente (pequeno). Dessa forma, acreditamos que esses fatores, presentes no texto,
levaram a criança a usar a pictografia para escrever. Por outro lado, as quantidades foram
115
representadas foram representadas com os símbolos numéricos correspondentes, pois a criança
havia aprendido esses símbolos.
Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o que escreveu, ela disse que ajudava e
enunciou o texto abaixo apontando a escrita:
“Amarelinha
Coloca um quadradinho pequeno e coloca o número 1.
Coloca um quadradão e coloca o número 3 e o número 2.
Coloca um quadradinho pequeno e coloca o número 4.
Coloca um quadradão e coloca o número 6 e o 5.
Coloca um quadradinho e coloca o número 7.
Coloca um quadradão e coloca o número 6, o 8 e o 9.
Coloca um quadradinho e coloca o número 10” .
Jéssica Fernanda não reproduziu exatamente o texto que motivou os registros, mas
cada enunciado correspondia a um dos segmentos de letras registrados. Certamente, os
desenhos auxiliaram a realização da atividade, mas a criança também sabia o texto de
memória e, por isso, bastou apontar um segmento de grafias para cada parte o texto lembrado.
Nessas circunstâncias não se relacionou com a escrita para lembrar o texto, mas certamente, os
desenhos auxiliaram a recordação.
1.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto
Foram incluídas nesta categoria vinte e cinco crianças que não se relacionavam com os
registros para recordar o texto grafado. Uma característica comum observada na escrita
produzida por todas essas crianças é o fato de usarem letras para escrever. Observamos,
também, que algumas realizavam a atividade de escrita silenciosamente e outras elaboravam a
análise das unidades da linguagem oral no plano verbal. No entanto, nenhuma criança
estabelecia uma relação funcional com a escrita. Algumas rememoravam o texto, pois não
compreendiam ainda que a escrita poderia auxiliá-las na recordação; outras não enunciavam o
texto afirmando que a escrita não poderia ajudá-las a recordar.
116
Constatamos que vinte e uma crianças escreveram silenciosamente e quatro falavam
durante a atividade de registro. Analisaremos as escritas produzidas pelas crianças e o seu
processo de produção. Começaremos pela análise do trabalho realizado por Fábio. Ele tinha
oito anos e sete meses de idade e escreveu sobre a brincadeira denominada de Faquete.
Faquete
Tem que montar um castelo.
Daí, você taca a faca no castelo.
Se cair em pé, ganhou.
Se cair deitado, perdeu.
E daí vai a outra pessoa.
117
A escrita parece de uma criança iniciante, pois ainda é enorme e com traçados pouco
precisos. No entanto, o menino estava repetindo a primeira série pela segunda vez. Ele usou
apenas as vogais “u, a, o, i” e as consoantes “f, b, r” para compor o texto. No entanto,
diferenciou os segmentos de grafias usados para escrever o texto. Analisemos como ocorreu a
atividade de registro da brincadeira.
P.: Você vai escrever essa brincadeira.
Fábio: Mas vai desenhar?
P.: Não, vai escrever.
Fábio: Mas escrever eu não sei.
P.: Você pode escrever de um jeito que você sabe.
Fábio: (Olha para os lados).
P.: Escreve o seu nome. Seu nome você sabe escrever. Não sabe?
Fábio: Vai fazer completo?
P.: Pode escrever.
Fábio: (O lápis quebra a ponta. Depois de apontado o lápis, começa. Escreve FAEIOLN).
Depois dessa letra vai o U (desiste de escrever o nome completo).
P.: O nome da brincadeira qual é?
Fábio: Faquete.
P.: Então, escreve faquete.
Fábio: Fa de faca, né?
P.: É.
Fábio: (Escreve as letras FI). E agora? Eu não sei qual é que vem mais.
P.: O que você escreveu?
Fábio: Fa. (Pensa). Agora, eu não sei qual...
P.: Agora, é o que de quete.
Fábio: Quete... Eu não sei qual que é o q?.
P.: Quais as letras que a gente está falando? Q.
Fábio: que, te, fa, que, te.
P.: O que são as letras q, u, e.
Fábio: Como é o u?
118
P.: Você não sabe como é o u?
Fábio: Sei.
P.: Então, uma das letras é o u.
Fábio: (Escreve as letras U e A).
P.: Quete.
Fábio: (Grafa a letra O).
P.: Escreveu?
Fábio: Balança a cabeça afirmativamente.
P.: Lê o que você escreveu.
Fábio: (Aponta uma letra para cada sílaba e sobram duas letras) Fa que te.
P.: Agora [...], a primeira frase é: tem que montar um castelo.
Fábio: Depois taca a faca.
P.: Depois, joga a faca, mas primeiro você vai escrever tem que montar um castelo.
Fábio: (Ri e mexe-se na cadeira).
P.: O que foi Fábio?
Fábio: Amontar eu não sei.
P.: Como?
Fábio: Eu não sei escrever amontar.
P.: Então, escreve o que você sabe: tem que... Escreve castelo.
Fábio: (Olha para cima. Mexe-se).
P.: Tenta escrever do jeito que você sabe.
Fábio: (Fica irrequieto por alguns segundos e começa a escrever. Registra três letras B
invertido, A e O). Mais duas para montar, não é?
P.: O que você acha?
Fábio: Eu acho que é pequeno. Tem que ser do tamanho desse (aponta as primeiras três letras
que foram registradas).
P.: Você tem que escrever tem que montar um castelo. Já está escrito?
Fábio: (Grafa a letra U, conta as letras e escreve as letras BOR).
P.: E agora está escrito?
Fábio: (Balança a cabeça afirmativamente).
P.: Daí você taca a faca no castelo.
119
Fábio: (Grafa as letras UUOR, volta ao registro, conta as letras). Eu fiz dois desse (ao observar
que escreveu a letra U duas vezes, apaga e escreve a letra B e volta a contar as letras).
E daí taca a faca no castelo?
P.: É.
Fábio: (Conta as letras e escreve OUOBOR).
P.: Pronto?
C. (Balança a cabeça afirmativamente).
P.: Se cair em pé, ganhou.
Fábio: (Grafa as letras UBORU, conta as letras, grafa a letra A, conta novamente e grafa as
letras OI).
P.: Se cair em pé, ganhou.
Fábio: (Grafa as letras ROUOA, conta as letras que escreveu e grafa a letra O).
P.: Pronto?
Fábio: (Confirma).
P.: Se cair deitado, perdeu.
Fábio: (Grafa as letras RAOUB, conta, grafa a letra R, conta novamente e grafa as letras IO).
P.: E daí vai outra pessoa.
Fábio: (Grafa as letras ROUAOIUO, conta e grafa a letra A).
No começo do registro, Fábio não sabia se desenhava ou escrevia. Ele diferenciava as
duas formas de representação e quis desenhar, porque afirmou que “não sabia escrever”. No
entanto, ao escrever o nome da brincadeira (Faquete) lembrou que a sílaba inicial era “o fa de
faca”, mas escreveu a sílaba “fi”. Escreveu mais três letras que correspondiam as duas últimas
sílabas da palavra faquete, porém, na leitura, apontou uma letra para cada sílaba pronunciada e
o fato de sobrarem letras não se tornou problemático para o aluno.
No registro do segundo enunciado, “tem que montar um castelo”, afirmou não saber
escrever a palavra “amontar”. Então, sugerimos que escrevesse as palavras que conhecia. Ele
registrou três letras e perguntou se precisava de mais duas letras para “montar”. Quando
perguntamos o que achava, ele disse que precisava ser do tamanho do registro anterior, ou
seja, deveria ter três letras, mas grafou quatro letras para a palavra “montar”.
120
Dessa forma, observamos que Fábio tinha dúvidas quanto à quantidade de letras que
deveria ser usada para escrever a palavra e utilizou três letras, mesmo para as palavras
“pequenas”. Isso confirma as constatações de Ferreiro e Teberosky (1989) e Ferreiro (1990) de
que há uma homogeneidade em relação à quantidade de letras que deve ser escrita para as
palavras. A preocupação de Fábio com a quantidade de letras também foi evidenciada na
escrita de palavras. Ao escrever frases, preocupava-se em contar as letras e registrou no
mínimo seis letras para cada uma.
Constatamos ainda que Fábio não admitiu a possibilidade de escrever uma mesma letra
duas vezes numa mesma cadeia, ou seja, era necessário variar as letras. Ele observou que
havia escrito a letra “u” duas vezes e, por isso, apagou uma das letras e a substituiu pela letra
“b” .
De acordo com a abordagem de Ferreiro (1990), no segundo período de evolução da
escrita, as crianças esforçam-se para estabelecer diferenciações entre as escritas. Os critérios
de diferenciação são, inicialmente, intrafigurais e se baseiam na definição de características
que uma escrita deve possuir para que possa ser interpretável. Os critérios intrafigurais
expressam-se sobre dois eixos: o quantitativo e o qualitativo. Isto é, as crianças definem que é
necessária uma quantidade mínima e a variedade de letras para que uma escrita possa ser lida.
Constatamos, com base na atividade realizada, que Fábio considerava a necessidade de ter
quantidade mínima e variedade de letras. Contudo, não temos evidências para concluir que
essas características são exigências para que um texto seja interpretável. Os alunos que
produziam escritas semelhantes à do Fábio sabem que esse tipo de grafia não é interpretável e,
por isso, recorrem aos meios naturais para recordar o texto ou não enunciam o texto, pois
argumentam que a escrita não pode ajudá-los a lembrar.
Nas situações analisadas, neste estudo, consideramos que a explicação para esse
fenômeno é simples, pois, se observarmos a página que estamos escrevendo, veremos, sem
muito esforço, que prevalecem, para o registro deste texto, palavras com número igual ou
superior a três letras. Por outro lado, prevalece também a variedade de letras, ou seja, são
poucas as situações em que as letras se repetem numa mesma palavra. É provável que seja a
percepção dessas características que leve as crianças a escreverem com base nos eixos
quantitativos e qualitativos. O que não significa que estabeleçam tais critérios para que a
escrita possa ser interpretável. Pensamos que as crianças utilizam os critérios de quantidade e
121
variedade na tentativa de reproduzir as características externas da escrita. Essa consideração é
corroborada pelas nossas observações que mostram ainda que, à medida que as crianças
passam a relacionar-se com a escrita de maneira sistemática, na escola, começam a utilizar
para escrever os enunciados do texto série de grafias compostas com duas ou uma letra
também na tentativa de reproduzir a aparência de um texto escrito convencionalmente.
Ao ser questionado se a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o que escreveu sobre a
brincadeira, Fábio disse que sim e lembrou-se do seguinte texto: “Faquete. Se eu perder, vai
outro moleque. Daí, se eu perder, entra outro. Se o moleque ganhar, tem que ficar tocando até
perder. Se eu perder, entra outro”. O texto foi lembrado sem utilizar a escrita, ou seja, a
criança não se relacionou com a escrita para lembrar o conteúdo. Ele rememorou o texto sem o
auxílio da escrita. Dessa forma, observamos que o esforço do aluno está concentrado na
elaboração do registro. No entanto, os critérios utilizados para diferenciar e organizar a escrita
não possibilitam a emergência de grafias expressivas.
Luria (1988) considerava que a transição de um estágio de escrita não diferenciada
para um nível de signos, pressupõe que a criança passe a diferenciar a escrita para que esta
expresse os significados. As primeiras escritas expressivas, conforme descrito no estudo
desenvolvido por Luria (1988), surgem das diferenciações nos registros. No entanto, quando
as crianças usam letras para escrever, constatamos que as diferenciações na escrita de um texto
não levaram as crianças a se relacionarem com os registros para recordar o texto que motivou
a escrita. Como vimos, com base nas situações analisadas, foram as indiferenciações nas
grafias usadas para representar algumas palavras que levaram as crianças a estabelecerem uma
relação funcional com a escrita.
Mostraremos, agora, a atividade realizada por Rônei. A atividade se difere da realizada
por Fábio, porque ele não realizou nenhum esforço para lembrar o texto que registrou. Ele
tinha nove anos e dez meses de idade e escreveu sobre a brincadeira Pega-pega.
122
Pega-pega
Tem que correr
Para que o colega
Não pegue você.
Como pode ser visto, a criança escreveu usando letras. Ele usou apenas oito letras para
grafar o texto. No entanto, conforme observamos nos registros produzidos por Fábio, a criança
variou a posição dessas letras para escrever cada enunciado e, também, variou as letras numa
mesma cadeia. As diferenciações nos registros, contudo, não possibilitaram que a criança
estabelecesse uma relação funcional com as grafias. A produção do registro ocorreu da
maneira que será descrita:
P.: O nome da brincadeira é pega-pega.
Rônei: (Começa a escrever na frente do registro do seu nome).
P.: Escreve embaixo.
Rônei: Aqui?
P.: É, senão vai ficar parecendo que você chama Rônei pega-pega.
Rônei: (Escreve as letras ABNITA).
P.: Escreveu?
Rônei: (Confirma).
P.: [...] Tem que correr.
Rônei: (Escreve as letras BNEI e pára).
123
P.: Pronto? Já escreveu “tem que correr” ?
Rônei: (Confirma).
P.: Tem que correr para que o colega...
Rônei: Te (escreve as letras ITONEH).
P.: Não pegue você.
Rônei: (Sussurra e escreve as letras BAIOSI).
Ao ser questionado se a escrita poderia ajudá-lo a lembrar o que escreveu, disse que
“não, porque faltou”. O aluno quis dizer que faltou às aulas. A professora sempre conversava
com as crianças sobre a necessidade de estarem presentes na classe para que pudessem
aprender a ler. Rônei era uma criança que tinha um índice baixo de freqüência e, por isso,
disse que a escrita não poderia ajudá-lo a recordar. Assim, não tentou interpretar a escrita e
nem mesmo utilizou mecanismos naturais para recordar o conteúdo registrado.
Rônei, como vimos, usou apenas oito letras para escrever o texto, mas diferenciou a
posição das letras para escrever cada enunciado e variou as letras numa mesma cadeia. As
diferenciações, no entanto, não auxiliaram a recordação dos enunciados, reafirmando que as
diferenciações de naturezas qualitativa e quantitativa não proporcionaram o surgimento de
grafias expressivas.
A escrita de Manuely é semelhante à de Rônei. Ela também usou letras para escrever.
A menina tinha sete anos e nove meses de idade quando elaborou os registros que serão
analisados. Manuely escreveu sobre a brincadeira Esconde-esconde.
124
Esconde-esconde
Uma pessoa tem que bater cara.
As outras pessoas têm que esconder.
Quem não se salvar tem que bater cara.
Manuely também diferenciou as grafias usadas para escrever o texto, mas, ao escrever
o último enunciado “quem não se salvar tem que bater cara”, usou as letras “saslslslsisaela” .
Como pode ser visto, repetiu cinco vezes a letra “s” , três vezes a letra “l” e três vezes a letra
“a” para escrever um único enunciado. Analisemos o processo de registro.
P.: Agora, você vai escrever o que você me falou.
Manuely: Aqui nessa folha?
P.: Nesta folha [...].
Manuely: Do jeito que eu sei?
P.: Do jeito que você sabe [...]. O nome da brincadeira é esconde-esconde.
Manuely: (Grafa ISAD). Pode ser assim mesmo?
P.: Pode. Aí está escrito o quê?
Manuely: Esconde-esconde.
P.: Está escrito as duas coisas esconde-esconde?
Manuely: Tá.
125
P.: [...] Uma pessoa tem que bater cara.
Manuely: (Grafa as letras USELHOCDSE).
P.: Terminou?
Manuely: (Confirma).
P.: As outras pessoas têm que se esconder.
Manuely: (Grafa ASUPSCESE).
P.: Terminou?
Manuely: Terminei.
P.: Quem não se salvar tem que bater cara.
Manuely: (Escreve SASLSLSISAELA).
Ao perguntarmos se a escrita ajudava a lembrar o que escreveu, disse primeiro que não
sabia e, depois, que achava que sim. No entanto, lembrou o texto sem fazer uso da escrita.
Disse ainda que havia “prestado atenção” e, por isso, sabia o que estava escrito. A aluna
enunciou o seguinte texto: “As pessoas que não se salvarem têm que bater cara. Um tem que
bater cara”. Desse modo, apoiou-se unicamente na memória para realizar a atividade.
Consideramos que as escritas analisadas mostram que as crianças aprenderam que, para
escrever, usamos letras. O uso letras e as diferenciações na escrita, no entanto, não
possibilitaram que estabelecessem uma relação funcional com elas. Estamos salientando esse
aspecto, porque, no estudo desenvolvido por Luria (1988), com crianças pré-escolares, esse
autor aponta que as diferenciações nos registros levaram as crianças que participaram do seu
estudo a evocar conteúdos que foram registrados ou outros possibilitados pelos próprios
registros. Nas situações analisadas neste estudo, as diferenciações na escrita para escrever o
texto não possibilitaram a emergência de grafias expressivas. Isso não significa, entretanto,
que estamos discordando das descobertas de Luria (1988). Pelo contrário, acreditamos que as
suas descobertas são pertinentes e se mantêm atualizadas, estamos apenas afirmando que o que
ocorre com as crianças que usam letras para escrever não é o mesmo que ocorre com as
crianças pré-escolares. Essa observação é importante, porque Landsmann (1995) e outros
autores têm afirmado que Luria sugeriu que, após o início da aprendizagem dos símbolos
usados socialmente para escrever, os estágios definidos por ele, para o desenvolvimento da
escrita na criança pré-escolar, recomeçariam. Como constatamos, as crianças diferenciavam as
126
grafias usadas para escrever os enunciados dos textos, mas essas diferenciações não levaram
as crianças a se relacionarem funcionalmente com a escrita e nem resultaram da introdução
dos fatores mostrados por Luria no conteúdo dos textos. Dessa forma, mesmo que alguns
processos estudados por Luria estejam presentes durante a apropriação da linguagem escrita na
fase inicial de alfabetização, adquirem funções diferentes e resultam de fatores distintos.
Iremos mostrar ainda, por meio dos exemplos que se seguem, como se desenvolveram
as atividades realizadas pelas crianças que não se relacionavam com a escrita para recordar o
conteúdo do texto, mas organizavam a relação de simbolização entre segmentos sonoros e as
grafias no plano verbal. Analisaremos, primeiro, a atividade realizada por Vanessa. Vejamos a
sua escrita. Ela tinha sete anos de idade no momento em que escreveu sobre a brincadeira
“pular corda”.
Pular corda
Duas pessoas seguram a ponta da corda.
Depois, uma menina vai no meio para pular.
Como pode ser visto, a escrita dessa aluna não difere nos aspectos formais das escritas
anteriormente exemplificadas. Ela usou as vogais “a, o e i” e as consoantes “p, c e b” para
registrar o texto. No último segmento de grafias, escreveu as letras “o” e “a” seguidamente.
Isso ocorreu, porque, diferentemente do que foi observado anteriormente, Vanessa analisava
as unidades da linguagem oral e relacionava-as com a escrita. Vejamos a atividade de registro.
P. O nome da brincadeira é pular corda [...].
Vanessa: Pu (registra a letra O), la (registra as letras AI), corda (registra as letras AOA).
P.: Muito bem! Depois, você disse duas pessoas.
127
Vanessa: Du (registra a letra O), as (registra a letra A), pes (registra a letra P), soas (registra a
letra A), se (registra a letra C), gu (registra a letra O), ra (registra a letra A), na
(registra a letra A).
P.: Ponta.
Vanessa: (Registra as letras O e A sem verbalizar a relação).
P.: Escreveu duas pessoas seguram na ponta da corda?
Vanessa: (Confirma).
P.: Depois uma menina vai no meio para pular.
Vanessa: Uma (registra a letra A), me (registra a letra B), nina (registra a letra A), vai (registra
a letra A), no (registra a letra O), meio (registra a letra O), polar (Registra as letras
AOA).
Dessa forma, observamos que a aluna analisou as unidades que compunham o texto e
buscou relacionar os símbolos gráficos com essas unidades. As unidades analisadas foram as
sílabas e as palavras. Ela usou uma e duas letras para representar as sílabas e uma letra para
representar uma palavra. Assim, a quantidade de letras usada para representar a unidade
silábica analisada variou. É possível observar ainda que, mesmo antes de ter o domínio do
caráter alfabético da escrita, usou a letra “o” para grafar o som [u]. Assim, sabia que as
palavras terminadas com a vogal “o”, em posição átona, pronuncia-se [u], mas escreve-se a
letra “o”. Ela também utilizou essa regra em situações em que não é possível a sua aplicação.
A atividade desenvolvida pela aluna mostra que o desenvolvimento da escrita na criança não
segue uma linha evolutiva linear e independente do ensino. Além disso, a quantidade de letras
registradas para cada frase era definida pelas relações que estabelecia verbalmente entre o oral
e o escrito. Também as letras que deveriam ser registradas eram definidas da mesma forma,
por isso a não preocupação com a variação das letras numa mesma cadeia, pois utilizava na
maioria das situações, as vogais para representar a sílaba.
Ao ser questionada se a escrita ajudaria a lembrar o conteúdo registrado, disse que não,
“porque eu não me lembro das coisas que a tia falou”. Insistimos para que observasse o
registro. Ficou olhando a escrita por algum tempo e começou a cantar “salada, saladinha”.
Disse, então, que a brincadeira lembrava a música “porque eu canto isso quando vou pular
corda”.
128
Assim, as tentativas de organização da escrita, a partir do oral, não possibilitaram o
estabelecimento de uma relação funcional com os registros de modo que estes ajudassem a
recordar o texto. No entanto, é importante destacar que a quantidade de letras usadas para
escrever as frases que compunham o texto era definida pelas relações que estabelecia, no
plano verbal, entre o oral e o escrito e, também, as letras usadas para escrever o texto foram
definidas por essas relações. Dessa forma, não organizava a escrita por meio da reprodução
das características externas de um texto.
Analisaremos a atividade realizada por Ricardo. A criança tinha nove anos e quatro
meses de idade na época em que elaborou os registros. A atividade corrobora a análise
realizada anteriormente. Vejamos a sua escrita.
Esconde-esconde
Um menino fica no poste.
E os outros vão se esconder.
Depois, correm e dizem:
— Um, dois, três, salve eu!
A escrita é semelhante à anterior. Como pode ser visto, o aluno reproduz parte da
família silábica “ma, me, mi, mo, mu”, ensinada na classe, para grafar as palavras “um, dois,
129
três”, mas, como veremos, não se relacionou com esses registros para recordar o texto.
Observemos como ocorreu a atividade de registro.
P.: O nome da brincadeira é esconde-esconde. Então escreva esconde-esconde.
Ricardo: Do jeito que eu sei?
P.: Do jeito que você sabe.
Ricardo: Es (grafa a letra R), con (grafa a letra O). Em seguida, grafa as letra DV sem
enunciar a relação.
P.: Um menino fica no poste.
Ricardo: Um (grafa a letra O), me, ni (grafa a letra E), me, ni (grafa a letra I), ni, no (grafa as
letras MO), poste (grafa BDM) te.
P.: E os outros vão se esconder.
Ricardo: E os (grafa a letra O), outros (grafa a letra E), vão (grafa a letra I), es (grafa a letra
N), com (grafa a letra O), der (grafa a letra M).
P.: Depois correm e dizem.
Ricardo: Depois (grafa a letra D). Errei. Apaga a letra D.
P.: Errou?
Ricardo: De, de (grafa as letras MEINOM) der.
P.: Depois, corre e diz: um, dois, três, salve eu!
Ricardo: Um (grafa as letras ME com letra cursiva), dois (grafa as letras NE), salve...
P.: Dois, três.
Ricardo: (Grafa as letras ME) três.
P.: Salve eu.
Ricardo: Sal (registra a letra H), ve (registra as letras OE).
Ricardo também elaborou, por meio da linguagem, a análise das unidades da
linguagem oral e grafou letras correspondentes às unidades analisadas. Mais uma vez,
observamos que essas correspondências não possuem uma regularidade, ou seja, as unidades
analisadas eram as palavras e as sílabas. A quantidade de letras grafadas para as unidades
consideradas também era irregular. Para o enunciado “um menino fica no poste”, grafou uma
letra para a sílaba “me” e duas letras para sílaba “no” da palavra menino. Disse que a escrita
130
não ajudava a lembrar o que escreveu e, em seguida, mudou de idéia e enunciou: “Ele fica no
poste”. Não continuou a atividade e disse ter esquecido o que escreveu e que os registros não
ajudavam a lembrar.
Para finalizar os exemplos, analisaremos a escrita de Eliemary, com sete anos e um
mês de idade. Ela escreveu sobre a brincadeira Cobra-cega.
Cobra-cega
A pessoa pega o pano.
Enrola e, depois, põe no olho da pessoa.
Roda a pessoa
E, depois, tem que pegar outra pessoa.
Novamente, vemos que a escrita produzida pela aluna é semelhante àquelas que foram
mostradas anteriormente. Ela usou as vogais “a, e, i, o” e as consoantes “b e r” para escrever
o texto. O registro ocorreu da seguinte maneira.
P.: Agora, você vai escrever o nome da brincadeira. Qual é o nome da brincadeira?
Eliemary: Cobra-cega.
P.: Cobra-cega. Então escreva.
131
Eliemary: Eu não sei escrever direito [...].
P.: Escreve do jeito que você sabe, então.
Eliemary: (Registra as letras OAEA).
P.: [...] A pessoa pega o pano.
Eliemary: (Escreve ABEOA).
P.: [...] Enrola e, depois, põe no olho.
Eliemary: (Registra EOA), En (registra a letra I), ro (registra a letra O), la (registra a letra A),
e (registra a letra I), de (rgistra a letras OARB), po (registra O A).
P.: Roda a pessoa
Eliemary: Ro (registra a letra O), da (registra as letras RO), pes (registra a letra B), so (registra
a letra O), a (registra a letra A).
P.: (...) E depois tem que pegar outra pessoa.
Eliemary: E (registra a letra I), de (registra a letra R), po (registra a letra O), is (registra a letra
I), tem (registra a letra E), que. Ih! Errei (apaga e escreve a letra A e registra em
seguida as letras BOA).
A menina começou a escrever sem verbalizar as correspondências que tentava
estabelecer entre o oral e o escrito, mas foi possível observar que estabeleceu essa relação ao
escrever o nome da brincadeira cobra-cega, pois grafou as vogais “oaea” que fazem parte das
sílabas das palavras. Nesse contexto, a unidade analisada foi a sílaba e usou as vogais para
representá-las. O mesmo ocorreu com o registro da frase “a pessoa pega o pano”. Ela registrou
as palavras “a pessoa” utilizando as letras “abeoa”. Ela trocou as consoantes “p e b”, mas
podemos verificar que, para registrar a sílaba “pes”, usou as letras “be”. A partir do momento
em que passou a verbalizar a análise que elaborava das unidades da linguagem oral, foi
possível confirmar que a unidade analisada era a sílaba e que usou um número variado de
letras para representá-la. A atividade de registro da aluna é importante para mostrar que as
crianças podiam estabelecer relações entre o oral e o escrito sem manifestá-las por meio da
linguagem.
A aluna disse que a escrita ajudaria a lembrar o texto registrado e apontou cada
segmento de letras registrado como correspondente aos seguintes enunciados: “Pega um pano.
Enrola no olho da pessoa. Depois roda. Tem que rodar a pessoa. E depois tem que pegar outra
132
pessoa. Para ir de novo”. Na verdade, não se valeu dos registros para recordar o texto que
motivou a escrita, mas podemos observar que, durante o registro, representou a palavra
pessoa, em dois contextos, usando as mesmas letras “boa”, cada letra correspondendo a uma
das sílabas que compõem a palavra. No entanto, a indiferenciação no registro da palavra não
proporcionou uma relação funcional com essas grafias.
Sintetizaremos as principais idéias elaboradas, a partir da análise das atividades
realizadas pelas crianças, neste último item. Verificamos que as crianças que não se
relacionavam com a escrita para lembrar o texto diferenciavam a escrita para escrever o texto
com base nos princípios quantitativos e qualitativos. Por outro lado, um grupo de três crianças
definia a quantidade de grafias anotadas e as letras que deveriam registrar por meio da análise
das unidades constituintes da linguagem oral. Essas crianças compreenderam que as letras
representam a linguagem, mas ainda precisam aprender que as unidades representadas são os
fonemas e quais são as letras usadas para representar cada fonema. A compreensão de que as
letras representam unidades da linguagem oral não levou as crianças a estabelecerem uma
relação funcional com as grafias, mas permitiu que passassem a organizar a escrita por meio
da análise definindo-se, desse modo, as letras e a quantidade que deveriam ser escritas. Essa
foi uma aprendizagem importante, porque proporcionou a superação de uma atividade gráfica
baseada na reprodução das características externas da escrita.
2 O registro do reconto
Tendo por base as análises anteriores, organizamos a segunda atividade de registro dos
textos produzidos oralmente. Ela consistiu no registro do reconto oral da história Marcelo,
marmelo, martelo, de autoria de Ruth Rocha. Como na primeira etapa do trabalho, a atividade
foi planejada em parceria com a professora da classe. Assim, foi a professora quem contou a
história para as crianças e desenvolveu, na sala de aula, trabalhos relacionados com a história.
Iniciamos a realização da produção oral e registro do reconto na última semana do mês do
julho, estendendo até o final do mês de agosto. Dessa forma, a segunda atividade desenvolvida
pelas crianças ocorreu dois meses após a realização da primeira. Participaram da segunda
trinta e seis crianças matriculadas na classe durante esse período. Duas crianças participantes
da primeira etapa da pesquisa foram transferidas e uma foi matriculada na classe.
133
Combinamos com as crianças que, após concluída a atividade, organizaríamos um livro
com os recontos. No entanto, não foi possível realizar o que foi combinado. Por isso, tivemos
uma nova conversa com as crianças e decidimos que a organização do livro de histórias
ocorreria no final do ano, ao término de todas as atividades, pois, assim, poderíamos
selecionar o melhor texto de cada criança para publicação. No mês de dezembro, conforme
combinamos com as criança, organizamos, juntamente com a professora da classe, o livro que
foi intitulado Nossas histórias.
Conduzimos a atividade de produção oral do reconto e seu registro tomando por base
procedimentos semelhantes aos utilizados na produção oral e registro da brincadeira. Assim,
após a professora contar a história para as crianças, na sala de aula, a atividade foi orientada da
seguinte forma:
a) Solicitamos que as crianças recontassem a história oralmente para que pudéssemos
registrá-la.
b) Terminado o registro do reconto oral, perguntamos às crianças se se lembravam do
conteúdo que haviam verbalizado. Como não lembravam, lemos o texto e explicamos
que lembrávamos, porque registramos a história enquanto falavam.
c) Explicamos ainda que iriam escrever o texto produzido oralmente e recomendamos,
expressamente, que deveriam escrevê-lo de modo que pudessem, ao final do registro,
usar as grafias para recordar o conteúdo.
d) Diante da pergunta se “podiam escrever do jeito que sabiam”, orientamos para que
escrevessem do jeito que sabiam, mas sem se esquecer de que usariam os registros
para recordar o conteúdo.
e) Ao final da elaboração do registro pela criança, pedimos que lesse o texto.
Decidimos, nesse momento, expressar claramente, no início da atividade de registro, a
recomendação de que deveriam escrever com o objetivo de ler o que foi escrito. Dessa forma,
os objetivos da escrita atenderiam a uma finalidade imediata e isso poderia direcionar o modo
como as crianças escreviam. A análise das informações, obtidas durante a atividade, será
desenvolvida com base nas duas categorias elaboradas no item anterior. Estaremos nos
detendo mais intensamente na primeira categoria, pois acreditamos que, com base na análise
das atividades desenvolvidas pelas crianças que se relacionavam com a escrita para recordar o
conteúdo, poderemos elucidar a questão central deste estudo: como as crianças relacionam-se
134
com a escrita, durante a fase inicial de alfabetização, ao serem incentivadas a lembrar o texto
que motivou o registro.
2.1 A escrita é usada como recurso para a memória
Constatamos que dezessete crianças, ao serem incentivadas a lembrar o texto,
relacionavam-se com a escrita para recordá-lo. Desse modo, houve um aumento no número de
crianças, pois, durante o registro da brincadeira, doze crianças estabeleceram uma relação
funcional com a escrita. Destacaremos, durante esta análise, situações não abordadas
anteriormente e, também, situações que venham corroborar a análise que elaboramos no item
anterior.
Durante a realização da primeira atividade, constatamos que uma criança combinou a
pictografia e os símbolos alfabéticos para registrar o texto sobre a brincadeira e uma criança
atribuiu significados aos registros que não motivaram a escrita. Essas duas situações,
conforme mencionamos, não voltaram a ocorrer. A primeira criança foi incluída na segunda
categoria, porque, durante a atividade de reconto, não se relacionou com a escrita para
recordar o texto e a outra continuou incluída nesta categoria. Analisaremos as atividades das
duas crianças posteriormente.
A partir da análise das atividades desenvolvidas pelas crianças, verificamos que o tipo
de escrita usada e o modo como realizaram a atividade de registro foram variados. Assim, dez
crianças dominavam a escrita alfabética e sete usavam letras do alfabeto para registrar o texto,
mas não possuíam esse domínio. Verificamos ainda, durante o registro, que quatorze crianças
analisavam as unidades da linguagem oral no plano verbal e escreviam símbolos alfabéticos
correspondentes às unidades analisadas e três escreviam silenciosamente. Outro aspecto
observado, com mais freqüência, nessa etapa da pesquisa, foram as tentativas de as crianças
buscarem, durante o registro, utilizar o mesmo segmento de grafias para representar uma
mesma palavra. Porém, no momento em que eram incentivadas a se relacionar com a escrita
para lembrar o texto, isso nem sempre ajudou na recordação.
135
a) As crianças dominavam a escrita alfabética
Iniciaremos a análise mostrando a atividade desenvolvida por Alessandra. Na atividade
de registro da brincadeira, como vimos, interpretou apenas algumas palavras. Ela tinha sete
anos e quatro meses quando realizou a atividade de reconto. Vejamos a sua escrita.
136
A aluna possuía o domínio da escrita alfabética e, assim, compreendia que as unidades
da linguagem oral, representadas pelas letras, são os fonemas. Ela recontou a história
Chapeuzinho Vermelho, pois disse que não se lembrava da história contada pela professora.
Recontou toda a história sem problemas, pois a havia decorado. Porém, como veremos, esse
fato criou algumas situações interessantes ao tentar interpretar a escrita. Ao escrever, a criança
cometeu erros de grafia, tais como omissões de letras, uso indevido de letras por falta de
domínio das convenções que regem a escrita ortográfica, erros de segmentação, etc.
Entretanto, a falta de domínio da ortografia, diferentemente do que ocorreu na primeira
atividade, não impossibilitou a interpretação do texto. A atividade de registro foi iniciada da
seguinte maneira:
P.: O título da história é Chapeuzinho Vermelho.
Alessandra: Do jeito que eu sei?
137
P.: É. Do jeito que você sabe. Só lembra que você vai ter que prestar atenção no momento de
escrever, porque terá que se lembrar do que escreveu, lendo. Chapeuzinho
Vermelho.
Alessandra: (Escreve CHA PEUZIHO VERMELIO e fala durante o registro).
P.: Você pode escrever com letra de forma?
Alessandra: (Diz que sim com um movimento de cabeça).
P.: Quando estiver falando, na hora que você está escrevendo, pode falar em voz alta para eu
ouvir. Era uma vez uma menina que morava com a sua mãe.
Alessandra: (Registra ERA UMA MEMINA, apaga as sílabas MINA e registra as sílabas
NINA).
P. Que morava com a sua mãe.
Alessandra: (Registra e fala cada sílaba ao mesmo tempo, QUE MORAVA COM SUA MÃE).
Alessandra perguntou, no início da atividade, se poderia escrever do seu jeito. Não
sabemos porque fez a pergunta, pois já tem o domínio da escrita alfabética. Como ela falava
baixinho ao escrever, pedimos que falasse em voz alta. Com isso, percebemos que repetia cada
sílaba que deveria ser escrita. Interpretamos como repetição, porque a pronúncia da sílaba
ocorria simultaneamente ao registro. Nas situações que examinamos, no item anterior,
verificamos que a pronúncia de uma determinada unidade ocorria antes do registro, pois essa
era uma maneira de as crianças pensarem sobre as grafias correspondentes às unidades
pronunciadas. Acreditamos que Alessandra possuía mais segurança com relação às letras que
devia registrar e, por isso, a pronúncia das sílabas e o registro das grafias correspondentes
ocorriam simultaneamente.
Como dissemos, a interpretação que a aluna elaborou é interessante, porque conhecia
bem a história que recontou e isso acabava levando-a a antecipar o texto a partir da leitura de
uma palavra. Porém, os enunciados antecipados nem sempre correspondiam ao que realmente
estava registrado.
P.: Agora, leia o que você escreveu.
Alessandra: Chapeuzinho Vermelho (aponta o título da história).
1. Era uma vez uma menina que morava com a sua mãe (a leitura corresponde à escrita).
138
2. Todo mun (pára e começa novamente). Todo mundo chamava a menina de Chapeuzinho
Vermelho, porque ela tinha uma capa e um chapéu vermelho. (Até a palavra capa
lê apontando no texto. Antecipa e um chapéu vermelho. No texto está escrito
“tinha uma capa vermelha e um chapéu vermelho”).
P.: Onde você está lendo?
Alessandra: É aqui? (Aponta a frase seguinte sem se preocupar em retomar a leitura que
deixou de realizar). 3. Um dia a sua mãe fez deliciosos docinhos e falou: — Minha
(percebe que não é isso que está escrito. Está escrito e “falou para a sua filha”.
Então desconsidera a palavra “para” e continua a leitura). Sua filha vá levar esses
docinhos para a vovó. Só que toma muito cuidado. Não converse com estranhos. 4.
E f e fa an j e não converse com, com estranhos. E foi andando e cantando a
música. 5. Depois, ela encontrou o lobo um lobo e o lobo falou assim: — Aonde
vai, aonde você, meninha, vai com esta cesta. Vou levar esses docinhos para a
vovó. Então o lobo disse: — Não vai por este caminho, porque ele é mais longe. O
lobo foi pelo outro caminho que era mais perto, chamou na casa da vovó e comeu.
Então, vestiu a roupa da vovó e deitou na cama. Depois, Chapeuzinho Vermelho
chegou e falou:
— Vovó, pra que esse nariz tão grande?
6. — É pra te ver me (volta e lê novamente).
— Pra que esse nariz tão grande?
— É pra te cheirar melhor, minha netinha (desconsidera o que está escrito).
— Vovó, pra que esse nariz tão grande?
— Para te ouvir melhor. Vovó, pra que esse nariz tão grande?
— É pra te cheirar melhor.
— Vovó, pra que esse bocão tão grande?
— É pra te comer.
Depois, Chapeuzinho gritou e o caçador que estava passando salvou a
Chapeuzinho e a vovó.
Numeramos a interpretação que Alessandra elaborou da história para facilitar a análise.
Ela iniciou a leitura e se relacionou com escrita para elaborá-la (1). Em seguida, na frase
139
“Todo mundo chamava a menina de Chapeuzinho Vermelho porque ela tinha uma capa
vermelha e um chapéu vermelho” (2), omitiu a palavra “vermelha”. Desse modo, leu “uma
capa e um chapéu vermelho”. Nesse momento, ela deixou de apontar o texto e, por isso,
solicitamos que mostrasse onde estava lendo. Apontou a frase seguinte e continuou a leitura.
Observamos, também, que ao interpretar “Um dia sua mãe fez deliciosos docinhos e falou para
sua filha”, ela leu: “Um dia sua mãe fez deliciosos docinhos e falou: — Minha. Ao perceber
que a palavra “minha” não estava escrita, leu “sua filha vá levar esses docinhos para a vovó”,
numa tentativa de conciliação do texto enunciado com a escrita. Observamos ainda que as
palavras que foram escritas com letras que não correspondiam à sua escrita convencional
foram lidas. É o caso da frase “só que toma cuidado, não converse com estranhos”. Ela foi
escrita “soque tom ma quui ado i não com verci com estaios (a separação do segmento de
letras usada para representar a palavra cuidado - “quui dado” ocorreu, porque precisou mudar
de linha). Alessandra leu a palavra “não” apontando o segmento “ado” que completava a
palavra cuidado e deixou de ler o registro que correspondia à palavra “não” (3). Na frase “e foi
andando e cantando a música” (4), teve problemas, pois a forma como registrou as palavras
dificultou a leitura e, por isso, articulou alguns sons na tentativa de dar-lhes significados. Para
a frase: “e foi ndando e cantado a música”, articulou os sons [f], [ã] e não conseguiu ler. Então
parou por uns instantes, apontou a letra “e”, que vem após a palavra andando (ndando), e leu
“e não converse com”, mas apontou “cantado a musica”. Como percebeu que não era isso que
estava escrito, apontou a palavra “estranhos” da frase anterior e continuou a leitura “e foi
andando e cantando a música”, dessa vez fazendo corresponder adequadamente cada palavra
ao seu registro.
Observamos ainda que a aluna enunciava a história com fluência e entonação quando
não se detinha exclusivamente aos registros. No entanto, quando lia tomando por base a
escrita, a interpretação perdia essas características. Com isso, podemos dizer que a aluna
utilizava a escrita para orientar sua leitura, mas parte da atividade foi realizada sem contar com
o auxílio da escrita. Isso ocorreu, porque sabia o texto de memória. A escrita, no entanto,
exercia um controle sobre sua ação de modo a mantê-la submetida aos enunciados registrados,
impedindo a elaboração de uma leitura espontânea (sem ajuda da escrita) que ocorre quando
os alunos ainda não usam a escrita para ajudá-los a lembrar o texto. É interessante observar
que a criança elaborou registros para algumas palavras que não correspondiam à escrita
140
ortográfica, mas atribuiu significados a essas representações. Esse é um aspecto interessante
que focaremos neste item: as crianças que possuíam o domínio da escrita alfabética
elaboravam representações para as palavras que não conseguiam escrever ortograficamente e
atribuíam-lhes os mesmos significados que motivaram o registro.
A atividade realizada por Rodrigo também mostra que as crianças elaboravam
representações gráficas para determinadas palavras do texto que não correspondiam à sua
escrita ortográfica e atribuía, no momento da leitura, os mesmos significados para essas
grafias que motivaram o resgistro. Não apresentamos, no item anterior, a atividade realizada
por esse aluno. Por isso, é importante esclarecer que ele usou apenas a escrita de uma palavra
para recordar um dos enunciados do texto. Ele registrou a palavra “amigo” com os segmentos
“alico” e essa grafia, próxima da escrita ortográfica, ajudou-o a lembrar o seguinte enunciado
“um amigo vai contar”. O enunciado produzido oralmente e escrito pela criança havia sido
“um amigo fica contando”. O texto lembrado não foi exatamente o que motivou os registros,
mas tinha o mesmo sentido. Ele tinha sete anos e quatro meses de idade no momento em que
escreveu o reconto. Vejamos como elaborou o registro.
141
Como podemos verificar, a sua escrita pode ser lida, pois ele dominava a escrita
alfabética. Apenas para as palavras confundia (qefudia), travesseiro (mnaviceiro), deitador
(neitanor), sentador (cmetador) e prometeu (marmeteo) foram usados segmentos de grafias
que não expressavam os seus significados, mas isso não impossibilitou a interpretação. Ele
leu:
“Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo era um menino que confundia o nome das coisas. Ele falava que travesseiro era
deitador e a cadeira era sentador. Um dia, a casa do cachorro pegou fogo. Marcelo falou para seus pais,
mas não entenderam. Quando foro lá fora, a casa do cachorro já tinha desmoronado. O Marcelo, então,
pediu para o seu pai fazer uma casa nova para o cachorro. O pai, mar, é, prometeu fazer uma casinha
nova para o cachorro”.
Dessa forma, Rodrigo leu o texto. Ele interpretou as grafias que não expressavam os
significados das palavras anotadas. Provavelmente, se as palavras tivessem que ser lidas fora
do texto, a criança não conseguiria atribuir-lhes esses significados.
Analisaremos a atividade realizada por Taís. Ela tinha sete anos e sete meses de idade.
Usou a escrita alfabética, mas cometeu erros, devido à falta de domínio da escrita ortográfica.
No entanto, isso não impossibilitou a leitura, pois não lia palavra por palavra do texto.
Vejamos como registrou o reconto.
142
Como pode ser observado, a escrita da aluna é possível de ser interpretada. Na primeira
atividade (registro da brincadeira), verificamos que interpretou apenas uma palavra e esta
possibilitou a recordação de um enunciado do texto. Dessa forma, houve um avanço
importante na escrita. Podemos interpretar o título apesar da omissão da sílaba “me” na
palavra marmelo. Há omissões de letras em palavras como porque (poque), redonda (redoda),
quando (qado), prometeu (pomete), etc. A criança usou indevidamente as letras maiúsculas e
minúsculas e usou a letra “h” para representar o fonema [g], nas palavras perguntando
(pehutedo) e negócio (nehocio). Omitiu parte de um enunciado durante o registro, ou seja,
para a frase “o pai do Marcelo não entendia o que ele falava”, escreveu apenas “o pai do
Marcelo falava”. Algumas palavras registradas não podem ser interpretadas fora do texto, pois
escreveu para cachorro, o segmento carro, para embrasado, registrou “edubazado”, para
entende grafou “eadede”, para demais, escreveu apenas as letras “em”. Como veremos, no
entanto, a omissão de letras e sílabas na composição das palavras e de palavras no registro do
enunciado, assim como as representações usadas para algumas palavras que não
correspondiam à sua escrita ortográfica não dificultaram a realização da leitura.
Durante o registro do reconto produzido oralmente, Taís escreveu o título da história.
Em seguida, deveria escrever “o Marcelo era um menino que vivia perguntando por que as
coisas tinham um nome”, mas escreveu outro enunciado. Vejamos:
143
P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.
Taís: (Escreve Marcelo, marlo e martelo).
P.: O Marcelo era um menino que vivia perguntando por que as coisas tinham um nome.
Taís: (Escreve O Marcelo vivia pehutedo poque a bola era redoda ora Marcelo peque a bola
labos).
P.: O que você está escrevendo?
Taís: Lembra.
P.: Porque lembra um negócio redondo. Não foi isso que você falou para mim?
Taís: Foi (termina de registrar a frase).
Observamos ainda, durante o registro, que a aluna falava baixinho e, outras vezes,
escrevia silenciosamente. Quando percebemos que as crianças falavam dessa maneira durante
a escrita, passamos a incentivá-las a “falar em voz alta o que estavam falando ou pensando”.
Em alguns casos, isso foi importante para percebermos com maior clareza a função da
linguagem durante o registro. No caso de Taís, o fato de incentivá-la a pronunciar em voz alta
o que pronunciava baixinho possibilitou verificar que, para cada um dos enunciados,
pronunciava as palavras que deveriam ser escritas e, em seguida, grafava a palavra completa.
Vejamos:
P.: Um dia a casinha do cachorro queimou.
Taís: Um dia a ca (falava sussurrando).
P.: Pode pronunciar em voz alta.
Taís: Casinha (registra CASAHA), do (registra DO), cachorrinho (registra CARRO), queimou
(registra QUEIMO).
Dessa forma, a criança pronunciou cada palavra que deveria ser registrada. No
enunciado “o pai do Marcelo não entendia o que ele falava”, citado anteriormente, a menina
escreveu silenciosamente. Coincidentemente, no seu registro, omitiu palavras. Assim, a
linguagem, para Taís, pode ter a função de ajudá-la na organização da escrita, possibilitando
que não esquecesse de registrar palavras que compõem o enunciado que deveria ser escrito.
144
Como Taís se relacionou com a escrita para lembrar o texto? Para mostrarmos como a
aluna realizou essa atividade, reproduziremos a sua escrita e escreveremos em azul os
enunciados produzidos a partir da escrita.
Marcelo marmelo e martelo
1o MARCELO MARLO E MARTELO
O Marcelo vivia perguntando por que a bola era redonda
2o O MARCELO VIVIA PEHUTEDO POQUE A BOLA ERA REDODA
Ora Marcelo porque a bola lembra um negócio redondo
3o ORA MARCELO PEQUE A BOLA LABOS UM NEHOCIO REDODO
Um dia a casinha do cachorro queimou e o Marcelo falou que
4o UM DIA A CASAHA DO CARRO QUEMO E O MARCELO FALAFA QUE
Embrasou a casinha do Latildo O pai do Marcelo não entendia o que
5o UI EDUBAZADO A MORADA E LATIDO O PAI DO MARCELO
ele falava
6o FALAVA
Embrasou a o pai do Marcelo falava. Não! Quando ele foi ver
7o QADO PAI DO MARCELO FOI EADEDE JÁ
Era tarde demais O pai do Marcelo
8o ERA TADE EM O PAI DO MARCELO
Prometeu que falava uma casinha azul para o Latildo
9o POMETE FAZE UM CASAHA AZUL PARA O LATI
145
A interpretação apresentada por Taís da escrita elaborada mostra que usou a escrita
para lembrar o texto. Tendo em vista que escreveu grafias inexpressivas para algumas
palavras, acreditamos que, se a criança fosse analisar cada palavra escrita, não realizaria a
leitura. Assim, leu as grafias “labos, casaha, em” dando-lhes significados que foram atribuídos
durante o registro. Leu inclusive as palavras da frase “o pai do Marcelo não entendia o que ele
falava” que foram omitidas sem apontar nenhuma grafia. É interessante observar que, se
compararmos as atividades realizadas por essas crianças com a atividade realizada pela
Natália, ao ser incentivada a se relacionar com a escrita para lembrar o texto, verificamos que
houve uma inversão. No caso de Natália, a leitura de uma palavra foi suficiente para lembrar o
texto. Nas situações que estão sendo analisadas, as crianças interpretam a maioria das palavras
e, por isso, não é difícil atribuir significados às grafias inexpressivas.
As atividades analisadas mostram que as crianças que tinham o domínio da escrita
alfabética elaboravam representações para palavras cuja escrita não dominavam. Essas
representações não expressavam os significados das palavras; entretanto as crianças atribuíam-
lhes os significados, durante a leitura, que foram dados durante o registro. Além disso, não
podemos deixar de considerar que a interpretação é feita tomando por base, também, o
conhecimento que as crianças tinham do texto e isso, certamente, auxiliou a lembrança de
grafias inexpressivas.
Analisamos, no item anterior, a atividade realizada por Hugo e verificamos que ele se
relacionou com os registros para recordar os enunciados do texto. Ele não utilizava a escrita
alfabética, mas a representação de quantidades por meio de numerais e o uso de um mesmo
segmento de grafias para representar as palavras “senhoras e senhores”, por duas vezes,
possibilitou a recordação do texto. Observemos a escrita elaborada pelo aluno para registrar o
reconto. Ele tinha sete anos e três meses de idade.
146
147
Podemos observar que, assim como Taís, a escrita de Hugo está mais legível. É
possível interpretar grande parte do que foi escrito. No entanto, há grafias que não expressam
os significados das palavras que desejou escrever. Ele escreveu, por exemplo, para a palavra
inventando as grafias “faferte”, para a palavra coisas grafou “concas”, para a palavra falou
escreveu “fanou”, para suco, escreveu “cuço”, etc. Essas formas de registro demonstram as
tentativas de compreensão da escrita ortográfica, mas, no caso de Hugo, dificultaram a
interpretação do texto. Hugo compreendeu a natureza alfabética da escrita, mas tem dúvidas
quanto às letras que devem ser usadas para representar os fonemas e vice-versa. Isso,
diferentemente do que aconteceu com as crianças que realizaram as atividades anteriormente
analisadas, se tornou um empecilho para realização da leitura.
Hugo não registrou o título da história. Ele começou a grafar o texto pelo primeiro
enunciado. Vejamos:
P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.
Hugo: (Registra MARCÉLO ERA UN MININO).
P.: Espere. Você está escrevendo o quê?
Hugo: Marcelo era um me (acerta a letra “I” e escreve a letra “E”). Menino
P.: Que vivia fazendo perguntas.
A linguagem estava presente durante a escrita do texto. Observamos que tinha a função
de ajudá-lo na elaboração das grafias. Constatamos ainda, por meio da análise das unidades da
linguagem oral, que havia uma regularidade nas correspondências que estabelecia entre
unidades sonoras e grafias: usou uma letra para representar os fonemas que compunham as
148
sílabas pronunciadas. Algumas vezes, repetia a sílaba para ouvir o fonema e representá-lo. Na
primeira vez, registrava a consoante correspondente à unidade pronunciada e, na segunda,
grafava a vogal. Vejamos:
P.: Ele começou falando.
Hugo: E (registra a letra “E”), le (registra a sílaba “LE”), co (registra as sílabas “COME”),
meçou, çou (registra a sílaba “CO”), o (registra a letra “U”).
P.: Falando e inventando nome para as coisas.
Hugo: Fa (registra a sílaba “FA”), falan (registra a sílaba “FER”), du, tu (registra a sílaba
“TU”), nome (registra a sílaba “MO”), nome, me (registra a sílaba “ME”), nome, para,
pa (registra a sílaba “PRA”, apaga e registra as letras “ARA” e registra a letra “A”), as
(volta e escreve a letra “S”), coi, coi (registra o segmento de letras “CONCAS”).
P.: Ele falou para o pai para catar o mexedorzinho.
Hugo: E (escreve a letra “E”), le (escreve a sílaba “LE”) fa (registra a letra “F”), fa (registra a
letra “A”), lou, lou (registra a sílaba “LOU”), pa (registra a sílaba “PA”), ra (registra a
sílaba “RA”), ca (registra a letra “K”), ca (registra a letra “A”), tar (registra a letra “T”),
tar (registra a letras “AR”), catar o (registra a letra “U”), me, me, me (registra a sílaba
“ME”), xe (registra a sílaba “GE”), xer (registra a letra “R”), do, do (registra a sílaba
“DO”), zinho (registra a letra “Z”).
Dessa forma, ficou evidenciado que Hugo, em algumas situações, repetia por duas
vezes a sílaba na tentativa de encontrar os grafemas adequados para registrar os fonemas. O
modo como a criança realizou a atividade diferiu do modo como Taís a realizou. Ela repetia as
palavras do texto que devia ser escrito, demonstrando conhecer as letras adequadas para
compor as palavras. Hugo, no entanto, teve que realizar cuidadosamente a análise, no plano
verbal, para encontrar os grafemas correspondentes aos fonemas. É claro que nem sempre
conseguiu encontrar a letra adequada, mas é visível o seu trabalho nesse sentido.
No começo da interpretação das grafias, Hugo ficou atrapalhado, pois lembrou um
texto que não foi confirmado pelo registro. Vejamos como apontou a escrita.
149
Marcelo era um menino que
1o MARCELO ERA UN MENINO QUE
Vivia fazendo, facentu per, nome, para
2o VIVIA FACENTU PRECURTAR ELE
Hugo iniciou a leitura de forma correta. Leu a palavra fazendo, mas repetiu acentuando
o modo como a palavra havia sido escrita: “facentu”. Continuou dizendo “facentu per”, mas o
fato de estar escrita a palavra “precunta” o fez duvidar da interpretação que elaborava. Tentou
outras duas palavras (“nome e para”), mas, também, essas palavras não correspondiam às
grafias e, por isso, retomou a leitura no início do texto. Leu silenciosamente e apontando o que
estava lendo. Começou a ler novamente em voz alta, mas deixou de apontar três registros
(“ele, comecou, e fafertu”) para dar continuidade ao texto: “Marcelo era um menino que vivia
nome para coisas”. Vejamos:
Nome para as
3o COMECOU FAFERTU MONE PARA AS
Assim, Hugo deixou de apontar três registros. A criança se relacionava com a escrita
para ler o texto, mas, quando não conseguia interpretá-la deixava de apontá-la para dar
continuidade aos enunciados. Na escrita que se segue, continuou a apontar as grafias para as
palavras lidas.
Coisas ele falou parra, para ca,ca, tar,tar um
4o CONCAS ELE FALORU PARA KATAR U
Mexedorzinho. O pai falou o
5o MEGERDONZNAO O PAI FANOU O
Que é isto? Mexedorzinho di
6o QUE É ISTU MERGEDORZINAO DI
150
Café. Mamãe me dá o
7o MEGEKAFÉ MEMÉ MIDAR O
Suco de vaca. Mar, ma, a casinha
8o CUÇO DE VACA NA CAZINAN
Do latildo cho, foi embra sada
9o DO CACAHORICHO CHO KARO UMA
Como pode ser visto na escrita acima, Hugo apontou as grafias para as palavras
enunciadas até o sétimo segmento de letras. As grafias que não expressavam os significados
das palavras foram lidas. No oitavo segmento, para a sílaba “na” leu, “mar”. Ele pareceu
querer ler Marcelo, mas o registro o fez mudar o enunciado que pretendeu elaborar. Como
mudou o sentido que iria atribuir às grafias, continuou a leitura do texto, apontando palavras
que não correspondiam às palavras enunciadas. Ele havia escrito, “na casinha do cachorrinho
jogaram uma brasa de cigarro”, mas enunciou “a casinha do Latildo cho, foi embrasada”. Por
isso, teve que deixar de apontar o décimo segmento. Continuou a atividade, mas teve que
repetir o que havia lido anteriormente, pois as grafias que correspondiam aos enunciados lidos
foram escritos no décimo primeiro segmento de grafias. Vejamos:
10o BARZA DE CIHRO PAPAI AKAZI
A casinha do Latildo foi embrasada
11o NA DO LATIDO FOI IR BARZA
Assim, a criança teve que repetir o enunciado, porque as palavras escritas “Latido, foi
ir bazada” assinalavam para o enunciado “a casinha do Latildo foi embrasada”. Ele prosseguiu
a atividade e, desta vez, não conseguiu expressar enunciados com sentido.
151
O pai dele falou o que que i
12o O PEORU FORHO AHRA QUE I
Soquanto os
13o S PAZ DO MARCELO GEKA
Pais do
14o RO FORIMIRTO TARTE CE COS
Mar, Marcelo era tarde
15o IZA IQU FIOQUOU BERPAR
Hugo enunciou o texto com base na memória, sem o auxílio da escrita, mas apontava
algumas grafias expressivas. Como as grafias não completavam o texto lembrado, produziu
enunciados sem sentido.
Tar, a já que a casinha
16o PAPAI GA QUE AKAZINAN
Do Latildo foi embrasada
17o DU LALIUTO FOIS BARZTA
Você faz outra casinha do Latildo
18o VOCE FATIS OS CINADOLAITIU
19o DO O PAI TRO MTEU FAZSI
Faço uma azul
20o ORARA CASA AZU
152
A interpretação que Hugo realizou mostra que se relacionou com o texto escrito para
realizar a leitura, mas, também, rememorou os enunciados do texto, quando não podia
interpretar as grafias. A escrita direcionou, em alguns momentos, a atividade, fazendo-o rever
o enunciado rememorado e possibilitando a lembrança dos enunciados anotados. O texto
lembrado, também, direcionava o modo como apontava as grafias. Essa forma de realização da
atividade possibilitou, para algumas partes do texto, a produção de enunciados fragmentados e
sem sentido. No entanto, no início da leitura, observamos que algumas grafias que não
expressavam os significados das palavras anotadas foram lidas.
Analisaremos ainda a atividade desenvolvida por Natália. Mostramos, no item anterior,
como Natália realizou a atividade de registro da brincadeira. Ela recitava as famílias silábicas
como recurso para lembrar as letras correspondentes às sílabas que deveria escrever. Vejamos,
então, o registro do reconto. Ela tinha sete anos e sete meses na época em que escreveu o texto
a seguir.
153
Marcelo, marmelo, martelo
O Marcelo estava brincando de bola com o pai.
Então, o Marcelo falou assim: — Por que bola se chama
bola? — Porque ela é redonda. Um dia, a casa
do Latildo pegou fogo. — Pai, venha ver
o que aconteceu na casa do Latildo. A mãe
falou que iria fazer uma casinha no
va para o Latildo, pintada de azul.
Como pode ser observado, há palavras e frases, no texto, que podem ser lidas. O fato
de a aluna escrever demarcando com maior precisão os espaços entre as palavras é um avanço
e facilitou a interpretação das grafias. Na escrita analisada, no item anterior, a aluna
preocupava-se em colocar tais separações, mas não o fazia com a mesma freqüência que na
escrita acima. A omissão de letras e sílabas no registro das palavras ainda é uma característica
da sua escrita. Notamos também que escrever, para Natália, continuava a ser uma tarefa difícil.
A parte do processo de registro do reconto, que será descrita, mostrará como a aluna escreveu
154
o texto. Lembramos que cada uma das atividades realizadas pela aluna, durou em torno de
uma hora e trinta minutos. Isso demonstra o quanto escrever era uma atividade difícil e
demorada para ela.
P.: Marcelo estava brincando de bola com o pai [...].
Natália: Pode escrever isso aqui? (Aponta onde está escrito MASEO).
P.: Pode. Você vai escrever Marcelo estava brincando.
Natália: (Copia o segmento de letras que usou para escrever Marcelo) Marcelo i (registra a
letra I). Separado?
P.: É.
Natália: Esta (começa o registro da sílaba “ta” separando-a da letra I).
P.: Agora, não é separado. É separado o “estava” do “Marcelo”.
Natália: Ta, ta (registra a sílaba TA). Agora, é só essas três palavrinhas?
P.: Não, olha o que você escreveu, leia o que você escreveu.
Natália: Ta.
P.: O que está faltando na palavra estava?
Natália: Ta, ta.
P.: O “ta” você já escreveu.
Natália: Va, va. É o va (registra a sílaba “VA”).
P.: Brincando.
Natália: Brin, ba, be, brin, é o BI, separado, né? (registra as letras “BI”). Can, can, ca, que, qui,
é o “CA” e o “O” (registra as letras “CO”). Agora qual letra que é mesmo?
P.: O que foi que você escreveu? Brincan...
Natália: Do, o. Já tem o “O” aqui (aponta a letra anterior). Ih! Marcelo estava brincando com o
pai.
P.: Brincando de bola com o pai.
Natália: Brincando de (registra a palavra “bola”) pai.
P.: Com o pai.
Natália: É o “P” e o “O”.
P.: Com.
Natália: Com, com, com. Eu acho que é o “P” e o “O”.
155
P.: Então, põe o “P” e o “O”.
Natália: Separado?
P.: Separado.
Natália: (Registra as sílabas PO).
P.: O pai.
Natália: Pa, separado, né?
P.: É.
Natália: Pa (registra a palavra pai).
P.: Então, Marcelo falou assim.
Natália: In, i. Essa letra aqui? (aponta a letra I que usou para escrever a palavra estava).
P.: Aí você escreveu estava. Agora, você vai escrever: então, Marcelo falou assim.
Natália: Então, então, ta, te, ti. É o “T” e o “O”.
P.: O “T” e o “O” tem na palavra então [...].
Natália: Então, tão, ta, te, ti. É o “T” e “O” (registra ITO).
Como constatamos no item anterior, a aluna utilizou dois tipos de linguagem durante o
registro: comunicativa e egocêntrica. Uma tinha por objetivo estabelecer comunicação com a
pesquisadora para esclarecimentos de dúvidas e, portanto, receber confirmação sobre as letras
que deveriam ser usadas para grafar uma determinada palavra e sobre onde deveriam ser
colocados os espaços entre as palavras. Esse tipo de linguagem era pouco freqüente durante as
atividades realizadas pelos outros alunos. O segundo tipo de linguagem era usado como
recurso para lembrar as letras que deveriam ser usadas para grafar as sílabas. Assim, o
primeiro tipo de linguagem estava direcionado para um interlocutor e o segundo para o próprio
sujeito. Contudo, ambos estavam orientados para a descoberta de quais letras eram adequadas
para registrar uma determinada sílaba.
A maneira como Natália se relacionou com a escrita para lembrar o texto é muito
interessante. Como na atividade de registro da brincadeira, ao ser incentivada a ler o texto,
interpretava algumas palavras e enunciava o texto a partir dessa palavra. Ela leu o título da
história “Marcelo, marmelo, martelo” e apontou os segmentos de letras “Maseo mameo
mateo”. Em seguida, continuou lendo “Marcelo tava brincando”. Para tal, apontou “Maseo
itava”. Para o último segmento (itava), correspondeu às palavras “tava brincando”. Falou duas
156
vezes as palavras “tava brincando” e tentou ler o segmento seguinte “bico” correspondente à
palavra “brincando”. Como não conseguiu, perguntou: “o que é aqui mesmo?”. Então,
pedimos que começasse novamente a leitura. Leu “Marcelo estava brincando de bola”. Ela leu
apontando corretamente os segmentos e, como interpretou a palavra “bola”, leu a preposição
“de” juntamente com o segmento que correspondia à palavra “brincando”, porque foi omitida
no registro. Em seguida, apontou o segmento “ito” e enunciou “Marcelo falou por que bola
chama bola?”. Perguntamos onde estava lendo e, assim, ela passou para os segmentos de
grafias da linha seguinte que começava pela palavra “bola” e leu “pai, por que bola se chama
bola?”. Dessa forma, a leitura da palavra bola provocou a lembrança do conteúdo enunciado.
Depois, continuou a atividade sem apontar a escrita e disse: “porque ela é redonda”.
Demonstrou estar cansada e incomodada com a atividade e, por isso, perguntou:
Natália: Onde ditou mais? Aqui? (apontou a quarta linha com os registros). Espera aí. Aqui,
né? (apontou novamente a quarta linha de registros). Do Latildo. Papai, papai.
P.: Lê o que está escrito.
Natália: Eu tô tentando lê.
P.: Então aponta onde você está lendo.
Natália: Latildo (aponta Latido). Como é mesmo?
P.: Leia.
Natália: (Fica parada). Pe (leu onde estava escrita a sílaba pe), go (leu onde estava escrita a
sílaba go).
P.: Que palavra formou?
Natália: (Não é possível entender o que foi dito).
P.: Pegou.
Natália: Pegou. Pegou o quê?
P.: O que está escrito? É a escrita que vai te ajudar a lembrar.
Natália: (Fica observando os registros, passa o lápis várias vezes sobre a palavra fogo). Papai
vem ver o fogo. (Pára novamente e não consegue ler os segmentos VEGA VEGA).
P.: Continua lendo, Natália.
Natália: Pera aí. Ca, que, que, eu quero (leu onde grafou a palavra “que”).
P.: Aconteceu (lê para ajudar na lembrança).
157
Natália: Aconteceu a casa (aponta a palavra casa que foi registrada) do Latido pegou fogo
(para os segmentos AMÃE FALO). E que estava queimando a casa (termina a leitura
na palavra casa). Va, pa, Latildo (pula a penúltima linha de registros).
A menina não conseguiu concluir a atividade. Ela leu algumas palavras, mas não
conseguiu elaborar um texto com sentido, pois queria realizar a atividade a partir da leitura de
algumas palavras. Assim, observamos que algumas palavras possibilitaram a lembrança do
texto registrado ou de outro com o mesmo sentido. É o caso das palavras “fogo e casa”, no
final da leitura. Com base nessas palavras, lembrou o enunciado “papai vem ver o fogo”. No
entanto, o enunciado que motivou o registro foi “um dia, a casa do Latildo pegou fogo. —
Papai, venha ver o que aconteceu na casa do Latildo”. Além disso, ao decifrar a palavra pegou,
perguntou “pegou o quê?”. Podemos dizer que essa palavra não remeteu a nenhum significado
anotado e, por isso, fez a pergunta.
Analisaremos a atividade realizada por Nicole. Na realização da atividade de registro
da brincadeira, observamos elementos na escrita da aluna que possibilitavam a leitura de um
enunciado do texto mas, no entanto, a aluna se deteve à escrita e, por isso, apenas decodificou
algumas letras. Vejamos a escrita do reconto, porque isso voltou a ocorrer.
158
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo era um menino. Ele falou para a mãe: — Mãe, por que eu não posso chamar martelo?
— Filhinho, porque é nome de ferramenta.
— Mamãe, por que eu não posso chamar marmelo?
— Ah, filhinho! É nome de fruta.
A aluna usou a mesma representação para a palavra Marcelo em dois contextos.
Podemos ler palavras e duas frases independentemente das omissões de letras. Observamos
ainda que foram usadas representações que não expressam os significados das palavras
registradas: “faparami, mepo, movoposoxa”. Vejamos como aconteceu o registro do reconto.
P.: O registro do reconto é Marcelo, marmelo, martelo.
Nicole: Registra MARCLO MATELO MATELE.
P.: Terminou?
Nicole: (Confirma).
P.: Marcelo era um menino.
Nicole: (Registra MASE É RAUMINIO e fala enquanto escreve).
P.: Muito bem! Talvez se você falar mais alto te ajude a escrever melhor. Ele falou para a mãe.
Nicole: (Registra ELE FAPARAMI e continua falando).
P.: Mãe, por que eu não posso chamar Marcelo?
Nicole: (Registra MEPO MÃE MRCLO).
P.: Filhinho, porque é nome de ferramenta [...].
Nicole: (Registra FILIO POQUE É NOME DE FERAMETA).
P.: Mamãe por que eu não posso chamar marmelo?
Nicole: (Registra MAMÃE POQUE E MOVOPOSOXA MAMELO e fala).
P.: Ah! filhinho, porque é nome de fruta.
Nicole: (Registra A FILIPOQUE É NOME DE FUTA).
A criança falava baixinho durante o registro. Por isso, incentivamos a falar mais alto,
mas continuou falando da mesma forma. A sua escrita mostra que representava as sílabas
usando uma letra e, também, usava letras para representar os fonemas. A segunda forma de
159
representação foi a mais freqüente. Vejamos, então, como se relacionou com a escrita para
lembrar o texto:
Marcelo, marmelo, martelo
1o MARCLO MATELO MATELE
Marce e ra um menino ele faparami mepo mãe
2o MASE É RAUMINIO ELE FAPARAMI MEPO MÃE MRCLO
3o FILI POQUE É NOME DE FERAMETA
Mamãe, por que é movoposoxa marmelo
4o MAMÃE POQUE E MOVOPOSOXA MAMELO
Ah, filhinho! Porque é nome de fruta.
5o A FILIO POQUE É NOME DE FUTA
Nos segundo e quarto segmentos, a aluna decodificou grafias que não expressavam os
significados das palavras anotadas. Deixou de ler a palavra Marcelo e a frase “filhinho, porque
é nome de ferramenta”. Por isso, leu apenas o título e as frases “Marcelo era um menino” e
“Ah! Filhinho, porque é nome de fruta”. É interessante observar que a maioria das crianças, no
momento em que eram incentivadas a se relacionar com a escrita para lembrar o texto
registrado, atribuía significados às grafias inexpressivas. Contudo, o mesmo não ocorreu com
Nicole. Ela decodificou as grafias inexpressivas, produzindo sons sem significados.
As atividades analisadas mostram que as crianças que dominavam a escrita alfabética
se relacionavam com os registros para lembrar o texto. Essas análises, no entanto, trazem
alguns elementos interessantes, observados quando as crianças eram incentivadas a ler o texto:
a) as grafias inexpressivas, escritas para representar as palavras do texto, eram interpretadas e,
desse modo, as crianças atribuíam a elas os mesmos significados que motivaram o registro; b)
as grafias não possibilitavam a interpretação da palavra registrada e, por isso, desencadeavam
uma leitura espontânea, baseada na memória, mas, como a criança tentava também interpretar
160
as grafias expressivas, os enunciados produzidos, para algumas partes do texto, eram sem
sentido; c) as grafias inexpressivas eram decodificadas, ou seja, a criança produzia símbolos
sonoros para os símbolos visuais; d) por fim, observamos ainda que os enunciados eram
elaborados a partir da leitura de uma palavra.
b) As crianças não dominavam a escrita alfabética
Passaremos à análise da atividade realizada por Luís Carlos. Ele ainda não dominava
completamente a escrita alfabética, mas podemos ler algumas palavras no texto. Lembramos
que essa criança, na atividade de registro da brincadeira, utilizou apenas algumas letras
constituintes do nome de um colega da classe para enunciar uma frase do texto. Além disso, as
letras mais usadas para escrever o texto foram as letras que compunham o seu próprio nome.
Vejamos o registro do reconto. Luis Carlos tinha sete anos e seis meses de idade.
161
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo era um menino comum. Ele vivia perguntando as coisas para a mãe, o pai e a avó. — Por que
eu me chamo Marcelo? — Porque eu e seu pai escolhemos.
Depois, Marcelo falou assim: — Por que não colocaram o meu nome de martelo? A mãe falou que
martelo é nome de ferramenta. — Por que não colocaram meu nome de marmelo?
Um dia, Marcelo e o pai estavam jogando futebol. — Por que
bola se chama bola? Perguntou Marcelo. — Porque
ela é redonda. Aí Marcelo perguntou:
— E o bolo? — Ele lembra uma coisa redonda.
Marcelo responde: — Essa não! Mamãe vive fazendo bolo quadrado.
162
É evidente que houve mudanças na sua escrita. Algumas palavras, como “marmelo,
falou, ela e não”, podem ser interpretadas e há uma variedade de letras usadas para compor as
palavras. Os espaços entre as palavras também podem ser observados. Luís Carlos registrou o
reconto silenciosamente. Constatamos, durante o registro, que usou os mesmos segmentos
gráficos para representar as palavras “Marcelo, marmelo e martelo”. Dessa forma, a palavra
Marcelo foi representada com as letras “mafegh”, a palavra martelo com as letras “mamelo” e
a palavra marmelo com as letras “moravld”. Como copiou as grafias das palavras do título,
usou, no texto, as grafias da palavra “marmelo” para representar “martelo” e vice-versa. A
criança ainda registrou o numeral 1 para representar o artigo na frase “um dia, Marcelo e o pai
estavam jogando futebol”. Vejamos se as características observadas na escrita ajudaram a
criança a interpretar as grafias. Ele apontou adequadamente as grafias que correspondiam ao
título da história que foi recontada.
Marcelo era um me nino comum
1o MAFEGH É COMOE É VOPQZ MEMOLDE VO MLORO
Ele perguntava as coisas para o pai
2o E SO Q E MIOLO MAFEGH É MEMOLOE DE Ó
3o MAFEGH FALOASI FOQ MAMELO A MLOROF DE FER
E para a mãe de pois
4o A COTA QVCOAR DE MORAVLO E TA TAH
Marcelo falou para
Um dia
Marcelo Um dia Marcelo tava jogando
5o E DE MAEGH 1 TIA MAEGH I O MEMOLO
163
Bola Ele (não!)
O Marcelo falou para o pai
Falou por que a bola
6o BALA QTQ A BALA E BARTAI QTQ ELA BA
7o COAGHIJ BARTAI AI MAFEGH TOEQTA
Por que a bola se chama bola. Depois ele falou se lembra uma coisa redonda
8o IO BOLGH E LIGHGJAJ É NAO MAEVO
9o VIFAHG RAHGO BOLOAGLO
Assim, leu a palavra “Marcelo” para as grafias que haviam sido usadas para representar
a mesma palavra no título. Para a primeira letra “e”, registrada, correspondeu a palavra “era”
que começa com essa letra. Para a segunda letra “e” correspondeu a sílaba “me” da palavra
“menino” que possui essa letra. Dessa forma, ele apontava as unidades menores na escrita,
como as letras e sílabas, e estas ajudavam a confirmar o texto que estava sendo elaborado. Ao
apontar o terceiro segmento, primeiro enunciou “Marcelo falou para”. A palavra Marcelo
correspondeu ao registro semelhante ao do título. Quando observou o numeral 1, voltou ao
início das grafias e enunciou: “um dia”. Leu, mais uma vez, começando pelo numeral 1, usado
para representar o artigo, e disse: “um dia Marcelo tava jogando bola”. Para a última palavra
(bola), apontou a palavra “bala”, grafada na linha seguinte. Nesse caso, o elemento que
propiciou a lembrança foi, inicialmente, o registro do numeral 1 e, em seguida, as
representações usadas para as palavras Marcelo e bola. No oitavo segmento, percebemos que
leu, também, para as grafias “bolgh” a palavra “bola”. O fato de a criança ter representado as
palavras “marmelo e martelo” com o mesmo segmento de letras, em outras partes do texto,
não possibilitou a leitura dessas palavras. No entanto, mesmo que as representações usadas
para essas palavras não tenham contribuído para a lembrança, mostrou que Luís Carlos
compreendeu que uma mesma palavra deve ser grafada com as mesmas letras.
Analisaremos, também, a atividade realizada por José Carlos. Durante o registro da
brincadeira, leu palavras que não foram registradas, mas, como mostramos, a leitura elaborada
164
era possível, tendo em vista o modo como organizou as grafias. Ele tinha oito anos e onze
meses de idade e registrou o reconto da seguinte forma:
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo era um menino interessado em colocar nome nas coisas.
Ele perguntava para as pessoas,
por que mesa chama mesa
e queria mudar o nome das coisas.
Um dia, a casa do Latildo embrasou.
Marcelo ficou triste,
mas o pai e a mãe prometeram fazer uma casinha marrom para o cachorro.
Há mudanças na escrita de José Carlos. Ele utilizou um número maior de letras para
escrever o texto. O numeral 1 e a palavra casa, registrada convencionalmente, podem ser lidos.
A criança falava, durante o registro. Vejamos uma parte do registro.
P.: Ele perguntava para as pessoas.
165
José Carlos: Ele (registra a letra E), perguntava (registra a letra T), para (registra as letras AP),
as (registra a letra A), pessoas (registra as letras ASA).
P.: Por que a mesa se chama mesa?
José Carlos: Por que (registra as letras UA) a mesa chama (registra a letra A), me (registra a
letra M), sa (registra a letra S).
Assim, as unidades da linguagem oral analisadas, no plano verbal, para composição
das grafias e a quantidade de letras usadas para grafar as unidades não tinham uma
regularidade. Para a palavra perguntava, registrou apenas a letra “t”; para pessoas, usou três
letras, conforme a quantidade de sílabas; para a sílaba “me”, da palavra mesa, registrou a letra
“m”. No entanto, verificamos que a criança começou a registrar algumas letras pertencentes à
sílaba, como no caso da palavra mesa. Vejamos, então como leu as grafias registradas:
José Carlos: Marcelo marmelo e martelo (apontou onde havia escrito o título).
P.: Como você sabe onde está escrito Marcelo, marmelo e martelo?
José Carlos: Porque tá escrito Marcelo (aponta a letra M, no primeiro segmento de grafias).
P.: Como você sabe que é aqui que está escrito Marcelo?
José Carlos: (Aponta a última letra M do segmento de grafias). Eu escrevi aqui martelo.
P.: Como você sabe o que está escrito aí?
José Carlos: Porque é quase igual ao nome do menino.
As perguntas que fizemos, após a leitura do título, foram em função da forma como
apontou cada palavra lida. Ele indicou apenas a letra “M” que começava cada um dos
segmentos de grafias usadas para escrever as palavras “Marcelo, marmelo e martelo”. Com a
sua resposta, verificamos que sabia que as três palavras começavam com a letra “m” e, com
essa letra, marcou o início de cada uma delas. Em seguida, enunciou o seguinte texto: O
Marcelo era um menino muito interessado. Ele falava para os outros: por que a mesa chama
mesa? Aí, o pai dele falou: a mesa vem do latildo. Ele falou assim: o que é latildo? A boca do
cachorro? Aí ele falou assim. Um dia a casa do Latildo embrasou. O Marcelo ficou triste e o
pai seu e a sua mãe falou, prometeram, fazer outra bem amarronzinha para ele”.
166
Verificamos que, no momento em que enunciou “aí, falou assim”, José Carlos deparou
com os registros do numeral “1” e da palavra “casa”, reconhecidos por ele e, por isso, disse
exatamente o enunciado que motivou o registro “um dia a casa do Latildo embrasou”. Desse
modo, podemos dizer que as grafias possibilitavam a lembrança dos significados registrados,
inibiram a construção de um texto, baseado unicamente na memória e conduziram ao
enunciado que motivou o registro.
Mostraremos as atividades realizadas por mais três crianças que, durante a realização
do registro da brincadeira, não se relacionavam com as grafias para recordar o texto que
motivou a escrita, mas que, na atividade de reconto, passaram a se relacionar para tal
finalidade. Iniciaremos pela atividade realizada por Vanessa. Observemos a sua escrita. Ela
tinha sete anos e dois meses de idade.
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo vivia perguntando as coisas para as pessoas.
— Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?
167
— Porque eu e seu pai escolhemos esse nome.
— Por que não colocaram martelo?
Por que não colocaram marmelo?
— Porque marmelo é nome de fruta
e martelo é nome de ferramenta.
É possível observar que ela usou as mesmas letras para representar a palavra Marcelo
em dois contextos. Porém, isso não ocorreu com as palavras marmelo e martelo. Para as
palavras “por que” registrou as letras “o” e “q”, em quatro contextos. Com base na escrita, é
possível constatar que estabeleceu correspondência entre letras e sílabas. Usou apenas as
consoantes “m, c, p, q, t” e as vogais para escrever o texto. Vanessa iniciou o registro do
reconto da seguinte forma.
P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.
Vanessa: Mar (registra a letra “M”), ce (registra as letra “COA”). Agora, mar (registra a letra
“M”), me, me (registra a letra “E”), lo (registra a letra “O”). Não é. Faz esquecer . É
martelo (apaga as letras que usou para registrar a palavra marmelo).
P.: É marmelo primeiro.
Vanessa: Mar (registra a letra “M”), me (registra a letra “E”), lo (registra a letra “O”).
P.: Agora é martelo.
Vanessa: Mar (registra a letra “M”), te, te (registra a letra “A”), lo (registra a letra “O”).
P.: [...] Marcelo vivia perguntando as coisas para as pessoas.
Vanessa: Aqui? (Aponta onde havia escrito o título).
P.: Não, na outra linha.
Vanessa: Mar (registra a letra “M”), ce (registra as letras “CA”), lo ve (registra a letra “V”,
volta e registra a letra “O”), vi (registra a letra “I”), pre (registra a letra “E”), go
(registra a letra “O”), tan, tan (registra a letra “L”), preguntando o que mesmo?
P.: As coisas para as pessoas.
Vanessa: A (registra a letra “A”), co (registra a letra “A”), para pe (registra a letra “P”), so
(registra a letra “O”), a (registra a letra “A”).
P.: [...] Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?
168
Vanessa: Ma (registra a letra “E”) po (registra a letra “O”), que (registra a letra “Q”), eu
(registra a letra “U”), me (registra a letra “I”), cha, cha, mar (registra a letra “M”), ce
(registra as letras “CA”), lo (registra a letra “C”).
O exame da linguagem que ocorreu, durante o registro, mostra que a aluna elaborou a
análise das unidades da linguagem oral no plano verbal e escreveu letras correspondentes às
unidades analisadas. Havia uma regularidade na unidade analisada, pois ela destacava a sílaba
e, na maioria das vezes, representava a sílaba por meio de uma letra. Quando escreveu o título,
apagou as letras que usou para escrever a palavra “marmelo”, após afirmar que as letras não
eram aquelas e que faziam esquecer. Dessa forma, a aluna estava atenta à necessidade de
escrever de uma maneira que possibilitasse a recordação. A nossa intervenção, afirmando que
a palavra “marmelo” deveria ser escrita, fez com que aluna registrasse as mesmas letras que
foram apagadas. Ao escrever a palavra Marcelo, na primeira frase, “Marcelo vivia
perguntando as coisas para as pessoas”, registrou primeiro as letras “mca”. Percebeu que a
palavra não estava escrita da mesma forma que no título e, por isso, voltou ao registro e
acrescentou a letra “o”. Dessa forma, a palavra foi composta com as mesmas letras usadas no
título. Vanessa elaborou o texto que se segue para a escrita:
“Marcelo, marmelo
Marcelo vivia perguntando as coisas para as outras pessoas.
Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?
Meu filho, esse nome foi eu e seu pai que escolhemos
Por que não colocaram martelo?
Porque é nome de ferramenta, meu filho.
Por que não colocaram marmelo?
É nome de fruta, meu filho”.
Assim, observamos que iniciou três enunciados com a palavra “por que”. Acreditamos
que isso é devido ao registro das letras “p” e “q” usadas para grafar essa palavra. Na frase
“Mamãe, por que eu me chamo Marcelo?”, apontou a adequadamente os segmentos gráficos
usados para escrever a palavra Marcelo. É interessante notar o que ocorreu na atividade
169
realizada pela aluna, pois o registro de apenas duas letras, constituintes da palavra, possibilitou
a recordação, porque essa palavra se repetiu no início dos enunciados que foram anotados.
Analisaremos ainda a escrita desenvolvida por Marianne. Sua atividade é um excelente
exemplo para evidenciar que representações, aparentemente, inexpressivas adquirem um
caráter expressivo e, dessa forma, auxiliam a recordação do texto. Observemos os registros de
Marianne. Ela tinha sete anos e sete meses de idade.
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo fazia muitas perguntas para o seu pai e a sua mãe. Ele colocava nomes diferentes nas coisas.
Um dia, a casa do cachorro pegou fogo, porque jogaram uma ponta de cigarro pela grade.
Marcelo perguntou para a sua mãe: — Mãe, por que a chuva cai?
Às vezes, os mais velhos respondiam às perguntas do Marcelo. Às vezes, não respondiam
porque não sabiam.
A aluna utilizou as letras “Marfeo” para registrar, por três vezes, a palavra Marcelo.
Além disso, podemos interpretar as palavras “pai, casa e não”. Usou as letras “mao”, por três
vezes, para representar a palavra mãe. O processo de registro foi particularmente interessante:
170
P.: O título da história é Marcelo, marmelo, martelo.
Marianne: (Registra os segmentos MARFEO MAORO MATAO e sussurra).
P.: O que você estiver pensando, falando, você pode falar alto. Marcelo fazia muitas perguntas
para o seu pai e a sua mãe.
Marianne: (Copia o segmento de letras correspondentes à palavra Marcelo e registra a palavra
pai). Pai, mãe (registra as letras E MAO).
P.: Você escreveu tudo que eu falei, Marcelo fazia muitas perguntas para o seu pai e a sua
mãe?
Marianne: (Confirma).
P.: Ele colocava nomes diferentes nas coisas.
Marianne: Ele (registra a letra E) colocava nomes diferentes nas coisas. (Não foi possível, por
meio da filmagem, ver como realizou a correspondência entre o que era
pronunciado e o que era grafado).
P.: Um dia a casa do cachorro.
Marianne: Um (registra as letras UE), dia a (registra a letra A), a casa ( registra a palavra
CASA), do cachorro (registra as letras CARO), pe (registra as letras TA), gou
(registra as letras UO), fogo (registra as letras AOR).
P.: Porque jogaram uma ponta de cigarro pela grade.
Marianne: Por (registra UE), jogaram uma ponta de cigarro pela grade (escreveu ao mesmo
tempo que repetia a frase as letras TRAU).
P.: Escreveu tudo?
Marianne: (Confirma).
P.: Marcelo perguntou para a sua mãe.
Marianne: Mar (registra a sílaba MAR), celo (registra as letras FEO) perguntou para
P. Perguntou para sua mãe.
Marianne: (Registra as letras E), para sua (registra as letras FE), mãe (registra as letras MAO).
P.: Mãe, por que a chuva cai?
Marianne: Mãe (registra as letras MAO), por que (registra a letra A), chuva (registra as letras
FORA e EROR), cai.
171
Ao registrar o primeiro enunciado a aluna se limitou a escrever três palavras: Marcelo,
pai e mãe. No entanto, afirmou ter escrito tudo que foi ditado. Um pouco mais adiante, é
possível observar que a linguagem estava presente durante a atividade de registro, mas não
realizava a análise das unidades da linguagem oral por meio dela. Ela simplesmente repetiu as
palavras que deveriam ser registradas.
O modo como a aluna se relacionou com a escrita para lembrar o texto é muito
interessante. Por isso, reproduziremos a sua escrita e mostraremos como realizou a atividade.
Macelo marmelo martelo
1o MARFEO MAORO MATAO
Marcelo vivia fazendo pai e a sua mãe
Muitas perguntas
Para se
2o MARFEO PAI E MÃO
Um
3o É LOOR E AFO
Diaa casinha do cachorro pegou fogo4o UE A CASA CARO TAUO AOR UE TRAU
E o Marcelo perguntou para sua mãe mãe5o MARFEO EU FE MÃO MÃOCI
Por que a chuva6o FORA EROR
172
Cai às vezes os Marcelo respondia às vezes
Mais velhos
7o AU AFAO U FARO ORAORO AU
Não respondiam8o NÃO UO
Porque não sabiam.
9o ARO NÃO FARO.
Assim, para o segundo segmento de grafias, Marianne disse o enunciado que motivou
o registro e apontou os espaços em branco para as palavras que não foram anotadas, pois havia
escrito apenas as palavras “Marcelo, pai e mãe”. A repetição das mesmas grafias usadas para
representar as palavras Marcelo e mãe, assim como o registro convencional das palavras “pai e
não” contribuíram para que lembrasse um texto próximo daquele que motivou a escrita.
Em síntese, as crianças que não dominavam a escrita alfabética se relacionavam com
grafias, aparentemente inexpressivas, para lembrar o texto que motivou a escrita ou outro com
o mesmo sentido. O surgimento de grafias expressivas foi possibilitado pela presença de
palavras, no texto, que podiam ser representadas por numerais (artigos indefinidos, por
exemplo) e de quantidades, que podiam ser representadas da mesma forma.
Luria (1988), conforme mencionamos, mostrou que o fator primário - quantidade -
introduzido no conteúdo das frases a serem registradas pelas crianças que participaram do seu
estudo possibilitou a dissolução da atividade gráfica indiferenciada e inexpressiva e o
surgimento de grafias que expressavam os significados registrados. Ele cita no seu texto o
exemplo de uma menina, chamada Brina, para mostrar como a introdução do fator quantidade,
no conteúdo das frases, possibilitou que a criança usasse os registros para lembrar as frases
que motivaram o registro. Para as frases que foram ditadas, durante a terceira sessão, a criança
usava linhas e marcas, de acordo com a quantidade introduzida. Por exemplo, para a frase “a
garça tem uma perna”, Brina fez uma marca indicando uma perna.
Nas situações analisadas neste estudo, observamos que as crianças representavam as
quantidades e os artigos indefinidos por meio de numerais e não mais por meio de marcas e
173
linhas. Nesse sentido, as crianças usavam símbolos convencionais para representá-los. Isso só
é possível porque, diferentemente da criança que participou dos experimentos de Luria, as
crianças envolvidas neste estudo estavam aprendendo, na escola, o sistema numérico usado em
nossa sociedade.
Não foram apenas as quantidades e palavras, representadas pelos numerais, que
possibilitaram uma relação funcional com os símbolos registrados. Notamos ainda que a
presença, no texto, de palavras que se repetiam em mais de um contexto levou as crianças a
representá-las com as mesmas grafias (durante o registro, era possível observá-las copiando as
letras usadas para representar as palavras) e estas, por sua vez, passaram a expressar a palavra
anotada possibilitando, dessa forma, a recordação do texto. Também a presença de palavras
cuja grafia as crianças conheciam ou lembravam algumas letras que compunham a sua escrita
possibilitou que elas registrassem essas palavras ortograficamente ou usando as letras que
lembravam e esses registros proporcionaram, também, a lembrança do texto.
2.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para lembrar o reconto
Verificamos que havia dezoito crianças que não utilizaram a escrita para recordar o
texto. Desse grupo de crianças apenas três elaboravam, durante o registro, a análise das
unidades da linguagem oral e escreviam símbolos alfabéticos correspondentes às unidades
analisadas. Constatamos ainda que oito crianças reproduziam a aparência externa da escrita,
ou seja, separavam os segmentos de letras usando espaços em branco. Verificamos isso nas
grafias analisadas anteriormente, mas é interessante destacar que a reprodução desses aspectos
não está vinculada ao início do uso funcional das grafias.
Utilizaremos, para exemplo, as atividades desenvolvidas por três crianças. Com base
na análise dessas atividades, mostraremos como o uso de letras pelas crianças e as suas
tentativas de reprodução dos aspectos externos da escrita adulta não estão vinculados ao uso
funcional da escrita. Antes, porém, examinaremos a atividade realizada por Laudicéia. Ela será
mostrada para que possamos discutir um pouco mais a questão da diferenciação e
indiferenciação na escrita. Observemos os registros da aluna. Ela tinha sete anos e sete meses
de idade.
174
Marcelo, marmelo, martelo
Uma pessoa jogou cigarro na casa do cachorro.
Marcelo foi contar para seu pai,
mas o pai não entendeu o que Marcelo dizia. Depois, o pai prometeu que iria construir uma casa nova
para o cachorro.
Ela registrou letras que formaram um conjunto de grafias quase totalmente
indiferenciadas. Para cada parte do texto, escreveu uma linha inteira com essas grafias.
Durante o registro, dizia palavras completamente incompreensíveis. Solicitamos que falasse
mais alto, mas continuou falando da mesma maneira. Como mencionamos, Luria (1988)
mostrou que o desenvolvimento da escrita não ocorre de maneira linear, num processo de
aperfeiçoamento contínuo. Ele depende das aprendizagens e uma nova aprendizagem pode
atrasar esse processo. Laudicéia está aprendendo a usar as letras, mas a sua escrita é ainda
quase totalmente indiferenciada. Desse modo, a criança compreendeu que pode usar signos
para registrar o texto, mas não entendeu como fazê-lo. Isto é, usou letras para escrever, mas
não compreendeu que a escrita pode auxiliá-la a lembrar o texto que motivou os registros. A
sua escrita apresenta o caráter não diferenciado das primeiras escritas produzidas pelas
crianças que participaram do estudo de Luria, mas, ao mesmo tempo, traz uma característica
nova, introduzida pela aprendizagem escolar: o uso de letras convencionais. Não podemos
175
avaliar com precisão quais letras foram usadas, pois usou a escrita cursiva, mas, no primeiro
segmento, podemos identificar as letras “l, r, t, a, o e j”. O fato de ter usado letra cursiva não
justifica, na nossa opinião, a indiferenciação, pois outras crianças que usavam a letra cursiva
diferenciavam as letras ao escrever (em seguida, veremos a escrita de Jéssica Fernanda). Ao
final, pedimos, conforme combinado, que lesse os registros. A aluna enunciou o seguinte
texto:
P.: Agora, você vai ler o que você escreveu.
Laudicéia: Alto?
P.: Alto. Eu quero que leia alto para eu ouvir.
Laudicéia: Marcelo, marmelo e martelo.
Marcelo queria que o pai queria construir uma casa nova para o cachorro. Ele
colocou. O pai não entendia o que o Marcelo falava.
Assim, a aluna não se relacionou com os registros para recordar o texto. Podemos
dizer, de acordo com Luria, que era capaz de imitar os adultos ao escrever e ler, mas não podia
“apreender os atributos psicológicos específicos que qualquer ato deve ter, caso venha a ser
usado como instrumento a serviço de algum fim” (1988, p. 149). Ferreiro (1996) também
analisou esse tipo de escrita e observou que as crianças que escrevem dessa forma já
descobriram dois atributos importantes do sistema de escrita: a arbitrariedade e a linearidade.
A descoberta desses atributos demonstra, segundo a autora, que as crianças diferenciam as
formas icônicas e não icônicas de representação.
A escrita de Jéssica Fernanda será analisada, porque, como vimos no item anterior, ela
combinou a pictografia e as letras para registrar a brincadeira. Não consideramos, no entanto,
que a aluna não sabia diferenciar desenho e escrita. Em nossa opinião, o conteúdo do texto foi
determinante para que ela combinasse os modos de representação ao escrever o texto.
Ao registrar o reconto da história, Jéssica Fernanda usou letras ao escrever e não houve
nenhuma dúvida quanto ao tipo de representação que deveria ser usada. Vejamos o registro. A
aluna tinha sete anos e um mês de idade.
176
Marcelo, marmelo, martelo
O Marcelo ficava mudando o nome das coisas.
Ele queria que seu nome fosse martelo,
Mas a mãe falou assim: — Martelo é nome de ferramenta.
— Por que a cadeira não pode chamar sentador?
Por que a mesa não pode chamar comedor?
Como pode ser visto, a aluna usou letra cursiva para escrever o texto, mas diferenciou
as letras ao escrever o texto e não repetiu a mesma letra numa cadeia. Colocou espaços em
branco entre os segmentos de grafias e cada segmento de letras possui mais de três letras.
Quando solicitamos que lesse, lembrou-se do seguinte texto:
“Marcelo, marmelo e martelo (apontou onde havia registrado o título do reconto)
Ele queria que o nome dele chamava Marcelo (apontou o primeiro segmento de letras). Martelo
é nome de ferramenta (apontou o segundo segmento). Por que cadeira não podia chamar sentador e
mesa comedor? (apontou o último terceiro segmento)”.
Dessa forma, não apontou o último segmento de grafias e disse: “a última eu não sei”.
Assim, podemos verificar que, durante a atividade envolvendo a brincadeira, o uso dos
177
desenhos ajudou a menina a lembrar o texto. A escrita, no entanto, do reconto usando apenas
letras não possibilitou a lembrança do texto. É interessante observar que as crianças agiam
como se a escrita auxiliasse a realização da tarefa, mas, na verdade, a criança imitava a
atividade de leitura dos adultos. O fato de sobrarem letras provocou um certo incômodo na
criança, mas não podia continuar a atividade, pois havia esgotado os enunciados que lembrava.
Consideramos que as diferenciações na escrita (qualitativa e quantitativa) puderam ser
observadas nos registros das crianças que participaram do estudo, mas não possibilitaram que
os alunos usassem a escrita para fins mnemônicos. A escrita de Jéssica Fernanda exemplifica
mais uma vez tal conclusão. Há diferenciações na escrita, mas isso não ajudou a lembrar o
texto registrado.
Analisaremos ainda a escrita de Fernanda para mostrar que as crianças podem usar
duas ou mesmo uma letra para escrever o texto. Como mencionamos, uma característica das
escritas produzidas pelas crianças é a colocação de espaços em branco entre os segmentos de
letras usados para escrever o texto. Dissemos que essa forma de grafar o texto tem origem nas
atividades desenvolvidas na sala de aula, ou seja, no uso de textos para a leitura durante a
alfabetização e nas atividades envolvendo esses textos. Olhemos a escrita da aluna. Ela tinha
sete anos e dez meses de idade.
178
Marcelo, marmelo, martelo
Marcelo era um menino
que fazia perguntas.
Ele perguntou por que o seu nome era Marcelo.
— Por que o meu nome não pode ser marmelo?
— Porque esse é nome de fruta.
— Por que eu não posso chamar martelo?
— Porque é nome de ferramenta.
Fernanda separou os segmentos de letras usados para grafar cada enunciado do texto
por espaços em branco e usou grafias com duas letras para compor os segmentos. Para compor
as grafias com duas letras, utilizou sempre consoante/vogal: “de, sa, be, fe”. Ela também
diferenciou a escrita para registrar cada enunciado do texto que era ditado. Assim, escreveu
observando as diferenciações qualitativas, mas, na tentativa de reprodução da aparência
179
externa da escrita, utilizou registros com duas letras e, dessa forma, diferentemente da escrita
de Jéssica Fernanda não observou o critério de quantidade mínima de letras para escrever cada
segmento de grafias que compunham a escrita dos enunciados. A escrita da aluna afirma a
análise que elaboramos: as crianças reproduzem as características externas da escrita.
Inicialmente, essa reprodução pode ser traduzida por diferenciações baseadas nos eixos
qualitativos e quantitativos. No entanto, à medida que avançam no processo de alfabetização
escolar, aprendem que, na escrita, usamos palavras com duas e uma letra e, por isso, passam a
usar também essas quantidades de letras para compor as grafias usadas para registrar os
enunciados dos textos. Desse modo, é importante enfatizar que essa forma de registro só
ocorreu, porque as crianças registravam textos. Contudo, a reprodução da aparência externa da
escrita não garantiu o surgimento de grafias expressivas e, portanto, não possibilitou que as
crianças se relacionassem com a escrita para lembrar o texto. Vejamos o que aconteceu com
Fernanda ao solicitarmos a leitura.
P.: [...] Vamos ler o que você escreveu?
Fernanda: Era. Espera aí. Um menino fazia pergunta. Mãe, por que o meu nome é Marcelo?
Esqueci!
P.: A escrita pode te ajudar a lembrar?
Fernanda: Pode. Um menino fazia perguntas. Mãe por que eu me chamo Marcelo? Porque eu e
seu pai escolhemos. Por que não me chamava marmelo? Porque marmelo é nome de
fruta. Então, por que martelo? Porque é nome de ferramenta.
Assim, a escrita não possibilitou a lembrança do texto. Ela lembrou o texto apoiada na
memória. Desse modo, as diferenciações baseadas no eixo qualitativo e a reprodução de
grafias com duas letras não propiciaram o uso funcional da escrita. Isso significa que a
reprodução dos aspectos externos da escrita, no início da alfabetização, não está ligada ao uso
funcional da escrita. Pelo contrário, como temos mostrado, são as indiferenciações da escrita
que têm possibilitado a emergência de grafias expressivas.
180
3 O registro do poema
A análise da atividade de registro do reconto, produzido oralmente, confirmou a
pertinência das análises que desenvolvemos no primeiro tópico deste capítulo e possibilitou a
análise de outros processos que constituem a apropriação da linguagem escrita pelas crianças
na fase inicial de alfabetização. Assim, com base nas constatações anteriores, planejamos a
terceira atividade de registro. Para esse momento, realizado no mês de setembro, escolhemos
um poema para ser escrito pelas crianças. O poema escolhido foi A mochila de Mariela, de
autoria de Glaucia Lemos. Os critérios utilizados para escolha do poema foram: a) repetição
de palavras ao longo dos versos; b) presença de palavras, no texto, estudadas pelos alunos; c)
presença de quantidades; d) existência de vários versos para que não fossem memorizados
pelas crianças.
Os três primeiros critérios foram definidos com base nas nossas descobertas. Como
vimos, a representação de uma mesma palavra em diversos contextos com o mesmo segmento
de grafias, o registro de palavras conhecidas e a representação de quantidades levaram as
crianças a se relacionarem com essas grafias para lembrar o texto que motivou o registro. O
último critério diz respeito à necessidade de criar uma situação de escrita que levasse à sua
utilização funcional.
O poema escolhido para realização da atividade foi:
A mochila de Mariela
Autora: Gláucia Lemos
A mochila de Mariela
é uma mochila amarela.
Que é que ela guarda nela?
Guarda álbum de figurinhas
guarda um colar de conchinhas
um chaveiro, uma fivela,
dois cadernos, três canetas,
tinta verde, tinta preta
181
e um estojo de aquarela.
Ainda tem mais, Mariela,
nessa mochila amarela?
Tem boneca de flanela,
um diário
e um bilhete de Isabela.
Um chocolate em tablete,
dois chicletes
e um pão com mortadela.
Um dia, me dá carona,
Mariela,
nessa mochila amarela?
Como pode ser verificado, na poesia, há repetição das palavras “Mariela, mochila,
amarela e guarda”. Além disso, o primeiro verso é uma repetição do título. As palavras
“cadernos, canetas, mochila e boneca” já haviam sido estudadas pelas crianças. A poesia
apresenta ainda quantidades como “um, dois e três”. Além disso, o poema tem vários versos
que não poderiam, portanto, ser lembrados sem o auxílio da escrita. É importante ressaltar que
a última estrofe do poema não foi escrita pelas crianças.
Optamos por não realizar a atividade de registro da poesia com as crianças que, no
registro do reconto, demonstraram possuir o domínio do caráter alfabético da escrita e, ao
mesmo tempo, usaram apenas a escrita para lembrar o conteúdo do texto. Assim, participaram
da atividade de registro da poesia vinte e oito crianças. É importante ressaltar que, nesse
momento da pesquisa, uma criança que participou da última atividade foi transferida, uma
outra estava impossibilitada de ir à escola por motivo de doença e uma outra criança foi
matriculada na turma. Desse modo, oito crianças não participaram da atividade.
A atividade de escrita do poema foi orientada da seguinte forma:
a) Primeiramente, perguntamos às crianças se tinham mochila, o que guardavam nela,
qual era a sua cor.
182
b) Em seguida, dissemos que iriam ouvir a leitura de uma poesia que falava dos
objetos que uma menina, chamada Mariela, guardava na sua mochila.
c) Líamos, então, o título e o nome da autora da poesia.
d) Antes de começar a leitura, pedimos às crianças que prestassem atenção nos versos,
porque, quando concluíssemos a leitura, elas deveriam lembrar os versos da poesia.
e) Como não conseguiam lembrar o poema ou lembravam apenas alguns versos,
explicamos, mais uma vez, que os adultos usam a escrita para ajudá-los a lembrar.
f) Em seguida, solicitamos que escrevessem o poema de modo que pudessem recordar
o seu conteúdo, ou seja, ler os versos.
g) Ao final do registro, pedimos, conforme combinado, que as crianças lessem a
escrita produzida e lembrassem os versos do poema.
Verificamos, com base na realização da atividade, que dez crianças se relacionavam
com as grafias para recordar os versos registrados e dezoito crianças não se relacionaram com
a escrita para tal finalidade. Centralizaremos a atenção no grupo que buscou se relacionar com
as grafias para lembrar os versos da poesia.
Conforme mostramos no início deste tópico, a poesia foi escolhida de acordo com
critérios que, durante as atividades analisadas anteriormente, possibilitaram a emergência de
grafias expressivas. Não pretendíamos, com a definição desses critérios, influenciar o modo
como as crianças escreviam, mas confirmar que a presença desses critérios no conteúdo do
texto possibilitavam a emergência de escritas expressivas.
As informações que obtivemos, por meio da proposição da atividade, confirmaram que
o registro pela criança, no texto, de quantidades, por meio de numerais ou por extenso,
auxiliaram a recordação dos versos que motivaram a escrita. Analisaremos, primeiramente, as
atividades que comprovam a afirmação acima.
3.1 A representação de quantidades por meio de numerais e por extenso
Examinaremos, inicialmente, a atividade desenvolvida por quatro crianças que
representaram as quantidades por meio dos numerais ou por extenso, o que ajudou a
recordação dos versos que foram escritos. Começaremos pela atividade elaborada por Ana
183
Paula Morais. Ela tinha sete anos e sete meses de idade. Utilizaremos para as análises a escrita
produzida pela criança e as tentativas de interpretação das grafias.
Como pode ser observado, a escrita de Ana Paula Morais não pode ser lida. Podemos
reconhecer apenas o registro de alguns numerais: o numeral um escrito por extenso e o
numeral 2 escrito três vezes. Ela registrou o título da poesia com os segmentos de letras “a uou
ipad maip”. Para registrar o primeiro verso, que é composto com as mesmas palavras do título,
registrou as mesmas grafias usadas para escrever o título. Os segmentos de letras “da saluia”,
registrados na mesma linha do primeiro verso, corresponderam ao segundo verso “é uma
mochila amarela”. A criança estava preocupada com a aparência da escrita e, por isso, colocou
espaços em branco entre os segmentos de letras. Podemos notar o uso de uma e duas letras
para escrever os segmentos de letras usados para representar os versos do poema.
A tentativa de interpretação da escrita ocorreu da seguinte forma:
184
Ana Paula M.: A mochila de Isabela
O que que guarda dentro dela?
Um colar.
E um diário (aponta a sexta linha do registro onde está escrito o numeral “UM”
por extenso).
Duas canetas (aponta o numeral 2 e a escrita que se segue, na sétima linha de
grafias. Aponta o numeral 2 na mesma linha, passa a apontar a oitava linha,
volta ao registro do numeral 2). Duas ca, borrachas.
P.: Mas não começa com CA?
Ana Paula M.: (Observa os registros).
P.: Duas canetas e dois...
Ana Paula M.: (Fica pensativa por algum tempo). Não lembro.
P.: Então, continue.
Ana Paula M.: O que será que ela guarda nela?
Tinha um bilhete da Luana.
Um, um, um, de chaveiro (aponta a penúltima linha de registros). Um, um.
E tinta verde e tinta preta (deixa de apontar a palavra “um” que reconhece).
E 2 chicletes e uma, uma (aponta a letra “P” que inicia o segmento de letras
após o registro do segmento “UM” que foi lido) e um pão com mortadela.
A aluna começou a enunciar os versos do poema, valendo-se unicamente da memória.
Por isso, no início, não apontou as grafias. Na sexta linha, começou a apontar os registros. O
registro do numeral “um”, por extenso, proporcionou a lembrança do verso “um diário”,
porém o verso que motivou a escrita foi “um chaveiro, uma fivela”. Entretanto, isso não é
muito importante, pois o registro da quantidade por extenso possibilitou a recordação de um
verso que, também, era composto com esse numeral. Em seguida, ela enunciou “duas canetas”
baseando-se no registro do numeral “2”. Ocorreu o mesmo ao apontar os segmentos gráficos
correspondentes a “dois cadernos”. Na mesma linha, observou, mais uma vez, a escrita do
numeral 2, leu a sílaba inicial “ca”, mas, como nenhum desses elementos lhe ajudava a
lembrar o verso, leu “borrachas”. Como percebemos que reconhecia a sílaba “ca”,
185
perguntamos se a palavra lida começava com essa sílaba. Diante dessa situação, disse que não
lembrava o verso. Continuou a atividade e observamos como repetiu “um, um” na tentativa de
lembrar os versos compostos com a quantidade. Como não conseguiu lembrar mais nenhum
verso, abandonou o registro da quantidade, apontou outro para enunciar um verso que não foi
composto utilizando quantidades. Finalmente, apontou as grafias que correspondiam ao
registro dos dois últimos versos e lembrou os versos. Consideramos que os registros dos
numerais “2” e “um” ajudaram a lembrança desses versos associados ao fato de serem os
últimos versos do poema. Desse modo, fica evidenciado que a criança se relacionava com os
símbolos usados para representar as quantidades para lembrar os versos.
Assim, como na atividade anterior, o segundo exemplo demonstra que a representação
de numerais por extenso pode auxiliar a recordação dos significados registrados.
Observaremos, primeiro, o registro da aluna Ana Paula Sampaio e, em seguida, analisaremos
como os registros ajudaram a recordar o conteúdo.
Aparentemente as grafias produzidas pela aluna são inexpressivas. No entanto,
podemos observar, na segunda linha de grafias, a palavra “um” escrita três vezes. Na
penúltima linha, podemos verificar o registro da mesma palavra. Ao produzir o registro,
observamos que a aluna analisou as unidades da linguagem oral no plano verbal e escreveu
letras correspondentes às unidades analisadas. O tipo de relação estabelecida era na maioria
entre sílabas e letras, mas usou, também, uma letra para representar duas sílabas. As vogais
186
foram utilizadas para registrar a maior parte das sílabas pronunciadas. Vejamos como a aluna
se relacionou com os registros.
Ana Paula S.: A (aponta a letra A, escrita isoladamente no primeiro segmento de registros),
mochila de (fica parada por alguns minutos para lembrar o nome da menina),
Mariela (aponta todo o segmento escrito na primeira linha).O (aponta a letra U
que inicia o segmento de letras escrito na segunda linha de grafias), que você
guarda dentro dessa mochila? (aponta as grafias UIEADLA UM ABIEUIA
registradas na segunda linha). Um (aponta a palavra registrada UM). Um
chaveiro. Diário (aponta BCDO) um diário e (aponta a letra E), um (aponta a
letra S). Um tablete de chocolate. I, a, p, a (tenta ler observando a letras, mas não
consegue e fica parada).
P.: A escrita está te ajudando a lembrar o que você escreveu?
Ana Paula S.: Tá. E um chocolate e um (aponta as letras IU que serviram para registrar o que
foi lido) estojo de aquarela, um estojo de aquarela e dois cadernos, três canetas
(pára, novamente, diante do registro da palavra UM). Um tem mais dentro de sua
mochila? (pára).
P.: O que está escrito no final?
Ana Paula S.: (Não continua a interpretação).
Conforme constatamos, a aluna leu a letra “a”, usada para representar o artigo que
inicia o título do poema e, em seguida, apontou a segunda linha, interpretando a letra “u”,
usada para representar o artigo “o”, e enunciou o “o que você guarda nela”. Ao apontar a
palavra “um”, também se lembrou de um verso composto com a palavra, “um chaveiro”.
Quando apontou o segmento de letras “bcdo” e leu “diário, um diário”, lembramos que, no
momento do registro, usou essas grafias para escrever as palavras lidas. Em seguida, decifrou
algumas letras e não continuou a atividade. Ao questionarmos se a escrita estava ajudando a
lembrar, disse que estava e decidiu continuar a atividade. Assim, observamos que a
representação da quantidade por extenso possibilitou a lembrança dos versos “um chaveiro” e
“um tablete de chocolate”. A criança também apontou letras que possibilitaram a confirmação,
no registro, do verso que estava sendo lembrado, como no caso dos artigos “a” e “o”. Leu
187
ainda o último registro expressivo “um”, mas não enunciou o verso com sentido “um tem mais
dentro de sua mochila”.
Vejamos ainda a atividade realizada por Jéssica Fernanda. Ela não tentou se relacionar
com a escrita para lembrar os versos, mas, a partir da nossa intervenção, conseguiu apontar
onde havia escrito alguns versos. A menina tinha sete anos e dois meses no momento em que
elaborou a escrita.
188
Como podemos observar, Jéssica Fernanda escreveu os numerais “2 e 1”
adequadamente. Ao registrar as palavras “dois cadernos”, escreveu “2 cade”. Dessa forma, a
primeira sílaba da palavra “caderno” foi escrita de maneira correta e, na segunda, omitiu
apenas a letra “r”. No último segmento de grafias, escreveu o numeral “1” e, em seguida,
escreveu o mesmo numeral por extenso. Ela colocou espaços em branco para separar os
segmentos de letras usados para escrever cada enunciado. Algumas letras foram escritas
isoladamente. É importante notar que escreveu as letras “s e v” isoladamente. Houve poucas
situações em que as crianças grafaram as consoantes dessa forma. Na maioria das situações
estudadas, as crianças grafaram as vogais isoladamente. Vale ressaltar ainda que a criança
falava baixinho, durante o registro do poema, e, dessa forma, verificamos que tentava
estabelecer relações entre as unidades da linguagem e as grafias, mas, mesmo sendo
estimulada a falar em voz alta, continuou falando da mesma forma. Apontaremos como
realizou a atividade ao ser incentivada a ler o poema.
Jéssica F.: (Observa os registros por algum tempo). A mochila.
P.: Aponta o que você está lendo.
Jéssica F.: A mochila da Daniela (aponta cada segmento de letras usado para escrever o
título correspondente às palavras verbalizadas). A mochila de Mariela é amarela (aponta as
letras que foram escritas na segunda linha). (Pára por alguns instantes e aponta as grafias
escritas na terceira linha).
P.: A escrita ajuda a lembrar?
Jéssica F.: Não.
P.: Tem alguma coisa no texto que você escreveu que ajuda?
Jéssica F.: (Mantém o dedo sobre os registros escritos na terceira linha e não responde
à pergunta).
P.: Aqui. (Aponta onde aparece o numeral 2 registrado, juntamente com as sílabas
iniciais da palavra caderno). Você sabe o que escreveu aqui?
Jéssica F.: Não sabe.
P.: E aqui? (Aponta onde foi escrito dois chicletes).
Jéssica F.: Dois chicletes.
P.: Com você sabe o que está escrito?
Jéssica F.: (Não responde à pergunta).
189
P.: E embaixo? (Mostra onde foi escrito o último verso).
Jéssica F.: E um pão com mortandela.
P.: E aqui? (Volta ao primeiro registro indicado).
Jéssica F.: (Fica silenciosa e observa os registros).
P.: Tenta ler o que você escreveu.
Jéssica F.: (Fica silenciosa por um longo tempo e por isso encerramos a atividade).
Como observamos, a aluna enunciou o título e apontou as primeiras grafias para cada
palavra verbalizada. O mesmo não ocorreu, no entanto, para o segmento de letras usado para
grafar o primeiro verso. É interessante notar que usou grafias diferentes para grafar o título e o
primeiro verso que eram compostos com as mesmas palavras. Como não prosseguia na
atividade, perguntamos se a escrita auxiliava a lembrança dos versos. A aluna respondeu que
não ajudava. Insistimos para que observasse os registros “2 cade” referentes às palavras “dois
cadernos”. Essas grafias, também, não ajudaram a lembrar o verso e ela disse que não sabia o
que havia registrado. Apontamos ainda os dois últimos segmentos de grafias usados para
escrever os dois últimos versos da poesia e a menina lembrou exatamente o que havia sido
registrado. Sendo assim, observamos que o registro de numerais, nesses contextos, remeteu
aos significados que motivou a escrita. Porém, esse mesmo registro, em outro contexto, não
propiciou a lembrança.
Analisaremos ainda a atividade realizada por Manuelly. Ela tinha oito anos de idade e a
sua escrita não era legível.
190
Na escrita elaborada por Manuely, podemos notar que apenas os numerais “2” e “3”
podem ser lidos. A criança não usou as mesmas letras para escrever as palavras que
compunham o título e o primeiro verso do poema. Com exceção da palavra Mariela,
representada em três contextos com a grafia “mela”, não ocorreu outra indiferenciação na
escrita. Colocou espaços em branco entre os segmentos de grafias usados para escrever a
poesia e, ao pedirmos que lesse o que escreveu, fez a seguinte tentativa:
Manuely: A mochila de Mariela (aponta a primeira linha de registro). A mochila de Mariela
era amarela (aponta a segunda linha de registros e parte da terceira linha). Ela
guardava três cadernos, três canetas (leu onde escreveu os numerais). Guardava tinta
verde tinta preta. E uma boneca de flanela (lê até o segmento MELA, fica parada
apontando esse segmento registrado, no início da sexta linha). Esqueci!
P.: Esqueceu? A escrita não está te ajudando a lembrar?
Manuely: Não.
P.: Por que ela não está te ajudando?
Manuely: Tô esquecendo de tudo.
191
P.: Mas eu não disse para você escrever com atenção, porque você iria usar a escrita para
poder lembrar?
Manuely: Disse.
P.: E aí?
Manuely: Porque eu esqueci dessa parte aqui (aponta o segmento MELA escrito no início da
sexta linha).
Manuely, inicialmente, rememorou os versos, mas também os numerais registrados
indicaram onde deveria ler “três cadernos e três canetas”, mesmo tendo grafado os numerais
“dois e três”. Enunciou mais dois versos e não continuou a atividade. Insistimos para que
observasse a escrita para lembrar os versos; só conseguiu rememorar mais alguns versos sem o
apoio da escrita.
Enfim, as atividades destacadas mostram que a representação de quantidades, por meio
de numerais, possibilitava a lembrança dos versos, corroborando as nossas observações. A
análise acrescenta ainda um dado importante: as crianças, nessa época, estavam aprendendo,
na sala de aula, a escrever os numerais por extenso. A grafia memorizada, conforme vimos,
havia sido do numeral “um”. As crianças passaram, então, a registrar a quantidade por extenso
e esse registro possibilitava a lembrança dos versos compostos com a quantidade, confirmando
que o registro de palavras conhecidas pelas crianças auxiliavam a recordação.
3.2 Representações para as palavras cuja grafia as crianças não dominavam
Como no item anterior, observamos que as crianças que dominavam a escrita alfabética
elaboravam representações para as palavras cuja escrita ortográfica não conheciam.
Analisaremos essa questão a partir da atividade realizada por três crianças. Começaremos pela
atividade desenvolvida por Hugo. É importante apresentarmos a atividade realizada por essa
criança, porque os trabalhos elaborados durante a pesquisa são muito interessantes e
reveladores dos processos que se formam nas crianças, durante a fase inicial de alfabetização.
Ele tinha sete anos e quatro meses quando escreveu a poesia.
192
Hugo dominava a escrita alfabética. Observamos, nas atividades de escrita da
brincadeira e do reconto, que a linguagem estava presente durante o registro. A análise da
linguagem possibilitou verificar que o aluno a utilizava como recurso para lembrar as letras
correspondentes às unidades da linguagem oral que eram pronunciadas. Verificamos que, no
início do registro do poema, a linguagem era mais freqüente, mas, à medida que foi
escrevendo, a linguagem já não era mais necessária para a elaboração dos registros e, por isso,
foi diminuindo até desaparecer completamente.
Na escrita elaborada pela criança, podemos observar que trocou letras (f/v; n/l; ch/j;
nh/ch), escreveu segmentos de letras que não expressam significados, por exemplo, o verso “e
um pão com mortadela” que foi registrado por “i um beo cor morerdéla”, omitiu letras na
escrita de palavras (aubu - álbum; chavero - chaveiro), acrescentou letras em algumas
193
palavras, etc. Porém, essas grafias não impossibilitaram a realização da leitura do poema.
Vejamos:
Hugo: A mochila de Mariela. A mochila de Mariela. É uma mochila amarela. O que ela
guarda nela (lê apontando o la). La. Mochila de Mariela tem, tem (aponta a palavra
guarda) álbum (volta) álbum de figurinhas, um chaveiro, uma fivela e tin, ti, ti, tinta
verde, tinta preta e um estojo de a, a, a, ca, a, carela. Ainda tem mais Mariela le, le,
nessa mochila, a, a, mu, amarela. Tem buleca de flanela e um bilhete de Is, a Is, Is, Is,
pra. Não, consigo, não! Isabela! Um chocolate em trabela, dois chicletes e um p, peu,
pão mor, mor, tan um pão com mortandela.
O aluno leu pausadamente, atento ao que estava escrito. Usou representações gráficas
inexpressivas para algumas palavras do poema, mas essas representações não se tornaram um
empecilho para que realizasse a leitura. No último verso “e um pão com mortadela”, a criança
soletrou, silabou e, em seguida, lembrou o verso, mesmo tendo elaborado representações que
não expressavam o significado das palavras que compunham o verso. O mesmo ocorreu para
representações usadas para as palavra boneca (bulela) e flanela (fralela). Observamos, na
atividade de reconto, que Hugo não conseguiu ler com sentido. O texto enunciado, apoiado na
memória, em algumas situações, não era confirmado na escrita e, também, a leitura de
palavras, no texto, não garantia a lembrança dos enunciados. Na verdade, ao ser incentivado a
ler o reconto, a criança se relacionava com a escrita para lembrar o texto e, ao mesmo tempo,
apenas rememorava os versos, pois não conseguia interpretar as grafias usadas para
representar as palavras. Essa oscilação entre os dois meios usados para recordar o texto
possibilitou enunciações sem sentido.
Hugo elaborou a leitura do poema apoiado na escrita. Com relação às grafias que não
expressavam o significado das palavras registradas, podemos dizer que foram lidas, porque
havia um conjunto de grafias expressivas que garantia a sua leitura. Hugo leu o poema com
sentido demonstrando que se relacionava com a escrita para lembrar o poema.
Analisaremos agora a atividade realizada por Luís Carlos. Comparada à escrita de
Hugo, existem mais grafias que não expressam os significados das palavras registradas.
194
Contudo, leu alguns versos. As palavras que podiam ser lidas possibilitaram a interpretação
das grafias inexpressivas. Ele tinha sete anos e sete meses de idade. Vejamos:
A criança representou as quantidades por meio de numerais e por extenso. Trocou
letras (r/l; m/b; ch/j); usou representações para as palavras que não expressavam os seus
significados: representou as palavras “guarda, preta, aquarela, flanela, tablete e pão de” por
meio dos segmentos “xda, ditai, axile, faimela, tabaila e joide”, respectivamente. Omitiu
letras, na escrita de palavras, etc. Porém, conseguiu ler alguns versos do poema, apontando
adequadamente onde os registrou.
Luiz Carlos: A mochila de Mariela. A mochila de Mariela é uma mochila amarela (aponta
corretamente a escrita). O (aponta a letra U, pára e fica sem saber o que está
escrito). Um álbum de figurinha (lê até o registro de NELA), um álbum de
figurinha (aponta até o final da segunda linha). (Fica por algum tempo parado
tentando ler o registro XDA, usado para escrever a palavra guarda). D (Desiste e
195
muda para a quarta linha usada para os registros). Dois cadernos, três canetas,
tinta verde e preta. E uma (pára diante do registro da palavra estojo). E um estojo
de (pára novamente).
P.: E um estojo de aquarela.
Luiz Carlos: E uma boneca de (pára e fica apontando os registros no final das linhas que
restam).
P.: A escrita está te ajudando a lembrar?
Luiz Carlos: Tá.
P.: Então termina a leitura.
Luiz Carlos: Dois chi (pára novamente).
P.: O que você quis escrever?
Luiz Carlos: (Fica parado apontando a escrita).
P.: Dois chicletes.
Luiz Carlos: E um pão com mortadela.
Assim, as trocas de letras que ocorreram no título e nos dois primeiros versos não
impossibilitaram que a criança os lesse. No terceiro verso, apontou a letra “u” e leu “um álbum
de figurinhas”; logo percebeu que o verso lido foi registrado no segmento seguinte e, por isso,
repetiu a leitura, apontando até o final da linha. Indicou, por algum tempo, as grafias que usou
para representar a palavra “guarda”. É importante observar que usou essas mesmas grafias, em
dois contextos, mas isso não o ajudou a lembrar e, por isso, deixou de apontar as grafias que se
seguiam e passou para a quinta linha. Leu “dois cadernos e três canetas; tinta verde e preta”,
conforme registrado. Apontou as grafias “ditai” para a palavra “preta”, assim como apontou “i
um joide comotepola” para o verso “e um pão com mortadela”. É importante destacar que, em
dois contextos, a criança usou o mesmo segmento de grafias para representar a palavra
“guarda”. Assim, durante o registro, a criança cuidou para não diferenciar a representação de
uma mesma palavra que se apresentava em contextos diferentes. É o caso também das
palavras “mochila e Mariela” representadas, por meio de “boxila e Maliela”, respectivamente.
No entanto, no momento em que foi incentivado a usar a escrita para lembrar os versos do
poema, a representação usada para a palavra “guarda” não ajudou na recordação.
196
Dessa forma, as atividades analisadas confirmam que as crianças que dominavam a
escrita alfabética elaboravam representações para as palavras que não expressavam os seus
significados. Essas representações inexpressivas, no entanto, eram interpretadas no texto.
Se analisarmos essa situação, podemos dizer que as crianças que efetuam a leitura de
grafias inexpressivas realizam a leitura de modo semelhante aos adultos alfabetizados. Quando
lemos um texto e nos relacionamos com a escrita com essa finalidade, em situações em que
conhecemos o sentido do texto, não nos detemos ao registro de cada palavra; muitas vezes,
durante a leitura, usamos uma palavra com o mesmo significado daquela que foi escrita e,
também, não conseguimos observar muitas incorreções na escritas e estas passam
despercebidas. Pensamos que, com as crianças que interpretavam as grafias inexpressivas,
ocorria algo semelhante. As crianças conheciam o sentido do texto escrito, a maioria das
palavras era interpretada e, por isso, o uso de uma ou outra grafia inexpressiva não prejudicava
a interpretação.
Analisemos a atividade realizada por Nicole, porque a maneira como buscou
interpretar as grafias é muito interessante. Ela estava realmente preocupada em se relacionar
com a escrita para lembrar o poema. Ela tinha sete anos e quatro meses de idade.
197
Como pode ser visto, a criança representou a palavra “mochila”, nos quatro contextos,
com as grafias “buxela”. Algumas palavras que compõem os versos não podem ser lidas
(guarda - laplna; dois cadernos - docaquido; estojo - epojo), pois não expressam os
significados das palavras anotadas. Há, ainda, na escrita, trocas, omissões e acréscimos de
letras. Vejamos como a aluna se relacionou com a escrita para lembrar o texto. As palavras e
198
sílabas escritas nos parênteses servirão para mostrar como a criança apontava a escrita durante
a leitura.
Nicole: A Mochila amarela.
A mochila de Mariela
É uma mochila amarela
O que ela guarda nela?
A (A) bum (GU) de (DE) figurinha (VIGURIA)
Que (QUA) da (DA) um (U) colar (COLA) de (DE) conchinha (COXIA)
Um (U) chaveiro (XCAVERO) e (E) uma (UMA) fivela (VIVELA)
Do (DO) ca (CA) qui (QUI) do (DO) e (E) três (TRE) caneta (CANETE)
Tinta (TITA) verde (VEDE) e (E) preta (PRETA)
E (E) do (DO) jo (JO) de (DE) aquorela
Aidate maze Mariela
Nessa buxela amarela
Tem boneca de fanela
Um diário
E um bilhete de Isabela
Um chocolate é xalente
Doze xe
E upo o de motodela, mortadela.
A aluna leu o título e os três primeiros versos. Do quarto ao nono verso apontou ora a
palavra a ser lida, ora as sílabas que compunham as palavras. Dessa forma, a troca e as
omissões de letras, nesses contextos, não impossibilitaram a interpretação dos versos. No
entanto, ao apontar as grafias que correspondiam a “dois cadernos”, deteve-se ao escrito e
decifrou as grafias “do ca qui do”. O mesmo ocorreu para as representações das seguintes
palavras e termos: estojo (edojo), ainda tem mais Mariela (ainda temaze Mariela), mochila
(buxela), tablete (xalente), dois (doze), e um pão com mortadela (e upo o de motodela).
Assim, a atividade realizada pela menina mostra que ela buscou se deter aos registros
para lembrar o poema. Por isso, decodificou algumas grafias inexpressivas, ou seja, a aluna
199
decodificou os símbolos visuais em símbolos sonoros, lendo segmentos de sílabas sem
significado. Acreditamos que o fato de insistirmos para que se relacionasse com a escrita para
lembrar o texto proporcionou tal conduta. Isso ocorreu também na atividade de registro do
reconto.
3.3 Interpretação dos artigos e da preposição “de”
Durante a realização da atividade, observamos crianças que grafavam os artigos
definidos (o e a) e a preposição “de” convencionalmente. Essas grafias começaram a exercer
uma certa influência nos enunciados produzidos pelas crianças ao serem incentivadas a ler as
grafias registradas.
Mostraremos a escrita elaborada por Marianne e como se relacionou com ela para ler o
poema. A menina tinha sete anos e oito meses de idade.
200
Como pode ser verificado, a menina escreveu o título do poema e o primeiro verso com
as mesmas grafias. A palavra “Mariela” foi representada por “Marila e Marla”. A criança
usou, ainda, conforme observamos, durante o registro, as letras “mu” para representar o
numeral “um” e a palavra “uma”. Escreveu a preposição “de” corretamente no título, no
primeiro verso e nas quarta e oitava linhas de grafias. Escreveremos a sua escrita e
mostraremos como a apontou.
A bolsa de Mariela
1a A MULI DE MARILA
A bolsa de Mariela é um pu a
2a A MULI DE MARILA É MU PU A
o que você guarda nela?
3a MARLU U MORI É NIAMO NARIA
De tinta preta e
4a DE LIAU MONI NARIA MU EADE AEAE
amarela por que mar
4a MU FAFIO MU LIAM AUMU MU EIALI
Você guarda nela
6a LIAE VIAO LIAE TAIEA IMU MU IMONIA
Mar, a Marie a tem chocolate
7a A MARA A VIME TEA MARLA ÉMF A
Ma, chocolate Mariela é um de um
8a MU VIA MARIA É MUNI DE EIMLA MU
201
Bilhete de Mariela um
9a MIVIO VIA MU VIAMARI E MARILA MU
O que mais você guarda nela
10a MUNARA ÉA EALIA VIEF VI TAERI VI
Um livro.
11a UM AENIA
O texto produzido pela aluna, após ser incentivada a ler o texto registrado, foi o
seguinte:
A bolsa de Mariela
A bolsa de Mariela é um pu, o
O que você guarda nela?
De tinta preta e amarela.
O que mais você guarda nela?
Por que mar, você guarda nela
Mar, a, marie a tem chocolate
Ma, chocolate, Mariela é um de um
Bilhete de Mariela um
O que mais você guarda nela
Um livro.
A menina apontou as grafias correspondentes ao título do poema e enunciou: “a bolsa
de Mariela”. Apontou a segunda linha, e repetiu o enunciado anterior, pois estavam
registradas as mesmas grafias do título. Leu a letra “é” e, em seguida, o segmento “mu”, usado
para representar a palavra “uma”. Depois, decifrou as grafias “pu a”. Apontou, então, a
terceira linha, e enunciou o verso “o que você guarda nela?”. Na quarta linha, leu a preposição
“de”, mas esta não ajudou a lembrar o verso e, por isso, enunciou “de tinta verde e amarela”.
Apontou até a quarta grafia, na quinta linha. Continuou enunciando “por que mar você guarda
nela?”. Deixou de apontar dois segmentos de grafias no final da sexta linha. Apontou a sétima
202
linha, enunciando “mar, a, Mariela a”. Parou por algum tempo, e disse “tem chocolate”.
Apontou a oitava linha, ficou parada por algum tempo e disse “ma, chocolate, Mariela é um de
um bilhete (nona linha, primeiro segmento de letras) de Mariela um o que mais você guarda
nela? Um livro.
Desse modo, a atividade realizada por Marianne evidenciou que as palavras que
possuíam duas e uma letra eram lidas podendo ou não auxiliar a recordação do poema. A
grafia “mu” usada para representar a quantidade e o artigo dificultou a rememoração de
algumas partes do texto e, ao mesmo tempo, possibilitou a enunciação de versos sem sentido.
Com relação à primeira situação, podemos observar, no oitavo segmento, que enunciou “ma
chocolate Mariela é um de um” em conseqüência dos registros. Com relação à segunda, leu
“um livro”. Não foi esse o conteúdo registrado, mas o registro da quantidade por extenso
possibilitou a evocação do conteúdo. Além disso, a representação de palavras, em mais de um
contexto, com o mesmo segmento de grafias, auxiliou a lembrança do primeiro verso. Quando
perguntamos se a escrita havia ajudado a recordar, a aluna disse “mais ou menos”, porque não
havia entendido “direito a frase que escreveu”.
Podemos concluir este item afirmando algumas das análises elaboradas, nos itens um e
dois: as crianças que não dominavam a escrita alfabética usaram numerais para representar as
quantidades e os símbolos numéricos auxiliaram a lembrança dos versos. A essa conclusão
pode ser acrescentada que a representação de quantidades por extenso também auxiliou a
lembrança. Notamos, ainda, que a indiferenciação na escrita de uma mesma palavra, registrada
em mais de um contexto, nem sempre auxiliava a recordação do verso e que a presença de
palavras, no poema, que haviam sido estudadas pelas crianças, na sala de aula, não garantiu
que estas fossem escritas convencionalmente.
Verificamos que as crianças que tinham o domínio da escrita alfabética elaboravam
representações inexpressivas para as palavras cuja grafia não conheciam. Essas grafias eram
lidas no texto. Observamos ainda que esse mesmo tipo de representação era decodificado, sem
levar em conta o significado das palavras anotadas.
203
4 O registro do texto sobre a escola
No mês de outubro, organizamos a quarta atividade que foi realizada pelos sujeitos
envolvidos no estudo. Participaram do trabalho trinta alunos. As crianças que não
participaram, exceto uma, já dominavam a escrita alfabética e se relacionavam com a escrita
para recordar o texto.
Propusemos às crianças a produção oral e registro de um texto que foi intitulado A
escola. Organizamos os procedimentos para orientação da atividade, a partir de dois
momentos: no primeiro momento, todas as crianças produziram oralmente o texto sobre a
escola e a pesquisadora o registrou; no segundo momento, após conclusão da produção oral e
registro, as crianças escreveram o texto que haviam produzido oralmente. Dessa forma, o
segundo momento ocorreu alguns dias após a produção oral e registro do texto pela
pesquisadora e foi conduzido da seguinte maneira:
a) conversamos com as crianças sobre o texto que produziram e perguntamos se
lembravam o seu conteúdo;
b) como não podiam lembrar o conteúdo, lemos o texto produzido e explicamos que
podíamos lembrar, porque efetuamos o registro, escreveram o texto;
c) pedimos, então, às crianças que escrevessem o texto com atenção para que,
também, pudessem ler ao final do registro.
Assim, a organização da atividade em dois momentos teve por finalidade criar uma
situação demonstrativa do objetivo da escrita: ser lida e, portanto, ajudar a recordação do texto
que não poderia ser lembrado sem o auxílio da escrita. Enfatizaremos, neste item, que as
crianças que se relacionavam com a escrita para recordar o texto elaboravam, no plano verbal,
a análise das unidades da linguagem oral e escreviam letras correspondentes às unidades
analisadas. Dessas crianças algumas tinham o domínio da escrita alfabética e outras não
possuíam esse domínio. Focalizaremos, ainda, que as crianças que não se relacionavam com a
escrita para lembrar o texto elaboravam a análise das unidades da linguagem oral no plano
verbal. Essa análise teve um papel importante, pois possibilitou a superação da atividade
gráfica baseada na reprodução das características externas da escrita.
O resultado da atividade indicou que dezesseis crianças se relacionavam com a escrita
para lembrar o texto e quatorze não se relacionavam com a escrita para recordar o significados
204
anotados. Constatamos também que dezesseis crianças realizavam o registro silenciosamente e
quatorze falavam durante o registro.
4.1 As crianças se relacionavam com a escrita para recordar o texto
Conforme mencionamos, dezesseis crianças se relacionavam com os registros para
recordar o texto. Verificamos que nove delas falavam consigo mesmas, durante o registro, e
sete escreviam silenciosamente. A linguagem identificada, no primeiro grupo, evidenciou que
as crianças elaboravam a análise das unidades constituintes da linguagem oral no plano verbal,
e que esta atuava como recurso para auxiliar a lembrança das letras correspondentes às
unidades sonoras pronunciadas. Nos dois grupos, identificamos crianças que dominavam a
escrita alfabética e crianças que não possuíam tal domínio.
a) As crianças falavam consigo mesmas durante o registro do texto
Examinaremos, inicialmente, a atividade desenvolvida por Hugo. Vejamos como
escreveu o texto. Ele tinha sete anos e cinco meses de idade.
205
A escola
Eu gosto muito da escola, porque tem lição
e as minhas professoras são muito boazinhas.
Às vezes, os inspetores colocam a gente de castigo,
mas é porque a gente faz arte. A minha
sala é limpinha e muito bonita. Eu quero a-
prender a ler e a escrever. Eu sou alfa-
betizado!
Como mostramos no item anterior, Hugo dominava a escrita alfabética. Cometeu, no
entanto, erros por falta de domínio dos padrões ortográficos que regem a escrita alfabética.
Isso, porém, não impossibilitou a leitura do texto sobre a escola. Vejamos como realizou a
atividade de registro.
P.: O título do texto que você produziu é a escola.
Hugo: (Registra A ESCOLA).
P.: Eu gosto muito da escola,
Hugo: (Registra EU GOSTO MUITO DA ESCOLA).
P.: Porque tem lição.
Hugo: (Registra e fala PORQUE TEM LISÃO).
P.: E as minhas professoras.
Hugo: (Registra E AS, fala baixinho a frase, palavra por palavra), minhas (registra MILHAS),
pro (registra PROFESSORAS).
P.: São muito boazinhas.
Hugo: (Registra SÃO MUITO BOASILHA)...
As atividades desenvolvidas por Hugo, no decorrer da pesquisa, mostraram que, no
início, a linguagem ocorria com mais freqüência, durante o registro dos textos. Nesta etapa do
trabalho, é possível observar que ele pronunciava algumas palavras e sílabas que parecia não
saber exatamente como escrever. Assim, houve uma diminuição da linguagem, à medida que a
criança adquiriu um maior domínio da escrita. As observações anteriores evidenciaram que a
linguagem atuava como recurso que auxiliava a lembrança da letra que deveria ser escrita para
206
representar as unidades da linguagem oral, analisadas pela criança no plano verbal. Nas
primeiras atividades, repetia para ele mesma uma unidade e o fato de ouvir a sua pronúncia
ajudava-o na recordação. Desse modo, a lembrança das letras que deveriam ser registradas não
era direta, mas mediada pela linguagem que ocorria durante o registro. Hugo já começou a
escrever sem precisar usar tal artifício para lembrar as letras. A recordação ocorre de forma
mais direta, porém, para isso, foi necessário um longo percurso de aprendizagem, ou seja, ele
precisou aprender e decorar as letras convencionalmente usadas para representar as unidades
menores da linguagem oral.
A atividade realizada por Bruno Marques evidencia que as crianças que não
dominavam a escrita alfabética falavam consigo mesmas durante o registro e algumas grafias
auxiliavam a recordação do texto que motivou a escrita. Observemos a escrita elaborada pelo
aluno.
A escola
A escola é muito boa para brincar, para merendar e para fazer a lição.
A escola é muito bonita. Ela é boa para fazer Educação Física
e para jogar bola. A escola é muito boa.
Na escrita do aluno, podemos ler a palavra bola, registrada convencionalmente. As demais
grafias não podem ser lidas. No entanto, como veremos, a criança se relacionou com as
grafias, aparentemente inexpressivas, para lembrar o texto. Mostraremos como Bruno efetuou
o registro acima.
P.: A escola é muito boa.
Bruno M.: (Registra e fala a frase A E PO AS I RPBN).
207
P.: Pode falar mais em voz alta. Para merendar.
Bruno M.: (Registra BATO REFC).
P.: E para fazer a lição.
Bruno M.: (Registra IPOAO).
P.: Terminou?
Bruno M.: (Confirma acenando com a cabeça).
P.: A escola é muito bonita.
Bruno M.: (Registra A E E M, volta e coloca o ponto após a segunda letra E., coloca o ponto
após a letra M, registra E TGOTONG, apaga a letra G e registra as letras HO).
P.: Ela é muito boa para fazer Educação Física.
Bruno M.: (Registra E TOXO A). E (registra a letra E) du (registra a letra D), ca (registra a
letra C e as letras FINCO).
P.: E para jogar bola.
Bruno M.: (Registra EPO NO EDHNO. BOLA).
P.: A escola é muito boa.
Bruno M.: (Registra A E E, M, E O S FINO).
Como pode ser visto, em alguns momentos, foi possível evidenciar, por meio da
linguagem, as relações que a criança estabelecia entre as unidades sonoras e as letras. Na
situação identificada, grafou uma letra para as sílabas pronunciadas, utilizando letras que
compõem as sílabas pronunciadas. No entanto, na maioria do tempo, somente repetia para si
mesmo a frase que deveria ser escrita e, em outras situações, escrevia silenciosamente.
A criança, mesmo tendo produzido, com exceção da palavra bola, grafias inexpressivas,
mostrou, ao ser incentivada a ler o texto, que as grafias “A E E. M.” se referiam, em duas
situações, à palavra “escola”. Usou essas grafias para representar essa palavra nas frases “a
escola é muito bonita” e “a escola é muito boa”. Isso pode ser explicado pelo fato de que,
todos os dias, as crianças escreviam o nome da escola na sala de aula. As primeiras palavras
desse nome eram abreviadas Escola Municipal de Educação Básica (E.M.E.B.); assim, ele
utilizou, mesmo de maneira inadequada, essas letras para representar a palavra “escola”. Isso
provocou um problema, no início da leitura, pois representou, no primeiro enunciado, “a
escola é muito boa”, a palavra escola com outras grafias. Vejamos:
208
A e (pára de ler, repete as letras verbalizadas e não continua a leitura)
1o A E PO AS I R PBN E BA TO REFCI POAO
Assim, começou interpretando o artigo “a” e a letra “e” da palavra “escola”, mas como
escreveu essa última palavra em dois contextos, usando outras grafias, não continuou a
atividade. Como não prosseguia, perguntamos o que estava escrito na linha seguinte. A criança
apontou, por alguns minutos, as primeiras letras e disse que escreveu:
A escola é muito boa para brincar
2o A E E. M. E TGOTONOHO E TOXO A EDCFINCO
(Escreve a letra E sobre a letra I)
E é boa para merendar. E a escola é boa.
3o E PONO EDHNO . BOLA A E E. M. E. OS FINO
Dessa forma, apontou os segmentos A E E. M. E duas vezes, para a palavra escola.
Além disso, como mencionamos, algumas crianças sabiam que o fonema [i], em posição
átona, é representado com a letra “e”, por isso, ele escreveu a letra “e” sobre a letra “i”,
registrada no início do terceiro segmento de grafias. Ao apontar a palavra “bola”
correspondendo à palavra “merendar”, perguntamos se estava escrito a palavra lida. Ele
respondeu que estava escrita a palavra “bola”, apontou, novamente, o segmento de letras A E
E. M. E. para a palavra “escola”. Assim, utilizou, com base nas experiências de sala de aula,
um segmento de grafias para representar a palavra escola e essas grafias possibilitaram a
lembrança de dois enunciados: “a escola é muito boa para brincar”, que não havia sido escrito
onde apontou, e o enunciado “a escola é boa”, que motivou o registro das grafias apontadas.
As duas atividades analisadas demonstram que as crianças estavam em níveis de
elaboração da escrita completamente diferentes. Hugo possuía o domínio da escrita alfabética
e Bruno Marques não possuía esse domínio. No entanto, ambos, ao serem incentivados a ler o
texto, se relacionavam com a escrita para recordar o texto e, também, falavam durante o
registro. Como vimos, a linguagem não era usada com muita freqüência pelas duas crianças.
209
No caso de Hugo, porque já havia adquirido um maior domínio quanto às letras que devem ser
usadas para representar as unidades sonoras. Bruno Marques, no entanto, não havia adquirido
esse domínio, mas o fato de efetuar a análise, em algumas situações, das unidades silábicas
ajudou-o a registrar letras que compunham essas sílabas.
Analisaremos mais duas atividades. A primeira é de uma criança que escrevia usando a
escrita alfabética. A segunda escreveu utilizando as letras do alfabeto, mas não representava os
fonemas por meio delas. Independentemente do tipo de escrita usada, a linguagem estava
presente durante o registro e ambas as crianças se relacionavam com a escrita para lembrar o
texto. Analisaremos, primeiramente, a escrita de Natália. Ela estava com sete anos e dez meses
de idade.
A aluna usou a escrita alfabética para registrar o texto. No entanto, cometeu erros
decorrentes da falta de domínio das normas ortográficas. Usou grafias inexpressivas:
representou as palavras gulosa com o segmento “goloze”; inspetor com o segmento “ipelo”; a
gente com o segmento “a geta”; sempre pelo segmento “sepa”. Vejamos como elaborou a
escrita.
P.: O título do texto é a escola.
Natália: A (registra a letra A), es (registra a sílaba ES), co (registra as sílabas COLA).
210
P.: A escola é muito legal.
Natália: A (registra a letra A), escola (registra a palavra ESCOLA). Errei (apaga e escreve,
novamente a sílaba LA).
P.: É muito legal.
Natália: E (registra a letra É), mui é o M e o U?
P.: É o M e o U.
Natália: (Registra a sílaba MU), to é o T e O, to (registra a sílaba TO), legal, le (registra a
sílaba LE), ga, ga (registra a sílaba GA) [...] gente, ge , ja, je, o G e O?
P.: O G e o E.
Natália: Deixa a gente (registra as sílabas GETA).
P.: Brincar.
Natália: Bra, bre, bri, bra, bre, bri. E o B e I? (registra as sílabas BICA).
P.: A professora dá lição para a gente estudar.
Natália: A (registra a letra A), pro, pa, pro (registra a sílaba PE). O F e o E?
P.: É.
Natália: (Registra a sílaba FE). Professo. É o SO?
P.: (Confirma).
Natália: (Registra a sílaba SO), professora (registra a sílaba RA).
P.: Dá lição para a gente estudar.
Natália: Dá (Registra a sílaba DA), li é o L e o I?
P. Confirma.
Natália: (Registra as sílabas LISA).
Como pode ser visto, a linguagem estava presente durante toda a atividade de registro.
Dessa forma, os movimentos de escrita eram precedidos pela análise de uma unidade da
linguagem oral correspondente às letras grafadas. Podemos observar que não repetiu a
seqüência silábica para auxiliá-la a recordar as letras que deveriam ser usadas para representar
as unidades sonoras com a mesma freqüência que nas atividades analisadas anteriormente. No
entanto, a linguagem continuava sendo um recurso que auxiliava a lembrança das letras que
deveria usar e, também, objetivava estabelecer comunicação com a pesquisadora para saber se
as letras eram adequadas às sílabas. Houve uma diminuição da linguagem, porque a criança
211
pareceu estar mais segura quanto às letras que deveria usar. Por isso, recitava menos as
famílias silábicas e, em algumas situações, apenas a pronúncia das sílabas era suficiente para
que lembrasse as letras que deveria usar para representá-las. Ela usou a escrita para recordar o
texto, mas demorou para definir os significados de algumas grafias em função do modo como
foram escritas.
A escola
1o A ESCOLA
A escola é muito legal
2o A ESCOLA É MUITO LEGAU
As merendeiras faz comida
3o AS MEREDERAS FAZE COMIDAGOLOZE
Gos O inspetor deixa a gente brincar
4o O EPELO DEXA A GETA BICA
A professora da lição para
5o A PEFESORA DA LISA PARA
A gente estudar e brin goto de des lis, li, lisa, lição
6o A GETA ESTUDA EU GOTO DAS LISA
E não godo, go, to, goto, goto de brin, brin, brincar, briga
7o EU NÃO GOTO DE BIGA
Ela. Tá certo? Brincar de muito
8o TEM MUTA
Brigar, brincar, tá certo? na escola há muita briga, sa, se, o si? Sipa.
212
9o BIGA NA ESCOLA A MIGINHA SEPA
Fica, ficarbrigando comigo
10o FICAVA BIGADO COMIGO
A aluna iniciou a leitura com base na escrita. Leu o título do texto “a escola” e a
primeira frase “a escola é muito legal”. Na segunda frase, “as merendeiras fazem comida
gostosa”, leu “as merendeiras faz comida”. Dessa forma, deixou de ler a palavra “gostosa”,
representada pelo segmento “goloze”, escrito sem ser separado da palavra “comida”. Depois,
começou a pronunciar a palavra que deixou de ler, para as grafias que correspondiam à palavra
“inspetor”. Percebeu o seu equívoco e leu a frase “o inspetor deixa a gente brincar”. Em
seguida, leu, de acordo com a escrita, “a professora dá lição para a gente estudar”. Começou a
enunciar uma frase que completava a anterior e, mais uma vez, percebeu que as grafias
correspondiam a uma outra palavra. Leu, então, “goto”, “des” para o segmento “das” e “lição”
para a grafia “lisa”, produzindo a frase “e brin, goto de, des lis, li, lisa, lição”. Com dificuldade
leu a frase seguinte “e não godo, go, to, goto, goto de brin, brin,, brincar, briga”, pois teve que
silabar. Ao ler a palavra “ela” para o segmento “em”, ficou em dúvida e, por isso, perguntou
se estava correta. Leu para os segmentos restantes “brincar de muito brigar, brincar na escola
há muita briga, sa, se, o si? Sipa. Fica, ficar brigando comigo”. A dificuldade encontrada na
leitura das palavras ocorreu em função da forma como foram escritas e possibilitou, também, a
produção de enunciados sem sentido no final do texto. É importante ressaltar que a aluna
apontou todas as grafias para realizar a atividade. Esse é um avanço importante, porque, nas
atividades anteriores, os enunciados do texto eram elaborados a partir da leitura de uma
palavra. Assim, mesmo tendo elaborado enunciados sem sentido para algumas partes do texto,
ela tentou efetivamente se relacionar com a escrita para lembrar o texto, diferentemente do que
fez quando tentou interpretar os textos sobre a sua brincadeira preferida e sobre o reconto.
Vejamos a atividade desenvolvida por Marianne. Ela tinha sete anos e nove meses de
idade e ainda não dominava a escrita alfabética, mas se relacionou com grafias, no texto, que
possibilitaram a lembrança dos enunciados.
213
A escola
A escola ensina a ler. Também tem refeições muito gostosas.
Tem Educação Física. As professoras são legais,
ensinam a ler e a escrever. A escola tem muitos
livros que a gente pode ler. Aprendemos tudo com as professoras.
Fazemos, às vezes, festinha de aniversário na classe.
Marianne utilizou as grafias “enoea” para representar a palavra escola, nos três
contextos em que foi escrita, e registrou a palavra livro ortograficamente. A representação
usada para a palavra escola foi a única indiferenciação no texto. Vejamos como ocorreu a
atividade de registro.
P.: O título do texto que você produziu é a escola.
Marianne: Es (registra a letra E), co la (registra as letras NOEA).
P.: A escola ensina a ler.
Marianne: A (registra a letra A), E (registra a letra E), cola (registra as letras NOEA), en
(registra as letras QE), sina (registra a sílaba NE), a (registra a letra A), ler (registra
as letras ENE).
P.: Também tem refeições muito gostosas.
Marianne: (Registra o segmento de grafias NECA COMA E A NA e repete a frase).
P.: As professoras são legais.
214
Marianne: A (registra as letras AS), pro (registra o segmento de letras SONENO ES A
SAENE e repete a frase).
P.: Ensinam a ler e a escrever.
Marianne: Ensinam (registra o segmento de letras NEMA E AENE MAERE).
P.: A escola tem muitos livros que a gente pode ler.
Marianne: A (registra a letra A), es (registra a sílaba EN), co (registra a letra O), la (registra o
segmento de letras EA QENE CETO), li (registra a sílaba LI), vro (registra a sílaba
VRO), que (registra as letras QE), a (registra o segmento de letras AEM MAERE).
P.: Aprendemos tudo com as professoras.
Marianne: A (registra a letra A), pren (registra o segmento de letras E RIO), tudo com
(registra o segmento de letras DOPES DEME).
P.: Fazemos, às vezes, festinha de aniversário na sala.
Marianne: (Registra o segmento de letras VEVE, apaga a letra E e escreve S, escreve as letras
AS), vezes (registra o segmento de letras VERPE).
P.: Escreveu?
Marianne: (Acrescenta o segmento de letras PEPA).
Assim como na atividade realizada pela Natália, a linguagem estava presente durante o
registro. Em alguns momentos, apenas repetiu as palavras que deveriam ser registradas. Em
outras, observamos que a unidade analisada era a sílaba que era representada por uma ou duas
letras. Usou, nessas situações, as vogais pertencentes à sílaba para representá-la. Em alguns
momentos, apenas repetia o enunciado que foi escrito ao final do registro. Vejamos como se
relacionou com os registros.
A escola
1o A ENOEA
A escola que ensina ler e a
2o A ENOEA QENE A ENE NECA COMA
215
escrever A vezes fazemos
3o EANA AS SONENO ES ASAENE NEMA
festinha de a niversário na
4o E AENE MAERE A ENOEA QENE CETO
Marianne rememorou, para os segmentos de grafias escritos nas segunda, terceira e
quarta linhas, os enunciados do texto, mas apontou, na segunda linha, as grafias
correspondentes à palavra escola. Contudo, isso não ocorreu ao indicar o mesmo segmento,
usado para representar a palavra escola, na quarta linha. Ao apontar a palavra livro, escrita
convencionalmente, no quinto segmento, disse “escola”. Percebeu que essa palavra não foi
escrita e, por isso, reorganizou os enunciados para ler a palavra e disse “livro para a gente ler”.
Vejamos:
escola
Livro para a gente poder ler
5o LIVRO QGAEM MAERE A ERIO DOPES DEME
Às vezes fazemos festinha de aniversário
6o VEVS AS VERPE PEPA
Ao final, disse que a escrita havia ajudado a lembrar o texto “mais ou menos, porque
não entendi muito bem a minha letra”. Disse ainda que as palavras “escola, livro e fazemos”
ajudaram na lembrança e, portanto, na leitura. De fato, ela apontou corretamente, em dois
contextos, as grafias correspondentes à palavra escola e reorganizou os enunciados para ler a
palavra “livro”. Apenas as letras “as”, na última linha de registro, não corresponderam,
durante a escrita, à palavra “fazemos”.
As atividades analisadas evidenciaram que, independentemente da escrita usada, a
linguagem tinha a função de auxiliar as crianças a lembrar as letras que deveriam ser grafadas
para as unidades pronunciadas. Evidenciamos ainda que, muito antes, de as crianças terem o
domínio da escrita alfabética, relacionavam-se com os registros produzidos para os textos para
216
recordá-lo. Nas situações examinadas, verificamos que as palavras escritas ortograficamente e
os registros usados para representar uma mesma palavra e, diferentes contextos auxiliavam a
lembrança dos enunciados do texto que motivou o registro ou de outro com o mesmo sentido.
b) As crianças escreviam silenciosamente
As duas atividades que serão analisadas mostrarão que as crianças que se relacionavam
com a escrita para recordar o texto que motivou os registros escreviam silenciosamente
independentemente do tipo de escrita usada. Mostraremos, primeiramente, a escrita elaborada
por Jonathan. Ele tinha o domínio da escrita alfabética e registrou o texto silenciosamente.
Vejamos o texto:
Como pode ser visto, a criança apropriou-se da escrita alfabética, de normas que regem
essa escrita e escreveu o texto silenciosamente. Desse modo, como mencionamos, algumas
crianças não elaboravam de modo manifesto a análise das unidades constituintes da linguagem
oral. Jonathan é uma dessas crianças: registrou silenciosamente os textos sem verbalizar as
análises elaboradas durante todas as atividades de registro. Ele leu o texto sobre a escola.
Analisaremos a atividade de José Carlos. Ele tinha nove anos de idade e não dominava
plenamente a escrita alfabética. No entanto, algumas palavras podem ser interpretadas. Em
217
outras atividades realizadas pela criança, a linguagem estava presente durante o registro, mas
ela escreveu o texto sobre a escola silenciosamente. Examinemos a sua escrita.
A escola
A escola é muito boa
e todas as professoras também.
Os alunos são bons
e querem aprender.
Eles são interessados na aula.
A professora ensina a fazer a lição.
A gente vai aprendendo.
Eu estou aprendendo a ler.
A criança usou o mesmo segmento de grafias “a elecola” para representar as palavras a
escola que foram escritas em dois contextos (no título e no primeiro enunciado). Podemos ler
as palavras “boa” e “alunos”. Vejamos como elaborou a escrita.
P.: O título do texto é a escola.
José Carlos: (Registra a A ELECOLA).
P.: [...] A escola é muito boa.
218
José Carlos: (Registra A ELECOLA É BOA).
P.: E os professores também.
José Carlos: (Registra o segmento de letras IROIMO).
P.: Os alunos são bons.
José Carlos: (Registra a palavra ALUNOS).
P.: Os alunos são bons.
José Carlos: (Permanece sem escrever).
P.: Terminou?
José Carlos: (Confirma acenando com a cabeça).
P.: E querem aprender.
José Carlos: (Registra o segmento de letras É AIDE).
P.: Eles são interessados na aula.
José Carlos: (Registra os segmentos ELE TELESA MALA).
P.: A professora ensina fazer a lição.
José Carlos: (Registra A TICÃO).
P.: E a gente vai aprendendo.
José Carlos: (Registra A TECÃO DO).
P.: Eu estou aprendendo a ler.
José Carlos: (Registra EADOALERO).
Desse modo, o aluno realizou a atividade silenciosamente. Limitou-se a escrever cada
enunciado que foi ditado. Observamos que, para as frases “os alunos são bons” e “a professora
ensina a lição”, escreveu apenas as palavras “alunos” e “a ticão”, respectivamente.
Acreditamos que pensava que os registros dessas palavras auxiliaria a lembrança. Ao terminar
o registro, pedimos que lesse o texto.
A escola
1o AELECOLA
A escola é boa
2o A ELECOLA É BOA
219
Os professores são bons.
3o IROINO
E os alunos também.
4o ALUNOS
5o É AIDE
Eles estão aprendendo
6o ELETELESAMALA
a lição
7o A TICÃO
A. Eu estou aprendendo a ler.
8o ATECÃO A . OO
9o E ADOA LERO
José Carlos organizou os enunciados produzidos com base nos registros possíveis de
serem interpretados. Ele leu o título do texto “a escola” e, em seguida, leu o enunciado “a
escola é boa”. Para o terceiro segmento de grafias, enunciou “os professores são bons”, com
base na memória. No quarto segmento, apontou a palavra “alunos” e enunciou a frase “e os
alunos também”. Ele deixou de apontar o quinto segmento e, para o sexto, apontou a palavra
“eles”, cujo registro é “ele” e enunciou “eles estão aprendendo a lição”. As palavras a lição
corresponderam aos segmentos “a ticão”. O enunciado foi evocado no momento, mas a
criança não deixou de apontar os segmentos “a ticão”, para as palavras a lição. Na última
frase, leu a letra “a”, mas elaborou o restante do enunciado com base na memória “A. Eu estou
aprendendo a ler”.
220
Como observamos, José Carlos registrou apenas a palavra alunos para a frase “os
alunos são bons” e para a frase “a professora ensina a lição” também registrou apenas as
grafias “a ticão”. Com base no registro da palavra alunos, enunciou a frase que motivou o
registro. No sexto segmento, enunciou uma frase, evocada no momento, com base no registro
da palavra “ele” e apontou as grafias “a ticão” para os segmentos de letras usados para
representar as palavras a lição. Enunciou “eles estão aprendendo a lição”. A criança não disse
a frase que motivou o registro, mas conseguiu, a partir da palavra “ele” e do segmento de
letras “a ticão”, enunciar uma frase com sentido. Durante o registro do texto, questionamos o
fato de escrever apenas uma palavra para os enunciados, mas ele pareceu estar seguro de que
esse único registro auxiliaria a lembrança do texto. Na realidade, o aluno criou um artifício
interessante para lembrar o texto. Como não sabia escrever todas as palavras, escreveu apenas
uma palavra conhecida, pois acreditava que essa escrita o ajudaria a recordar os enunciados
compostos com as palavras.
4.2 As crianças não se relacionavam com a escrita para recordar o texto
Das quatorze crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto,
cinco falaram consigo mesmas durante o registro e oito escreveram silenciosamente.
Analisaremos as atividades realizadas por três crianças incluídas nesta categoria. Mostraremos
os registros elaborados pelas crianças e, em seguida, como ele ocorreu. Vejamos,
primeiramente, a escrita de Rafaela. Ela tinha sete anos e nove meses de idade.
221
A escola
A escola é muito bonita.
Eu acho os livros legais.
Eu acho o pátio legal, porque tem vários brinquedos:
tem bambolê, jogo de memória e bola.
Eu não como a sopa, porque é muito quente.
Tem que pôr mais segurança na escola,
porque, no pátio, uma criança machuca a outra
e duas pessoas não dão conta de olhar.
A criança não usou as mesmas grafias para representar a palavra escola, nos quatro
contextos em que foi escrita. Não podemos relacionar as grafias com o conteúdo que motivou
a escrita, mas Rafaela diferenciou os segmentos de letras usados para escrever o texto.
Podemos observar, ainda, que colocou espaços em branco entre os segmentos de grafias
usados para escrever o texto. Outro aspecto que chama a atenção é o fato de escrever letras
isoladamente: grafou a letra “é” em dois contextos; a letra “e” foi registrada em três
222
contextos, sendo duas vezes escrita no início das linhas; a letra “a” foi escrita separada das
grafias correspondentes à palavra “escola”; a letra “o” foi registrada em um contexto separada
das outras grafias. Desse modo, as letras escritas isoladamente foram as vogais. Na escrita são
essas as letras que aparecem isoladas nos textos.
Já evidenciamos que as crianças que não se relacionavam com a escrita para recordar o
texto organizavam a escrita a partir dos princípios qualitativos e quantitativos. Entretanto, as
crianças que colocavam espaços em branco entre os segmentos de grafias registravam duas ou
uma letra isoladamente. O uso de uma letra por Rafaela, em algumas situações, foi propiciado
pelas relações que estabelecia entre essas letras e as unidades da linguagem oral. Ao escrever o
primeiro enunciado do texto, registrou o artigo “a” separado das grafias usadas para
representar a palavra escola, porque a criança sabia a letra que deveria ser usada para
representar o artigo. Assim, notamos que o registro das vogais, em algumas situações, foi
propiciado pela análise das unidades sonoras e, em outras, era resultado da reprodução das
características externas da escrita. É interessante observar ainda como a aluna acentuou a letra
“é” em dois contextos. Ela elaborou a escrita da seguinte maneira:
P.: O título do texto é a escola.
Rafaela: (Registra o segmento de letras ANTA).
P.: [...] A escola é muito boa.
Rafela: A escola (registra as letras A EOCA), é muito boa (registra as letras CDA É OLFC).
P.: Eu acho os livros legais.
Rafaela: (Registra os segmentos de letras E AFRILCA O ELCISL E CLLXZ).
P.: Eu acho o pátio legal, porque tem vários brinquedos.
Rafaela: (Registra os segmentos de letras E FOFA BERF SÉLRIE ACELSZ).
P.: Tem bambolê, jogo da memória e bola.
Rafaela: (Registra os segmentos de letras OTGFEX EXUOE BOBO).
P.: Eu não como sopa porque é muito quente.
Rafaela: (Registra o segmento de letras DEGX TOEOE).
P.: Tem que pôr mais segurança na escola.
Rafaela: (Registra o segmentos DTDILC ESR CIA OM).
P. Porque no pátio uma criança machuca a outra.
223
Rafaela: (Repete a frase e registra o segmentos LIT BMA É).
P. E duas pessoas não dão conta de olhar.
Rafaela: (Registra os segmentos de letras RACETC LOES e repete a frase).
A linguagem estava presente durante a escrita do texto. Nem sempre era possível ouvir
e entender o que dizia, mas verificamos, por meio do que foi possível ser ouvido, que repetia
cada enunciado antes ou após o seu registro. A criança dizia para ela mesma o que deveria
escrever ou o que havia escrito. Dessa forma, não elaborava, no plano verbal, a análise das
unidades da linguagem oral, mas, como mencionamos, o registro de algumas vogais
corresponderam às sílabas que iniciavam a primeira palavra dos enunciados do texto.
A aluna diferenciou as grafias usadas para escrever o texto, mas isso não possibilitou
uma relação funcional com a escrita. Também a superação do princípio quantitativo,
proporcionada, em algumas situações, pelas relações que estabelecia entre as unidades da
linguagem oral e as letras, não possibilitou a emergência de escritas expressivas e, portanto, de
grafias que auxiliassem a recordação dos enunciados do texto. Dessa forma, rememorou o
texto sem o auxílio da escrita. Solicitamos, então, conforme combinado, que lesse o texto que
registrou:
“O título da história
A, esqueci, a sopa da escola é muito quente.
Tem gosto muito dos livros da escola.
Tem bambolê, jogo da memória, bola.
Que tem mais. Tem que ter mais segurança na escola.
E que uma criança machuca a outra”.
Rafaela apontou a escrita como se brincasse de ler, mas não se relacionou com as
grafias para recordar o texto. Observamos que se esforçou para lembrá-lo, mas não pôde ainda
usar as grafias como recurso mnemônico.
Analisemos agora o texto de Ricardo. Ele tinha nove anos e nove meses de idade e
produziu a escrita a seguir para o texto elaborado oralmente:
224
A escola
A escola é um lugar que nós aprendemos.
A escola é um lugar que a gente brinca.
A escola é um lugar que a gente come.
Ela tem banheiro.
O professor xinga quando faz bagunça e quando briga.
Quando dá o horário vai embora e as mães vêm buscar.
Como pode ser constatado, Ricardo representou as palavras a escola com as mesmas
grafias “aionri”, na primeira e segunda linha. Ele não colocou separações entre as grafias
usadas para escrever o texto e a linguagem estava presente durante o registro. Vejamos:
Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra I), co (registra a letra O), a escola (registra
as letras NR).
P.: A escola é um lugar que nós aprendemos.
Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra I), co (registra a letra O) e.
P.: A escola é um lugar que a gente brinca.
225
Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra E), a escola é (registra a letra O), um lu
(registra as letras RL).
P.: Que a gente brinca.
Ricardo: Que (registra a letra E), a (registra a letra A), gente (registra as letras PNFI), brinca.
P.: A escola é um lugar que a gente come.
Ricardo: A (registra a letra A), e (registra a letra R), cola (registra a letra O), é (registra a letra
R, apaga e registra a letra E). Um, um (registra a letra L), lo (registra a letra O), gar
(registra a letra A), que (registra a letra P), nóis (registra a letra N), a (registra as
letras AC).
P.: Que a gente come.
Ricardo: (Apaga a letra C), ga (registra as letras LI), co (registra as letras OML).
P.: Ela tem banheiro.
Ricardo: Ela, e (registra as letras RLA), tem, T (registra a letra L), banhe, nhe (registra as
letras EV), a escola tem (registra a letra O).
P.: O inspetor xinga quando faz bagunça e quando briga.
Ricardo: O (registra as letras CLR). O inspetor xinga quando (registra o segmento de letras
ROEVIOLNL)...
Como pode ser visto, a criança representava as sílabas que eram pronunciadas com
uma ou duas letras. As vogais registradas pertenciam às sílabas analisadas verbalmente. Desse
modo, a escrita elaborada pela criança não foi organizada a partir da reprodução das
características externas da escrita, mas a partir das relações que estabelecia entre as unidades
da linguagem oral e as letras. Ricardo analisou as unidades da linguagem oral e as representou,
demonstrando que compreendia que a escrita é um simbolismo de segunda ordem; porém, em
algumas situações, também repetiu para ele mesmo o enunciado e escreveu letras
aleatoriamente. Ao solicitarmos que lesse, enunciou o texto de modo semelhante à Rafaela:
226
“Ricardo
A escola é lugar que nos aprende.
A escola tem banheiro. O pro
O professor quando a gente bagunça o professor xinga, quando a gente briga também.
A mãe vem buscar quando dá o horário”.
A criança rememorou o texto sem o auxílio da escrita e os registros foram apontados
aleatoriamente. É importante acentuar que a compreensão de que as letras representam
unidades da linguagem oral não é acompanhada, no início, pela capacidade de usar a escrita
como recurso para lembrar o texto. Rafaela e Ricardo têm uma certa compreensão de que a
escrita representa a linguagem oral, mas apenas rememoram os textos sem o auxílio da escrita.
Por último, examinaremos a atividade realizada por Adriano. Ele escreveu silenciosamente e
elaborou a escrita abaixo para o texto que produziu oralmente. Ele tinha oito anos e quatro
meses de idade.
A escola
A escola é muito boa.
Ela faz as criança aprender muito.
Ainda as crianças têm uma hora para brincar.
Eu gosto da merenda
e os professores são muito bons.
227
As grafias não podem ser interpretadas. No entanto, Adriano usou quase as mesmas
letras para representar as palavras a escola no título e no primeiro enunciado. Ele diferenciou a
escrita ao registrar cada enunciado, variou as letras numa mesma cadeia e usou um número
maior de letras para representar os enunciados do texto em relação ao número de letras usado
para representar o título, composto com apenas duas palavras. O texto foi registrado conforme
será descrito:
P.: [...] Escreva a escola.
Adriano: (Escreve AE com letra cursiva).
P.: Use letra de forma, tá?
Adriano: (Continua usando o mesmo tipo de letra e registra o segmento BOSA).
P.: Muito bem! Agora, eu gostaria que você usasse letra de forma [...] A escola é muito boa.
Adriano: (Registra AEBOA E U, conta quantas letras grafou e registra ÃO).
P.: Terminou?
Adriano: (Confirma).
P.: Ela faz as crianças aprenderem muito.
Adriano: (Registra as letras E A, volta, registra uma letra antes da letra A, apaga as duas
últimas letras, registra a letra S cursiva, as letras AGAIB, apaga e escreve DOUSO).
P.: Ainda as crianças têm uma hora para brincar.
Adriano: (Registra a letra A, volta e registra as letra I, continua e registra as letras
SAUOAIH).
P.: Eu gosto da merenda.
Adriano: (Registra as letras EQAÉBA).
P.: E os professores são muito bons.
Adriano: (Registra as letras IOVSOIAO).
Podemos observar que Adriano estava preocupado com a quantidade de letras que
deveria registrar, pois contou as letras que havia escrito para o primeiro enunciado “a escola é
muito boa”. Ao escrever os enunciados do texto, usou o mínimo de oito letras e, ao registrar o
título do texto, grafou seis letras. Ao final do registro, solicitamos, conforme combinamos, que
lesse o que escreveu. A criança ficou silenciosa e, depois, disse que a escrita não ajudava a
228
recordar o texto. Assim, as diferenciações na escrita não possibilitaram a emergência de
grafias expressivas.
Conforme mencionamos, de modo geral, durante o estudo, observamos um aumento da
linguagem que surgia durante o registro dos textos, seguido de uma diminuição, à medida que
as crianças se apropriavam da escrita, assim como verificamos a inexistência desse tipo de
linguagem durante a fase inicial de alfabetização. Identificamos dois tipos de linguagem,
durante a atividade de registro dos textos: egocêntrica e comunicativa. Vigotski, com base na
análise que elaborou do trabalho realizado por Piaget A linguagem e o pensamento na criança,
diz que esse autor não atribuiu nenhuma função importante para a linguagem egocêntrica no
desenvolvimento infantil.
Es un lenguaje para uno mismo, para la propria satisfacción, que podría no manifestarse, y
cuja ausencia no modificaría nada esencial en la actividad infantil. Se puede decir que este
lenguaje infantil, subordinado por completo a motivos egocéntricos, es casi incomprensible
para quienes rodean al niño, es algo así como un sueño verbal de éste o, cuando menos,
producto de su mente, más próxima a la lógica de las ilusiones y de los sueños que a la del
pensamiento realista (1993, p. 49).
Ainda de acordo com Vigotski (1993), por ser funcionalmente inútil, Piaget considera
que o destino da linguagem egocêntrica é atrofiar-se e desaparecer próximo à idade escolar.
No entanto, esse autor argumenta que as suas investigações possibilitaram uma outra
interpretação com relação à função e ao destino da linguagem egocêntrica. Ela se converte, no
curso de uma atividade social, em um instrumento do pensamento, pois a criança elabora a
solução de uma atividade na qual é introduzida uma dificuldade, no plano verbal. Nesse
sentido, a linguagem egocêntrica pode ser considerada uma etapa transitória na evolução para
a linguagem interna/interior. Como um fenômeno de transição, segundo Vigostski, a
linguagem egocêntrica não desaparece: interioriza-se, transformando-se em linguagem
interior. Por meio da análise da linguagem egocêntrica, observou que ela é semelhante à
linguagem interior em sua estrutura e direção: é condensada, abreviada, contendo elementos
suficientes para que a criança a entenda e está dirigida para a própria criança, pois não tem a
finalidade de estabelecer comunicação com as outras pessoas.
229
Para Vigotski, a linguagem na criança é essencialmente social. A linguagem
egocêntrica surge no curso do desenvolvimento infantil, devido à diversificação da orientação
da linguagem. A linguagem comunicativa permanece dirigida para as outras pessoas e a
linguagem egocêntrica passa a ser dirigida para a própria criança. Dessa forma, a linguagem
egocêntrica é social, porque, na realidade, as crianças passam a elaborar, consigo mesmas, as
formas sociais de comportamento, ou seja, estas se deslocam para a esfera das funções
individuais. A linguagem egocêntrica é compreendida, então, do ponto de vista genético, como
o momento de transição das funções sociais para as funções psicológicas.
Consideramos que as interpretações de Vigotski nos ajudam a entender a função da
linguagem que ocorria durante o registro dos textos. As crianças elaboravam, por meio da
linguagem, a análise das unidades da linguagem oral e registravam símbolos correspondentes
a essas unidades. Desse modo, foi possível observar como as relações entre o oral e o escrito,
constituídas socialmente, se deslocaram para o plano individual, pois as crianças começaram a
elaborá-las consigo mesmas. Porém, é importante esclarecer que ao apontarmos que as
relações entre as unidades sonoras e símbolos alfabéticos foram constituídas socialmente não
significa somente dizer que essas relações precisam ser ensinadas para os alunos possam
aprendê-las e, por isso, têm que ser reconstituídas no plano social, entre as pessoas, mas,
sobretudo, significa dizer que é uma produção social, resultado da atividade coletiva de outras
pessoas ao longo da história da humanidade. Assim, análise que elaboramos que ocorria,
durante o registro, evidencia que o processo de desenvolvimento infantil direciona-se do social
para o individual, ou seja, as funções elaboradas socialmente se tornam funções do próprio
indivíduo.
Como apontamos, observamos uma diminuição da linguagem egocêntrica, à medida
que as crianças se apropriavam da escrita. As análises de Vigotski mostram que essa redução
se refere apenas a uma das características da linguagem egocêntrica: a sua vocalização.
El lenguaje , por tanto, se convierte en interno antes psíquica que físicamente. Esto
nos permite aclarar cómo tiene lugar el proceso de formación del lenguaje interno.
Se inicia en la diferenciación de las funciones del lenguaje, el lenguaje egocéntrico
se va segregando del social, a través de su reducción paulatina y concluye com su
transformación en lenguaje interno (1993, p. 57).
230
As crianças, certamente, continuam a elaborar as análises sem manifestá-las até que a
escrita adquira novamente “o caráter de simbolismo direto, passando a ser percebida da
mesma forma que a linguagem oral” (Vigotski, 1989a, p. 132), ou seja, à medida que a criança
aprende as letras que são usadas para representar as unidades menores da linguagem oral, não
precisará mais de efetuar a análise das unidades constituintes da linguagem oral e passará a
representar diretamente os significados que pretende anotar. As atividades evidenciam ainda
que a análise das unidades da linguagem oral não é feita de maneira direta, mas se desenvolve
por meio da linguagem que, por sua vez, auxilia a lembrança das letras que devem ser usadas
para grafar as unidades analisadas no plano verbal.
Para concluir este item, é importante enfatizar que percebemos que as crianças que
não usavam a escrita alfabética se relacionavam com os registros para recordar o texto. Desse
modo, antes de a criança ter esse domínio, ao ser incentivada a se relacionar com a escrita para
fins psicológicos, descobre o uso instrumental da escrita. Por outro lado, observamos, ainda,
que as crianças que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto também
analisavam as unidades da linguagem oral no plano verbal e, dessa forma, estabeleciam
relações entre o oral e o escrito. A análise elaborada não possibilitava a emergência de grafias
expressivas, mas propiciou a superação da atividade gráfica baseada unicamente na
reprodução da aparência externa da escrita.
5 O registro do texto sobre a história em seqüência
Iniciamos a última atividade do trabalho com as crianças no mês de novembro.
Solicitamos que elas produzissem oralmente um texto sobre uma história em seqüência,
escolhida pelas próprias crianças, do livro de Eva Furnari intitulado A bruxa atrapalhada.
Inicialmente, conversamos com elas, na sala de aula, sobre o tipo de história, sobre outros
livros produzidos pela autora e apresentamos algumas informações sobre a escritora. As
crianças escolheram duas histórias para realização da atividade: O telefone e O pirulito.
A atividade de produção oral e registro do texto foi encaminhada em dois momentos:
no primeiro momento, as crianças manuseavam o livro, escolhiam a história e produziam
oralmente uma nova história que era registrada pela pesquisadora. Ao final da produção e
registro, líamos o texto para as crianças. O segundo momento foi orientado da seguinte forma:
231
a) solicitamos às crianças que registrassem o texto que haviam produzido oralmente;
b) pedimos, ainda, que elaborassem, com atenção, o registro, pois, ao final da escrita,
deveriam ler o texto que escreveram.
Participaram da atividade trinta e sete crianças que freqüentavam a classe no mês de
novembro. Optamos pela participação de todas as crianças para termos uma visão ampla do
que ocorreu com elas durante o ano letivo. Assim, com base na atividade realizada,
concluímos que vinte e oito crianças usavam a escrita como recurso para recordar o texto e
nove rememoravam o texto. No início do ano, a partir da análise da primeira atividade
realizada (registro da brincadeira), identificamos doze sujeitos que se relacionavam com os
registros para recordar o conteúdo do texto. É importante lembrar que quatro crianças que
participaram da primeira atividade foram transferidas para outras escolas. Desse modo,
participaram da última atividade trinta e três crianças que faziam parte do grupo inicial.
Considerando esse grupo, verificamos que houve um aumento significativo no número de
crianças que passou a se relacionar com as grafias para ler o texto que registravam (26
crianças).
Analisaremos, finalmente, neste último item, apenas as atividades das crianças que se
relacionavam com a escrita para lembrarem o texto registrado. Esta última análise irá
corroborar a tese de que as crianças, durante a fase inicial de alfabetização, relacionam-se com
as grafias usadas para registrar o texto, mesmo antes de terem o domínio da escrita alfabética.
Mostraremos as atividades realizadas por quatro crianças, priorizando o momento em
que eram incentivadas a ler o texto que escreveram. Iniciaremos pela atividade desenvolvida
por Fernanda. Anteriormente, mostramos que o registro de palavras ortograficamente pode
possibilitar a lembrança do conteúdo do texto. Na atividade realizada pela aluna, verificamos
que ela reelaborou os enunciados do texto, a partir da identificação de uma palavra registrada
ortograficamente. Observaremos a escrita produzida pela criança e o texto que motivou os
registros. A criança tinha sete anos e dez meses de idade.
232
O telefone
A bruxinha estava dormindo.
O gato estava acordado
e pegou a varinha da bruxa.
Depois, ele transformou o telefone em lanche
e o vaso em coca.
Ele jogou a varinha no chão
e comeu o lanche.
A bruxa acordou,
a varinha estava no chão.
O gato olhou para cima
e deixou a garrafa no canto.
Podemos observar que a criança diferenciou as grafias usadas para escrever as frases.
No entanto, escreveu as vogais, no início das frases, separando-as de outras grafias usadas
233
para representar o texto. A maioria das vogais registradas corresponde aos artigos; foi escrita
ainda a conjunção “e” que iniciou uma das partes do texto. Essas representações resultaram da
análise que a criança elaborava dessas unidades.
A aluna escreveu a palavra gato duas vezes. No terceiro segmento de grafias, registrou
“gota” e, no décimo primeiro, escreveu “gato”. Grafou ainda, no oitavo segmento, as letras
que compõem a palavra gato, alterando as suas posições, mas, nesse caso, o registro não
correspondia à palavra “gato”. As palavras “telefone, bruxa e lanche” apareceram mais de uma
vez no texto, mas não foram representadas, nesses contextos, com as mesmas grafias. Vejamos
como se relacionou com as grafias para lembrar o texto:
O telefone
1o U TEBOE
A bruxinha estava dormindo
2o A BOTA E BTO
O gato estava acordado
3o O GOTA E PTABO
E o telefone
4o E PTODE E FRNO
Ni lanche
5o TEDBEZF
E o vaso
6o LUERA
Ni coca
7o E RNABBP
234
E jogou a varinha no chão.
8o E TOBENMSV
A gatinho olhou para a cima.
9o A GTOA (acrescenta as letras) TBN
Não. (Volta ao registro anterior e lê “A bruxinha acordou”)
Olhou para cima.
10o A NOTBDA
O gatinho de a varinha estava no chão.
11o O GATO DEBBA
E ela viu a varinha.
12o EBRNMAO
Como pode ser visto, para o primeiro segmento de grafias, enunciou o título do texto
(“o telefone”). Todas as crianças que se relacionavam com os registros para lembrar o texto
liam o primeiro segmento de grafias para o título da história. A posição das grafias, ou seja, o
fato de serem registradas no início contribuiu para isso. Para o segundo segmento, enunciou “a
bruxinha estava o dormindo. O gato”. O enunciado é exatamente aquele que motivou o
registro, acrescido pelas palavras “o gato”. Podemos dizer que ela memorizou esse conteúdo e,
por isso, o enunciou. Ao passar para o terceiro segmento, observou que estava escrito “O
gato”, repetiu essas palavras e enunciou o conteúdo que motivou o registro “O gato estava
acordado”. No quarto segmento, observamos que interpretou a letra “e”, mas não sabia como
continuar o enunciado a partir da leitura da letra. Recorreu, então, exclusivamente à memória
para dar continuidade à atividade. Destacamos ainda o que ocorreu ao apontar o oitavo
segmento. Ela leu a letra “a”, em seguida, percebeu que estavam escritas as letras que
compõem a palavra “gato” e decidiu acrescentar as letras “tbn” para enunciar a frase “gatinho
olhou para cima”. É interessante observar que as letras apontadas como correspondentes à
palavra “gatinho” foram usadas para representar a frase “a bruxa acordou”. Começou a ler o
235
nono segmento pronunciando a letra “a”. De repente, disse que não era aquilo, retomou o
oitavo segmento, enunciou a frase “a bruxinha acordou” e, para o nono segmento, disse que
estava escrito “olhou para cima”, completando a frase iniciada. Novamente, diante da palavra
“gato” (décimo segmento), enunciou “o gatinho de a varinha estava no chão”. Dessa forma,
produziu um enunciado sem sentido, resultado da interpretação da grafia “de”. Como é visível,
a criança leu o artigo “a” e a preposição “de” elaborando construções como “a gatinho”
(primeira leitura elaborada do oitavo segmento de grafias) e “o gatinho de a varinha estava no
chão”. De modo geral, as crianças interpretaram as letras registradas correspondentes aos
artigos e à preposição “de”. No entanto, nem sempre a leitura dessas palavras auxiliara a
lembrança do texto. Muitas vezes, proporcionava a enunciação de frases sem sentido.
Podemos dizer que os enunciados elaborados pela criança são constituídos, a partir da
interpretação de grafias no texto e, também, do texto que consegue reproduzir de memória. A
presença, no texto, de grafias expressivas possibilitou a reorganização dos enunciados, e a
lembrança do texto registrado ou de outro evocado no momento.
A atividade desenvolvida por Jéssica Mendes confirma as nossas observações no
decorrer do trabalho. A criança representou uma mesma palavra com o mesmo segmento de
grafias, em mais de um contexto, e essa representação possibilitou a lembrança do conteúdo
que motivou a escrita. Observemos a escrita da aluna.
236
O pirulito
A bruxinha e seu amigo estavam chupando pirulito.
Ela estava conversando com o seu amigo
e a formiga levou o pirulito dela.
A bruxinha ficou assustada e resolveu transformar a formiga em um elefante.
O elefante e o pirulito ficaram grandes.
Assim, a aluna escreveu “pilo” e “boxa” para as palavras pirulito e bruxa,
respectivamente. Repetiu esses mesmos segmentos de grafias todas as vezes que escreveu as
palavras. A palavra gato foi escrita ortograficamente. Ela interpretou os registros com base nas
indicações que se seguem.
O pirulito
1o O PILO
A bruxa estava (pára) chupando pirulito.
2o A BOXA GATO E DSIC PILO
E que estavam conversando, e a formiga pegou o pirulito dela
estavam conversando
3o E QUI GISO QISO E AFNCA LSI O PILO
A bruxa ficou assustada
E resolveu transformar num elefante
4o A BOXA A SOAIA E RESO PLS AFSL ELOFE
E pirulito grande.
5o E EASE E O PILO FHESE
Desse modo, leu o título da história “o pirulito”. Apontou o segundo segmento e
enunciou a frase “a bruxa estava chupando pirulito”, assinalando corretamente o segmento “a
boxa” para as palavras a bruxa. No momento em que apontou a palavra “gato”, enunciou
237
“estava”. Ela pareceu perceber que não era essa a palavra e, por isso, ficou silenciosa por
alguns segundos, mas decidiu continuar a atividade e apontou, para o último segmento,
reproduzido do título (“pilo”), para a palavra pirulito. Para o terceiro segmento, enunciou “e
que estavam conversando e a formiga pegou o pirulito dela”. Veja que a leitura das palavras “e
que” corresponde ao seu registro e o segmento de letras correspondente à palavra pirulito
também foi lido.
Apontou o quarto segmento, enunciou “a bruxa ficou e assustada”. Novamente,
apontou os segmentos correspondentes às palavras “a bruxa”, leu a letra “e”, mas teve que
completar com a palavra “assustada” para produzir um enunciado com sentido. A leitura
parece deixá-la insatisfeita, por isso, retomou as grafias a partir da letra “e” e leu “e resolveu
transformar num elefante”. As grafias usadas para escrever as palavras elefante (“elofe”) e
“resolveu” (“reso”) possuíam letras usadas para compor a palavra na sua forma convencional.
A criança reconheceu que ali estavam escritas as palavras “resolveu” e “elefante” e
reorganizou os enunciados.
Para o quinto segmento, enunciou “E pirulito grande”. Ela deixou de apontar três
segmentos de letras e leu o registro correspondente à palavra pirulito. A criança produziu o
texto abaixo para a sua escrita:
“O pirulito
A bruxa estava chupando pirulito.
E que estavam conversando e a formiga pegou o pirulito dela.
A bruxa ficou e assustada e resolveu transformar num elefante.
E pirulito grande”.
Assim, ela se relacionou com a escrita para lembrar a história. O texto final pode ser
compreendido, com exceção da última frase, porque novamente estava registrado o segmento
de letras correspondente à palavra “pirulito” que ela não deixou de considerar. Gostaríamos de
destacar, mais uma vez, que a criança compreendia que representamos as mesmas palavras,
nos vários contextos, com o mesmo segmento de letras e o uso das mesmas grafias para
representar uma mesma palavra adquire um caráter expressivo e auxiliava a recordação do
texto.
238
A atividade desenvolvida por Vanessa é muito interessante. Vejamos a escrita
produzida pela criança:
O pirulito
A bruxinha e o gato estavam chupando pirulito. De-
pois, a bruxinha colocou o pirulito em cima do banco.
Veio a formiguinha e carregou o pirulito.
A bruxinha viu, pegou sua varinha
e fez plim.
A formiguinha virou um elefante.
Como pode ser visto, a aluna representou a palavra pirulito, nos três contextos,
praticamente com as mesmas letras. Escreveu “piulito, iulito e iulito”. Dessa forma, omitiu a
letra “p”, nas duas últimas grafias. Usou ainda para representar a palavra formiguinha as
grafias “fuiza” em dois contextos. A palavra gata pode ser lida, mas deveria ter sido escrita a
palavra gato. Vejamos como ocorreu a atividade:
239
Pi, ru, li, to.
1o PIULITO
A bruxinha e o gato estavam chupando pirulito de
2o A BAXNA E GATA ETAVÃN XUBUIULITO DE
Pos colocou o pirulito no. Não! Sofá.
3o BOI A BAXNA DO UIULITO NÃO SIMADO BADO
Depois veio uma formiguina e carregou.
4o VA UMA FUIZA ICROUIULITO
A bruxinha pegou sua varinha, varinha.
5o A BUXNARI PGOUAVAIM
Faltou a letra “e” aqui (acrescenta a letra)
E fez prim.
6o E FIFI
E depois a formiguinha virou um elefante.
7o A FUIZA RIOVELEUMTA
Assim, leu para o primeiro segmento de grafias a palavra “pirulito”, apontando as
letras usadas para representar as unidades silábicas. Para os segundo e terceiro, enunciou “a
bruxinha e o gato estavam chupando pirulito”. Depois, colocou o pirulito no sofá”. Apontou o
segundo segmento e o modo como registrou as palavras não impossibilitou a leitura. No
terceiro segmento de grafias, apontou o registro da palavra bruxinha e disse a palavra
“colocou”, deixou de apontar um dos segmentos e produziu um texto próximo do que
motivou o registro.
Apontou o quarto segmento e enunciou “depois veio uma formiguinha e carregou”. Ela
apontou o segmento usado para registrar a palavra “formiguinha”. No quinto segmento,
240
apontou os segmentos correspondentes às palavras enunciadas “a bruxinha pegou a sua
varinha”. Ao continuar a frase, apontou o sexto segmento, percebeu que faltava a letra “e”,
necessária para completar a frase que estava sendo produzida. Então, escreveu a letra e leu “e
fez prim”. Concluiu a atividade com a frase “e depois a formiguinha virou um elefante”.
Como pode ser visto, acrescentou as palavras “e depois” para garantir a seqüência do texto.
Podemos observar que a criança se relacionou com a escrita para lembrar o texto e buscou
orientar a leitura a partir dos registros.
A escrita elaborada por Manuely evidencia, também, o surgimento de grafias
expressivas, porque são repetidas no texto para representar uma mesma palavra.
O pirulito
A bruxinha e o gato estavam
chupando pirulito. A formiguinha
pegou o pirulito da bruxinha
e levou embora. A bruxinha
resolveu transformar a formiguinha em um
elefante. E a mágica aconteceu! A
formiga virou um grande elefante.
241
Assim, a aluna representou as palavras bruxinha e pirulito, com os segmentos “baxa” e
“nlbto”, respectivamente; registrou a palavra gato ortograficamente. As palavras elefante e
formiguinha foram escritas duas vezes no texto, mas grafadas de formas diferentes. Manuely
colocou separações entre os segmentos de letras usados para escrever o texto, demonstrando
que se apropriou dessa característica da escrita. A leitura que realizou será mostrada a seguir:
O pirulito O pirulito
1o O BIN OEI NLBTO
A bruxinha e o gato esta
2o A BAXAE E O GATO ETES
Vam chu pando pirulito
3o ELT O NLBTO A NVOA
E a for miga pegou o pirulito da bruxinha
4o PEIGO O NLBTO WGB BAXA
E a bruxinha resolveu a bruxinha
5o E CONTO NTON A BAXA
Re soveu transformar em um grande
6o HPI ZAZL BOMA DEM UM EAE
Elefante e a mágica aconteceu
7o LTE E A METW ACETCO A
Ele transformou num grande elefante.
8o COME A UM CECL EDE
242
Como vimos, ela repetiu duas vezes o título do texto e correspondeu segmentos de
letras deferentes para as mesmas palavras “O pirulito”. Para o segundo segmento, enunciou “a
bruxa e o gato esta” e apontou as palavras “a bruxa e o gato” para as suas grafias. No quarto
segmento, ao perceber a escrita da palavra bruxa, apontou o segmento “wbb” para as palavras
“pegou o pirulito da” e apontou o segmento correspondente à palavra “bruxinha”. No entanto,
no quarto segmento, indicou, para a palavra “bruxinha”, grafias que não foram usadas para
escrever essa palavra.
Começou a enunciar uma frase, mas reorganizou o enunciado ao observar, no mesmo
segmento, o registro da palavra bruxinha. Dessa forma, o uso das mesmas grafias para
representar uma mesma palavra provocou a reorganização dos enunciados que estavam sendo
elaborados e contribuiu para ajudar na lembrança do texto.
Analisaremos, por último, a atividade realizada por Ana Paula Morais:
243
O telefone
A bruxinha estava dormindo
e o gato pegou sua varinha mágica.
O gato fez o telefone
e o vaso de flor sumir.
Apareceram um sanduíche e uma garrafa de refrigerante.
O gato comeu o sanduíche
e bebeu o refrigerante.
Saiu um barulho estranho da barriga do gato.
e a bruxinha acordou.
Conforme podemos observar, ela escreveu a palavra gato convencionalmente, usou as
mesmas grafias “brxu” para representar a palavra bruxa e as grafias “caco” para representar a
palavra refrigerante. Da mesma forma que Manuely, a criança colocou espaços em branco
entre os segmentos de letras usados para representar o texto. No caso da menina, as letras
escolhidas para registrar as palavras das frases foram baseadas na análise que elaborou
verbalmente das unidades da linguagem oral. Desse modo, o registro dos artigos separados por
espaços em branco originaram-se dessa análise. Ela repetia cada sílaba que compunha as
palavras e registrava uma letra para cada uma. Ela se relacionou com a escrita da maneira que
se segue para lembrar o texto:
A bruxinha estava do
2o A U BRXU ETAVA UAIANO
Min gato pegou su a varinha mágica
3o I U GATO PAUO UO A FAIA NA BAICA
O gato fez o telefone
4o U GATO FA U TALACO
244
Sei mir de (não) depois
De flor
E o vaso de flor
So bre
5o IA U FAVO DE FORO UOAO IAFA
A pa receu um sanduíche e um refrigerante
6o A PA RACO UM COVOAIO IA UM CACO DE FAGA
O gato co meu o sanduíche
7o U GATO DO MALA O CACOIA
E bebeu o o refrigerante
8o IA NENE U FAFI G CACO
A barriga do gato fez um barulho estranho.
9o I SAIA UM BAUO IARANO DA BAIO UO GATO
E a bruxinha a cordou
10o IA A UO BRXU A CODO
A aluna disse o título do texto, mas não apontou onde estava lendo. Passou a indicar as
grafias, na segunda linha, em função da nossa sugestão. Após a nossa sugestão, apontou e
interpretou as vogais registrada, no início das linhas, com exceção da vogal registrada na
quarta linha. Apontou as grafias usadas para representar as palavras bruxa e refrigerante e leu
essas palavras. Algumas palavras registradas com letras que pertencem a sua escrita
convencional também foram interpretadas.
Assim, as atividades evidenciam o surgimento de grafias expressivas: as palavras
escritas ortograficamente, o uso de um mesmo segmento de grafias para representar uma
mesma palavra, o uso de letras que compõem a sua escrita ortográfica para escrever uma
palavra e o registro de artigos e da preposição “de” adquirem um caráter expressivo e, dessa
245
forma, auxiliam a lembrança do conteúdo que motivou a escrita, quando as crianças são
incentivadas a se relacionarem com as grafias usadas para escrever os textos.
Acreditamos que temos uma base empírica consistente que confirma as análises que
elaboramos ao longo deste capítulo. O próximo capítulo terá por finalidade sintetizar as nossas
descobertas durante o estudo. Acreditamos que a síntese que será elaborada, assim como as
análises que foram construídas, irão contribuir para a compreensão do processo de apropriação
da linguagem escrita pelas crianças na fase inicial de alfabetização.
246
Capítulo VIConsiderações finais
Após os primeiros trabalhos realizados por Luria sobre o desenvolvimento da escrita
nas crianças, na década de vinte, como parte de um empreendimento teórico mais amplo,
somente a partir da década de setenta, houve uma proliferação de estudos, no campo da
Psicologia, que incorporaram a linguagem escrita como objeto de conhecimento. Dessa forma,
passaram-se quase cinqüenta anos desde o trabalho realizado por Luria até “a incorporação da
escrita como objeto de estudo psicológico” (Landsmann, 1995, p. 165).
Este estudo tomou por base as descobertas de Luria sobre o desenvolvimento da
escrita na criança e a concepção de linguagem escrita que orientou os seus estudos e buscou
analisar os processos que se constituem nas crianças, na fase inicial de alfabetização, ao serem
incentivadas a estabelecer uma relação funcional com a escrita, ou seja, quando incentivadas a
usá-la com função mnemônica. Desse modo, focalizamos a linguagem escrita, como um
sistema de signos que serve de apoio às funções psicológicas, especificamente, à memória.
Para Luria, “a escrita é uma dessas técnicas auxiliares usadas para fins psicológicos; a escrita
constitui o uso funcional de linhas, pontos e outros signos para recordar, transmitir idéias e
conceitos” (1988, p. 146).
Discutimos, no Capítulo III, que o desenvolvimento cultural na criança ocorre
simultaneamente com o desenvolvimento orgânico. Segundo Vigotski, “a particularidade e a
dificuldade do problema do desenvolvimento das funções psíquicas reside no fato de que
essas duas linhas de desenvolvimento estão integradas na ontogênese formando um processo
único e complexo” (tradução nossa) (1987, p. 33). No entanto, esses dois processos
(biológico/cultural) não se confundem. Eles são distintos em sua essência e natureza, mas
progridem simultaneamente formando um processo único, no qual se desenvolvem, nas
crianças, os seus órgãos naturais e os órgãos artificiais criados ao longo da história humana.
Nesse sentido, Vigotski diz que “cada função psíquica ultrapassa os limites do sistema
orgânico de ativação que lhe é próprio e começa seu desenvolvimento cultural dentro dos
limites de outro sistema de ativação completamente novo” (tradução nossa) (p. 43), pois a
criação e a utilização de signos constituem as formas humanas de atuação e as diferenciam da
atividade animal. O autor chama de signos os meios artificiais que auxiliam a solução de
247
qualquer tarefa psicológica. A linguagem escrita é um desses meios artificiais criados pela
humanidade ao longo de sua história que auxiliam a recordação e serve, assim, como recurso
para a memória. Segundo Luria,
em contraste com um certo número de outras funções psicológicas, a escrita pode ser
definida como uma função que se realiza, culturalmente, por mediação. A condição mais
fundamental exigida para que uma criança seja capaz de tomar nota de alguma noção,
conceito ou frase é que algum estímulo, ou insinuação particular, que, em si mesmo, nada
tem que ver com esta idéia, conceito ou frase, é empregado como um signo auxiliar cuja
percepção leva a criança a recordar a idéia etc., à qual se refere (1988, p. 145).
Desse modo, os símbolos alfabéticos desempenham um papel funcional auxiliar, pois a
escrita é usada para fins psicológicos. Parafraseando Luria, ela constitui, na nossa sociedade, o
uso funcional das letras do alfabeto para recordar, transmitir idéias e conceitos. A partir da
concepção de que a linguagem escrita é um sistema de signos que serve como apoio às
funções psicológicas, planejamos atividades de produção oral de textos e registros dos
mesmos textos para observarmos como as crianças se relacionavam com a escrita, durante a
fase inicial de alfabetização. Assim, não organizamos, previamente, frases e palavras a serem
escritas pelas crianças com o objetivo de intervir no modo como escreviam, pois elas próprias
produziram os textos que escreveram (apenas na terceira atividade escolhemos um poema a
ser escrito pelas crianças cuja finalidade foi buscar confirmação para as descobertas apoiadas
nas duas primeiras atividades), mas criamos situações em que as crianças eram incentivadas a
lembrar o texto por meio da escrita. Acreditamos que as atividades realizadas pelas crianças
constituem uma base empírica consistente, pois possibilitaram a observação dos processos de
desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças e, portanto, a observação do percurso que
leva à utilização funcional da escrita e das condições que proporcionaram o surgimento de
grafias expressivas.
De acordo com Luria, a criança que já aprendeu, na escola, as letras do alfabeto
compreende que pode usar signos para escrever, mas não entende ainda como fazê-lo. Por
isso, “começa com uma fase de escrita não diferenciada pela qual já passara muito antes”
(1988, p.181), ou seja, as crianças usam as letras do alfabeto para escrever, mas ainda são
incapazes de usá-las para recordar, expressar idéias ou conceitos. Como vimos, durante o
248
estudo, uma criança (Laudicéia, p. 179), diante da atividade de escrita, estava “apenas
preocupada em ‘escrever como os adultos’; para ela, o ato de escrever não [...] era um meio
para recordar” (Luria, 1988, p. 149). A criança escreveu os textos produzidos oralmente com
grafias quase totalmente indiferenciadas. Durante os registros, para cada enunciado do texto,
escreveu uma linha com essas grafias, murmurou palavras inaudíveis e, ao final, apontou as
grafias para lembrar o texto. Sabemos que não usou a escrita como recurso mnemônico, mas
seus atos retratavam as atitudes dos adultos ao escreverem e ao lerem. Assim, a atividade
gráfica da criança é baseada na imitação dos atos dos adultos; como não aprendeu os atributos
psicológicos da escrita que, na situação estudada, se concretizava na sua função individual,
recurso para lembrar, mobilizou mecanismos naturais: rememorou de maneira direta, sem o
auxílio dos registros, o texto que produziu oralmente.
De acordo com Vigotski (1987), as formas culturais de comportamento têm raízes nas
formas naturais. A imitação é uma atividade que existe nos animais inferiores, assim como o
uso de instrumentos para solução de tarefas simples. Contudo, a diferença radical entre o
homem e o animal é que este último não é capaz de desenvolver suas capacidades intelectuais
a partir da imitação. Na criança, “pelo contrário, o desenvolvimento que parte da colaboração,
mediante a imitação, é a fonte de todas as propriedades especificamente humanas de
consciência” (tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 241). Os processos de imitação, para esse
autor, são complexos e, por isso, não devem ser vistos unicamente como formação de hábitos,
pois a imitação requer uma certa compreensão do significado da ação do outro. “Na realidade
[escreve Vigotski] a criança, que não sabe compreender, não poderá imitar o adulto que
escreve” (1987, p. 147). A criança, inicialmente, realiza a atividade a partir da imitação dos
atos dos adultos, porque jamais poderia dominar de imediato a linguagem escrita, em toda a
sua complexidade. Assim, ela usa símbolos arbitrários para representar os enunciados do texto
que produziu oralmente, mas não mantém uma relação funcional com esses símbolos.
Entendemos como arbitrária, a relação entre o símbolo e o simbolizado, oposta ao motivado.
“Quando uma relação é motivada, o convencional é um agregado opcional à sua possível
interpretação; existe a possibilidade de poder interpretar um símbolo motivado embora não
tenha havido convenção a respeito do mesmo [...], mas quando a relação é arbitrária, só pode
ser sustentada por uma convenção” (Landsmann, 1995, p. 135). Desse modo, os signos
lingüísticos são arbitrários e convencionais, pois a relação que mantém com o simbolizado não
249
é motivada, ou seja, não existe uma relação natural externa entre os símbolos e o simbolizado.
Os signos lingüísticos são o resultado de um acordo social sobre sua interpretação e usos.
Laudicéia foi a única criança que produziu grafias indiferenciadas ao registrar os
textos. Os outros sujeitos, que não se relacionavam com a escrita para lembrar o texto,
diferenciavam as grafias ao escreverem. Até mesmo uma criança que combinou a pictografia e
as letras do alfabeto, ao registrar o texto sobre a sua brincadeira preferida, diferenciou as séries
de letras usadas para escrevê-lo.
Assim, é importante destacar que observamos uma criança (Jéssica Fernanda, p. 115)
que combinou os símbolos alfabéticos e a pictografia (a escrita é icônica quando a criança
desenha os objetos existentes no mundo para representá-los) ao escrever o texto. No entanto,
as letras grafadas eram diferenciadas. Ao ser incentivada a lembrar o texto que motivou a
escrita, recordou um texto muito próximo daquele que motivou o registro e, para cada
enunciado lembrado, apontou um segmento de letras. Certamente a lembrança foi propiciada
pela pictografia; sabemos, no entanto, que a criança conhecia o texto de cor, sendo suficiente
repeti-lo e apontar cada série de letras registradas. Sabemos ainda que, provavelmente, no
futuro, ela se lembrará do texto que registrou ao observar o desenho da amarelinha. O que
certamente não ocorreria se não tivesse desenhado.
O fato de a criança combinar as letras do alfabeto e a pictografia ao escrever o texto
não significa que não compreendia as distinções entre as formas icônicas e não icônicas de
representação. Ela compreendia; tanto que tinha dúvidas se deveria desenhar ou escrever e
apontou as letras ao ser incentivada a lembrar o texto. Acreditamos, conforme discutimos no
Capítulo V, que o conteúdo foi determinante para que a criança escolhesse, também, a
pictografia para registrar a explicação sobre a brincadeira. Luria averiguou que a quantidade, a
forma, o tamanho, a cor, etc. foram os fatores, introduzidos no conteúdo das frases e palavras
a serem escritas, que proporcionaram a dissolução da produção gráfica elementar e induziram
as crianças a usarem a escrita como recurso para lembrar as frases e palavras anotadas. A
quantidade e a forma foram os principais fatores que levaram ao uso da pictografia, ou seja,
“através desses fatores, a criança, inicialmente, chega à idéia de usar o desenho [...] como
meio de recordar e, pela primeira vez, o desenho começa a convergir para uma atividade
intelectual complexa. O desenho transforma-se, passando de simples representação para meio,
e o intelecto adquire um instrumento novo e poderoso na forma da primeira escrita
250
diferenciada” (Luria, 1988, p. 166). Consideramos que, se esses mesmos fatores estivessem
presentes no conteúdo dos textos a serem escritos pelas crianças que usavam letras para
escrever, poderiam proporcionar o retorno à pictografia. A atividade realizada pela aluna veio
fortalecer essa visão, pois, no texto elaborado oralmente pela criança, as formas apareciam
conciliadas numa mesma palavra com o fator tamanho (quadradão, quadradinho), o que, em
nossa opinião, levou a criança a desenhar as formas e tamanhos expressos nas palavras do
texto.
Como mencionamos, com exceção de Laudicéia, todas as crianças diferenciavam as
grafias ao escreverem os textos. Tais diferenciações evidenciam uma mudança na atividade
gráfica, se considerarmos que, inicialmente, é baseada na imitação dos atos dos adultos ao
escreverem. No momento em que as crianças começam a diferenciar as grafias usadas para
escrever, a atividade gráfica passa a ser regulada, ou seja, para escrever não é suficiente anotar
letras indistintas, aleatórias e casuais: é necessário anotá-las observando uma certa
organização que, no momento, é definida, conforme nosso entendimento, pela apropriação das
características externas da escrita. Nesse sentido, a mudança objetiva na escrita evidencia
mudanças na atividade gráfica. As crianças adquirem um maior domínio sobre o seu próprio
comportamento que, inicialmente, era espontâneo, baseado na imitação.
De acordo com os estudos de Ferreiro e Teberosky, no segundo nível de evolução da
escrita, a hipótese fundamental da criança é que “para poder ler coisas diferentes (isto é,
atribuir significados diferentes) deve haver uma diferença objetiva nas escritas [grifos das
autoras]” (1989, p. 189). Assim, as crianças acreditam que a escrita é legível quando possui
quantidade e variedade de letras, ou seja, elas usam mais de duas letras para escrever as
palavras e variam as letras numa mesma cadeia. Como algumas crianças dispõem de um
repertório reduzido de letras conhecidas, a única maneira de responder às exigências de
legibilidade é por meio de variações de posição na ordem linear das grafias.
Os nossos resultados também apontam que a natureza das diferenciações na escrita são
qualitativas e quantitativas, conforme assinalam as autoras. As crianças usavam três ou mais
letras para escrever (o menor número observado, durante o nosso estudo, foi quatro letras) os
enunciados dos textos e variavam as letras conhecidas numa mesma cadeia. Contudo, não
podemos afirmar, de acordo com Ferreiro & Teberosky (1989), que essas exigências definiam
a legibilidade do escrito, porque, apesar do esforço das crianças para distinguir as grafias
251
usadas para anotar os enunciados do texto e para variar as letras numa mesma cadeia, elas
sabiam que a escrita não podia ajudá-las a recordar o texto anotado e, por isso, rememoravam-
no sem o auxílio da escrita ou diziam que a escrita não poderia ajudá-las. Nesse sentido, as
crianças usavam os símbolos alfabéticos para representar o texto, mas a simbolização se
baseava na reprodução das características externas da escrita. Observamos que alguns alunos,
na tentativa de reprodução desses aspectos, colocavam espaços em branco entre segmentos de
letras usados para grafar os textos. As séries de letras separadas pelos espaços em branco eram
compostas por duas e uma letra sem observar o princípio quantitativo. Dessa forma, a
aparência da escrita era semelhante à escrita de um texto grafado convencionalmente.
Contudo, as distinções nos registros não possibilitaram a emergência de grafias
expressivas e, conseqüentemente, que as crianças estabelecessem uma relação funcional com a
escrita. Como mencionamos, Luria (1988), diversamente, notou que as diferenciações nos
registros, propiciadas pela introdução de determinados fatores no conteúdo das frases e
palavras que eram escritas pelas crianças, possibilitaram a emergência da escrita expressiva,
porque os símbolos usados para registrar as palavras e frases passaram a refletir os
significados anotados; desse modo, levaram as crianças a estabelecer uma relação funcional
com eles. É importante ter em mente que as observações de Luria foram fundamentadas nas
atividades desenvolvidas pelas crianças que não haviam aprendido as letras do alfabeto. Essa é
uma diferença essencial entre o estudo realizado pelo autor e o estudo que realizamos: as
crianças, sujeitos da nossa pesquisa, participavam de um processo escolar de alfabetização e
usavam as letras do alfabeto que estavam sendo aprendidas, na escola, para escrever. Nesse
sentido, as diferenciações na escrita evidenciaram a superação da atividade gráfica inicial,
baseada na imitação dos atos dos adultos ao escreverem, mas não levaram as crianças a se
relacionarem com a escrita para lembrar o texto, como nas investigações desenvolvidas por
Luria.
Assim, com base nas atividades realizadas com as crianças, na fase inicial de
alfabetização, podemos concluir que, de início, produzem grafias indiferenciadas ao tentarem
imitar os atos dos adultos quando escrevem e apenas rememoram, de maneira direta e sem
auxílio da escrita, o texto que motivou o registro ao serem incentivadas a usá-lo para fins
mnemônicos. A mudança na atividade gráfica ocorreu quando as crianças passaram a
organizar as grafias com base na reprodução da aparência da escrita. Assim, o movimento de
252
mãos, ou seja, os atos produzidos durante o registro, deixa de ser aleatório, casual e
meramente imitativo, porque a reprodução das características externas da escrita exige que as
crianças passem a exercer um controle sobre ele. Elas passam a escolher as letras adequadas
para escrever, com base, inicialmente, nos princípios quantitativos e qualitativos, e a definirem
onde deverão ser colocados os espaços em branco na escrita.Vimos como agem se a sua
escrita não estiver de acordo com os princípios organizadores: apagam, dizem que erraram,
contam as letras e se mantêm fiéis aos critérios estabelecidos. Dessa forma, diferenciar a
escrita exige uma ação deliberada por parte da criança. Com relação a isso, Vigotski, ao
discutir a estrutura das funções psicológicas superiores, diz que
Es maravilloso por sí mismo el hecho de que el hombre goce de una extraordinaria libertad
en el sentido de la ejecución premeditada de cualesquiera acciones, incluidas las que no
tienen sentido [grifos nossos]. Esta libertad es característica del hombre civilizado. Ella
está presente en el niño, y, es probable que lo esté también en la gente primitiva [...], y
separa al hombre de los animales que le son más cercanos, de una manera mayor que su
intelecto superior. Esta distinción se reduce, por lo tanto, a la presencia en el hombre del
fenómeno de dominio sobre su conducta (1987, p. 134).
As crianças não compreendem o significado funcional da escrita, pois ainda não
aprenderam como usá-la para recordar, mas organizam deliberadamente as letras usadas para
representar os enunciados do texto que devem ser anotados. Contudo, a mudança na atividade
gráfica não altera o modo como as crianças lembram o texto que motivou os registros. Elas
continuam a rememorar sem o auxílio da escrita ou simplesmente dizem que a escrita não
pode ajudá-las a lembrar.
A superação da atividade da escrita, baseada na reprodução das características externas
dos textos escritos convencionalmente, começou a ocorrer no momento em que as crianças
passaram a organizar a escrita a partir de correspondências que estabeleciam entre o oral e o
escrito. Assim, elas começaram, com base nos conhecimentos que estavam sendo aprendidos
na sala de aula, a relacionar as letras anotadas com as unidades constituintes da linguagem oral
que eram pronunciadas. No início, essa aprendizagem não possibilitou que as crianças
usassem a escrita com função mnemônica, mas permitiu que a organizassem a partir dessa
análise e não mais a partir da reprodução das características externas da escrita. É importante
253
notar que a dissolução da atividade gráfica baseada na reprodução das características externas
da escrita está relacionada diretamente com a escolarização e, portanto, com a aprendizagem
da leitura e da escrita.
A escrita, produzida com base nessa análise, era, em alguns casos, aparentemente, mais
atrasada, pois as crianças passavam a repetir letras numa mesma cadeia (principalmente, as
vogais em função das correspondências elaboradas); mas, por detrás dessa aparência, havia
um modo de operar com a escrita que revelava o início da compreensão do seu simbolismo.
De acordo com Vigotski, conforme mencionamos, a escrita é um simbolismo de segunda
ordem. “Isso significa que a linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que
designam os sons e as palavras da linguagem falada, os quais, por sua vez, são signos das
relações das entidades reais” (1989a, p. 120).
A linguagem surge ao longo do desenvolvimento filogenético e do desenvolvimento
ontogenético, com função essencialmente comunicativa. As crianças, desde muito pequenas,
usam a linguagem com essa finalidade, mas não conseguem pensar sobre ela, pois, de acordo
com Delfior, isso “significa sair do seu uso comunicativo para prestar atenção nas formas da
linguagem em si mesmas” (tradução nossa) (1998, p. 6). A escrita exige que as crianças
comecem a tomar consciência da linguagem oral ou, como assinala Vigotski, ao comparar a
linguagem oral e a linguagem escrita, requer que a criança passe “a tomar conhecimento da
estrutura sonora da palavra, desmembrá-la e reproduzi-la, voluntariamente, em signos”
(tradução nossa) (1993, p. 231). Dessa forma, escrever demanda uma ação analítica
deliberada por parte da criança, exigindo que pense sobre a linguagem. Quando as crianças e
os adultos falam, ainda segundo Delfior, normalmente o fazem sem “ter consciência de que
estão utilizando palavras, de que estas são compostas por unidades menores” (tradução nossa)
(1988, p. 6). A autora cita a analogia elaborada por Luria para explicar como as crianças são
insensíveis à estrutura da linguagem:
as palavras seriam como uma janela de cristal por meio da qual a criança olha o mundo
que a rodeia, sem que essas palavras sejam objeto de sua consciência e sem suspeitar que
tenham sua própria existência ou sua própria estrutura (tradução nossa) (p. 8).
Porém, quando as crianças iniciam a alfabetização, passam a tomar consciência, a
pensar/refletir sobre a linguagem oral e começam a desenvolver um conjunto de habilidades
254
metalingüísticas, em particular a denominada de consciência fonológica. Segundo Delfior, o
termo consciência fonológica pode ser tomado em sentido estrito e amplo. No sentido estrito
“se refere ao conhecimento que cada pessoa tem sobre os sons de sua própria língua”
(tradução nossa) (1988, p. 11). No sentido amplo, trata “da habilidade de identificar,
segmentar e manipular de forma intencional as unidades constituintes da linguagem oral”
(tradução nossa) (p. 11). Adotamos, neste estudo, o termo no seu sentido amplo.
Delfior assinala ainda que as discussões em torno da consciência fonológica residem
em determinar quais são as unidades constituintes da linguagem oral:
Alguns autores (Jiménez & Ortiz, 1995) consideram como unidades fonológicas as
palavras, as sílabas e os fonemas e defendem a existência de uma consciência léxica, uma
consciência silábica e uma consciência fonêmica como partes da consciência fonológica; a
maioria dos autores, no entanto, estão de acordo que a consciência fonológica se refere às
unidades que compõem as palavras, portanto, sílabas e fonemas (Gombert, 1990; Morais,
Alegria & Content, 1987) (...). Outros , como Turnmer y Rohl (1991) só aceitam o fonema
como objeto de análise da consciência fonológica (tradução nossa) (1998, p. 12).
Durante o trabalho realizado, vimos o surgimento da consciência fonológica: as
crianças elaboravam, no plano verbal, a análise das unidades constituintes da linguagem oral e
escreviam letras correspondentes às unidades analisadas. No início, a análise elaborada não
possuía uma regularidade, pois as crianças pronunciavam enunciados inteiros do texto que
eram ditados, pronunciavam palavras, pronunciavam sílabas e escreviam segmentos de letras
correspondentes ao que era pronunciado. A quantidade de letras anotadas, também, não
possuía uma regularidade. No entanto, para este estudo, mais importante do que analisar as
regularidades nas relações entre o oral e o escrito e discutir quais são as unidades da
linguagem oral que fazem parte da consciência fonológica, durante a fase inicial de
alfabetização, é evidenciar que o fato de as crianças passarem a organizar a escrita não mais
pela reprodução de seus atributos externos, mas pelas correspondências que elaboravam entre
as unidades da linguagem oral e as letras anotadas, produz a superação da atividade gráfica
baseada na reprodução das características externas da escrita. Elas começam a elaborar para si
mesmas um conhecimento que a humanidade levou muito tempo para construir: as letras do
alfabeto passam a representar a linguagem oral.
255
Nesse sentido, não podemos deixar de enfatizar a importância da linguagem nesse
processo, pois se converteu em meio de pensamento para as crianças e atuou como recurso que
auxiliava a lembrança das letras que deveriam ser grafadas e, por isso, estava a serviço da
atividade realizada. Observamos, conforme discutimos, que a linguagem presente durante os
registros era de dois tipos: comunicativa e egocêntrica. A primeira tinha por objetivo
estabelecer contato com a pesquisadora para receber confirmação sobre as letras que deveriam
ser usadas para escrever uma palavra e para confirmar onde deveriam ser colocados, na
escrita, os espaços em branco. A segunda era para a própria criança e a auxiliava na lembrança
das letras que deveriam ser escritas para representar uma determinada unidade da linguagem
oral. Por isso, as crianças repetiam oralmente essas unidades, o que levava à percepção das
letras que deveriam ser grafadas.
Segundo as hipóteses de Vigotski, “a linguagem egocêntrica surge no curso de um
processo social, quando as formas sociais de comportamento, as formas de cooperação
coletiva, se deslocam para a esfera das funções individuais da criança” (tradução nossa) (1993,
p. 57). Para o autor, esse fenômeno de transição das formas sociais de atuação para a esfera da
atividade psíquica é uma lei geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores.
Assim, a linguagem egocêntrica traduz essa transição, está a serviço da orientação mental, da
compreensão consciente. Ainda de acordo com Vigotski, Piaget não havia atribuído nenhuma
função importante à linguagem egocêntrica. No entanto, concluiu que essa linguagem que,
para Piaget, é um reflexo do pensamento egocêntrico e que desaparece próximo dos sete anos,
é fundamental, pois converte-se em um instrumento do pensamento. Nas situações observadas,
as crianças analisavam, no plano verbal, as unidades que compõem a linguagem oral para,
depois, escreverem os símbolos alfabéticos correspondentes às unidades analisadas. Dessa
forma, as crianças começaram a elaborar para si mesmas essa relação, constituída no plano
social, modificando completamente o caráter da sua atividade. Veja, por exemplo, a atividade
realizada por Vanessa (p. 130). Ela pronunciava cada sílaba antes de grafar as letras escolhidas
para representa-la. Como conhecia as vogais, escrevia as vogais pertencentes às sílabas
pronunciadas.
Vigotski diz ainda que o destino da linguagem egocêntrica é transformar-se em
linguagem interna. Em termos gerais, “a linguagem egocêntrica surge da insuficiente
individualização da linguagem, inicialmente, social, de sua incipiente separação e
256
diferenciação, de sua inespecificidade [...] A linguagem egocêntrica é um ponto situado em
curva ascendente cujo ponto culminante está por chegar” (tradução nossa). (Vigotski, 1993, p.
314). Assim, interpreta a progressiva diminuição do coeficiente da linguagem egocêntrica,
observada neste estudo, como “sintomas de progresso evolutivo; não é o fim, mas o
nascimento de uma nova forma de linguagem [grifos do autor]” (p. 313 ). As crianças que
deixavam de analisar as unidades da linguagem oral de maneira manifesta, por meio da
linguagem egocêntrica, não deixaram de realizar essa análise durante os registros, após a
interiorização dessa linguagem. Como assinala o autor, “interpretar a progressiva diminuição
do coeficiente da linguagem egocêntrica como se fosse um sintoma de sua desaparição é supor
que as crianças deixam de contar quando deixam de fazê-lo com os dedos e em voz alta e
passam a fazê-lo mentalmente” (tradução nossa) (p. 312).
Acreditamos que uma análise profunda da linguagem egocêntrica poderá contribuir
para que possamos compreender, no curso da aprendizagem da leitura e da escrita, como as
crianças elaboram para si mesmas a análise das unidades da linguagem oral e, portanto, quais
são as unidades fonológicas analisadas e como as representam por meio dos símbolos
alfabéticos. No entanto, conforme mencionamos, tendo em vista o objetivo deste estudo, é
essencial enfatizar a importância dessa análise, que se desenvolve no plano verbal, e que, em
algumas crianças, não se realiza de maneira manifesta na orientação da atividade gráfica, pois
propiciou a dissolução da atividade gráfica baseada na reprodução das características externas
da escrita. No início, a análise das unidades da linguagem oral não possibilitou que a criança
se relacionasse com a escrita para lembrar o texto que motivou o registro. As crianças
continuavam a rememorar o texto sem o auxílio da escrita, ou não enunciavam o texto, porque
argumentavam que a escrita não poderia ajudá-las.
As condições que propiciaram o surgimento de grafias que refletiam os significados
que as crianças deveriam anotar foram observadas a partir da presença de alguns fatores no
conteúdo dos textos elaborados oralmente pelas crianças. Nesse sentido, é importante lembrar
que Luria mostrou que o aparecimento das diferenciações nos registros proporcionou a
emergência da escrita simbólica, pois esta adquire “um significado funcional e começa
graficamente a refletir o conteúdo que a criança deve anotar” (1988, p. 181). Por sua vez, a
superação da escrita não-diferenciada resultou da introdução de fatores, no conteúdo das frases
e palavras que deveriam ser escritas, tais como: quantidade, forma, tamanho, cor, etc.
257
De maneira semelhante, observamos que determinados fatores, presentes no conteúdo
dos textos, propiciaram que os símbolos alfabéticos passassem a refletir os significados
registrados. No entanto, tais fatores não levaram às diferenciações nas grafias. De maneira
diversa, eles provocaram não-diferenciações nos símbolos usados para escrever as palavras e
foram esses símbolos que possibilitaram que as crianças estabelecessem uma relação funcional
com a escrita e, desse modo, lembrassem os enunciados do texto que motivaram os registros.
Dentre os fatores destacados por Luria (1988), que levaram às diferenciações dos
registros, o único observado, neste estudo, foi o de quantidade. Quando as crianças tinham que
escrever quantidades, estas eram representadas por meio de numerais ou por extenso. Ambas
as representações auxiliavam a lembrança dos enunciados que motivaram os registros ou de
outros com o mesmo sentido. Os símbolos usados pelas crianças envolvidas no estudo de
Luria, para representar as quantidades, no entanto, não eram os mesmos usados pelas crianças
que participaram do nosso estudo. As crianças, sujeitos da pesquisa realizada por Luria,
usavam símbolos que expressavam diretamente as quantidades. Por exemplo: Brina, ao
escrever a frase “há duas arvores”, traçou, primeiro, dois riscos e, em seguida, desenhou os
galhos das árvores. No caso das nossas crianças, elas representaram as quantidades por meio
de símbolos arbitrários: numerais e palavras que estavam sendo aprendidos na escola.
Verificamos ainda que os artigos indefinidos (um e uma) foram representados por meio dos
símbolos numéricos e estes possibilitaram a lembrança dos enunciados do texto quando as
crianças eram incentivadas a estabelecer uma relação funcional com a escrita.
No mesmo sentido, a presença de uma mesma palavra que se repetia no texto propiciou
que as crianças passassem a representar essa palavra com uma mesma cadeia de letras, nos
contextos em que eram escritas. Essa forma de representar as palavras possibilitou que os
símbolos usados passassem a refletir os significados anotados, garantindo a lembrança da
própria palavra, do enunciado do texto composto com ela, de outro enunciado com o mesmo
sentido ou de um enunciado que era evocado no momento. A primeira vez, durante o estudo,
que observamos o surgimento de grafias expressivas foi na atividade desenvolvida por Hugo
(p. 96). Ele representou as quantidades e as palavras que se repetiram no texto sobre a sua
brincadeira preferida com os símbolos numéricos e com uma mesma cadeia de letras,
respectivamente. Apesar de sua escrita não ser legível para os outros, as grafias se tornaram
expressivas para Hugo e possibilitaram a lembrança do texto que motivou o registro.
258
As indiferenciações nas grafias usadas para representar as palavras evidenciam que as
crianças aprenderam que uma mesma palavra deve ser sempre escrita com a mesma cadeia de
letras, ou seja, não existem diferenciações nos símbolos usados para representar uma mesma
palavra. Dessa forma, observamos que as crianças que participaram deste estudo, no início,
diferenciavam a escrita a partir da reprodução dos aspectos externos da escrita. Essas
diferenciações não proporcionaram o surgimento de grafias expressivas. Quando as crianças
começaram a indiferenciar os símbolos usados para representar as quantidades, os artigos
indefinidos e uma mesma palavra que se repetia no texto, estes adquiriram um caráter
expressivo, pois refletiam os significados anotados e levaram as crianças a estabelecerem uma
relação funcional com a escrita. Além disso, as representações usadas pelas crianças
evidenciam que aprenderam que não há distinções nos símbolos usados para escrever uma
mesma palavra e nos símbolos numéricos usados para representar as quantidades.
Outro fator que propiciou o surgimento de símbolos que expressavam os significados
anotados foi a presença de palavras nos textos cuja grafia as crianças conheciam. Nesse caso,
escreviam as palavras convencionalmente ou com letras que compunham a sua escrita
convencional. Isso ocorre porque, à medida que as crianças participam das atividades de
alfabetização, memorizam algumas palavras ou algumas letras que compõem as palavras que
estão sendo estudadas. Quando uma dessas palavras se apresentava no texto, era escrita
convencionalmente ou com as letras lembradas e possibilitavam a recordação dos enunciados
do texto. Quando as crianças representavam as palavras com apenas algumas letras que
compunham a sua escrita convencional, as mesmas letras eram utilizadas nos diferentes
contextos em que as palavras eram escritas.
Durante as últimas atividades realizadas com as crianças, notamos que os registros dos
artigos definidos (o/a) e da preposição “de” eram lidos pelas crianças, podendo exercer ou não
influência na lembrança dos enunciados do texto. Dissemos, anteriormente, que algumas
crianças, ao registrarem os textos, colocavam espaços em branco entre os segmentos de letras
usados para grafá-los. Como, no início, tentavam reproduzir a aparência externa dos textos,
registravam duas ou uma letra. As letras grafadas isoladamente eram compostas com
consoantes/vogais e vogais. Fernanda (p. 183) registrou duas letras ao compor as séries de
grafias escritas para representar os enunciados do texto sobre a sua brincadeira preferida.
Como vimos, ela compôs as séries de duas letras com consoantes/vogais. No nosso sistema de
259
escrita, as palavras que são escritas com duas letras são registradas com consoante/vogal, ou
com vogal/consoante e as palavras registradas com uma letra são escritas com apenas uma
vogal. O fato de a criança escrever consoante/vogal para as séries compostas com duas letras
demonstra o quanto ela está atenta à aparência da escrita. No entanto, quando as crianças
começaram a compreender que as letras representam unidades da linguagem oral, os registros
das vogais “o” e “a” passaram a corresponder aos artigos definidos “o” e “a” usados na
composição do texto. Dessa forma, ao serem incentivadas a lembrá-lo, interpretavam essas
letras. Em algumas situações, a leitura ajudava na lembrança dos enunciados do texto; em
outras, auxiliava a confirmação dos enunciados rememorados e, também, dificultava a
elaboração de enunciados com sentido.
A representação da preposição “de” pelas letras correspondentes não era resultado de
uma análise dos fonemas que compõem essa palavra. Na realidade, as crianças haviam
memorizado as letras que deveriam ser usadas para representá-la. A sua interpretação, no
entanto, proporcionava a confirmação de um texto elaborado sem o apoio da escrita e
dificultava a enunciação de textos com sentido; no entanto, não observamos nenhuma situação
em que provocou a lembrança do enunciado.
Assim, as quantidades, os artigos, as palavras que se repetiam e as palavras cuja escrita
a criança dominava, presentes no conteúdo dos textos produzidos oralmente pelas crianças,
propiciaram o surgimento dos símbolos expressivos. Todos esses elementos passaram a ser
representados, pelas crianças, durante o registro, com símbolos indistintos, possibilitando
estabelecessem uma relação funcional com esses símbolos.
De modo geral, evidenciamos que as crianças que não aprenderam a natureza
alfabética do sistema de escrita se relacionavam com a escrita para lembrar o texto que
motivou o registro, mostrando que, quando são incentivadas a estabelecer uma relação
funcional com as grafias, aprendem o uso instrumental da escrita. Poderíamos imaginar que, a
partir do momento em que compreendem a natureza alfabética do sistema de escrita, ou seja,
entendem que o que representamos com as letras são os fonemas, a solução para o problema
de recordar o texto registrado estaria resolvida, pois já seriam capazes de ler o que escreveu.
No entanto, não foi isso que observamos, pois essa compreensão não propiciou um
aprimoramento significativo no modo como as crianças se relacionavam com a escrita para
lembrar o texto que motivou o registro. Assim, evidenciamos que o desenvolvimento da
260
escrita não é um processo em que uma nova aprendizagem leva automaticamente ao
aprimoramento de outros processos envolvidos na aprendizagem da linguagem escrita, mesmo
porque esse é um processo complexo que envolve a análise dos fonemas e a escrita de letras
correspondentes, mas envolve, também, a compreensão de que não há correspondência
biunívoca entre sons e letras e vice-versa. Segundo Soares, a transferência da linguagem oral
para a forma gráfica da escrita, ou seja, no processo de estabelecimento de relações entre sons
e símbolos gráficos, “não há correspondência unívoca entre o sistema fonológico e o sistema
ortográfico na escrita portuguesa (um mesmo fonema pode ser representado por mais de um
grafema; e um mesmo grafema pode representar mais de um fonema)” (1986, p. 26).
Luria (1988) e Vigotski (1989a) afirmaram que o desenvolvimento da escrita na
criança não segue uma linha evolutiva linear e de constante aperfeiçoamento, o que impõe
grandes dificuldades para o seu estudo. Porém, em nossa opinião, o que parece ser uma
dificuldade é, em primeiro lugar, um pressuposto essencial do materialismo histórico e
dialético que afirma a atividade dos indivíduos. Nessa perspectiva, os indivíduos ativamente
transformam a realidade e são transformados por ela. Em segundo lugar, esse desenvolvimento
traduz claramente as particularidades e descontinuidades do desenvolvimento cultural nas
crianças, pois esse desenvolvimento ocorre juntamente com o desenvolvimento orgânico. O
próprio Vigotski concluiu acertadamente, a partir desse pressuposto, que, se quisermos captar
as particularidades do desenvolvimento infantil em toda a sua complexidade e riqueza, é
necessária uma mudança radical nas concepções de desenvolvimento que fundamentam os
estudos psicológicos. Para o autor, o desenvolvimento
é um processo dialético complexo que se caracteriza por uma periodicidade múltipla, por
uma desproporção no desenvolvimento das distintas funções, por metamorfoses ou
transformações qualitativas de umas formas em outras, pelo complicado entrecruzamento
dos processos de evolução e involução, pela relação entre fatores internos e externos e pelo
intricado processo de superação das dificuldades e de adaptação (tradução nossa) (1987,
p. 151).
Assim, as crianças que demonstravam ter o domínio da escrita alfabética, ao serem
incentivadas a ler o texto, compreendiam a instrução, mas apresentaram maneiras diversas de
se relacionar com a escrita para realizar tal objetivo. Observamos uma criança (Alessandra, p.
261
86) que interpretou apenas algumas palavras que podiam ser lidas e, dessa forma, não
enunciou partes completas do texto, porque sabia que a escrita serve como recurso para a
memória; mas a maioria dos símbolos grafados não expressava os seus significados. Desse
modo, a criança se limitou a ler as grafias expressivas. Como comentamos, não há
correspondência biunívoca entre sons e letras e vice-versa no sistema de escrita do Português;
o fato de ela descobrir que a escrita representa unidades menores da linguagem oral não é
suficiente para que a criança saiba escrever e ler. Para que sua escrita expresse corretamente os
significados que desejou anotar, é necessário que aprenda os padrões ortográficos que regem a
escrita alfabética. Obviamente, as crianças não irão aprender a ortografia imediatamente; para
aprendê-la, será necessário um longo tempo de aprendizado que começa na fase inicial de
alfabetização, estendendo-se por quase toda a vida. Lemle (1989), partindo do ponto de vista
da Lingüística, apresenta uma maneira interessante de condução do ensino, durante a
alfabetização, que leva em conta as relações entre sons e letras e vice-versa. Retomando o
exemplo da aluna, podemos dizer que, como sabia que a escrita deve refletir os significados
das palavras que desejou anotar e a sua escrita não os expressava, leu apenas as grafias
expressivas.
Observamos, também, crianças que elaboravam a interpretação dos enunciados do
texto a partir da leitura de uma palavra. Assim, essas crianças se relacionavam com a escrita
como as crianças que não tinham o domínio da escrita alfabética. A presença no texto de uma
grafia expressiva proporcionava a lembrança do enunciado do texto que motivou o registro ou
de outro com o mesmo sentido. Natália (p. 89) realizava a leitura dessa maneira. A leitura de
uma palavra possibilitava a lembrança do enunciado que motivou o registro. Por outro lado,
observamos crianças que liam palavras expressivas, o que propiciava a lembrança de um
enunciado do texto e, por isso, deixavam de apontar os registros ou os apontavam
aleatoriamente; como sabiam a função da linguagem escrita, retomavam os registros e, ao
fazerem isso, não conseguiam encontrar as palavras correspondentes ao texto enunciado. Por
isso, liam uma nova grafia expressiva, lembravam um novo enunciado, retomavam as grafias,
mas não encontravam grafias correspondentes. Desse modo de se relacionar com a escrita
resultava a enunciação de textos fragmentados e sem sentido. Hugo (p. 151) realizou a leitura
do reconto dessa maneira.
262
Verificamos crianças que elaboravam representações para algumas palavras do texto
que não podiam ser lidas. Entretanto, as cadeias de letras inexpressivas eram interpretadas.
Uma criança (Nicole, p. 202), no entanto, ao mesmo tempo em que lançou mão desse
expediente, interpretando as grafias inexpressivas, decodificou algumas cadeias de letras
anotadas, ou seja, as seqüências de letras foram decodificadas em símbolos sonoros que, por
sua vez, não expressavam significados. Dessa forma, parafraseando Vigotski (1989b), a
criança produziu sons vazios para as letras anotadas. O significado de uma palavra escrita,
segundo o autor, é seu componente indispensável, pois é por meio dos significados das
palavras que se realiza a função mediadora da linguagem escrita, de representação das
entidades reais e suas relações e de comunicação entre as pessoas. Dessa forma, a leitura
realizada pela criança fez com que se perdesse o elo com a realidade e com as outras pessoas
com as quais se pretende inter-agir por meio da escrita. Os sons emitidos pela criança
deixaram de ser signos, se considerarmos, conforme Bakhtin (1992), que a função do signo é
significar; sem a significação, o signo não é signo e a palavra não é uma palavra; perde-se a
atividade psíquica e sobra o ato fisiológico, não esclarecido pela consciência. Enfim, o modo
como as crianças se relacionavam com os registros demonstra que a compreensão do caráter
alfabético da escrita não é acompanhada mecanicamente da habilidade de ler e escrever como
nos adultos.
Em síntese, podemos concluir: a) no início, a “criança assimila a experiência escolar de
forma puramente externa, sem entender ainda o sentido e o mecanismo do uso de marcas
simbólicas” (Luria, 1988, p. 188) que constituem o uso funcional das letras do alfabeto para
recordar, transmitir idéias ou conceitos. Por isso, a criança opera por meios naturais: imita os
atos dos adultos ao escreverem e apenas rememora o texto sem o auxílio da escrita; b) logo
depois, aprende as características externas da escrita e a tentativa de reprodução dessas
características proporciona uma mudança na atividade gráfica. A escrita deixa de ser indistinta
para ser organizada a partir de critérios. Ao escrever, é necessário colocar espaços em branco
entre os segmentos de letras; é necessário variar as letras em cada cadeia e, em um
determinado momento, a criança grafa os enunciados do texto com uma quantidade mínima de
letras. Desse modo, a criança reproduz a forma externa da escrita, mas não compreende que
ela é um meio para recordar os significados anotados; por isso, rememora o texto sem o
auxílio da escrita; c) quando as crianças passam a organizar as grafias a partir da análise das
263
unidades constituintes da linguagem oral, a quantidade de letras registradas e a escolha das
letras a serem escritas passam a ser reguladas pelas relações que estabelece entre o oral e o
escrito. Os símbolos alfabéticos passam a ser empregados consciente e voluntariamente para
representar as unidades da linguagem oral. No entanto, o esforço empregado pela criança, no
início, não possibilita que estabeleça uma relação funcional com a escrita; d) a presença de
determinados fatores no conteúdo dos textos que eram produzidos oralmente pelas crianças
propiciou o surgimento de símbolos indiferenciados que, por sua vez, levaram as crianças a
usar a escrita como recurso para lembrar os enunciados do texto que motivou os registros; e)
por fim, observamos que a aprendizagem de que as letras representam os fonemas não levou a
um aprimoramento no modo como as crianças se relacionavam com a escrita, pois, para que
leiam e escrevam como os adultos, será necessário que aprendam os padrões ortográficos que
regem a escrita alfabética.
Dessa forma, a história da escrita da criança é a história de como ela aprende a
empregar essa forma cultural complexa para si e para os outros. Vigotski, no manuscrito
Psicologia concreta do homem, diz: “compare a carta - para si no tempo e para o outro; ler a
própria anotação - escrever para si - significa relacionar-se para si como para o outro. Etc., etc.
Isto é a lei geral para todas as funções psicológicas superiores [grifos do autor]” (2000, p.
26). José Carlos, uma das crianças que participou da pesquisa, um dia nos questionou sobre
quando saberia ler. Não tivemos dúvida em dizer que seria quando nós (ele, eu e todas as
outras pessoas) pudéssemos ler o que ele escreveu e ele, também, pudesse ler o que eu e os
outros escrevemos. Na última atividade realizada pelo aluno, após ler o que havia escrito,
perguntou se poderíamos ler o que ele escreveu. Então, lemos o que havia escrito. Ele ouviu a
leitura, sorriu e disse que havia aprendido a ler. Perguntamos como sabia se havia aprendido.
Ele respondeu que eu havia lido o seu texto. José Carlos, na realidade, percebeu que aprendeu
a usar a escrita para si como os outros a utilizam e, por isso, todos, inclusive ele, podiam ler a
sua escrita. Isso o deixou muito contente, pois repetia a primeira série pela segunda vez.
A alfabetização é um processo complexo, que envolve a apropriação de um conjunto
de processos que precisa ser ensinado. Diferentemente da aprendizagem da linguagem oral,
não é suficiente que as crianças tenham nascido em um meio social onde vivem pessoas
letradas para que venham a aprender a ler e a escrever. Os processos que se constituem nas
crianças, durante a fase inicial de alfabetização, resultam das relações com as outras pessoas
264
(adultos ou outras crianças) que os ensinam a ler e a escrever. Do ponto de vista pedagógico, é
essencial ter em mente que a capacidade de usar a escrita para si como os outros a utilizam não
surge e se desenvolve da mesma forma que os órgãos do corpo. Uma criança que passa a usar
as letras para escrever as suas idéias, as alheias, para recordar e para intervir sobre os outros
precisa vivenciar inúmeras situações em que as pessoas lêem e escrevem para elas e as
incentivam a ler e a escrever. Desse modo, de acordo com Vigotski, “a escrita deve ter
significado para as crianças [...] deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para
a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como um hábito de
mãos e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem” (1989a, p. 133).
Por fim, é importante ressaltar que este estudo mostrou, conforme Vigotski, que o
desenvolvimento infantil, durante a fase inicial de alfabetização escolar, baseia-se na idéia de
que as funções psicológicas se desenvolvem e não são assimiladas na sua forma acabada.
Além disso, seguem um caminho particular, pois se produzem nas condições escolares, que
constituem “uma forma singular de cooperação do professor com a criança” (1993, p. 183).
Evidenciamos como as crianças escrevem e se relacionam com a escrita durante essa
fase, ao serem incentivadas a usá-la como recurso para memória. O foco das análises, os
procedimentos usados na condução das atividades de produção oral e registro dos textos
originaram-se do trabalho realizado por Luria (1988) que indicou que, a partir do momento em
que as crianças usam as letras para escrever até o momento em que passam a dominar a escrita
convencional, existem processos que se constituem nelas de interesse da pesquisa psicológica.
Acreditamos que conseguimos mostrar, com o estudo realizado, a pertinência da indicação de
Luria e, portanto, tornar evidentes os processos que se constituem nas crianças, na fase inicial
de alfabetização, que levam à utilização da escrita como recurso para lembrar.
265
Referências1 AZENHA, Maria da Graça. Imagens e letras: Ferreiro e Luria duas teorias psicogenéticas.
São Paulo: Ática, 1995. 196 p.
2 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec,
1992. 196 p.
3 BAUTZER, Maria da Graça Azenha. O grafismo infantil: processos e perspectivas. 1992.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.
(Dissertação Mestrado)
4 BREGUNCI, Maria das Graças de Castro. Construtivismo: grandes e pequenas dúvidas.
Intermédio – Cadernos CEALE, Belo Horizonte, v. 1, Ano 1, [199-].
5 CARVALHO, Janete Magalhães; SIMÕES, Regina Helena Silva (Coord.). A implantação
do projeto CEFAM no Espírito Santo. 1995. 76 f. Relatório de pesquisa. Programa de
Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1995.
6 CARVALHO, Marlene de. Guia prático do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1989.
7 DEFIOR, Sylvia. Conocimento fonológico y lectura: el paso de las representaciones
inconscientes a la conscientes. Revista Portuguesa de Pedagogia: leitura, Universidade
de Colômbia, Faculdade de Psicologia de Ciências da Educação, ano XXXII - 1, p. 5-27,
1998.
8 DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-social
da formação do indivíduo. São Paulo: Editores e Autores Associados, 1993. 227 p.
9 FERREIRO, Emília. Desenvolvimento da alfabetização: psicogênese. In: GOODMAN,
Yetta (Org.). Como as crianças constroem a leitura e a escrita. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995. p. 22-35.
10 _____. Reflexões sobre alfabetização. 16. ed. São Paulo: Autores Associados, 1990. 102
p.
11 FERREIRO, Emília; TEBEROKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989. 284 p.
12 EMÍLIA, Ferreiro. Processos construtivos de apropriação da escrita. In: FERREIRO,
Emilia; PALACIO, Margarita Gomes. Os processos de leitura e escrita: novas
perspectivas. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. p. 102-123.
13 FURNARI, Eva. O amigo da bruxinha. São Paulo: Moderna, 1995. 32 p..
266
14 GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 252
p.
15 GÓES, Maria Cecília Rafael de; SOMOLKA, Ana Luíza Bustamante. A criança e a
linguagem escrita: considerações sobre a produção de textos. In: ALENCAR, Eunice
Soriano de (Org.). Novas contribuições da psicologia aos processos de ensino e
aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1992. p.51-70.
16 GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. A apropriação da linguagem escrita. 1996. 277 f.
Dissertação ( Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1996.
17 GUIMARÃES, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1988.
18 JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 2. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993.
19 LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 1989.
20 KONDER, Leandro. O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século
XXI. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 140 p.
21 LABICA, Georges. As “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1990. 194 p.
22 LANDSMANN, Liliana Tolchinsky. Aprendizagem da linguagem escrita: processos
evolutivos e implicações didáticas. São Paulo: Ática. 1995, 296 p.
23 LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte Universitário,
1978. 350 p.
24 ______. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In:
VIGOTSKII, Liev Semionovich; LURIA, Alexandr Romanovich; LEONTIEV, Alexis.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 4. ed. São Paulo: Icone, 1988. p. 54-84.
25 LURIA, Alexandr Romanovich; LEONTIEV, A. N.; TIEPLOV, B. M. Prólogo de los
redactores de la edición soviètica. In: VUIGOTSKIJ, Liev Semionovich. Historia del
desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Cuba: Editorial Científico Técnica,
1987. 215 p.
267
26 LURIA, Alexandr Romonovich. A criança e o seu comportamento. In: VYGOTSKY, Liev
Semionovich; LURIA, Alexandr Ramonovich. Estudos sobre a história do
comportamento: símios, homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
p. 151-238.
27 ______. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VIGOTSKII, Liev Semionovich;
LURIA, Alexandr Ramonovich; LEONTIEV, Alexis Linguagem, desenvolvimento e
aprendizagem. 4. ed. São Paulo: Icone, 1988. p. 143-189.
28 ______. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1987. 251 p.
29 MARX, Karl. Manuscritos económicos-filosóficos. Lisboa: Edições 70 Ltda, 1993. 270
p.
30 ______. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988, v. 1.
31 MARX, Karl; ENGELS, Frederich. A ideologia alemã (Fuerbach). 10. ed. São Paulo:
Hucitec, 1996.
32 PIAGET, Jean. A linguagem e o pensamento na criança. 4 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1986. 212 p.
33 PINO, Angel. As categorias de público e privado na análise do processo de internalização.
Educação & Sociedade, Campinas, Revista Quadrimestral de Ciência da Educação, n. 42,
p. 315-327, ago. 1992.
34 ______. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do
psiquismo humano. Cadernos CEDES. Campinas: Papirus, n. 24, p. 32-43, 1991.
35 ROCHA, Ruth. Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. 2 ed. São Paulo:
Salamandra, 1999. 60 p.
36 SMOLKA, Ana Luíza Bustamante. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das
práticas sociais. Cadernos CEDES, Campinas: Centro de Estudos e Sociedade,
UNICAMP, n. 50, p. 26-40, 2000.
37 SOARES, Magda Becker. Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. Brasília:
INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), 1991. 155 p.
38 ______. As muitas facetas da alfabetização. Cadernos de pesquisa. São Paulo: Fundação
Carlos Chagas, n. 52, p. 19-24, 1985.
39 SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 6 ed. São
268
Paulo: Editores e Autores Associados, 1997. 128 p.
40 VEER, René Van Der; VALSINER, Jaan. Vygotsky: uma síntese. São Paulo: Loyola,
1996. 479 p.
41 VIGOTSKI, Liev Semionovich. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas
superiores. Cuba: Editorial Científico Técnica, 1987. 215 p.
42 ______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 168 p.
43 ______. Obras escogidas. Tomo II, 1993. 484 p.
44 ______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
45 ______. Psicologia concreta do homem. In: Educação & Sociedade, Campinas: Cedes,
ano XXI, n. 71, p. 21-44, jul., 2000.
46 ______. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 524 p.
47 ______. Comportamento do macaco antropóide. In: VYGOTSKY, Liev Semionovich;
LURIA, Alexandr Ramonovich. Estudos sobre a história do comportamento: símios,
homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 55-92.
48 ______. O homem primitivo e seu comportamento. In: VYGOTSKY, Liev Semionovich;
LURIA, Alexandr Ramonovich. Estudos sobre a história do comportamento: símios,
homem primitivo e criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p.93-150.
269
ANEXO A
ROTEIRO DO FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
Este instrumento de pesquisa foi usado para coletar informações destinadas à
caracterização da escola-campo.
1. Nome da escola: ________________________________________________________
2. Endereço: _____________________________________________________________
3. Ano de fundação: _______________________________________________________
4. Aspecto físico
a) Número de salas de aula: __________________________________________________
b) Condições das salas de aula: _______________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
c) Possui biblioteca? ________________________________________________________
d) Possui sala ambiente? ____________ Quais? __________________________________
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
e) Possui salas de professores, sala de direção e da coordenação pedagógica?
_________________________________________________________________________
f) Possui refeitório? _________________________________________________________
5. Recursos humanos
a) Número de professores por turno
Matutino: ______ Vespertino: ______ Noturno: ______
Número de alunos
Educação Infantil: ____________ Ensino Fundamental: ______________
Média de alunos por turma: ____________________
270
b) O corpo técnico-administrativo é composto por: _______________________________
_________________________________________________________________________
c) Número de turmas por série/turno:Matutino Vespertino Noturno
4 anos ________ _________ _______
5 anos ________ _________ _______
6 anos ________ _________ _______
1a série ________ _________ _______
2a série ________ _________ _______
3a série ________ _________ _______
4a série ________ _________ _______
d) Número de faxineiras e merendeiras: _______________________________________
_________________________________________________________________________
5. Recursos materiais
a) Tipo de material pedagógico existente na escola: ________________________________
____________________________________________________________________________
______________________________________________________________________
b) Recursos audiovisuais: ____________________________________________________
____________________________________________________________________________
______________________________________________________________________
6. Histórico da escola:
271
ANEXO B
FOLHA DO DIÁRIO DE CAMPO
O diário de campo foi um instrumento de pesquisa destinado ao registro das
observações realizadas na sala de aula.
Escola: _________________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
Horário: ________________________________________________________________
1. Observações:
272
ANEXO C1
ROTEIRO DA ENTREVISTA COM A PROFESSORA
Este instrumento de pesquisa foi utilizado para coletar as informações para a
caracterização da professora da classe envolvida no estudo.
1. Sexo:
masculino ( )
feminino ( )
2. Idade:
abaixo de 25 anos ( )
entre 26 e 30 anos ( )
entre 31 e 35 anos ( )
entre 36 e 40 anos ( )
mais de 40 anos ( )
3. Você trabalha em:
uma só escola ( )
duas escolas ( )
três escolas ou mais ( )
4. Nesta escola você é:
profissional efetivo ( )
profissional contratado ( )
profissional com designação temporária ( )
outros ( )
Especificar: _______________________________________________________________
1 Os itens usados para caracterização da professora foram retirados do relatório de pesquisa, intitulado A implantação doprojeto CEFAM no Espírito Santo, coordenado pelas professoras Janete M. Carvallho e Regina H. S. Simões.
273
5. Além de trabalhar nesta (s) escola (s), você exerce outra atividade profissional?
Sim. ( )
Não. ( )
Se sua resposta foi afirmativa, qual é essa atividade? _______________________________
6. Sua formação acadêmica está em nível:
( ) médio - tipo de curso ______________________________
( ) licenciatura curta - tipo de curso ______________________________
( ) licenciatura plena - tipo de curso ______________________________
( ) pós-gradução/aperfeiçoamento (menos de 360 horas)
( ) pós-graduação/ especialização (360 horas ou mais)
( ) mestrado
( ) outros
Especificar: _______________________________________________________________
_________________________________________________________________________
7. Sua experiência como professor (a):
( ) abaixo de 2 anos
( ) entre 2 até 5 anos
( ) entre 5 até 7 anos
( ) entre 7 até 10 anos
( ) acima de 10 anos
8. Sua experiência profissional foi adquirida:
( ) na docência em nível fundamental (1a a 4a séries)
( ) na docência em nível fundamental (5a a 8a séries)
( ) na docência em nível médio
( ) na docência e em funções técnicas de ensino
274
9. Você participou de outros cursos que tenham contribuído para a sua formação como
professor (a)?
( ) Sim.
( ) Não.
Se sua resposta foi afirmativa, indique quais, citando três, por ordem de relevância, e
indicando a carga horária correspondente:
_________________________________________________________________________
10. Você é vinculado ao sindicato?
( ) Sim.
( ) Não.
11. Assina jornais, revistas, periódicos?
( ) Sim.
( ) Não.
Se sua resposta foi afirmativa, quais? ___________________________________________
____________________________________________________________________________
______________________________________________________________________
12. Participa de congressos, seminários ou encontros similares?
( ) Sempre.
( ) Às vezes.
( ) Nunca.
275
13. Suas atividades culturais mais freqüentes são:
SEMPRE ÀS VEZES NUNCA
( ) ( ) ( ) - ouvir rádio
( ) ( ) ( ) - assistir à TV
( ) ( ) ( ) - assistir A vídeo
( ) ( ) ( ) - ir ao cinema
( ) ( ) ( ) - ir ao teatro
Especificar outras, caso haja:
( ) ( ) ( ) -
( ) ( ) ( ) -
( ) ( ) ( ) -
14. Suas leituras mais comuns:
SEMPRE ÀS VEZES NUNCA
( ) ( ) ( ) - jornais locais
( ) ( ) ( ) - jornais do País
( ) ( ) ( ) - periódicos da área de educação
( ) ( ) ( ) - livros didáticos
( ) ( ) ( ) - livros variados sobre educação
( ) ( ) ( ) - periódicos diversos
Especificar outras se ocorrerem:
( ) ( ) ( ) -
( ) ( ) ( ) -
( ) ( ) ( ) -
276
ANEXO D
ROTEIRO DO FORMULÁRIO PARA A CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS
Este formulário foi o instrumento de pesquisa usado para coletar informaçõesdestinadas à caracterização das crianças.
1. Nome da criança: ________________________________________________________
2. Endereço completo: ______________________________________________________
3. Idade:
6 anos ( )
7 anos ( )
8 anos ( )
+ de 8 anos ( )
Especificar a quantidade de meses: _____________________________________________
4. Sexo:
feminino ( )
masculino ( )
5. Já estudou?
Sim. ( )
Não ( )
Especificar onde e quanto tempo estudou: _______________________________________
277
6. Programas favoritos:
Rádio: ___________________________________________________________________
TV: _____________________________________________________________________
7. Tipo de material escrito que possui em casa:
LivroS ( )
Revistas ( )
Jornais ( )
Outros: ___________________________________________________________________
8. Diversão preferida da criança: ______________________________________________
Especificar: _______________________________________________________________
_________________________________________________________________________
9. Pessoas que moram com o (a) aluno (a): ______________________________________
10. Profissão do pai: ____________________ Grau de instrução: _________________
Trabalho atual: ________________________ Renda mensal: ____________________
11. Profissão da mãe: ___________________ Grau de instrução: _________________
Trabalho atual: ________________________ Renda mensal: ____________________
12. Profissão do responsável: ____________ Grau de instrução: ________________
Trabalho atual: _______________________ Renda mensal: ___________________
278
13. A criança trabalha?
Sim. ( )
Não. ( )
Especificar onde, quantas horas diárias, salário: __________________________________
_________________________________________________________________________
14. Número de irmãos:
nenhum irmão ( )
um irmão ( )
dois irmãos ( )
três irmãos ( )
mais de três irmãos ( )
279
ANEXO E
CARTA ENVIADA AOS PAIS
Este instrumento foi encaminhado à casa das crianças envolvidas na pesquisa para
completar os dados do ANEXO D
Escola Municipal de Educação Básica
Senhores pais ou responsáveis
Contamos com a sua colaboração para o preenchimento do formulário que se segue:
1. Nome da criança: __________________________________________________
2. Profissão do pai: _______________________________________________________
3. Até que série o pai cursou na escola? _______________________________________
4. Profissão da mãe: _______________________________________________________
5. Até que série a mãe cursou na escola? _______________________________________
6. Renda familiar: _________________________________________________________
Atenciosamente,
280
ANEXO F
CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS
Nas tabelas que se seguem estão organizadas as informações coletadas por meio dos
ANEXOS D e E destinados à caracterização das crianças envolvidas no estudo.
Tabela 1 – Distribuição dos alunos segundo a idade
Idade F %Abaixo de 7 anos7 anos8 anosAcima de 8 anos
00231204
058,9830,7610,26
Total 39 100
Tabela 2 – Distribuição dos alunos segundo o sexo
Sexo F %FemininoMasculino
2217
56,4143,59
Total 39 100
Tabela 3 – Distribuição das crianças se estudaram ou não anteriormente
Escolaridade anterior F %SimNão
3801
97,442,56
Total 39 100
281
Tabela 4 – Distribuição dos alunos conforme a idade em que começaram a estudar
Idade que começou a estudar F %Menos de 4 anos4 anos5 anos6 anos7 anos8 anosMais de 8 anos
00150713030100
038,4617,9533,34 7,69 2,56
0Total 39 100
Tabela 5 – Distribuição dos alunos segundo os programas de rádio e televisão favoritos
Programas de rádio etelevisão favoritos
F %
MúsicasNovelasDesenhosRatinhoAngélicaXuxaChavesGuguFilmesReino de DeusCelso PortioliElianaSandy e JúniorHebeDisney Club
281011060403020202010101010101
71,8034,4928,2113,5910,26 7,69 5,12 5,12 5,12 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56
Obs.: Esta tabela não apresenta total de cem por cento, porque um mesmo sujeito poderia ter
preferência por mais de um programa. O percentual foi calculado tomando por base os 39
sujeitos, pois todos possuíam rádio e/ou televisão em suas casas.
282
Tabela 6 – Distribuição das crianças por tipo de material escrito que possuíam em casa
Tipo de material escrito F %RevistaLivroJornal
252109
73,5261,7626,47
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento, porque um mesmo sujeito poderia termais de um tipo de material escrito. O percentual foi calculado tendo por base 34 sujeitos queadmitiram ter algum tipo de material em suas casas.
Tabela 7 – Distribuição dos alunos conforme os títulos de livros, revistas e jornais quedisseram possuir em casa
Títulos de livros, revistas eperiódicos
F %
GibisLivro didáticoCarasDesfileVejaChapeuzinho VermelhoOs três porquinhosBíbliaJornal da farmácia
541111111
31,2525,00 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25 6,25
Total 16 100Obs.: A maioria das crianças não soube especificar os títulos dos livros, revistas e jornais quedisseram possuir em suas casas. O cálculo do percentual foi feito tomando por base o total detítulos citados.
283
Tabela 8 – Distribuição das crianças quanto à diversão preferida.
Diversões preferidas F %Brincar de bonecaNadarPega-pegaBrincar de carrinhoAndar de bicicletaBrincar de casinhaParqueCorre cutiaPular cordaConversar com amigosJogar bolaEstátuaBrincar com amigosVirar piruetaFazer a lição de casaEsconde-escondeBrincar de balançoSoltar pipaAndar a cavaloBrincar com o irmãoJogar bolaBrincar com ursinhoAssistir à televisão
87544433322111111111111
20,5117,9412,8210,2610,2610,26 7,69 7,69 7,69 5,12 5,12 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56 2,56
Obs.: Esta tabela não apresenta total de cem por cento, porque um mesmo sujeito possuía maisde uma diversão preferida. Os percentuais foram calculados tendo por base 39 sujeitos.
Tabela 9 – Distribuição das crianças conforme as pessoas que moram em sua casa
Pessoas que moram em suacasa
F %
Pais e irmãosPais, irmãos e outros parentesUm dos pais e irmãosUm dos pais, irmãos eparentes
260704
02
66,6817,9410,26
5,12Total 39 100
284
Tabela 10 – Distribuição dos sujeitos de acordo com a ocupação do pai
Ocupação do pai F %PedreiroAuxiliar de produçãoServente de pedreiroAutônomoFrentistaMontador de produçãoVendedorColhedor de laranjaColocador de broquetesMarcineiroChapa de caminhãoArrumadorAjudante de caminhãoMetalúrgicoOperárioImpressorFunileiroMotoristaServiços gerais
09050303020201010101010101010101010101
24,3213,54 8,11 8,11 5,41 5,41 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70 2,70
Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.
285
Tabela 11 – Distribuição das crianças conforme a ocupação das mães
Ocupação da mãe F %Do larEmpregada domésticaServiço geralMerendeiraPajemFaxineiraMerendeiraCostureira
1811020201010101
48,6529,73 5,41 5,41 2,70 2,70 2,70 2,70
Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base trinta e sete sujeitos, porque duascrianças não devolveram os formulários enviados para as suas casas.
Tabela 12 – Distribuição dos alunos conforme a renda familiar
Renda familiar F %1 até 2 salários2 até 3 salários3 até 4 salários4 até 5 salários5 até 6 saláriosMais de 6 saláriosNão declararam a rendaDesempregados
0408040303030705
10,8121,6210,81 8,11 8,11 8,1118,9113,52
Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.
286
Tabela 13 – Nível de escolarização do pai
Grau de instrução do pai F %Quarta série completaQuarta série incompletaOitava série completaOitava série incompletaMédio completoMédio incompletoSuperiorNão estudou
0910051100010001
24,3227,0313,5229,73
0 2,70
0 2,70
Total 37 100Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.
Tabela 14 – Distribuição dos alunos conforme o grau de instrução da mãe
Grau de instrução da mãe F %Quarta série completaQuarta série incompletaOitava série completaOitava série incompletaMédio completoMédio incompletoSuperiorNão estudou
0712041201000001
18,9132,4410,8132,44 2,70
00
2,70Total 37 100
Obs.: O cálculo do percentual foi feito tomando por base 37 sujeitos, porque duas crianças nãodevolveram os formulários enviados às suas casas.
Tabela 15 – Distribuição das crianças de acordo com o número de irmãos
Número de irmãos F %Um irmãoDois irmãosTrês irmãosMais de três irmãosNenhum irmão
1410060504
35,8925,6415,3912,8210,26
Total 39 100
287
ANEXO GBRINCADEIRA PREFERIDA
Este instrumento foi utilizado para registrar as instruções da brincadeira escolhida
pelas crianças.
Escola Municipal de Educação Básica
Nome da criança: _________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
288
ANEXO HRECONTO
Este instrumento foi usado para registrar a história recontada pelas crianças.
Escola Municipal de Educação Básica
Nome da criança: _________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
289
ANEXO I
POEMA
Este instrumento de pesquisa foi usado para registrar o poema verbalizado pelas
crianças, após a apresentação oral do mesmo pela pesquisadora.
Escola Municipal de Educação Básica
Nome da criança: _________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
290
ANEXO J
A ESCOLA
Este instrumento foi usado para registrar o texto, produzido verbalmente pelas
crianças, sobre "a escola".
Escola Municipal de Educação Básica
Nome da criança: _________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
291
ANEXO L
HISTÓRIA EM SEQÜÊNCIA
Este instrumento foi usado para registrar a história, contada pelas crianças, sobre a
seqüência de gravuras do livro de Eva Furnari O amigo da bruxinha.
Escola Municipal de Educação Básica
Nome da criança: _________________________________________________________
Data: ___________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________
____________________________________________________________________________