O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

6
Maria Teresa Buonomo de Pinho Nosso objetivo é examinar o problema da ideologia na tão falada crise atual do marxismo e na sua divulgada morte. A nosso ver, Marx tem sido mantido no velório à força, pela força dar armas materiais e espirituais da classe dominante, isto é, pelo poder material da classe dominante e pela força da sua ideologia, que vem distorcendo e ocultando o pensamento de Marx há mais de 160 anos. Marx, mesmo vivo, tem sido mandado ao crematório. Esperamos seu renascimento das cinzas. . O problema da ideologia na vida social e na sociedade do capital Para devassar este problema, cabe remontar a concepção marxiana de ser social. Este é, antes de tudo, ser natural e objetivo, isto é, tem objetos naturais fora de si. É também ser vivo, ou seja, tem potencialidades e necessidades naturais. Demais, é ser natural humano, isto é, trabalha sob forma especificamente humana, atividade através da qual enforma nos objetos naturais projetos conscientes. Desta enformação resulta a transformação da natureza externa e, por conseguinte, da própria natureza humana. Natureza esta que é sempre social, isto é, que se desenvolve através da ação conjugada de seres humanos e que se desenvolve ao nível da consciência. À medida que o homem trabalha e vê seus produtos, vai se afastando da natureza, porém sem jamais romper com ela. Criam-se novas necessidades e potencialidades humanas. À medida que o homem se afasta infinitamente dos seus limites naturais, a vida social vai se explicitando em termos mundiais, de início, apenas objetivamente (mercado mundial ou regulação inconsciente da produção social pelo dinheiro). Coloca-se a possibilidade histórica da sua explicitação subjetiva, ou seja, da sociedade comunista mundial, quer dizer, da regulação consciente da produção social de acordo com as necessidades humanas. O fundamento do recuo humano das barreiras naturais reside na capacidade do trabalho humano 1 Professora Assistente do Departamento de Economia da UFS. produzir excedente. Esta capacidade, - que constitui o valor de uso específico da força de trabalho humana - , leva ao desenvolvimento da apropriação/expropriação desse produto e, portanto, constitui o fundamento material de todas as formas de sociedade de classes. No limiar da história humana, não havia ainda se explicitado a categoria produto excedente. Por conseguinte, não havia ainda classes sociais. Nessa fase, a metamorfose da natureza se resumia à tomada de objetos naturais enquanto valores de uso. Quando se explicita historicamente a categoria produto excedente, surgem as sociedades de classes. Uma tribo é subjugada por outra. A vencedora toma a vencida como parte das suas condições objetivas de produção. Nasce assim a alienação e o estranhamento entre o produtor direto e o produto do seu trabalho, mas apenas em estágio embrionário, porque o produtor direto sendo então considerado uma parte das condições de produção permanece com acesso garantido aos seus meios de subsistência. Então já se explicitam objetividades mistas, pertencentes à natureza e à sociedade, tais como os animais domésticos. Ao mesmo tempo, ao lado dessas objetividades mistas, já se inicia, - através do desenvolvimento da troca mercantil -, a explicitação de determinações puramente sociais, tais como o valor de troca e o dinheiro, que pressupõem objetividades da natureza transformadas pelo homem, isto é, valores de uso. Assim, podemos afirmar que o devir mercadoria do produto do trabalho representa maior socialização do homem. Este devir é processo que só se completa no capitalismo que emerge no século XVIII. Isto significa que o modo de produção capitalista constitui um afastamento maior do homem em relação à natureza. A partir do aparecimento do produto excedente também surge a vida política e o Estado, força destacada da sociedade e armada através da qual a classe dominante garante a apropriação do excedente. Sociedade de classes e vida política são irmãos siameses. Portanto, não se pode superar a sociedade de classes através de mudanças meramente políticas, como, por exemplo, através da democratização do poder político. A cidade e o Estado se explicitam, - em direção à sua forma acabada, forma própria da sociedade burguesa -, à medida que se O problema da ideologia na suposta morte do marxismo ARTIGO

Transcript of O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Page 1: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Maria Teresa Buonomo de Pinho�

Nosso objetivo é examinar o problema da ideologia na tão falada crise atual do marxismo e na sua divulgada morte. A nosso ver, Marx tem sido mantido no velório à força, pela força dar armas materiais e espirituais da classe dominante, isto é, pelo poder material da classe dominante e pela força da sua ideologia, que vem distorcendo e ocultando o pensamento de Marx há mais de 160 anos. Marx, mesmo vivo, tem sido mandado ao crematório. Esperamos seu renascimento das cinzas.

�. O problema da ideologia na vida social e na sociedade do capital

Para devassar este problema, cabe remontar a concepção marxiana de ser social. Este é, antes de tudo, ser natural e objetivo, isto é, tem objetos naturais fora de si. É também ser vivo, ou seja, tem potencialidades e necessidades naturais. Demais, é ser natural humano, isto é, trabalha sob forma especificamente humana, atividade através da qual enforma nos objetos naturais projetos conscientes. Desta enformação resulta a transformação da natureza externa e, por conseguinte, da própria natureza humana. Natureza esta que é sempre social, isto é, que se desenvolve através da ação conjugada de seres humanos e que se desenvolve ao nível da consciência.

À medida que o homem trabalha e vê seus produtos, vai se afastando da natureza, porém sem jamais romper com ela. Criam-se novas necessidades e potencialidades humanas. À medida que o homem se afasta infinitamente dos seus limites naturais, a vida social vai se explicitando em termos mundiais, de início, apenas objetivamente (mercado mundial ou regulação inconsciente da produção social pelo dinheiro). Coloca-se a possibilidade histórica da sua explicitação subjetiva, ou seja, da sociedade comunista mundial, quer dizer, da regulação consciente da produção social de acordo com as necessidades humanas.

O fundamento do recuo humano das barreiras naturais reside na capacidade do trabalho humano

1 Professora Assistente do Departamento de Economia da UFS.

produzir excedente. Esta capacidade, - que constitui o valor de uso específico da força de trabalho humana -, leva ao desenvolvimento da apropriação/expropriação desse produto e, portanto, constitui o fundamento material de todas as formas de sociedade de classes.

No limiar da história humana, não havia ainda se explicitado a categoria produto excedente. Por conseguinte, não havia ainda classes sociais. Nessa fase, a metamorfose da natureza se resumia à tomada de objetos naturais enquanto valores de uso. Quando se explicita historicamente a categoria produto excedente, surgem as sociedades de classes. Uma tribo é subjugada por outra. A vencedora toma a vencida como parte das suas condições objetivas de produção. Nasce assim a alienação e o estranhamento entre o produtor direto e o produto do seu trabalho, mas apenas em estágio embrionário, porque o produtor direto sendo então considerado uma parte das condições de produção permanece com acesso garantido aos seus meios de subsistência. Então já se explicitam objetividades mistas, pertencentes à natureza e à sociedade, tais como os animais domésticos. Ao mesmo tempo, ao lado dessas objetividades mistas, já se inicia, - através do desenvolvimento da troca mercantil -, a explicitação de determinações puramente sociais, tais como o valor de troca e o dinheiro, que pressupõem objetividades da natureza transformadas pelo homem, isto é, valores de uso. Assim, podemos afirmar que o devir mercadoria do produto do trabalho representa maior socialização do homem. Este devir é processo que só se completa no capitalismo que emerge no século XVIII. Isto significa que o modo de produção capitalista constitui um afastamento maior do homem em relação à natureza.

A partir do aparecimento do produto excedente também surge a vida política e o Estado, força destacada da sociedade e armada através da qual a classe dominante garante a apropriação do excedente. Sociedade de classes e vida política são irmãos siameses. Portanto, não se pode superar a sociedade de classes através de mudanças meramente políticas, como, por exemplo, através da democratização do poder político. A cidade e o Estado se explicitam, - em direção à sua forma acabada, forma própria da sociedade burguesa -, à medida que se

O problema da ideologia na suposta morte

do marxismo AR

TIG

O

Page 2: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Contra a Corrente �

desenvolve o vir a ser mercadoria do produto do trabalho e, portanto, a lei do valor.

A lei do valor, - que regula o intercâmbio de mercadorias pelo tempo de trabalho socialmente necessário nelas contido -, é a lei mais geral de todas no interior do ser social. De início, - quando ainda não se desenvolveu o intercâmbio de mercadorias e o homem realiza apenas trabalho útil, ou quando apenas de modo marginal a produção é destinada à troca, tal como na Antigüidade e na Idade Média -, a lei do valor já atua de modo implícito. Através de várias etapas e processos históricos, a humanidade chega ao modo de produção capitalista. Nesse, que emerge a partir de meados do século XVIII, o valor e o valor excedente, - a categoria mais valia de Marx e suas formas fenomênicas (lucro industrial, ganho mercantil, renda da terra e juro) -, se explicitam, quer dizer, superam a sua existência embrionária e tornam-se reguladores autônomos da produção social e, portanto, a base de todo o sistema que vem se desenvolvendo desde então. A produção capitalista de mercadorias se torna a forma universal e necessária de toda produção de valores de uso. O valor de uso é subordinado ao valor de troca.

Através da categoria trabalho, que torna o ser social um ser qualitativamente diverso do ser da natureza, e através das categorias valor e valor excedente, que expressam a socialização crescente do ser social e o desenvolvimento das suas faculdades e necessidades, Marx coloca as bases de uma teoria do desenvolvimento do ser humano. A emergência do mercado mundial que resulta desse desenvolvimento ontológico cria a possibilidade da superação da mudez do gênero humano. A própria existência do mercado mundial já significa que o processo de produção e reprodução da vida humana já se desenvolve ao nível da espécie humana. A existência do intercâmbio mundial, e do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social que o acompanha, coloca a possibilidade histórica da emergência da sociedade para além do capital e da política, ou seja, da sociedade comunista, da regulação consciente da produção social de acordo com as necessidades autênticas do gênero humano. Cabe ressaltar que o desenvolvimento das forças produtivas promovido pelo capital significa tão somente a criação da possibilidade histórica, e não da necessidade histórica, da emancipação humana real. Isto porque não existe teleologia na história.

A emancipação humana deve se processar através de um duplo ato. Primeiro, um ato político através do qual se destrua a sociedade regida pelo capital e seu Estado político. Um segundo ato de natureza social, onde se supere o capital, ou seja, onde se supere a divisão do trabalho que torna o homem meio de produção da riqueza. Assim pode se abrir o caminho para a verdadeira humanização do homem, do gênero e do indivíduo, tanto no que se refere às suas capacidades quanto no que se refere às suas necessidades. Nesta humanização, classes sociais

e Estado definham. A perspectiva do trabalho de Marx é a teoria deste duplo ato revolucionário. Esta perspectiva é imortal: existirá enquanto existir o homem.

A afirmação de que o marxismo está morto, - e de que chegamos ao fim da história no capitalismo -, baseia-se num desconhecimento brutal da obra de Marx, que, por sua vez, se baseia na ideologia dominante. Cabe explicar as razões deste desconhecimento e deste domínio.

A ideologia é um campo da superestrutura ideal - uma parcela dos produtos espirituais dos homens que se distingue por assumir a função social de instrumento de conscientização e de operacionalização dos conflitos sociais, cuja base última reside no fundamento material da sociedade. Tais produtos espirituais podem ser falsos ou verdadeiros, revolucionários ou reacionários. Tais produtos espirituais tornam-se ideologia quando assumem a função social de instrumento ideal da práxis social. Isto significa que o ser humano antecipa na mente os resultados que imprime, através da sua atividade, na realidade humano-social. Toda atividade humana, quando não tem um caráter biológico totalmente necessário, são atividades teleológicas, tal como o trabalho. Para que este se realize e evolua, torna-se necessário o aparecimento e o desenvolvimento ulterior de atividades de caráter extra-laborativo. Estas atividades extra-laborativas, tal como o próprio trabalho, são precedidas por uma antecipação mental e também por uma decisão subjetiva entre alternativas postas pela realidade objetiva. As posições teleológicas extra-laborativas têm como momento ideal as formas ideológicas da vida social, que visam a organização da práxis social global.

Nas sociedades de classes, a luta de classes é a principal forma de conflito social. Portanto, nestas sociedades, as contradições e conflitos entre classes antagônicas constituem o fundamento das formas ideológicas. Estes conflitos entre grupos são dirimidos quando um grupo persuade a si e aos outros de que representa o interesse universal da sociedade. Isto significa que o grupo dominante, numa determinada sociedade, assegura sua dominação na vida material através da ideologia, mais precisamente, das diferentes formas de ideologia que empregam na luta de classes, através das quais dissimulam que perseguem apenas seus interesses particulares e não os interesses universais da sociedade.

A ideologia da classe dominante garante a apropriação/expropriação do produto excedente porque constitui a ideologia dominante da sociedade determinada da qual nasce, vale dizer, as justificações da exploração do homem pelo homem, tal como se desenvolvem numa determinada sociedade, são as idéias dominantes nessa mesma sociedade, ainda que não constituam idéias absolutas, sendo seu domínio apenas relativo. A classe dominante possui não apenas os meios de produção material, mas também os meios de produção intelectual.

Page 3: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Ideologia e morte do marxismo �

Portanto, domina a produção de idéias. Os pensamentos reinantes na sociedade, - que

constituem a ideologia da classe dominante -, são cada vez mais universais, à medida que se desenvolve o ser social, pois é preciso apresentar o interesse particular da classe dominante como o interesse da sociedade inteira. É bastante nítida a aparência de maior universalidade da ideologia da burguesia, em comparação com as ideologias das classes dominantes em modos de produção anteriores. No escravismo clássico, a ideologia dominante dizia simplesmente que os produtores diretos eram “instrumentos de produção”, sendo sua subordinação mantida principalmente através da violência extra-econômica. No feudalismo, a classe dominante era a aristocracia, e as idéias dominantes eram os conceitos de honra, de fidelidade, etc. Em comparação com o mundo antigo, o domínio através desses conceitos é muito mais sutil, já que os servos da gleba se sentiam protegidos pelas classes dominantes. Na sociedade burguesa, reinam os conceitos de liberdade, igualdade, etc. Estes afirmam que todos os homens são iguais e livres, não havendo subordinados e subordinadores, pois não existem mais relações de subordinação direta entre os homens e todos são concebidos de igual modo perante o mercado mundial e o Estado.

No pré-capitalismo, a exploração é explícita, quer dizer, baseada em desigualdades explícitas entre as classes sociais. Ademais, é mister ainda lembrar que, no pré-capitalismo, as classes dominantes se apropriam diretamente do produto excedente em forma de valores de uso. Havia também desigualdade jurídica e política. No modo de produção especificamente capitalista, a exploração econômica e a subordinação política não são explícitas. Isto porque, no que se refere à exploração econômica, o produto excedente social assume as formas fenomênicas de lucro, juro, renda da terra, etc., que escondem a sua essência, isto é, a mais valia (valor excedente), e esta, por sua vez, esconde a apropriação do produto excedente pela classe capitalista através da forma salário, que oculta a repartição da jornada de trabalho em trabalho necessário e trabalho excedente. Esta origem do sobre-produto tem, portanto, que ser desvendada pela teoria do valor-trabalho. Além disso, a forma livre do trabalho assalariado também obscurece seu caráter de trabalho explorado, pois todos os indivíduos da sociedade são vistos como iguais possuidores de mercadorias. Vigora também a igualdade política e jurídica entre os homens, sua igualdade formal, igualdade perante a lei e o Estado, que esconde a diferença de conteúdo entre possuidores de força de trabalho e possuidores de meios de produção.

O pensamento de Marx e o marxismo autêntico constituem a ideologia da classe dominada – a prévia-ideação da superação da sociedade do capital e da política. Esta ideologia vem sendo deformada, - devido

ao domínio da ideologia da classe dominante sobre a ideologia da classe dominada -, desde a época de Marx. Esta deformação é o problema vital a ser enfrentado, como veremos a seguir.

2. A tese da morte do marxismo e a decadência ideológica da burguesia

A tese da morte do marxismo é parte da miséria espiritual contemporânea, que se alastra por todo planeta e que constitui a expressão intelectual da miséria material deste mundo, escondida por detrás da aparência de opulência material em alguns recantos do globo e de certas estatísticas usadas pelos economistas.

Antes de nos determos nesta miséria material e espiritual contemporânea, cabe fazer jus às realizações econômicas e intelectuais da burguesia, que o domínio desta classe proporcionou durante a sua fase revolucionária, isto é, entre o fim do século XVIII e os anos 1840. O capitalismo e seu mecanismo de mercado, que funciona através da concorrência entre os capitais individuais que buscam lucros extraordinários, criou mais forças produtivas do que todas as sociedades passadas. Estas forças são condição incontornável para a instauração do comunismo, visto que permitem a libertação do homem do fardo do trabalho extenuante e a satisfação de um leque ampliado e crescente de necessidades humanas. A burguesia também desempenhou papel revolucionário no plano científico-filosófico e ideológico, bastando citar as realizações da economia clássica, do iluminismo e do pensamento hegeliano. Todos estes representantes ideológicos da jovem sociedade burguesa a concebem enquanto regida por leis naturais. Até a explicitação da luta entre capital e trabalho, na década de 1840, esta era uma postura revolucionária, pois representa um avanço histórico em relação às concepções e ideologias pré-capitalistas, que são concebidas enquanto anti-naturais. Enfim, o liberalismo econômico e político nasce enquanto ideologia revolucionária, a ideologia da classe revolucionária que até então era a burguesia que arrastava consigo a classe trabalhadora contra a nobreza e o clero decadentes. No seu período revolucionário, a burguesia identificou tanto os avanços proporcionados pelo capitalismo, quanto algumas de suas limitações. Estas realizações se deviam ao fato de que a burguesia tinha até então seus olhos abertos para a luta de classes.

Com a explicitação da luta entre capital e trabalho, nos anos 1840, o reconhecimento científico-filosófico desta luta transforma-se em ideologia do proletariado, que tem o pensamento de Marx como principal representante.

Marx parte da crença hegeliana no aperfeiçoamento da política em direção ao Estado racional, que é identificado ao Estado moderno. Esta é a concepção do Marx pré-marxiano. Este Marx, conforme ele próprio relata no Prefácio de 1859, se vê em apuros quando tem

Page 4: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Contra a Corrente �

que dar opiniões sobre a vida material. Decide então criticar a filosofia hegeliana. Submete esta filosofia a uma crítica da natureza ontológica em meados de 1843, - comparando a realidade das contradições sociais reais que se desenvolvem na vida material com a teoria de Hegel que afirma que o Estado moderno pode superar estas contradições -, e chega à concepção de que o Estado é sempre uma forma da dominação de classes e, por conseguinte, é impotente diante das contradições da vida real, por maior que seja a sua boa vontade. Compreende também, invertendo a filosofia hegeliana, que a sociedade civil é o fundamento do Estado. Decide então procurar a anatomia da sociedade através do estudo da economia política.

Estes estudos se iniciam em 1844. Marx elabora uma teoria da revolução comunista, que deve implicar a superação das classes sociais e da política. Com as revoluções de 1848/1849, Marx utiliza sua teoria para influir nos acontecimentos históricos, o que mostra a questão da relação entre teoria e prática na sua trajetória. A teoria deve servir não apenas para interpretar o mundo, mas, sobretudo, para transformá-lo. Todavia, cabe acentuar que para Marx a elaboração teórica verdadeira é essencial para uma intervenção na realidade da perspectiva do trabalho. É por este motivo que, diante do fracasso da perspectiva do trabalho naquele momento histórico, ele decide se refugiar no gabinete de estudos, estudando intensamente economia política nos anos 1850, procurando a anatomia da sociedade civil em busca de uma teoria correta da revolução da perspectiva do trabalho. Nos anos 1850, escreve os rascunhos de O Capital.

Na obra O Capital, parte da crítica do mercado enquanto regulador da produção social. Depois introduz a relação entre capital e trabalho e a determina como uma relação de exploração do homem pelo homem, onde o capitalista compra continuamente a mercadoria força de trabalho com uma parte do produto do próprio trabalhador. Marx trata então da transformação do processo material de produção num processo de valorização do capital, onde o valor de uso se torna completamente subsumido no valor de troca. Tal subsunção conduz a um desenvolvimento acelerado da produtividade do trabalho. Este aumento de produtividade leva à formação e à constante reconstituição de um exército de desempregados, que mantêm baixo os níveis de salário da classe trabalhadora, de acordo com as necessidades do capital. Marx afirma que as crises econômicas são inerentes ao funcionamento da economia capitalista. São crises de superprodução de capital, onde a quantidade de valor excedente produzido se torna insuficiente para valorizar todo capital já acumulado pela sociedade, causando queda da taxa de lucro na crise e uma tendência secular à queda desta taxa, que é refreada por várias contra-tendências, tais como a atuação do capital no mercado mundial, além das suas fronteiras nacionais,

que traz várias vantagens ao capital: o barateamento das matérias-primas, a super-exploração do trabalho, etc. Marx trata também do capital monetário e da repartição do valor excedente em diferentes categorias: lucro, juro, etc.

Em vários escritos da maturidade, Marx fala, - após a análise da sociedade civil na sua economia -, da questão da Revolução Comunista. Esta revolução deve passar por um duplo ato. Um primeiro ato político através do qual o proletariado, conquistando o poder, promova a destruição da sociedade civil e do Estado político. Após este ato, deve se efetivar, necessariamente, um segundo e prolongado ato através do qual deve ocorrer uma transformação radical da forma de sociabilidade, que deve implicar a superação das categorias econômicas da sociedade civil e o definhamento do Estado.

Marx jamais deixou de acentuar o caráter revolucionário do capital - no que se refere ao desenvolvimento das forças produtivas. Ao mesmo tempo, Marx compreendeu toda a degradação humana em todos os sentidos, tanto no que se refere às capacidades quanto às necessidades satisfeitas pelo homem da sociedade burguesa. Demais, ele previu uma tendência do capital que se tornou concreta a partir do século XX, qual seja: o caráter destrutivo do capital e a natureza auto-destrutiva da humanidade que se rege pelo desenvolvimento do capital e da política.

Enquanto o marxismo se desenvolve, a burguesia varre para debaixo do tapete o problema da luta de classes. Este desaparece de sua teoria. A ideologia burguesa se torna a partir de então reacionária. Esta ideologia reacionária, desde então, afeta não apenas os representantes declarados do capital, mas também pseudo-representantes da classe trabalhadora. Já na época de Marx e da I Internacional vigora a tendência da ideologia da classe dominante a deformar o pensamento de Marx.

No período que se estende entre o último terço do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, se acentua o caráter parasita da burguesia e a decadência da sua ideologia. No plano da vida material, o período começa com a Grande Depressão de 1873-1894, que conduziu o capitalismo a uma Segunda Revolução Industrial e à ascensão do movimento imperialista, quando as potências capitalistas dividiram o mundo em zonas de influência econômica e política, com o fito de desfrutar da super-exploração do trabalho nos países dominados.

No campo do desenvolvimento da ideologia da classe dominante cabe referir o desenvolvimento do caráter reacionário do positivismo nas ciências humanas. Demais, é ainda mais importante explicitar o aprofundamento da deformação do marxismo na II Internacional. Os ideólogos da II Internacional passaram a excluir a concepção marxiana da necessidade de uma revolução social para o trânsito do capitalismo para

Page 5: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Ideologia e morte do marxismo �

o comunismo. Bernstein e outros passaram a acreditar nas reformas sociais, no aperfeiçoamento do Estado em direção à democracia.

Todo esse movimento, - na vida material e no campo da ideologia -, levou a humanidade a uma primeira guerra imperialista mundial, a Primeira Grande Guerra, quando os trabalhadores das nações hegemônicas se subordinaram à ideologia da perspectiva do capital, lutando entre si, ao invés de se aliarem contra a burguesia, tal como era o projeto de Rosa Luxemburgo e seus seguidores autênticos. Rosa enfatizou na sua obra teórica e prática que a social-democracia, defendendo as reformas sociais ao invés da revolução contra o capital, nega a luta de classes e defende a ordem regida pelo capital. Isto significa uma deformação completa do movimento dos trabalhadores, ou seja, o fato de que grande parte deste movimento se encontra subsumido sob a ideologia da burguesia.

Além de Rosa Luxemburgo, Lênin é outro grande representante do marxismo autêntico e da resistência contra a deformação do marxismo pela ideologia da classe dominante na época em questão. Basta citar sua participação no movimento revolucionário internacional enquanto líder da Revolução Russa de 1917. A tragédia desta Revolução, - ou seja, o fato de que ela não tenha conduzido o mundo da regência da vida pelo capital para o comunismo -, se deveu, em grande parte, ao fato de não ter sido acompanhada por revoluções nos países capitalistas adiantados. A tragédia da Revolução Russa também se deveu a elementos ideológicos, isto é, ao advento do stalisnimo.

O capitalismo, a partir da época da Segunda Grande Guerra, “inventou” uma nova maneira de escapar da superprodução de capital – através da economia de guerra e da produção destrutiva. A Segunda Guerra (e não o New Deal) tirou a economia americana da Grande Depressão dos anos 1930 e, na seqüência, esta economia continuou a “prosperar” através da economia de guerra permanente.

A sociedade do capital caracteriza-se pela subsunção do processo de trabalho no processo de valorização do capital. Esta subsunção, no início do capitalismo, teve uma função revolucionária: desenvolver aceleradamente as forças produtivas. Porém, a partir de determinado momento histórico o capitalismo se torna produtor de forças destrutivas. Daí a crescente produção de coisas inúteis, o desperdício generalizado e, sobretudo, a produção armamentista e a economia de guerra que vem sendo o pólo dinâmico da economia norte-americana e, portanto, da economia mundial desde a Segunda Guerra. Os gastos com armamentos e com guerras contribuem para aumentar a demanda agregada e manter o nível de atividade econômica, pois consumo humano genuíno e destruição desumana de forças produtivas são equivalentes do ponto de vista perverso da realização do capital. Demais, os gastos bélicos contribuem, ao

destruir grande parte de forças produtivas e de capital, para desacelerar o desenvolvimento da lei da tendência à queda da taxa de lucro, já que diminui o denominador desta taxa.

Ao lado do Estado bélico, a intervenção do Estado na economia capitalista ao longo do Pós-Guerra assumiu a forma do chamado Estado do bem-estar social. Este Estado do bem-estar social, - que através de leis, direitos, etc, contribuiu, em parte, para o aumento da satisfação de necessidades pela classe trabalhadora, além de ter reduzido a jornada de trabalho, concedido descanso remunerado, etc. -, consistiu num grande embuste ideológico para a classe trabalhadora. Primeiro, porque permitiu ao capital desviar a atenção dos trabalhadores para a questão vital de superação do capital. Segundo, nunca devemos esquecer que este Estado existiu, sobretudo, nas potências imperialistas, na Europa e nos Estados Unidos, cuja riqueza se baseia na super-exploração da força humana que trabalha do Terceiro Mundo. Os direitos concedidos por este Estado eram não generalizáveis para o mundo subdesenvolvido, pois o capitalismo se caracteriza pelo desenvolvimento desigual e combinado das diferentes regiões e países do planeta. Demais, as regalias obtidas pelas classes trabalhadoras dos países imperialistas contribuíram para enfraquecer o movimento internacional do trabalho, visto que os trabalhadores dos países privilegiados se viram com vínculos de interesse em relação às suas burguesias e em contraposição à população super-explorada do Terceiro Mundo.

Além do embuste ideológico representado pelo Estado do bem-estar-social, devemos fazer referência a outros desenvolvimentos ideológicos do período em questão. No campo da ideologia da classe dominante, podemos citar o desenvolvimento das concepções que eliminam de seu quadro categorial a problemática da exploração, contrapondo o capitalismo enquanto “sociedade moderna” baseada em cidadania, etc. às chamadas sociedades tradicionais. Demais, na ciência econômica se difundiu a influência keynesiana e a identificação desta ideologia, - que, para nós, consiste numa tentativa desesperada de salvar o capitalismo -, com preocupações sociais, pois os economistas keynesianos se vêem e são vistos como pessoas com preocupações sociais.

O período também foi marcado pela continuidade da deformação do marxismo. Basta citar a ascensão e o fortalecimento do stalinismo através da influência da então União Soviética e da III Internacional. A teoria staliniana se ergueu como mecanismo de defesa apologética das práticas incorretas então existentes no leste europeu e em outras regiões. Nestes países, ocorreu superação do capitalismo, através da revolução meramente política que eliminou a propriedade privada dos capitalistas e garantiu emprego aos trabalhadores. Porém, esta mudança

Page 6: O problema da ideologia na suposta morter do marxismo

Contra a Corrente �

político-jurídica não foi seguida por uma revolução social genuína, imprescindível para a superação da sociedade do capital. Esta sociedade continuou a existir nestes países numa nova modalidade não prevista por Marx. As sociedades do leste europeu permaneceram regidas pelo capital, pois, nelas, o processo de produção continuou dominando o homem e este continuou a satisfazer um leque restrito de necessidades humanas. Houve superação do capitalismo, sem superação do capital, o que levou a sua exaustão a partir de determinado período.

No que se refere ao capitalismo, a resposta à crise dos anos 1930 (através do Estado bélico) acaba se convertendo numa crise mais profunda a partir de meados da década de 1970. Isto devido ao caráter parasitário inerente ao funcionamento da economia armamentista. Primeiro, devemos salientar que a produção de armas e a guerra são parasitárias da economia não militar. Demais, os gastos em armas estão associados a déficits orçamentários astronômicos na economia norte-americana, o que leva a uma hipertrofia do capital especulativo, que é também parasitário do capital produtivo.

A ideologia neoliberal, que vem dominando a vida nas últimas décadas, tem sido a resposta do capital para aumentar a exploração do trabalho. As concessões feitas aos trabalhadores durante o Pós-Guerra têm sido retomadas com a finalidade de aumentar a exploração e garantir o parasitismo da indústria bélica e do capital financeiro. Essa retomada tem sido facilitada pela derrota da perspectiva do trabalho no mundo contemporâneo. O pseudo-socialismo entra em crise e se esfacela – o capital aí existente enquanto relação de produção fundamental começa a buscar suas “liberdades” (mercado e democracia burguesa). Proclama-se a morte de Marx.

A proclamação contemporânea da morte de Marx é a manifestação mais esplendente da miséria espiritual contemporânea, que se alastra por todo o planeta, desde o homem comum até as mais altas esferas intelectualizadas, subordinadas que estão à ideologia da classe dominante. Vivemos numa época sem arte, sem filosofia e sem ciência autêntica. Esta miséria espiritual constitui produto da miséria material contemporânea. Miséria que não se resume à degradação atual da vida humana e da natureza. Mas que engloba toda a chamada opulência material contemporânea. Se esta opulência se funda na indústria da guerra e da destruição, por que não podemos chamá-la de miséria?

BibliografiaCHASIN, José. A Sucessão na Crise e a Crise na Esquerda.

Revista Ensaio, São Paulo, n. 17/18, p. 1-121, 1989.MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo:

Boitempo Editorial / Editora da Unicamp, 2002.SANTANA, Gilson Dantas. Contradições e Papel da Economia

Armamentista Norte-Americana na Crise Capitalista: sua relação com o impasse latino-americano. (Alguns elementos teóricos). Tese de Doutorado. Universidade de Brasília, 2003.

Trotski: Shakespeare, a tragédia grega e a literatura moderna

“Nas tragédias de Shakespeare, que não podiam ser concebidas sem a Reforma, as paixões

humanas individuais, tais como amor, inveja, sede de vingança, avidez e conflito de

consciência, expulsam a fatalidade dos antigos e as paixões da Idade Média. A paixão individual,

em um dos dramas de Shakespeare, chega a tal ponto de tensão que supera o homem,

ergue-se sobre ele e se converte numa espécie de fatalidade: a inveja de Otelo, a ambição

de Macbeth, a avareza de Shylock, o amor de Romeu e Julieta, a arrogância de Coriolano, a

perplexidade intelectual de Hamlet. A tragédia de Shakespeare é individualista, e nesse sentido não tem a significação geral de Édipo Rei, que traduz

a consciência de todo um povo. Comparado a Ésquio, Shakespeare representa enorme

passo adiante, e não um passo atrás. A arte de Shakespeare é mais humana.

Não mais aceitaremos, em todo caso, uma tragédia na qual Deus ordena e o homem

obedece. Nem haverá mais quem a escreva. A sociedade burguesa, ao atomizar as relações

humanas, propusera-se um grande objetivo durante seu desenvolvimento: a libertação da personalidade. Dele nasceram os dramas de

Shakespeare e o Fausto de Goethe. O homem considerava-se o centro do Universo e, por

conseguinte, da arte. Esse tema satisfez durante séculos. Toda a literatura moderna resultou de

sua exploração. O objetivo inicial – a libertação e a qualificação da personalidade – desvaneceu-se, todavia, no domínio de uma nova mitologia

sem alma, quando se revelou a insuficiência da sociedade existente em face

de suas insuportáveis contradições”. (Literatura e revolução,

Trotski, p. 121)

Lutadoras: histórias de mulheres que fizeram história, Edições Iskra, São Paulo, 2009.

Organização de Andréa D´Altri e Diana Assunção.