Marxismo Direito e Sociedade - Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves - 19112003
Marxismo, Direito e Sociedade
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Marxismo, Direito e Sociedade
Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
19 de novembro de 2003.
Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de
Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e
também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns
pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra.
Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação
mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, „marxismo esotérico” e “Diferenças
específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.
MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À
minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à
crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica
expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como
um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros
livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da
autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de
discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta
minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às
perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e
social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na
sociedade? E no seu entendimento, quais as consequências de se pensar o Direito desta forma?
Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de
Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento
jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia
singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no
sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas
questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista,
desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive
de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso
nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas
importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco – alguma coisa
estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma
perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política,
embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas
no esquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente
(ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que
conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe
apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da
sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade,
Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano do
pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava
adequado para explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não
valem mais, em função da historicidade dessas mesmas explicações. Então, é claro, temos de
dar o devido valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o
ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para
entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, o problema
jurídico.
Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, no ponto de possível
discussão, nós temos de levar em conta as características do Direito exatamente dentro da
perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão
estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura social, se ela
comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as possibilidades de um conhecimento
razoável do ser humano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nós
encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria
economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante,
porque o próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua socialidade. Se o
ser humano é um produto social, a par da situação individual em que ele se apresenta também
como ser biológico – ele também tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –,
aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica.
Até que ponto a socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as
crenças? Em que sentido isso ocorre?
O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno
social, tem de ser estudado desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa
regularidade no Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber
científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saber apenas
prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se há apenas um conjunto de
propostas gerais que não têm uma fundamentação científica adequada para verificação de sua
validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata da metodologia do
saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre
esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que
sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que, atendendo às
premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do
mundo, acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo
altera seu ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que
outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?], grande
pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande
pensador ligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Também temos o namoro
feito por Norberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas
de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo do
século XX.
Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é que vamos
tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceito
de direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição e
definição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes
jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas
também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande
problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro, explicações,
inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes – mas não
vamos perder tempo agora em defini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais
tempo –, explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito
humano senão mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal
do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-materialista corresponde
ao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um de nós, mas o
conjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturais dos homens, particularmente, que
formam o espírito que em última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale
dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da liberdade
produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão desse mesmo espírito.
Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por
base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, na produção da vida
material. Se não houver a ideia da produção da vida material da sociedade, nós não temos a
ideia mais clara do próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à
materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não caberia existir a
matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a matéria bruta, nem aquela matéria
opaca; não é materialidade dos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma
substância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da
vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo
modo; há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e
transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens,
progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que acontece.
Portanto, esta visão inaugura a ideia de processualidade, exatamente o oposto da visão
positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha uma visão
fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente
norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do
ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de
outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela
norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definida
pelo próprio Estado. Então, um dever-ser , para Kelsen, é fundamental, e ele separa
fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva
marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil
compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença
profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser , isto é, ele é condição para o
dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o
Direito, para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou
seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro
tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de norma
fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser é absolutamente separada, não
existe uma comunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não a condição per
quam , pela qual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não
há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino,
profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como
estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana,
porque já não pode mais ter causa divina (desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então
não há mais essa postura de direito teologal, como também não há a ideia do direito natural, um
direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser , em que o próprio ser é
dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto
pelos homens. A forma de impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização do
Direito imposto pelo homem (porque o homem é um ser circunstanciado, histórico,
condicionado por situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do
que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar
senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direito moderno é
fundamental, porque é uma das formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da
forma como se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas
escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão
expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais presente, e no
século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquanto direito
escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado. Vejam vocês,
portanto, que a estrutura econômica se torna muito complexa, determina a necessidade de os
homens registrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente
interpretado e aplicado adequadamente.
Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as
possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos fundamentos sociais, das
estruturas sociais; daí o problema de que no positivismo se faz uma separação entre Direito
como norma positivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos
distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É claro
que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão
universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídica que é,
que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual no sistema capitalista, socialista,
comunista, feudal, clássico: a norma é sempre a norma, é sempre o dever-ser . É por isso que
ele, então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho
platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias,
isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da
caverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; a norma é
uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença
entre a postura marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais
ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistema capitalista;
fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectiva teológica que como nós
temos ainda em vários países do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta
linha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.
Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da ideia da processualidade, que é uma ideia
dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo e o produto. A ideia é
normalmente separar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamos apenas
com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultado muito bem de
forma instrumental, e como dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se
manipule o resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e entendido
cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, há
uma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do
que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é
melhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a expressão
do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem não é
o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade
de que o homem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação.
Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi,
portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso existe no plano do
Direito.
Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de projetar a
sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a
sociedade entra como processo? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma
produção puramente espiritual, é uma produção material, ou é material e espiritual ao mesmo
tempo? Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história do
espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente,
naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é uma relação, uma dinâmica
entre espiritualidade e materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o
fundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância, a dimensão material
(naquele sentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou
seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Se
examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não produziram sempre aquilo que
produzem hoje; produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, em modos
diferentes de produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relações que os
homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você vê que,
efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber
até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo.
O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo
bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, as relações
produtivas eram muito singelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valor
de uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos
centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício
da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força;
isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção
feita pelos homens e a relação social destes homens para a produção. Mas a relação social se
compunha, ao mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para
transformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e
os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma força
política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista, como a época feudal, as
relações entre os homens para produzir não eram as mesmas das épocas modernas, da época que
chamamos burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o
exercício da força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o
político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em
sua integridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. O senhor feudal era ao
mesmo tempo agente econômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, ele
inclusive trazia a mão-de-obra à força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro
elemento que é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens
nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria que traduz
uma forma política específica da época medieval. Quando entretanto – e aqui vem a tese
marxista – há uma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a
condição material da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de
certo modo, que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança
pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta
com o mundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como o
moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto
vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se
desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do
sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, na expansão, era
muito complicado fazer com que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se
estendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas
situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular
entre uma força produtiva típica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essa
dimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se,
portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí
vem uma nova fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso
distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que ganhem recursos
para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possível fazer isso se as
relações eram tipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir
recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da
economia), o salário (o assalariado se inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo
passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de uma relação de
imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma
outra dimensão, a dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das
peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a força do
trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então, é o momento em que
aparece a venda na força do trabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado de trabalho,
onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que,
nesse caso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como
acontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma imposição
sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador. Agora não: ela se universaliza
na sociedade de uma forma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam
relações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários.
Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários
correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado a força
de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam o
mercado e com isso então expandia-se a produção.
Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que se
universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova forma de produção
que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoas
contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoas
jurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar
coisas de que tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês veem, portanto, a liberdade: como é
possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês veem,
portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depois
transcende para o direito público) acabam resultando de um processo de movimento das forças
produtivas, da capacidade material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam,
portanto, o contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos. Não:
primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas de forma
detalhada, singular, e garantidas.
Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura de
pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão muito singular, muito
interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado
com isso! Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumas bases
interessantíssimas para explicar um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês
veem apenas um momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia
nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas pode nos
dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmente dos processos pelos quais os
institutos chegam a ser institutos jurídicos. É isto basicamente.
MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.
OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a Thiago Magalhães e a seus
colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor é bem menos marxista
do que me disseram, o que de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é
sempre um problema quase impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos.
Vocês vejam que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma
estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural,
é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não
encontrarão em todo o mundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: não
existe nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo
tempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a
que gênero de fenômenos ele pertence.
Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do gênero
próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro degrau da escada por
não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismo
imita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante
é um poste, outro pega a tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma
folha de papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – o
pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque a crítica liberal da
economia marxista é tão arrasadora que este é o campo mais fácil para discussão –, quando
pensam que estão ganhando a discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da
crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido.
Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também quando estamos
quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo
que é mais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um ente proteiforme e
indefinido. É evidente que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas
que, sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo
que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas pega somente detalhes
e partes às vezes insignificantes do problema.
Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de abrangência e de
abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze
ou mais anos de estudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo
pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o
marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido político, não é
nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura , no sentido antropológico do termo.
Uma cultura significa um universo inteiro, um complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos,
reações humanas, sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e,
sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o
desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de sua
história, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo funcionamento,
inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho
que o marxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela
base econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as ideias
marxistas, exatamente como as ideias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma
ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.
Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem militante do
Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio
marxismo era um fenômeno econômico dos mais interessantes. Quando digo que o marxismo é
um fenômeno sui generis , que nunca houve um complexo cultural assim tão vasto, há um outro
ponto no qual o marxismo também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a
entidade chamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes
–, este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos imaginar. A
KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda a
militância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar também obrigatório),
com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais
vinte milhões de auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços
secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram um
serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos
desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade europeia começa já
na década de 20, havendo ali um festival de compra de consciências como nunca houve na
história humana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double Lives (“Vidas
Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade europeia pela KGB, através
não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da compra de consciências, de
chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também deste período há um outro livro que
eu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party , de Kenneth Billingsley, sobre o Partido
Comunista no cinema americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se
tornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos
Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais
compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente
diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americano desde quinze
anos antes, que se compunha das pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem
aparecido nos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.
Eu digo isso para vocês terem uma ideia do sustentáculo econômico e organizacional da
difusão das ideias marxistas. Nenhuma outra no mundo jamais teve isto a seu serviço. Notem
bem que a eficácia desse mecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou
seis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, pelo amor de Deus, porque já
vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido,
há uma equipe de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que não
interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se Partido Comunista,
Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro
chama-se Dicionário Crítico do Pensamento da Direita . É uma obra feita por 140 professores
universitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores
trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos
dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista,
eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento de direita e tenho a
pretensão de conhecê-lo. Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui:
nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores que
fizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e na Inglaterra estão
totalmente ausentes. O que representa o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels,
Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi
expulso do Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você
compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio
total do que quer que lhe possa dar uma ideia do adversário que não combine com a ideia
precisa que este grupo de militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção.
Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso
desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o
marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear
sua própria história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve uma organização de
tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os
movimentos, até anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta
duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês terem uma ideia, o sujeito
pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista:
vocês não vão querer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se deem as
mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão
disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido falha logo de
início.
Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente acima de
minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que essa figura nebulosa e
proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha
definição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem
prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler
aqui um trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que ele
relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica do marxismo.
Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia
que tinha. Diz Antonio Negri:
“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes,
nem para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma
teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra
do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele
mesmo, Antonio Negri), no entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das
instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma prática
que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da
construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder”.
O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não haja
realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem apenas observações
mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma crítica
marxista que está de certo modo embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do
seu poder. Ou seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é
necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se desenvolveu e ler a
crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido? Muito bem, só que em seguida ele
diz: “ Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o
socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada
na União Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um
desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo à
história do socialismo real não faz nenhum sentido ”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele
não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação do sujeito
revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nos escritos
de Marx e também não está no resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está?
Resposta: ela está na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É
esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante na história do movimento
socialista.
Tão logo enunciados os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a
primeira coisa que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo
capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas
(Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx estabelecia entre marxismo e
violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução
somente se faria por meio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o
marxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-
se, que “para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns quantos
povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parte da
essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida a alguma perturbação na
cabeça do próprio Marx. No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin,
acreditando-se que é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e,
através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de milhões de militantes,
sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz
a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.
Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando aparecerá o
verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o verdadeiro marxismo não
existe como nenhuma formulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. O marxismo
só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e
tático, que pode ser trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente
mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome do marxismo já
não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga
também fazer até o milagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seus próprios
crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de
como se faz isso, exemplo que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da
criação do sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte da
história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o
trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do
Muro de Berlim ”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação
do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único
marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de qualquer religião,
ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha elasticidade será
evidentemente condenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro do marxismo
isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade
consciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria
que se tenha de defender mediante uma discussão racional.
Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura, todos os
meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade não devem entrar na
linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade são apenas
expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece
uma insuportável revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a
cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo o marxismo
uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não podem ser impugnadas no campo
doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando
acima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em
nome da ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se colocar sob a
fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre a
sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que
algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são
exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nós
temos ideia de uma moral supracultural porque vivemos em enormes blocos civilizacionais
multiculturais, recebemos o impacto de muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto,
por um lado, nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de
abstração e abrangência maiores, mais científicos.
Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer produto
externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no seu sentido, de modo
que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo será substituído por
pensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatas nazistas que se denunciem
a si mesmos na primeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes,
procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível,
mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu
quadro categorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, a famosa discussão
com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se
existe, dentro de uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião
etc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um desses
elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será
então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen,
houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas para conseguir definir seu campo
de maneira, como eles diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros,
houve o esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém entenderá
uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste movimento. Como o universo
categorial conceitual de Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que
Kelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa
discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora
do quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se
entrou no assunto. E assim se procede com praticamente todo mundo.
Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o marxismo,
muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito piamente que não existem.
Mas vamos examinar muito rapidamente alguns conceitos marxistas.
Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a realidade
social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco
mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade que é
definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem um conjunto de ideias que é
determinado por esta posição. Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz
é que, em última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre posição
social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou posição social é uma coisa
e ideologia é outra completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês
tem de pensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções.
Mas qual seria a possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não
fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o quarto também
não? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista, ao longo dos tempos e
incluindo Antonio Negri, nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses
esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm.
Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre escolha, e a
famosa conexão não existe.
Outro item (eu poderia dar uns cinquenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof.
Alaor) é o de que cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro
deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubam este
sistema de propriedade – o prof. Alaor deu como exemplo o feudalismo. Então, o feudalismo
tem lá um sistema de propriedade; quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o
feudalismo cai. Perguntem-me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu
muito antes de que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios
de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismo
foi derrubado quando o rei, que era um primus inter pares , decide derrubar os seus pares e
tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pela primeira vez,
uma imensa burocracia estatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os
burgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que
na Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam
a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um.
Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses
ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que
lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve
este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era a ideologia dos
capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi
defendida por pessoas que não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum
burguês vindo-lhes pedir que fizessem algo.
Isso é para lhes dar uma ideia de até que ponto a teoria marxista da história é pura mitologia
e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode
expor a parte dele (a qual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar
toda essa novidade. Deem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.
MEDIADOR : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor Caffé Alves.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, isso se trata de um debate, e se é um debate pressupõe um
embate de algumas ideias que são postuladas. Obviamente eu não penso como o prof. Olavo no
sentido tão global de cultura marxista; não considero que isto exista no sentido que foi
colocado. Há uma ideologia, obviamente, e toda ideologia pressupõe sempre a restrição, em
princípio, de seus membros ideologicamente preparados e geralmente tenta excluir as outras
ideologias, tanto quanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista – é óbvio, é a
mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que, como foi colocado aqui, a
ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tem até um trabalho muito conhecido, A
ideologia alemã , onde ele desenvolve três conceitos de ideologia; e além disso, depois, no curso
dos seus trabalhos, desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia é plurívoca, tem várias
ideias, vários conceitos para definição e caracterização das ideologias, mas não é tão singelo
assim como se fez parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de questões relativas à
história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos senhores que isso não significa que
reflita de forma nenhuma as bases autênticas do pensamento marxista.
Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadas concepções, de variadas
formas de ver o mundo. Não existe “um” marxismo mesmo. Existe o próprio Marx: quem quiser
estudar, estude Marx. Não se postula apenas inicialmente como uma cultura, porque Marx
iniciou seu trabalho cientificamente. Pode ter muita coisa errada, disso não há dúvida nenhuma.
Mas que ele iniciou seu trabalho com uma análise científica da economia burguesa de sua
época, ele fez isso. Ele não teve intenção de estabelecer uma sociedade socialista, comunista;
ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre propugnava alguns programas em bloco,
propugnava uma sociedade mais justa.
Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um conjunto de
besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma realidade que até hoje é presente?
Expliquem para mim a racionalidade de que o bolo social é um só e, no entanto, um grupo
pequeno de pessoas amealhe esse bolo, patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo, e
uma grande quantidade de pessoas não tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já
não estou partindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas. Estou pensando
na realidade atual: milhões de brasileiros não têm o que comer, não têm recurso, e eles
participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que aqueles que têm um patrimônio
imenso, recursos acumulados imensos. Esses recursos vêm de fora da sociedade? De Deus?
Deus seria malvado, não é? Ele dá recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm
da sociedade conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tão profunda que não há
sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, e não vai resolver.
Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, o neoliberalismo também não vai.
OLAVO DE CARVALHO : Tem toda razão.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados, e tudo o
mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos, dos quais três bilhões estão numa
situação de penúria ainda, se contarmos a África, a Ásia, [palavras inaudíveis]. A pergunta é a
seguinte: onde está a razão de que um grupo social mantém uma estrutura, e que o Direito está
aí presente, ele é um instrumento para esse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de
forma nenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas próprias. São os
homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as discrepâncias, as diferenças terríveis que
existem nesse país? Dizem que é a nona economia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de
renda. [Palavras inaudíveis.]
Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse que realmente não havia nenhum
capitalista na Revolução Francesa. E hoje nós temos o sistema mais bem definido, mais bem
claro, mais bem caracterizado que é o sistema capitalista no Brasil e em outros países e eu
pergunto: vocês encontram políticos burgueses? São os capitalistas que estão lá fazendo leis?
São os capitalistas que estão organizando e que estão governando o país? Não é só no Brasil,
não. E aí pensar: “Aí está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estão
conseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque o sistema é tão forte, a
dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte, que podem ter lá ideias comunistas e
socialistas que não vão conseguir nada. Porque a estrutura determina isso. A questão científica
está em saber quais são os elos que vão nos explicar por que é que lá, no Congresso Nacional,
não temos burgueses, mas as leis são burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se
utilizassem instrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia eleitoral
para mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos no Congresso? Nenhum, ou
poucos, contam-se com as mãos. No meio rural? Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são
burgueses capitalistas. Não são os pró-capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, o empenho
deles não é participar no sentido do proscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora
do sistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para isso mesmo. Vamos criticar,
por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas. [Palavras inaudíveis.] Criticar todos,
porque todos participam desse processo de fazimento, realização e estruturação das ideias
dominantes. Ideias estas que definem exatamente essa profunda injustiça que existe.
Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que ideias vocês vão usar, se ideias
marxistas, ideias neoliberais, ideias liberais, ideias socialdemocratas. Não importa. O fato
importante, fundamental é este, gente: nós temos de vencer as discrepâncias, as diferenças
sociais profundas que existem nesse país. Isto é muito grave, sério. Pouco importa, inclusive, o
esquema de ideias que vamos utilizar. É natural que diante de uma situação dessas, os homens
tendem sempre a tentar equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante sua
compreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão da distribuição da renda. Não é
fácil. Dentro do regime de mercado, que é tão defendido pelos neoliberais, nós não encontramos
nenhuma solução. Até agora nunca houve isso. Pelo contrário, no sistema de mercado temos
uma diferença tão profunda entre os homens: entre muitos que não têm absolutamente nada, que
não vão ter mais nada do que têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a chance de
ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não existe? É a lei do mercado:
quem tem recursos, tem como produzir a liberdade, ou não tem? Quem tem recursos vai à
Europa, vai à Ásia, vai conhecer o fruto de culturas diferenciadas, vai expandir sua
personalidade, vai ter educação, vai ter a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua cultura
acrescentada, porque tem recursos. E quem não tem? E quantos não têm? Não têm nem recursos
para ter saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é uma
realidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construção silogística ou teórica. Isso é
real, e o mercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por enquanto assim jogado às suas
próprias forças, autonomicamente desta forma como ele é, que ele é sempre um indutor da
miséria e das diferenças profundas sociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo,
inclusive nos Estados Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo.
Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar uma coisa como esta? A
KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses? Ninguém vai aceitar. Ninguém, na boa
consciência dos homens. Está correto o professor, o doutor Olavo. Mas é preciso também dizer
o seguinte: hoje, os Estados Unidos põem 450 bilhões de dólares anualmente no seu orçamento
militar. Não estou falando em KGB, não. Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de
máquinas mortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam botões e vai
matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram o que é 450 bilhões de dólares em um
ano? 450 bilhões de dólares! Se isto fosse distribuído para toda a África em três tempos nós
teríamos o desenvolvimento de toda a África. É claro que não vão fazer isso, pois eles vão
cuidar eles próprios dos seus próprios problemas. Fazer isso significa criar opressividade para
eles. Imagine o que seria 450 bilhões de dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país
inteiro há muito está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um ano na máquina,
na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nós estivéssemos importando recursos
deste tipo, não há dúvida que teríamos chances enorme de ter um desenvolvimento enorme
imediatamente. Eu diria que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo, teríamos
desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não é comportado pelas relações
produtivas do sistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo, não só os 450 bilhões,
são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas na estrutura social americana, na
NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo
custa dinheiro, aquilo custa recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos?
Vem do povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programas espaciais, o seu
programa de atuação militar, a sua dimensão de políticas sociais? Nada! É do mundo inteiro que
eles tiram!
Alguém da plateia : A China também, né, professor?
ALAOR CAFFÉ ALVES : Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês veem portanto
o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dos Estados Unidos singularmente; eu estou
dizendo, gente, que o sistema não funciona de outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na
carne hoje o problema do desemprego. O desemprego não é uma questão simplesmente
conjuntural, é uma questão estrutural hoje. Não é no Brasil, é no mundo inteiro.
O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Da introjeção de
tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio. É muito fácil isso. É necessário. Mas
na medida em que se vão introjetando sistemas cada vez mais sofisticados de produção, vai se
expulsando cada vez mais mão-de-obra do processo produtivo. E não é só expulsão no primeiro
ou no segundo setor da economia, na indústria ou no setor rural; também no terciário: cada vez
mais vocês têm dificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como fazer, porque ele
está entrando em contradições profundas. Ele é contraditório na sua própria realidade estrutural,
na sua dinâmica. Ele é contraditório mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada
vez mais e mais, com máquinas, com automatização, com informática, com a robótica, com
tudo. Mas os homens vão e se apresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens, para
que eles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todas produzidas pelas
máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E então não podemos avançar mais
com a economia, não podemos avançar mais com a tecnologia, com a ciência. Nós precisamos
distribuir renda.
Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nós chamamos de
materialismo histórico: o desenvolvimento das forças produtivas está definindo uma nova
relação entre os homens. Como sair dessa? É claro que pode levar dez dias, levar dez anos, ou
mesmo uma centena de anos; isso aí nunca se sabe, isso é um produto histórico. Mas que as
contradições internas o estão corroendo, estão. Não porque os homens assim queiram; é porque
a estrutura social e econômica está definindo esta forma: as relações entre os homens mediante
os processos produtivos e os instrumentos de produção. Talvez não comporte mais esse tipo de
relação; uma outra relação onde haja uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma
produtividade cada vez mais sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não
se distribui mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Conte para
mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente, inclusive, da econômica; não é teoria,
nem teorético, de jeito nenhum. Com isto todos estão preocupados, inclusive os teóricos
burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão percebendo isso, certamente, claro.
Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; como se não houvesse
nenhuma alteração do sistema feudal que passou para o sistema capitalista, burguês, sem uma
modificação específica. O Estado, inclusive, foi tomado primeiramente pelos nobres que
atuavam de forma absoluta, mas não se percebeu aqui que o Estado apareceu justamente neste
momento como Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu? Apareceu justamente na
continuidade do que eu havia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar bem a análise
analiticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo de desenvolvimento das forças
produtivas determinou que os homens ampliassem o mercado, portanto aparecem neste
momento as forças mercantis progressistas que avançaram. Não vão pensar que o capitalismo
apareceu como uma mazela. Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para fora do
planeta; tivemos enormes progressos; o individualismo se criou no sistema, quando nobre,
adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro das condições éticas, tudo bem.
Infelizmente o próprio sistema exacerbou esse processo pela busca do mundo, pela busca
exacerbada da acumulação desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer neste momento
para coibir o processo produtivo.
Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma ideia clara. Quando o trabalho não é
mais posto forçadamente… Porque no sistema feudal, o que aconteceu, isso precisa ser
explicado concretamente: o sistema feudal, o sistema de trabalho, da produção da vida material
dos homens era feito em função de uma imposição por parte de uma força política, que também
era econômica. Como eu disse, os nobres eram detentores não só do esquema econômico, eram
patrimonialistas em função do sistema feudal, como também esses nobres eram os políticos do
sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para impor o trabalho ao produtor direto.
Quando, então, há o desenvolvimento progressivo da economia, e era preciso fazer a
distribuição de renda a fim de criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forças
produtivas, era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questão econômica. Não era
possível manter o econômico e o político conjugados à força daquele que produzia, não só por
razões de interesse econômico, mas também por questões de ordem política, atuava para que o
trabalho fosse força. Na hora em que o trabalho começa a ser assalariado (o que precisava sê-lo,
para que o sistema funcionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias,
porque senão não há contrato. É por isso que neste período começa a pensar-se ideologicamente
no chamado contratualismo: ele se expande entre os teóricos do contratualismo porque o
contrato passa a ser uma figura, um instrumental fundamental para aproximar capital e trabalho.
Não havia isso antes. Por isso é que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitos de direito,
direitos e obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe pago
o seu direito de salário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu trabalho, eu sou
obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas eu tenho de receber o meu
salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos e obrigações.”. E isso se universaliza por toda a
sociedade, justamente nos séculos XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com o
político? Ele vai se destacando e se concentrando não mais na sociedade descentralizada, como
havia antes; ele se concentra no poder absoluto dos reis, e aí é que aparece o Estado pela
primeira vez. Um Estado ainda não adequado à burguesia totalmente, mas como efeito de um
processo que correspondia exatamente a esse movimento do capital. Era a necessidade de que o
trabalho, o contratado, deveria ser contratado e não forçado, consequentemente não podia haver
a política no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante em que o contrato
fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou seja, a força, para que o sistema
continuasse a funcionar. Como isso é apenas formalizado em nível de mercado e não em nível
da produção, porque a produção ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porque é
lá no processo produtivo que havia o processo expropriatório de acumulação), era preciso
manter uma estrutura de força para qualquer tipo de emergência que houvesse; caso grande
parte dessa população que tinha de entregar a sua parte de trabalho para acumular a outra parte,
era preciso que houvesse a emergência possível de uma força, caso falhasse o esquema
ideológico. O esquema ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que todos
aceitassem a situação como natural. Mas a miséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o
sistema burguês hegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar qualquer tipo de
crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através da força centralizada do Estado que
só aparece no sistema burguês. O Estado é um fenômeno tipicamente moderno. Não havia
Estado na época feudal; havia organização política, isso havia, mas não Estado. Não havia
Estado na época clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com uma dimensão
descentralizada enorme, por causa dos senhores de escravos, que atuavam diretamente de suas
fazendas; eram as famílias que tinham atuação de poder político. Isso não acontece mais no
sistema burguês, não acontece mais no sistema moderno, onde o sistema então acrescenta o
ponto de vista mercantil, e vai se desenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se
concentra enormemente num processo imenso em que o Estado faz presente o gendarme, o
Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que viesse a conflitar com os interesses da
política dominante, o que aconteceu mesmo já o século XIX.
O próprio Marx, que postulava ideias estranhas a esse sistema, foi perseguido, e teve de,
inclusive, tomar posições complicadas nesse processo, e outros movimentos, é claro,
movimentos operários nessa época do século XIX. Aí vocês veem que não há nada de
culturalidade abstrata. É preciso agora (eu disse isso, é claro, de forma muito genérica) mas eu
preciso basear agora os erros concretos de cada coisa. Eu explicaria para vocês o contrato,
explicaria a hipoteca, explicaria o aluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso
fazê-lo porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata, ampla, múltipla
simplesmente, é uma questão que envolve métodos especiais singulares.
Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muito bem aqui, porque
Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muito inteligente –, ele era um leitor fruto das
condições do chamado positivismo, do primeiro quartel do século XX. Ele postulava a ideia de
ciência pura, a partir de uma ideia do positivismo como ciência do objetivo. A ciência tem de
ser objetiva, de tal maneira a dizer o que a coisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há
ciência do direito, essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá, como objeto, é
dever-ser , é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos isso. Mas o direito como
ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significa dizer o que é o dever-ser, como é a norma .
E ele, muito bem aparelhado com a perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistas
jurídicos, mas dos positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, que tentavam buscar a
extração do sujeito em relação ao objeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo contrário,
neutralizar o mais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse claramente como algo
objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro está que esta dimensão foi fracassada,
mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas pela crítica da própria sociedade.
Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos por exemplo um [?], um
François [?], esses pensadores, esses sociólogos, que tentaram quebrar a condição formal de
Kelsen. E Kelsen ainda diz assim: “Não, mas a questão sociológica não é uma questão jurídica
na sua essência.” Nós sabemos muito bem disso. Muito bem! Essa história é muito bem
contada! Efetivamente, é claro que Kelsen queria só uma pequena questão, que é a questão do
que é, na sua essência, o jurídico. O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo, mas
por vários pensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode ser puro quanto à
sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, o Direito como objeto, é claro que ele
nunca foi puro, e o próprio Kelsen sabia muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura
é a teoria sobre ele, isto é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja o que eu digo
– epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma de
compreender o mundo? Talvez fosse válida naquele momento. Compreensível! Mas depois da
Segunda Guerra Mundial, com a conturbação imensa do humano, do homem, já não se pensava
mais em buscar ciências puras, isoladas, solitárias, cada uma de per si . Percebeu-se que os
homens tiveram mazelas profundas exatamente por não se comunicarem não só eles, como com
as próprias ciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade que vocês conhecem hoje,
que é um problema muito complexo, muito difícil, que não se soluciona facilmente. Buscar o
Direito na sua expressão a partir da forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a
juridicidade como norma, mas também o que é a dimensão social, econômica, e assim por
diante. Como compreender uma realidade plenamente senão descendo às suas próprias raízes?
Isso é como imaginar que somente o estudo do caule lhe dê a realidade da planta. Não é isso. E
o caule sozinho existe? Não. Ele só existe em ligação com a planta, e este só existe em ligação
com as suas raízes. Vejam, então, os senhores que, efetivamente, é claro que há muitas outras
questões a serem colocadas, como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução.
Marx nunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor de Deus! Foi colocada
aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Teses sobre Feuerbach , Marx coloca muito
claramente o que ele entende por revolução. Ele não fala especificamente de revolução: ele fala
em transformação pelas raízes. A revolução não tem de ser necessariamente violenta, de jeito
nenhum. Pode ser outra. Por exemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a da
limitação do próprio sistema econômico capitalista que não pode superar-se a si próprio, vai
implicar uma revolução, uma transformação profunda. Isso não precisa ser pelo caminho das
armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das pessoas. Quanto mais as pessoas forem
conscientes, mais educadas, mais claras em ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer
a transmutação. Por isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democracia
simplesmente representativa, mas uma democracia participativa que permite a todos nós
trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor a democracia participativa não à ditadura, não
aos meios autocráticos apenas, mas também, gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrível
que não tem força nenhuma que o coíba. É preciso coibi-lo através do quê? Da conjunção, do
consenso da comunidade, para buscar melhor a expressão do valor do uso social! Evitar que
esse valor de troca toque todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem de sofrer
impactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade humana, em prol da
distribuição para os homens, em prol da paz entre os homens. Isto é fundamental. É disso que se
trata.
MEDIADOR : Passo a palavra para Olavo de Carvalho.
OLAVO DE CARVALHO : Então está muito bom. Já que passamos a discussão para o
terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marx teria encontrado e que ainda se encontra
mais ou menos igual no mundo, então vamos ver um pouco a relação entre os fatores
considerados: mercado e miséria. Segundo o prof. Alaor, o grande culpado da miséria e da
desigualdade é o mercado descontrolado. Ele usou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”.
Portanto, é necessário controlar e coibir o mercado.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Não foi isso.
OLAVO DE CARVALHO : Aí eu não sei…
ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]
OLAVO DE CARVALHO : Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhe dei aparte.
O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.
ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]
OLAVO DE CARVALHO : Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu esperei aqui. Muito
bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibição total seria a estatização total dos
meios de produção. Não me parece que o prof. Alaor seja um defensor disto, e não creio que
exista mais, nem mesmo entre os teóricos marxistas, alguém que defenda exatamente isto. Mas,
se o grande culpado da miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado, então para
melhorar a condição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz basicamente de duas
maneiras: a mais direta, que é a participação do Estado na economia como proprietário e
investidor, e a segunda através de legislações controladoras e restritivas, seja sob o aspecto
fiscal seja sob outros aspectos.
Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica. Liberdade econômica seria
a ausência de controle. Ausência total não existe, assim como controle total não existe. Mas
dentro dessa escala que vai de 1 a mais ou menos 150, nós temos entre os países de economia
mais livre do mundo Hong Kong, Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Estados
Unidos, Austrália, Chile, Reino Unido etc. E assim, à medida que aumenta o número de
controles, supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escala de liberdade
econômica. Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou menos no meio da terceira,
encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem mais controle do que o Brasil e, portanto, está
abaixo nesta lista? Eu vou dar alguns: Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda,
Tanzânia, e assim por diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformado para uma
projeção visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e,
portanto, de menos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm mais controle. É só você
olhar estes dados, que são coletados anualmente com muito critério por um grupo de
economistas, e você verá que a ideia mesma de melhorar a condição dos pobres através de
controle é um absurdo sem mais tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não vai resolver, é
claro que não. Em primeiro lugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é
um liberalismo meia-bomba que também se mistura com um socialismo meia-bomba, e o
neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nosso governo tem feito, que é
controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, só de dispositivos que regulam o orçamento federal,
vocês sabem quantos há? Cinco mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar o
orçamento com consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é
humanamente impossível. Isto é o controle estatal.
Ora, o prof. Alaor reconhece que aqueles que estão no Congresso e que fazem as leis não
são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eles legislam em favor dos capitalistas. Aí eu
me permito concluir que se fossem proletários não legislariam necessariamente em favor dos
proletários. Porque acabamos de ver que a ideologia e os ideais do indivíduo não são de maneira
alguma condicionados nem determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse o caso,
eu, que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser o mais marxista de
todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e toda essa gente seriam pró-
capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasil como em outros lugares, não são nem
capitalistas nem proletários, o que é que eles são?
Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde o reinado de Luís XIV
se começa a formar, para fins militares, um princípio de organização burocrática estatal. Aos
poucos essa organização burocrática vai tirando da aristocracia feudal as funções locais que elas
exerciam (por exemplo, tribunais, juiz de paz, coleta de impostos etc.) e passando para a
burocracia. É evidente que os aristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos
impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com toda justiça, a
Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempo que se forma a burocracia
estatal, para preenchê-la é necessário ter funcionários preparados. Para ter funcionários
preparados, é preciso haver uma expansão do ensino. Então cria-se, para uma multidão de
pessoas de todas as origens sociais mais pobres, desde a pequena burguesia até os camponeses,
uma promessa de subir na vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inédito
na História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, e junto com ela
cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número de candidatos cresce formidavelmente mais. E
com isso se cria uma legião de pessoas que têm alguma instrução e que aspiram ao cargo
público e não o têm. É a esta classe que eu chamo a burocracia virtual .
Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa, Revolução Russa,
Revolução Chinesa etc.) não através de impressões gerais e nomes de classes – gêneros
universais como burguesia e proletariado – mas se você for vendo uma a uma a origem social
dos líderes, era a esta classe que pertenciam. Esta é a classe revolucionária. Mais ainda: todas as
revoluções que ela fez foram sempre em proveito próprio. Quem sai ganhando com as
revoluções não é o proletariado e também não é a classe capitalista. É a burocracia virtual, que
sempre legisla em causa própria, segundo a norma que foi assim enunciada pelo próprio
Trotsky: “O encarregado da distribuição jamais se esquecerá de distribuir a si próprio em
primeiro lugar.” Isto é norma, e é por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia
à sua própria mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os mais
altos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não há solução enquanto o poder da
burocracia, sobretudo da burocracia virtual, não for quebrado.
Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui. Porque esta escola
existe para isto. Numa pesquisa feita entre universitários brasileiros dois anos atrás, verificou-se
que menos de 2% deles queriam ser empresários depois de formar-se. Todos queriam um
emprego. De cara eu fico espantado, porque eu sempre ouvi dizer que a Universidade faz parte
do aparelho ideológico da burguesia para formar a classe dominante, e de repente nós
descobrimos que todos eles querem ser empregados. Que tipo de empregado? Não é necessário
dizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais, esperando para transformar-se em
burocratas reais. Portanto, são por excelência a população da qual o movimento político
revolucionário colhe os agentes de transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar
para os burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando eles estiverem no
poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim às injustiças. Uns acreditam, outros são
mais cínicos e sabem que não.
Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior e mais poderoso que
está oprimindo este aqui, que é menor e menos poderoso. Então eu entro e digo: vou parar com
essa injustiça, eu vou intervir. Ora, para intervir numa briga entre o mais forte que oprime o
menos forte, eu tenho de ser necessariamente mais forte que os dois. Isto quer dizer que
qualquer intervenção política que vise a diminuir a desigualdade econômica tem de fazê-lo
necessariamente aumentando a desigualdade política, portanto concentrando o poder político.
Isto é uma regra jamais desmentida em qualquer processo revolucionário violento ou pacífico
do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o poder; concentra o poder, concentra o quê? O
controle.
Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive o poder político? O
poder político não custa dinheiro? O próprio prof. Alaor estava falando do orçamento militar
americano. Isso quer dizer que se há uma concentração do poder político, há necessariamente
uma concentração ainda maior do poder econômico. E é isto que permitiu ao socialismo realizar
um feito jamais igualado na história humana: matar de fome, em cinco anos, trinta milhões de
pessoas, no Grande Salto para a Frente, que foi o quê? A centralização da agricultura chinesa.
Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar
novamente… Bom, agora querem. O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma
agricultura centralizada, estatizada, diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem
perfeitamente que o MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentemente um
livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais de trinta acampamentos rurais
e disse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser outra coisa. A socialização da
agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos os países africanos que estão numa condição de
miséria atroz, todos eles foram vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hoje
em dia, na Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se você
tem um firma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52% de imposto, e para
cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga mais trinta, e assim por diante. Saiu um
livro recentemente descrevendo a economia da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o
mercado é o monstro que está deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo,
porque o mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, na Zâmbia, no Gabão. Por
que é que não imitamos esses lugares? Parece que a presente geração está seriamente inclinada a
fazer isso. Por que é que está inclinada? Porque o raciocínio que preside essa decisão, essa
escolha, não é um raciocínio baseado na economia, na realidade econômica, na racionalidade
econômica. É um raciocínio de ordem cultural.
Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético, de bondade e de
solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar de uma ideologia ou de uma ideia é
relativamente fácil, porque você simplesmente muda de ideia. Mas, como é que você faz para se
desgarrar do meio marxista, da atmosfera marxista? Primeiro, tem de abandonar seus amigos:
eles não gostam mais de você. Isto, todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo
centenas de cartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São centenas, e chegam
todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus, não é isso o que eu estou dizendo.
Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo, eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o
mais científico que eu posso. Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.
Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico que elas têm sobre o
público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamada Kubanacan ? Vocês sabem o que quer
dizer “Kubanacan”? Sabem o que quer dizer essa palavra? É o nome da agência oficial de
turismo de Cuba. Se você pegar todas as novelas da Globo, de vinte anos para cá, a seleção
ideológica é estrita. No tempo do falecido Dias Gomes havia uma central de seleção de novela.
A novela passava por três peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística; terceiro,
comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não atende ao requisito
ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamos impregnados de cultura marxista 24
horas por dia; é difícil sair de dentro dela. Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim,
quem quer que participasse desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contar por que.
Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fiz foi entrar no
Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era um jornalista pernambucano chamado
Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da “base” (na época chamava-se base à unidade
mínima). A base era na Folha de São Paulo, que se chamava Empresa Folha da Manhã na época.
Passa um mês, chega um sujeito muito sinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do
tal do Pedro, que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com um problema. Nós
estamos desconfiados de que o companheiro Pedro arrumou uma amante, e temos razões para
crer que ela é agente do Dops. Não temos certeza, e por isto nós precisamos isolar esse
camarada enquanto tiramos o assunto a limpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um
local para depositá-lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto averiguamos”. Delegou
quatro voluntários, entre os quais este que vos fala, para fazer esta porcaria. Eu arrumei um
barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria chegar – é impossível, é depois de Deus-
me-livre. E deixamos o camarada lá. Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e
cigarros para o sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir
falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, uns nove ou dez
meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquele f.d.p. do Pedro. Nós não deixamos
nem entrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.” Passam mais alguns meses, eu estou no bar
na frente da Folha tomando um cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo,
verdadeiro mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Este era
um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lhe eram desagradáveis. Isso não
aconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é muito comum, porque é considerado uma
justa medida de segurança.
Por aí vocês veem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos para sair. Você tem de
cortar os contatos um por um, você tem de fazer novas amizades, você tem de mudar de lugar,
porque se você está ali você não vai aguentar a pressão. Isto não é a força de uma ideologia,
uma ideologia não pode ser tão forte assim. Uma ideologia não penetra até às mais íntimas
reações emocionais da pessoa. Isto é uma cultura no sentido antropológico do termo, da qual
evidentemente fazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas não essenciais, tanto
não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso de que Marx acreditava que era
imprescindível o uso da violência (e nisto ele é textual, não há menor possibilidade de dúvida),
que a geração seguinte já acredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em
seguida, se volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessão absolutamente
alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode dizer uma outra
coisa completamente diferente, sem perder o senso de unidade – isto é que é miraculoso. Há
pessoas que dizem que o marxismo é uma religião; eu digo: de maneira alguma. Ele pode ser
uma religião no sentido primitivo, em que cultura, religião e sociedade formam um amálgama
indiscernível. Mas no sentido das religiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas
têm de ter um dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, e aceitar ou
impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de qualquer das suas doutrinas,
se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver os feitos do adversário. Eu já lhes provei como é
assim.
Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo. O fascismo existiu
no mundo e chegou a ter força graças à União Soviética. Por quê? Stalin, analisando
marxisticamente o fenômeno, acreditava que aquilo era uma rebelião meio anárquica de classe
média que conseguiria destruir as instituições das velhas democracias capitalistas, mas que não
conseguiria manter-se no poder. Então, ele dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo da
revolução”. Dito de outro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu ajudá-los o mais
que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes mostrar aqui mais um livro: The Red
Army and the Wehrmacht . É a história de como a União Soviética construiu militarmente a
Alemanha nazista. Isto foi escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dos
arquivos de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalin tinha a respeito do
nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função disso, ele de
repente dá para trás e invade a União Soviética. Aquilo era tão absurdo do ponto de vista da
interpretação marxista de Stalin que ele levou dois dias para acreditar que aquilo estivesse
acontecendo. Ele achou que era uma operação de contrainformação feita pelos malignos
ingleses. Bom, durante toda a década de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da
eleição de Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp-Molotov de 1939. O pacto foi
apenas a exteriorização de uma colaboração muito profunda que pelo menos desde 1933
construiu o poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como operação diversionista, Stalin
lançava em alguns países ocidentais, especialmente na França, uma imensa campanha de
antifascismo literário, na qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem
paga. Até hoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve o famoso atentado ao
Parlamento alemão; daí lançaram a culpa num comunista e prenderam um agente do Komintern,
George Dimitrov – vocês já devem ter ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunal e
diz: “Eu estou aqui preso por causa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e
dos Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Não sabem, por exemplo,
que o velho Thyssen, quando veio o nazismo, fugiu para a França, de onde foi sequestrado e
obrigado a voltar para colaborar com os seus inimigos. Mas como é que George Dimitrov foi
parar na cadeia? É muito simples. Ele era a figura mais importante do Komintern, e estava ali na
Alemanha; foi almoçar no restaurante que era o ponto de encontro de toda a oficialidade nazista;
vocês imaginem um militante clandestino fazer isso, almoçando com dois de seus assessores ao
lado. Foi preso ali, evidentemente, sem nenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde
fazer o seu show e em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois
assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer que toda a nossa concepção
corrente de fascismo é um mito publicitário, criado para encobrir a colaboração profunda da
União Soviética com o fascismo.
Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negócio há trinta anos: eu
não sou um teórico neoliberal, não pertenço a movimento nenhum, tenho horror dessa direita
brasileira, cuspo na cara de todos eles, estou pouco me lixando para o que pensam, não estou
falando em nome de ninguém, e não tenho nenhuma solução para os problemas do mundo. Eu
falo somente daquilo que eu estudei. Esse negócio de marxismo e de história do comunismo eu
estudei. Eu lhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do próprio marxismo
fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não se mostrasse exatamente o contrário
da verdade. É uma por uma, a lista não acaba mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que
comecei a ficar alucinado: não é possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal da direita
é verdade.
É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foi chocante, porque eu saí do
Partido não por discordância ideológica; saí simplesmente porque fiquei moralmente confuso
com episódios como esse que eu lhes contei, e durante 25 anos não dei palpite em nenhum
assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O
material que eu tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão,
Marx era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos
mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a
Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o melhor material
eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios,
descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha
melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os
registros estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas
como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os registros de trinta
anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja. Mais ainda: na hora em que o sujeito
editou o seu próprio sistema de “materialismo dialético”, vocês já pararam para pensar nessa
expressão? Uma dialética é um fluxo, um processo inteligível de ideias. Em que sentido isto
pode acontecer na matéria? Engels diz que a matéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje
nós diríamos assim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a síntese. Não é preciso
dizer que todas essas ideias foram absolutamente desmoralizadas. Depois de desmoralizadas,
apareceu esta versão que o prof. Alaor defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou
o materialismo apenas no sentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da ação
histórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeito apenas à nossa ação sobre a
matéria, então a matéria é o fator passivo e alheio ao materialismo dialético. Só existe
materialismo dialético, portanto, na ação humana. Mas que raio de materialismo sem matéria é
esse aí? Isto não é um materialismo. O que é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente
nada sobre isso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora do homem no
cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode transformar? Um pedacinho insignificante da
crosta de um planetinha, e todo o restante do cosmos permanece perfeitamente indiferente a isto
aí. Como é que este processo pode ser o centro da realidade material? Se você disser que
espiritualmente ele é o centro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele é
significativo. Colocá-lo materialmente no centro é nonsense e é de um primarismo filosófico
digno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto, Marx era simplesmente mentiroso. As
provas disso são abundantes: a sua falsificação de fontes, as interpretações absolutamente
forçadas. Por exemplo, quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: ele não faz
absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética não tem nada a ver com Hegel, ele
passa longe. E no entanto todo mundo acredita que é a estrutura da dialética de Hegel que está lá
dentro, e assim por diante.
A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes expor em meia hora, ou
até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulas sobre isto, e o negócio não acaba. Então, eu
vou terminar esta exposição com um apelo. Não se sai de uma cultura mudando de ideia. A
cultura abarca a personalidade das pessoas. Para você abandonar essa cultura, você vai ter
insegurança, problemas psicológicos e dificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que
dentro da redoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a alma
e a existência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer a liberdade para os
outros, experimente o que é a liberdade. Experimente examinar a cultura marxista não desde
dentro, como ela sempre faz, mas experimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem
diferente da que talvez tenham. Muito obrigado.
MEDIADOR : O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dez minutos ao prof.
Alaor Caffé Alves para tecer comentários.
OLAVO DE CARVALHO : Só se eu também tiver dez minutos também. Ou é igual ou
nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem.
[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido que cada um dos
debatedores terá a palavra por dez minutos.]
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem. Mas esta
última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo de política que me é extremamente
estranha e séria, mostrou inclusive que não se sabe o que é o nazismo. Porque os outros, isso
que vocês conhecem, vocês sabem o que é… Porque existe uma outra ideia do nazismo que
talvez fosse aceitável, como o Olavo falou. Profundamente triste isso. De qualquer forma, a
questão de dizer que Marx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa
forma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem a condição de se
defender. Mas isso é muito complicado porque não existe só a literatura marxista, existem
marxistas, os que são simpatizantes de Marx, os que aproveitam parte da concepção marxista, e
que admitem perfeitamente a possibilidade de desenvolver teses interessantes e importantes, de
cunho científico. Marx viveu praticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres dando
toda a sua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua época. Como eu disse, ele
pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceita isso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas
atacar uma dimensão moral, contra um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dos
maiores intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisa dessa?
OLAVO DE CARVALHO : Eu vou discutir.
ALAOR CAFFÉ ALVES : É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuito isto, colocar
essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito. Não, não é assim que vamos discutir.
Eu, por exemplo, fiz toda uma série de colocações singulares a respeito de como se estrutura o
sistema, pelo menos aí rapidamente, pelo menos no sentido de verticalização, mas eu fiz umas
coisas concretas, de mencionar portanto discussões conceituais. Quando se penetrou no terreno
conceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre a matéria, mas Marx nunca
se preocupou especificamente com a matéria no sentido físico. E quando ele [Marx] fala em
matéria, a matéria corresponde a um esforço da transformação do homem como um fato
importantíssimo, que não foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer
uma análise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homens agem sobre o
mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queria transformar o universo não tem
sentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava nisso…
OLAVO DE CARVALHO : Nem eu disse isso.
ALAOR CAFFÉ ALVES : … ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A
transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marx propunha era a
transformação do homem, do homem na sua pequena Terra mesmo, no seu planetinha,
direitinho. Mas é o homem, ele estava estudando o homem! Ele não estava estudando um
marciano nem nada disso. É o homem e, portanto, os homens, claro, têm uma dimensão
concreta que é a ação humana, que ele imagina não poder explicar as questões
especulativamente. Era isto o que ele queria dizer só. Que a especulação filosófica, puramente
teórica, não é suficiente para caracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco na
contraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente um Descartes, que dizia que o
homem é um ser pensante. A postulação do homem, inclusive, como ser pensante, o distinguia
dos outros animais, é assim que se pensava em forma clássica. E Marx não acreditou
simplesmente nessa posição, ele avançou. Ele não está excluindo a vida teórica, ele foi um
teórico. Ele se trancou. Ele quis incluir a vida emocional dele, a vida da praxis , da ação, da
decisão, dos valores. Isso aí ele quis incluir. E é claro que o movimento da praxis envolve
exatamente o movimento do homem como um todo, não apenas como inteligência, como um ser
especulativo, como lógica. Ele via o homem como um movimento do seu corpo, dos seus pés,
das suas mãos. E uma relação social, nunca se viu o homem tornar-se solitário. Ele não pensava
na matéria no sentido, por exemplo, dos gregos, buscar a arkhe , o fundamento de todas as
coisas, como se fazia desde Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses
pensadores todos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com esses
filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels, que é Parmênides e
Heráclito, com as suas posições. Pena que não dá tempo de desenvolver toda a temática desses
pensadores muito maravilhosos, que foram trazidos para nós, que foram recuperados.
Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porque está vivendo
justamente num período que se chama “Revolução Industrial”. O homem pobre não pode ser
simplesmente teórico, ele tem que entrar em contato com o mundo, transformar o mundo, ele
tem de mudar a matéria-prima, ele tem de buscar matérias-primas, ele tem de transformar o
mundo com as suas mãos, com a sua indústria. Daí porque ele teve de começar a pensar
especificamente, não de forma puramente teórica, ou de forma especulativa. Esta dialética é
diferente. Quando ele busca a materialidade, não é essa materialidade portanto abstrata. É muito
concreto, porque ela é calcada no trabalho humano. Para ele, o trabalho é fundamentalmente
aquele núcleo que perpassa o próprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e
socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é a administração
do homem sobre o mundo, transformando esse mundo, porque nisso ele transforma-se a si
mesmo. É isso que ele quis dizer: matéria transformada permanentemente pela sua própria ação.
Não é matéria bruta, como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essa ideia da física nem
da química. Não contava para Marx isso. O importante para ele era a dimensão
fundamentalmente social, isso é que era importante para ele.
Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de ter uma burocracia. Por
isso mesmo que se propugna por uma dimensão outra, que é aquela que o Olavo disse a respeito
do poder maior do que aqueles poderes. Um poder que oprime o outro, que pressupõe o outro,
que é bem maior. Sabe qual é o poder maior? É a comunidade! É a sociedade democraticamente
organizada, articulada de forma tal que se permita coibir (agora sim, a palavra mais correta) a
ação sozinha e solitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui imaginar que o
mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares se movimentando pelo alto, pelo
labor da globalização, nós vamos conseguir neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a
vontade singular de cada um? Ou com recursos que nós não temos? A única forma de coibir é
exatamente através de uma democracia participativa! Não é através da democracia
representativa, que de quatro em quatro anos vocês vão correndinho num domingo determinado
de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger os políticos que, em última instância, vão
ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É a democracia participativa formada por divisão de
comissões, de conselhos, de articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que
é uma coisa difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que está sob
a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os donos do mundo! Eles
decidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar, pôr… Eles fazem. Esses movimentos
de capitais procuram as comunidades onde a mão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas
postulações de que se o Estado interfere o sistema fica pior, ele está propugnando
fundamentalmente que largue tudo ao mercado, que façam tudo de acordo com as forças do
mercado, que tudo vai bem. Como, se cada pessoa tem o seu poder no mercado em função do
quê? Em função da sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não estou colocando a
questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não têm mesmo nada. São aqueles que
ainda têm trabalho e que ganham metade de um salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como
é que essas pessoas vão definir situações, vão decidir sobre questões do mercado? E essas
pessoas vão fazer o quê? Vão ganhar mais? Então vocês estão percebendo que eu acho que essas
questões de colocar Marx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem. Não fica bem.
Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros pensadores que seguiram, inclusive
que houve outras mudanças, outras formas inclusive de considerar Marx, a questão até dessa
violência, nunca Marx falou de materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx diz
materialismo histórico! O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx
nunca falou em materialismo histórico.
OLAVO DE CARVALHO : Falou em “materialismo dialético”.
ALAOR CAFFÉ ALVES : E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceu essas
formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fim acabam distorcendo até o
pensamento, embora dê a entender Marx nos seus conceitos. Ler O Capital , ler… Tem várias
obras dele maravilhosas e interessantes, já que ele [Olavo] está fazendo tanto denegrir, tanto. Eu
diria para vocês que há obras notáveis. Obras notáveis que exprimem conceitos riquíssimos.
Podem não ser todos suficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas que
nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx. Pensem num Weber, por
exemplo, um Durkheim. Tem de estudar esses pensadores para mostrar plenamente que tudo se
compõe, esse sim, o espírito humano, mas como a base fundamental da estrutura de ação
humana constante e permanente, que é o trabalho, que nós devemos cultivar permanentemente.
Estou contra essa ideia de “Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o prof. Olavo não
precisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele é suficientemente filósofo, eu sei, eu
conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma coisa mais profunda, mais tranquila, mais científica.
É isso.
OLAVO DE CARVALHO : Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aos senhores que o
conceito de fraude intelectual não é um insulto, é um conceito, inclusive jurídico, perfeitamente
delimitado, e que eu tenho todas as provas de que Marx se enquadra nisto, pela falsificação de
fontes, pela má interpretação proposital de autores que ele conhecia perfeitamente bem, e assim
por diante. Em segundo lugar, eu não vejo por que eu deveria me abster de usar a palavra
correta para designar o procedimento dele, quando na verdade eu li Marx durante muito tempo e
conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas contra as quais ele não tinha tantas
acusações assim chamando-as de cães sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas.
Assim, este é o estilo de Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando um
conceito perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto é fraude intelectual.
Outra coisa: eu não posso confundir a tranquilidade com a cientificidade. Estar nervoso ou estar
calmo não tem nada a ver com esta história. Não vamos confundir calma e tranquilidade com
honestidade. Só interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que
não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade intelectual.
Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e é uma literatura
enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, é desconhecida, porque o ensino universitário
aqui é nesta base: existe a redoma. Prova de que existe a redoma é que o prof. Alaor ficou
escandalizado quando eu sugeri que havia um outro conceito de nazismo que não fosse aquele
expresso por Dimitrov, o que significa que ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele
também está dentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem essa concepção
marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo Strauss, há uma bibliografia
imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos
que ele não foi de maneira alguma a ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muito
menos ainda foi um regime capitalista: foi um dos regimes mais socialistas e mais
intervencionistas que houve na história do mundo. E quando eles se chamaram de partido
nacional-socialista, não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança estrutural entre nazismo
e comunismo permite dizer que, de fato, a única diferença é entre socialismo internacional e
socialismo nacional. É somente isso, e é por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional
Nazista”, porque só quem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquela
porcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é para ficar escandalizado, mas
o próprio escândalo do prof. Alaor mostra como essas ideias e essas informações estão distantes
do meio universitário hoje. Porque o prof. Alaor não é um homem inculto; ao contrário, é um
homem bem informado. Só que é o seguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de
fora já come no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, e eu digo: eu
levei vinte anos para sair disto.
Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400 bilhões de dólares do
orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares para o Brasil ou para a África,
nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês um outro dado: só no ano de 2000 (é a
informação mais recente que eu tenho, não tenho outra mais atualizada), os cidadãos americanos
– cidadãos e empresas, sem contar o governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares de
contribuições para entidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo. Some com o
governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro? É dado diretamente aos
necessitados? Não, é dado a uma estrutura burocrática da democracia participativa: é a
comissão, é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, tem
de pagar aluguel, tem de pagar empregados etc. Vocês sabem como os americanos definem
FMI? FMI é uma entidade que se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos
para dar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa. De vez em quando
nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o FMI…” etc.) como se o FMI
fosse um propugnador da economia liberal e não um dos maiores controladores da economia
que existe no mundo: é o órgão controlador por excelência fundado por Lord Keynes, que além
de ser um estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, isto quer dizer que
ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando-o como símbolo do capitalismo. Mas,
quando o FMI estrangulou economicamente o governo Somoza para dar o poder aos
sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI não tem essa identidade ideológica que lhe
estão dando, ele tem uma outra. Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das
grandes fortunas, veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford.
Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria a esquerda nacional. Elas
subsidiam partidos, ONGs, o Fórum Social Mundial etc., e ninguém pára para pensar que talvez
a equação socioeconômica do mundo seja um pouco mais complicada, um pouco mais sutil do
que o esqueminha marxista admite que você veja. Na verdade, se você pensar: mas por que é
que esses grandes capitalistas contribuem para o movimento revolucionário? É por um motivo
muito simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e acumula tanto dinheiro, mas
tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na seguinte consideração: “Não podemos permitir que
essa fortuna, que custou tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É
preciso preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa a entrar em
considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidade daquela fortuna: o mercado não
pode fazer isso, somente o Estado pode. Por isso é que se você pegar as duzentas maiores
fortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram uma política liberal. Entre dois candidatos nos
EUA, eles apoiam sempre o mais intervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles
podem fazer isso? Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o estatismo total
jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha, haverá uma margem
de liberdade econômica para quem tenha o poder de assegurá-la. Eles sabem que o estatismo
total não funciona, porque isto lhes foi demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até
hoje não – com o economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig von Mises disse o
seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina o mercado; se elimina o mercado, as
coisas não têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo de preço; se não dá para fazer
cálculo de preço, não dá para fazer economia planejada; portanto, não existe socialismo. Por isto
mesmo, tanto os metacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam para isto. Na
União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para a economia
capitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dos grandes milionários russos.
Que, se era tudo do Estado, de onde apareceu tanto milionário do dia para a noite? Já eram
milionários. Sempre existiu capitalismo na Rússia, como sempre existiu na China. Ou seja, a
estatização total nunca acontecerá. Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros
sabem disso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo: chama-se
economia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas na concorrência do mercado e eles
precisam do Estado para garantir o seu poder monopolístico; por isto fomentam movimentos
socialistas e estatistas em todo o Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessa acreditando que
estamos lutando contra o poder do capitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado.
Mediador : Passamos agora às perguntas.
P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eu tenha compreendido
mal – na verdade são três perguntas –, o senhor chegou a dizer que os censores das novelas da
Globo tinham uma ideologia marxista…
OLAVO DE CARVALHO : Certamente.
P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eu gostaria de um pouco
mais de explicação. Com relação à sua concepção do marxismo como cultura, no sentido
antropológico de termo, eu também não consigo enxergar claramente todas as dimensões disso,
porque a cultura no sentido antropológico implica instituições, e aí eu gostaria de enxergar mais
claramente quais são as instituições marxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em
qualquer outro desses países. E a última pergunta é que o senhor faz uma aproximação,
inclusive mostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e centralizado e o marxismo…
[troca de fita]
OLAVO DE CARVALHO : Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar, estude
simplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, que sempre foram militantes do
Partido Comunista; em seguida, você vai precisar de informações de um pouco mais de dentro e
conhecer os scripts de novela que são propostos, que você vai averiguar gradativamente a
introdução de elementos de propaganda claramente esquerdista, se bem que light ,
evidentemente. Porque você vai usar o meio de propaganda conforme a natureza e o público que
você vai atingir. Em segundo lugar, quanto à questão da cultura marxista, a resposta é simples:
leia Gramsci. E não é verdade que cultura implique instituições. Cultura, no sentido
antropológico, é um termo que abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas]
modernas. Eu usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituições dos
países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas você pode ter um domínio sobre
uma parte das instituições, mas isto não é absolutamente essencial para o processo que eu estou
descrevendo. E, quanto à terceira pergunta, é verdade que naquele momento Marx advogava o
livre câmbio porque as políticas protecionistas eram políticas herdadas de um concepção
mercantilista antiga, e naquele momento Marx achava que era mais importante liberar a força do
capital, para que crescesse e para que, no entender dele, chegasse a criar a contradição que
resultaria no socialismo. Porém, a verdade é que, no século XX, sempre os partidos comunistas
e de esquerda favoreceram as políticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens
da esquerda é ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradições entre países. Então,
por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apoia políticas protecionistas; e no Terceiro Mundo
reclama contra as políticas protecionistas americanas que ela mesma criou.
P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, os políticos, o jurídico,
qualidade de vida dos brasileiros, milhões de miseráveis, como resolver isso, distribuir renda – e
isso me fez lembrar que três anos atrás aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, que escreveu
um artigo em que ele defendia, em vez da apropriação dos meios de produção, a tributação da
produção e da renda. Deu como exemplo países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia.
Talvez eu não esteja sendo preciso por uma questão de memória fraca, mas eram basicamente
esses países da Escandinávia. Eu pesquisei e descobri que exatamente esses países citados pelo
Joelmir Beting são países com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50%
e mais). E, por coincidência, esses países também são os países com melhor índice de
desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida. Então, será que nos regimes
capitalistas vigoraria o que Joelmir Beting chamou de “socialismo fiscal”?
OLAVO DE CARVALHO : De maneira alguma. Na escala de liberdade econômica a
Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta para caracterizar um controle
estatista. É necessário haver legislações restritivas etc. No conjunto, a economia dinamarquesa é
extremamente livre, está bem mais próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa, e assim
também os outros países. Se me escreverem para o meu e-mail, eu passo essa escala para quem
quiser.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, a tributação vem do corte financeiro em cima da sociedade
civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa viver de um recurso, quer dizer, o
recurso é extraído da produção. E consequentemente a produção, como não é neutra, ela
envolve capital, o capital muitas vezes resiste à tributação. Vocês veem que ele resiste à
tributação tendo em vista o fato de que isso atrapalha a acumulação dele. Então, ele não quer
evitar, ele não quer ter limitações de sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise
interna, pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muito acentuada dos
tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos conflitos e das contradições internas da
sociedade em torno disso. Quando não acontece isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já
ouviram falar no “caixa 2”: não paga exatamente para ficar com uma parte e conseguir fazer,
com isto, a acumulação. Há portanto uma dinâmica econômica no processo, muito importante:
não é simplesmente tirar da sociedade.
P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o atual momento
político e ideológico do país, e se os dois têm esperança no Brasil, e no quê eles teriam
esperança?
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, o atual sistema, o atual momento político é um momento à
esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, o sistema que prevalece hoje é o
Partido, é o PT. Só que é evidente que o PT não pode tomar posições senão pragmáticas, em
função da situação. Porque aquilo até que se esperava – que o PT tomasse uma posição mais
radical em termos econômicos –, não o fez, aceitando de certo modo as diretrizes de definição
econômica e social, tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando. Vocês veem até
que eles estão conservadores no processo, inclusive de abertura econômica. Isso significa, é
claro, que não é a perda do ideal mais socializante, ou então mais equalizador, do sistema social.
Isso é importante. Não é esta perda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E
essa impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem de fazer, porque tem
de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo, então ele tem de tomar certas posições
pragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma série de questões e problemas que nós
temos de enfrentar como um todo, o país como um todo. E o próprio governo neste caso tem
problemas muito graves e gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensão social,
mas porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle e condições
de fazer.
OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. O presente governo tem duas prioridades e
nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A primeira é manter o equilíbrio
orçamentário, controlar a inflação e, em suma, atender às exigências do FMI de, como eles
chamam, sanidade financeira. Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológico que as
pessoas lhes atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode ser usado para esmagar
governos de direita ou de esquerda – acabei de lhes dar o exemplo de Somoza. Então,
dependendo de quem controla o instrumento, ele aperta aqui ou aperta acolá. Esta é a primeira
prioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de desenvolver a segunda parte, que é a
integração dos movimentos políticos latino-americanos – movimentos revolucionários – e a
identificação de Partido com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho
miserável.
Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Eu acho tudo isso de
uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a política que Lenin seguiria. Três meses antes de o
Lula ser eleito, eu escrevi um artigo chamado “O que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na
mão. Faria exatamente isto: acalmar o investidor estrangeiro (através do equilíbrio fiscal etc.) e
montar um sistema de controle político (através da expansão indefinida do Partido, da
identificação entre Partido e Estado etc.).
Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação à política, eu sou incapaz
de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperança em política alguma; nem chego a entender o que
as pessoas querem dizer com isso. Eu estou me limitando a estudar a situação e tentar entendê-la
da melhor maneira que eu possa. Não tenho nenhuma fórmula para salvar o Brasil, mas se fosse
para fazer uma coisa boa, eu faria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia fazer. O
governo viu que o grande número de propriedades imobiliárias irregulares no país (quase 80%)
impede a formação de capital para os pobres. Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é
capital morto, não tem liquidez. E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedade
imediatamente. Mas falou isso durante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a
coisa boa para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem com fazer a revolução
latino-americana. Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles.
P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaor, e se o sr. Olavo quiser comentar
também… Bom, o professor falou que acredita numa democracia participativa, e entende isso
como a participação de cada indivíduo de uma sociedade brasileira diretamente nas decisões
governamentais. Eu pergunto: como isso é possível hoje no Brasil, sem que haja uma
dominação dos meios públicos? Por exemplo, aqui na faculdade tem o orçamento participativo:
os alunos vão, orçamento participativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a maioria dos
alunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver, não pôde ir para a aula”.
Enfim, como é que isso vai acontecer com o resto do povo brasileiro, com o pescador, um
sujeito que não entende muito bem de política (com todo o direito), como é que… Enfim, não
sei se o senhor entendeu a minha pergunta. Eu não acredito no orçamento participativo. Como é
que o senhor acredita?
ALAOR CAFFÉ ALVES : Não. Acontece o seguinte: a democracia participativa impõe
todo um processo muito amplo de mobilização social e de organização social. Se não houver a
mobilização e a organização social não haverá nunca a democracia participativa. Ela é agora
uma coisa nova. Na verdade, ela é uma proposta de quê? De dez anos, no máximo. Não tem
ainda a organicidade que deve ter, e, muitas vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o
problema complicado. O próprio sistema não quer saber da democracia participativa
efetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma ideia para vocês
entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Ele fica praticamente
neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que deve surtir. O sistema de conselhos seria
interessante, não o conselho de rua (geralmente há o conselho de rua). A chamada democracia
representativa é a democracia da rua: todas as pessoas vão à rua, os políticos vão à rua, propõem
as suas colocações, fazem as suas exposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou
seja, persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Por exemplo, a
democracia que envolve a possibilidade de participação de todas as comunidades, inclusive as
comunidades escolares, fabris, os clubes, as igrejas, as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a
caminhar. Nós precisamos trabalhar muito e estudar muito esse aspecto e tentar estabelecer
relações internas dessas unidades todas e externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é
fácil. Nós temos a democracia representativa, que domina completamente. E muitas vezes eu
tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a participação. Eles não
querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus poderes respectivos. Portanto, eles fazem
uma proposta sempre constante de democracia representativa, evitando o mais possível o
domínio da democracia participativa. É complicado, demanda consciência, demanda, digamos,
uma dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente, por parte das organizações. Aqui
por exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria ter muito mais disso, de um
movimento político nesse sentido.
OLAVO DE CARVALHO : É preciso ver se nós estamos discutindo as palavras pelo seu
valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela substancialidade das situações de
fato que elas representam. Com relação ao conceito genérico de participação, ninguém pode ser
contra. Santo Tomás de Aquino já dizia que qualquer sociedade política só pode estar segura da
sua sobrevivência se todos os seus membros participarem da política. Quer dizer, isto é uma
espécie de consenso universal. Ninguém discute isso há sete séculos. O problema é o como.
Ora, a estrutura partidária da representação que nós temos já é suficientemente complexa para
que nenhum cidadão possa dizer que a conhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de
conselhos, comissões, assembleias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigir
todas essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, a concepção atual da
participação é tão complexa e tão custosa que eu a afastaria de cara como simples psicose. A
proposta de democracia participativa pode servir como um instrumento propagandístico para
desmoralizar o sistema representativo, que já não está muito bem das pernas. Mas que vá
substituí-lo é absolutamente impossível.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo. Mas ele
demanda mesmo uma complicação em função de uma sociedade altamente complexa. Não há
dúvida. Não há dúvida. O que ocorre é que a democracia representativa não assumiu, e não
assume de forma nenhuma, as dimensões necessárias para compor políticas públicas de forma a
efetivamente trazer à comunidade a satisficação necessária, tendo em vista exatamente esses
problemas que nós elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças profundas entre as
pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa, ela tem um problema de
representação das camadas sociais e das classes sociais muito distorcido. Não há possibilidade
de um aproveitamento claro nesse sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende
dos “bolsões”. Não é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão do meio ambiente, a
comissão da educação, disto ou daquilo, as comissões singulares, que vão atuando em sistemas
capilares. É claro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente complexo, numa
sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é ter uma posição, digamos,
pessimista quanto a isso, porque depois não há sistema nenhum, nenhuma engenharia social ou
institucional que nos permita realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade
justamente para quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicos do sistema,
os donos do capital.
OLAVO DE CARVALHO : Quando você fala dos “donos de capital”, eu queria lembrar
uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem uma instituição que a defende: chama-se
Instituto Liberal. O Instituto Liberal de São Paulo fechou por falta de verbas. Jamais faltam
verbas para o Fórum Social Mundial, para o PT, para o MST etc. Portanto, a distribuição do
poder e do dinheiro não é exatamente esta que geralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses
defendendo os seus interesses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando em favor
dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aqui para defender proposta
nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e a realidade no momento é esta. Por exemplo,
essa capilaridade se faz em grande parte através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das
ONGs que nascem no Brasil é produto local? Vocês sabem que a ONU tem um curso de
formação de movimentos sociais no Terceiro Mundo que anualmente espalha vinte mil
profissionais disso para tudo quanto é lugar, subsidiados por outras ONGs enormes financiadas
por Rockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm ideia de que essa tal da democracia
participativa é ela mesma uma obra de engenharia social que está sendo implantada em toda a
parte, e não está surgindo de baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU.
Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil, chamado La
face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que trata dessas coisas. Então, notem bem
que a estrutura do poder global é bem diferente do que uma análise marxista permitiria
imaginar. A estrutura do poder não corresponde a isto. Muita coisa que parece movimento social
vem diretamente do grande capital.
P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria saber a opinião de
“um”, que coloca que aparentemente não há solução, e a do professor, que o sistema capitalista
não seria a solução. Eu queria saber se dentro do próprio sistema capitalista vocês não acham
completamente inviável uma coisa que o pessoal abomina: o hobbesianismo, o princípio do
interesse próprio. Na verdade o interesse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos, não
pode encaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismo romântico, sem
apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio capital para se manter ele vai
criar, e cria – como tem criado – a função social das empresas, a ação voluntária das pessoas,
para desenvolver os próprios mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruir
mercados dos quais ele precisa.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Não, não se trata disso, do fato de que o capital não faça o
possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. E não se trata do fato de que o
capital não faça também alguma coisa de cunho social. Eu não coloquei essa questão, eu
coloquei uma questão de estrutura interna. De qualquer forma, todas as empresas vão buscar o
quê? Elas querem mercado, querem tentar colocar os seus produtos. O que eu disse aos senhores
é que com a inclusão da sofisticação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a si
mesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi comentada aqui), e eu
falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda a dimensão muito sofisticada da
produção… Não porque o capitalista queira, ele não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital
que vai querer isto? Vai querer nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos da sua competição
mundial, ele precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, ele libera necessariamente a mão-de-obra
porque faz parte dos custos. Ele tem de tirar isso da frente. Os custos mais facilmente tiráveis,
ou seja, que são possíveis de ser eliminados, são os custos relacionados com a mão-de-obra. A
matéria-prima ele tem de aplicar, as máquinas ele tem de fabricar e tem que utilizá-las, não tem
jeito. E as máquinas e a matéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode
eliminar é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque ele
queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo ajustes sociais, fazendo tudo o que você
imaginou, a beleza da coisa, se ele está metido em algum processo de acumulação, ele vai
precisar necessariamente continuar o processo de expansão da economia, porque a lei do capital
é esta mesma: é de permanente ampliação e acumulação. Ele entra num processo de crise e de
conflito, que tem um limite, é claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social,
histórico. E como ele tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vai ter, mas eu não sei
nem quando. Qual é a ideia que se vai ter disso? Ele é um processo social. Ou o capitalismo é
eterno? De repente apareceu o final da História: é o “Fim da História”? Quebrou aqui e aqui, e
não tem mais? Não é isso. Nós estamos mostrando as contradições que levam o sistema a outra
situação, mesmo um sistema que seja em geral “bonzinho”.
OLAVO DE CARVALHO : Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Se o
socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar? Ademais, o capitalismo não
tem de ser defendido como ideal para resolver o que quer que seja, porque, em primeiro lugar, o
capitalismo já existe. E quando eu o defendo – e mesmo assim com limitações, que eu não sou
nenhum entusiasta do capitalismo – é apenas como algo que está funcionando, que funciona
bem onde lhe permitem funcionar. Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia
participativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que tem contradições,
toda sociedade tem contradições. Mas nunca o capitalismo chegou às tais contradições que
Marx denominava “contradições antagônicas”, que o destruiriam desde dentro. A isso não
chegou até hoje; e o socialismo chegou. O socialismo mostrou que é incapaz de passar de um
certo ponto. Em matéria de contradições antagônicas, o socialismo está ganhando.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Parece que não se percebeu claramente a lei do materialismo
histórico. É que a indução do socialismo no século passado foi artificial. Não é que socialismo
acabou, como você está dizendo. Ele nem começou.
OLAVO DE CARVALHO : Ah!
ALAOR CAFFÉ ALVES : Nem começou.
OLAVO DE CARVALHO : Então me enganaram o tempo todo!
ALAOR CAFFÉ ALVES : Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de ver fantasmas
socialistas de anos atrás por toda a parte [palavras inaudíveis], isso realmente obscurece a
pessoa.
OLAVO DE CARVALHO : [Risos.]
ALAOR CAFFÉ ALVES : É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal, como o
próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivas avançarem de tal maneira a
chegar no limite das relações sociais de produção. O fato é que até agora não se chegou aos
limites do sistema. Está se percebendo agora que está começando a entrar nesse processo.
OLAVO DE CARVALHO : Puxa, que maravilha…
ALAOR CAFFÉ ALVES : A crise está começando a entrar agora. Agora é que estão
começando a se desenvolver os problemas de desemprego, do social etc., né? A crise mundial,
onde as coisas são irracionais. Um sistema como esse americano, que faz a coisa mais absurda e
irracional, como atacar um país inteiro sem motivo praticamente, a não ser um motivo pessoal,
um motivo articulado do próprio país, que é a busca de energia que ele precisa tanto para
desenvolver o seu sistema. Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai, ele cai
completamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram isso. Não é o Bush
que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a gente nunca sabe). Ele tem de fazer
isso em razão da própria impulsão do sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismo não
começou, não. Ainda temos muita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte.
Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas não são. O que aconteceu foi o
desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não chegou justamente aos limites que
o sistema vai ter. Porque os limites o sistema vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não
sei quanto tempo, pode durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo. Estamos agora já
com a indicação histórica que alguma coisa agora está condenada pelo sistema capitalista. É isso
aí que eu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo de socialismo, que forma de
socialismo. isso nós não sabemos. É claro, isso não sabemos.
OLAVO DE CARVALHO : Bom, vocês sabem quantos livros foram publicados com o
título de “A Crise Geral do Capitalismo”?
ALAOR CAFFÉ ALVES : Ih, muitos…
OLAVO DE CARVALHO : Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico: “Agora
sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando se diz que muita água vai
correr, não: muito sangue ainda vai correr. Matar cem milhões não foi o bastante. Notem bem,
uma ideologia que, com esses mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, da ideologia, do
mercado etc., tomou o poder em um terço do globo terrestre, matando cem milhões de pessoas e
só conseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se gerou na China – depois de
tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para dizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro
socialismo. Nós vamos tentar outra vez. Vocês me deem mais um creditozinho de confiança, e
desta vez nós vamos acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança? Baseado em
quê? Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram? Chega disto! O capitalismo não é
grande coisa, o capitalismo chega a ter aspectos até demoníacos. Porém, esse tipo de malefício
ele jamais fez: nunca chegou tão profundamente. Portanto, não vamos destruir uma coisa
razoável que temos, que pode ser mudada e aperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente
no socialismo. Mais ainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as
ideias não existem separadamente da história, que as ideias só existem pela sua encarnação
material na história, e em seguida dizer que toda a história deles durante um século não o
compromete de maneira alguma, e que ele como ideal permanece puro e intocável no céu das
ideias platônicas. Isso é charlatanismo.
ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é uma resposta.
Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União Soviética, nem está pretendendo que
era isto que eu estaria fazendo. Ele [Olavo] está com fantasma na cabeça. Também isso nem
precisa mais pensar, que isso já foi mesmo, é coisa da História. Então é um fantasma pensar que
o que se propugna é aquilo que estava lá. Não é nada disso. Soube-se que houve erros
profundos, sérios, seríssimos. Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da hora, fora
da História, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a dimensão histórica. Então, é
isso que se está colocando aqui. Não é a defesa de coisa nenhuma, de três milhões, de cinco
milhões, de trinta milhões que foram perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas
[palavras inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não fez tantas mortes.
OLAVO DE CARVALHO : Não fez!
ALAOR CAFFÉ ALVES : Não?
OLAVO DE CARVALHO : Não fez! Não fez! De jeito nenhum!
ALAOR CAFFÉ ALVES : Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos de muitas
guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerras deste mundo inteiro? Quem fez
isto, senão todo o sistema burguês capitalista que fez isto? É evidente que houve também essa
ampliação burocrata em termos objetivos por parte do socialismo. Então, neste caso, o certo é o
seguinte, só para terminar: não adianta entrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como
é que ele vai resolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser relido com
conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com o desenvolvimento tecnológico
das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra, expulsando a capacidade de poder consumir
aquilo que o próprio capital produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!
OLAVO DE CARVALHO : Essas contradições são exatamente as mesmas que Lenin
diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução. Agora, quanto ao morticínio,
está aqui: O Livro Negro do Capitalismo . Quando saiu O Livro Negro do Comunismo , feito
por pessoas de esquerda, que provava documentadamente que os comunistas haviam matado
cem milhões de pessoas, encomendou-se a um monte de intelectuais que produzissem, de
qualquer maneira, cem milhões de vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este livro: são
trinta autores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para chegar aos cem milhões, foi
preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial (cinquenta milhões,
todas as vítimas de todos os lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os
lados), todas as vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo. Todo marxista é
um charlatão.
P: Eu gostaria que os dois debatedores comentassem algumas considerações minhas e vou
fazer uma pergunta específica para o prof. Olavo. Pelo tema do debate, eu esperava que
houvesse uma discussão a respeito das principais teses desenvolvidas pelo Marx, mas
infelizmente as discussões tomaram outro rumo, e eu percebo que as teses propriamente de
Marx foram tangenciadas. Como por exemplo a crítica feita ao materialismo, se ele não é o
poder de a matéria gerar frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o
homem feito do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo reside justamente na
interação do homem com a natureza, que é, segundo o próprio Marx, o corpo inorgânico do
homem, e a produção da ideologia se dá a partir dos pressupostos da atividade espiritual
humana. Então, nós estamos aqui fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nós estamos
aqui vestindo roupas, nós estamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando
cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo isso foi criado de alguma
forma através de alguma espécie de intervenção humana. Isso é a produção da ideologia, e não
dizer que o trabalhador tem de pensar como proletário e o capitalista tem de pensar como um
crápula. E isso é ridículo. E a maior prova ao contrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é
um trabalhador e que diz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por aí. Eu
gostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração. Outra delas é que me
pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi discutido em termos de planificação
estatal, quando na realidade a teoria de Marx é muito diferente disso. Não se trata de
perfectibilizar o Estado ou de aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar o mercado.
A perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é a destruição do mercado, a destruição
do Estado, mas a destruição do mercado não para substitui-lo pela planificação, mas para
substitui-lo pela apropriação social. Esse é segundo ponto que eu gostaria que fosse comentado.
E aí, por fim, a pergunta para o prof. Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui,
pela oportunidade de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um
ano e meio no jornal O Globo , se não falha a memória, em que você afirma que o então
presidente Fernando Henrique Cardoso estaria mancomunado com o MST e preparando a
transição do Brasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor comentasse esse seu ponto de vista.
OLAVO DE CARVALHO : Vocês façam a conta de quanto saiu do governo FHC para o
MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só isto: ele fez o MST, ele é o criador do
MST. Quais foram as intenções ideológicas, eu não sei, evidentemente. Porém, houve uma série
de artigos publicados por Alain Touraine na Folha de São Paulo (Alain Touraine é uma pessoa
que tem influência grande sobre a cabeça de FHC), nos quais ele traçava o plano de uma virada
do Brasil à esquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem me cabe conjeturar –,
mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que é possível haver uma ligação. Quanto
saberemos se houve isso ou não? Daqui a muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC
construiu o MST com verbas do Estado, isso é um fato inegável.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu não tenho muito que comentar à formulação dessas questões.
Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, o fato de que a materialidade depende das
relações de produção dos homens. Por exemplo, o caso que foi colocado aqui: nós estamos aqui
nessa mesa, tudo está sendo visto, todos estamos vestidos, temos nossa alimentação já
preparada, temos nossas roupas; amanhã ainda teremos porque outras pessoas estão trabalhando
para nós também. Nós estamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma relação social
envolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e séria. Eu não posso estabilizar
que os homens, apenas pelas suas ideias, é que transformam as coisas ou fazem as coisas; fazem
através do movimento prático da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a
troca entre os homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobre esse aspecto
da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse a vocês, abstrata, mas é a matéria do
ponto de vista das relações humanas concretas, o homem agindo sobre o meio e transformando
o meio. E quanto à apropriação social, que foi uma das propostas, mostra claramente que a
apropriação social é feita de uma forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa
questão que foi colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da
necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for para a distribuição
melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, que vamos para a esquerda. Ué, se há uma
miséria imensa, e nós vemos que as estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem
importância: vamos à esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós
não temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quase que dizer…
Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema, de forma nenhuma, mas vamos então
admiti-lo como bom, que ele é a única coisa boa que tem.” Mas nós temos também expectativas,
utopias, nós temos também meios de ver o mundo, nós temos também aspirações, nós temos
nossa imaginação, e nós precisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico. Isso é
otimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, se for à esquerda, não
presta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de direita dizendo não está se fazendo
isso: “Não estou fazendo isso.” Está aqui atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença
de ideias.” É um ataque com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que são razoáveis
em muitas questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não é que seja a panaceia, e não será
mesmo. Nós temos de criar a nossa própria panaceia. Nós temos de criar o nosso mundo, a
nossa utopia. Não é Marx no século XIX. O importante é que temos de utilizar isso. É pena que
tudo isso que nós conversamos e desenvolvemos nós pensamos em falar em “Marxismo, Direito
e Sociedade”, especialmente a questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente. Talvez
eu tenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele diga que não, porque
tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são de esquerda, a Globo é de esquerda. É ver
as coisas que não tem, que não existem mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso
acabou. Nós temos de agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outra sociedade. É
isso que tem de fazer, e não ficar remoendo problemas do passado. Existe aqui até um
movimento muito sério, muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição, Família e
Propriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como se houvesse ainda esse
fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela simplesmente vai tentar desenvolver um
sistema onde haja mais distribuição social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que se
pretende fazer? Uma igualação, uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende
fazer. O que é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor igualdade,
maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, e que as pessoas tenham
oportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida… Enfim, é isso que nós queremos.
Não queremos mais nada do que isso. E não ficamos aqui apresentando esses exemplos; esses
exemplos históricos que são mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo]
chega a dizer que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado, o nazismo não teve
nenhum problema…
OLAVO DE CARVALHO : [Olavo protesta.]
ALAOR CAFFÉ ALVES : “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E o capitalismo é
um sistema absolutamente muito bom. O que é que é isto? Todos estão de acordo com esse tema
que ele está, com essa distribuição terrível que ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui a
pouco vai se falar que a miséria é determinada pelos esquerdistas, pela esquerda…
OLAVO DE CARVALHO : E é, e é.
ALAOR CAFFÉ ALVES : … como está se fazendo colocando a questão de que o FMI é de
esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerda etc. Isso é uma coisa maluca. É uma
questão emocional muito grave…
OLAVO DE CARVALHO : Ora, o prof. Alaor tem a pretensão de diagnosticar os meus
problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa: ignorância. Primeiro, ignorância dos
escritos de Marx. Ele diz que a matéria é função da produção; Marx diz exatamente o contrário:
Marx subscreve inteiramente as concepções atomísticas de Demócrito e aceita a ciência
newtoniana como a tradução perfeita da realidade. Ademais, a ideia de uma dialética interna da
matéria está exposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição do movimento
comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção é absolutamente ridículo, é
coisa de ignorante, para não dizer mentiroso. Não o acuso de mentiroso mas o acuso de
ignorante. Em segundo lugar, com um homem que chega para mim e diz por um lado que “ah,
esse momento é da esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outro lado, diz que não existe
esquerda nenhuma, em algum ponto a coisa está falhando. Em terceiro lugar, o conselho de
“esqueçamos a História, nada disto aconteceu, vamos tentar de novo, vamos confiar”, isso é
uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar uma discussão nessa base.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu evidentemente não estava esperando essa
agressividade. Essa foi demais.
OLAVO DE CARVALHO : Agressividade é a sua, que começa a falar em problemas
emocionais.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de ignorante, e
pressupor que eu não conheça Marx…
OLAVO DE CARVALHO : Pressupor não: afirmo!
ALAOR CAFFÉ ALVES : ... e ele diz também que quatro décadas foi do Partido
Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!
OLAVO DE CARVALHO : O quê? Está me acusando de mentiroso?
ALAOR CAFFÉ ALVES : O senhor me acusou de mentiroso aqui.
OLAVO DE CARVALHO : Não, eu te acusei de ignorante.
ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.]
[Tumulto.]
OLAVO DE CARVALHO : Você é que está mentindo.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Você é que me xingou!
OLAVO DE CARVALHO : Você é mentiroso! Safado!
ALAOR CAFFÉ ALVES : Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] antissocialista ou
antimarxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tão profundamente. Imagine que ele agora
não é, porque ele analisou tão profundamente isso e está dizendo…
OLAVO DE CARVALHO : Pois foi exatamente isso que você nunca fez.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Ora, pelo amor de Deus!
OLAVO DE CARVALHO : Você é um idiota.
Alaor Caffé Alves : Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmo tempo; agora, se você
disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me perdoem. Eu sou da Faculdade. Eu não vou permitir
uma coisa dessa! Isso é uma agressão pessoal. Eu esperava…
OLAVO DE CARVALHO : Você me agrediu primeiro, falando de problemas emocionais.
ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais possível a minha
ideia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre a questão que o Marx colocou; e a coisa foi
num crescendo que eu não vou me admitir, vocês me perdoem.
ALGUÉM DA PLATÉIA : Está fugindo?
ALAOR CAFFÉ ALVES : Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo para respirar. Eu sei
que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados. Houve uma mobilização aqui, séria,
grave, séria, e eu não vou me permitir, como professor da casa, ser agredido dentro da minha
casa, por uma pessoa como esta. Vocês me perdoem.
* * *
Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos e vaias misturam-se
de maneira indiscernível. A maior parte das vaias condena a atitude de desistência do prof.
Alves, mas num canto da sala ouve-se distintamente o refrão gritado por um grupo organizado
de jovens de idade manifestamente inferior à da média da plateia: “Alerta! Alerta! Alerta aos
fascistas! A América Latina será toda socialista.”. – O. de C.