O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente ... · Abstract The goal of this...
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Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Cató-
lica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Dou-
tor em Comunicação e Semiótica – Signo e significação nas mídias, sob
orientação do Prof. Doutor. Sérgio Bairon
Sergio Roclaw Basbaum
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo, 2005
O primado dapercepção e suasconseqüências noambientemidiático
Resumo
A pesquisa visa examinar aspectos da comunicação contemporâ-
nea pelo viés da percepção. Trata-se de uma hipótese que emerge em au-
tores tão distintos como Walter Benjamin, Marshall McLuhan e Vilém
Flusser, que atribuem grande importância à mediação tecnológica nos
modos de perceber o mundo e formalizar o conhecimento. Procura-se
verificar em que medida a onipresença da mediação digital - da ordena-
ção do poder aos afetos privados - têm dado origem a modos específicos
de perceber, significar o mundo e formalizar a experiência. Inquire-se
portanto, pela natureza de uma percepção digital nas sociedades contempo-
râneas. Para tanto, examina-se a natureza da experiência perceptiva, a
partir de Merleau-Ponty - que a define como berço do sentido da experi-
ência vivida -, e das pesquisas contemporâneas da antropologia dos sen-
tidos (Classen; Howes), que permitem superar o conceito de ponto de vista
- que marca a primazia da visão na modernidade - pelo de ponto de experi-
ência: o modo como uma cultura percebe e significa o mundo. Em segui-
da, examina-se o caráter tecnológico da mediação no Ocidente contempo-
râneo, tomando por base Martin Heidegger, Vilém Flusser, Marshall
McLuhan e Walter Benjamin. Procedendo a um inventário de manifesta-
ções culturais tão distintas como chats, redes, games, VJs, e a arte contem-
porânea, conclui-se que a mediação digital tem determinado um novo
ponto-de-experiência, característico de uma cultura digital (Gere), em que
a visão se integra de modo mais equilibrado aos demais sentidos, intensi-
ficando os estímulos sensoriais e alterando noções de tempo e espaço, se-
gundo, porém, uma estrutura subliminar inerente à precisão e à eficiên-
cia tecnológicas.
PALAVRAS CHAVE: comunicação, percepção, tecnologia, experi-
ência, sinestesia, cultura digital.
Abstract
The goal of this research is to examine aspects of contemporary
comunication from a perceptual approach. This hipothesis emerges from
authors as distincts as Walter Benjamin, Marshall McLuhan and Vilém
Flusser, all of which ascribe large importance to technological mediation
in the ways we perceive the world and formalize knowledge. We search to
verify by which measure the ubiquity of digital mediation - from the
ordering of power to private affections - has given origin to specifical ways
by which we perceive, signify and formalize our experience. We inquire,
therefore, about the nature of a digital perception in contemporary societ-
ies. To achieve this, we examine the nature of perception, through the work
of Merleu-Ponty, who defines it as the source of the meaning of lived ex-
perience, and through the contemporary work of the anthropology of the
senses (Classen; Howes) which allow us to overcome the concept of point of
view - which defines the primacy of vision in Modern Age -, through the
concept of point of experience: the way by which a culture perceives and as-
cribe meaning to the world. Next, we examine the technological character
of contemporary Western mediation, taking as a ground the works of Mar-
tin Heidegger, Flusser, McLuhan and Benjamin. By making an inventory
of cultural manifestations as distinct as chats, networks, games, VJs and
contemporary artworks, we conclude that digital mediation has deter-
mined a new point-of-experience, in which vision has been integrated to
other senses in a more balanced form, intensifying sensorial stimuly,
altering notions of space and time, ruled, however, by a subliminar struc-
ture inherent to technological efficiency and precision.
KEYWORDS: communication, perception, technology, experience,
synesthesia, digital culture.
Sumário
Resumo 5
Abstract 6
Agradecimentos 11
Introdução 13
Capítulo IOs sentidos e o sentido da experiência 25
Capítulo IIDo ponto de vista ao ponto de experiência 63
Capítulo IIIMundo sem ruído: A utopia digital 121
Capítulo IVDa invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 175
Capítulo VO primado da percepção digital 217
ConclusãoDeus não joga dados 279
Bibliografia 289
Agradecimentos
A muitos colegas, amigos, familiares e colaboradores devemos a
possibilidade deste trabalho ter sido concluído. Seria impossível citar to-
dos, mas agradecemos especialmente:
Tereza Loparic, amada e talentosa companheira, suportou a extra-
ordinária pressão que, sabe-se, as pessoas mais próximas e mais queridas
acabam por sofrer no tempo e na imersão que um trabalho desse porte
demanda ao autor, nas condições em que produzimos e no contexto do tem-
po hipermoderno - a sua colaboração, como parceira, cúmplice e revisora,
jamais poderei agradecer suficientemente; Luíza Loparic Basbaum, ama-
da e super especial filha, com seu carinho e talento, não apenas agüentou
brava e generosamente as ausências do pai, como ofereceu sempre humor,
sensibilidade e carinho nas horas mais difíceis do trajeto; Marília Cauduro
Ponte, querida amiga, nos acompanhou com entusiasmo contagiante e fez
o projeto gráfico que agregou qualidade visual e legibilidade a este volu-
me. Meus pais Hersch e Natacha, que torceram e colaboraram demais, com
a grandeza, a afetividade e a inteligência que lhes é peculiar. A Profa.
Andréa Loparic deu muitas provas logicamente irrefutáveis de generosi-
dade, além de conhecido brilhantismo intelectual e erudição que nos per-
mitiram evitar muitos equívocos; Carlos Carvalho foi um interlocutor in-
dispensável, e os amigos Tatiana Catanzaro e Nélson Lago partilharam con-
versas aqui e ali importantes.
Quanto ao conteúdo, não teríamos sido capazes de trabalhar o dis-
curso aqui desenvolvido não fosse a contribuição do filósofo Marcos
Sacrini, que nos auxiliou muito na compreensão dos difíceis meandros da
Fenomenologia da Percepção, essa obra extraordinária de Merleau-Ponty, e
também nos ofereceu a oportunidade de conversa prazerosa e produtiva;
o Prof. Zeljko Loparic não apenas nos cedeu textos inéditos, mas nos abriu
esse incrível mundo heideggeriano, cujo acesso nos teria sido impossível
sem as várias conversas em que o autor, com sua curiosidade insaciável,
procurava tapar os buracos de sua formação incipiente no privilégio do
diálogo com um grande filósofo; e Ricardo Basbaum - que tem, nos últi-
mos 40 anos, estado pelo menos três anos à minha frente - além de parti-
lhar um fértil diálogo sobre a arte, tem nos dado a oportunidade única de
acompanhar de muito perto o desenvolvimento de uma obra extraordiná-
ria, no complexo terreno da arte contemporânea.
Às alunas e alunos do curso de Comunicação nas Artes do Corpo,
meu agradecimento de coração à sua disposição em partilhar e construir
momentos e vivências sensoriais, sem os quais esse trabalho seria muito
diferente. Aos colegas do NuPH (Núcleo de Pesquisa em Hipermídia), em
especial o fenomenólogo Luis Carlos Petry, com quem tivemos longas e
incríveis conversas sobre filosofia, e que nos auxiliou na preparação de uma
hipermídia para a apresentação no Subtek, em 2003; ao meu orientador,
Prof. Sérgio Bairon, cuja amizade e confiança, bem como a cumplicidade,
foram fundamentais para que este projeto ousasse tomar esta forma;
Martin Grossmann pela conversa sempre produtiva; por fim, Edna Conti
e Cida Bueno, da Comunicação e Semiótica da PUC-SP, que sempre, ge-
nerosamente e em todas as horas souberam tornar mais simples, para nós,
os caminhos sinuosos da papelândia.
São Paulo, 2005.
Introdução
“Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partirda política, ou a partir da religião, ou então a partir daeconomia? Deve-se compreender uma doutrina por seu conteúdomanifesto ou pela psicologia do autor e pelos acontecimentos desua vida? Deve-se compreender de todas as maneiras ao mesmotempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos osaspectos a mesma estrutura de ser. Todas essas visões sãoverdadeiras, sob a condição de que não as isolemos, de quecaminhemos até o fundo da história e encontremos o núcleoúnico de significação existencial que se explicita em cadaperspectiva.”Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção.
O trabalho que se segue busca elucidar alguns aspectos da experi-
ência contemporânea pelo viés da experiência perceptiva que lhe é carac-
terística. Regime perceptivo peculiar, histórica e culturalmente demarca-
do, onde se dá a sua gênese e, no nosso entender, a gênese dos modos de
sensibilidade e formalização de tal experiência. As forças mais significa-
tivas na sua determinação serão aqui associadas às mediações tecnológicas,
e, para melhor examinar a experiência contemporânea sob tal viés, fare-
mos uso de algumas considerações sobre a percepção, sobre a técnica, e por
fim, sobre a arte, dedicando capítulos a cada um desses temas. Ao final,
esperamos ter costurado os argumentos suficientes para que possamos
propor um conceito de percepção digital, que corresponderia ao modo de
percepção que parece emergir nas sociedades altamente mediadas pelos
dispositivos digitais, como o são hoje praticamente todas as grandes
metrópoles e demais centros urbanos que participam desse ambiente
midiático de uma cultura digital planetária em curso.
14 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Essa articulação triangular entre percepção, arte e tecnologia tem
sido um território que nos fascina já há mais de uma década. Desde o iní-
cio dos anos 1990, vínhamos inquirindo sobre as relações entre os sons e
as cores, que nos levaram às tecnologias digitais, que então tornavam-se
mais acessíveis ao público em geral. Buscávamos, ali, de algum modo, e
segundo uma afinidade com as manifestações mais radicais da arte moder-
na e contemporânea, reunir numa reflexão original uma trajetória inten-
sa de estudo e criação musical, e nosso interesse e percurso acadêmico com
as imagens em movimento do cinema. Essa aspiração pela união de sons e
cores resultou, em 1999, numa dissertação de mestrado (pouco depois
publicada em um pequeno livro), que reunia uma reflexão singular sobre
a experiência sinestésica - sobretudo sustentada sobre o discurso da neu-
rologia contemporânea -, a um inventário de poéticas sinestésicas em vá-
rios campos da arte, e, finalmente, à formalização de uma proposta de lin-
guagem de cores e sons, a cromossonia. Com isso, nos vimos na posição de
sugerir uma certa vocação dos aparatos digitais para estes intercruzamentos
e fusões de signos e sensações, que os anos que se seguiram somente vie-
ram a confirmar de maneira até mesmo ostensiva. Ostensiva, também, foi
a progressiva instalação dos aparatos digitais em todas as instâncias da
experiência vivida, uma radical transformação da paisagem cotidiana que
nos levou a pôr em cheque o significado de tal paisagem nova e seu impac-
to na ordenação e na significação do mundo. Uma transformação de tal
escala não poderia passar despercebida e impensada, e é tanto mais espan-
tosa quando se tem em mente a ingenuidade com que travamos nosso pri-
meiro contato com os PCs, então novidade grávida de inúmeras possibili-
dades, abrigando essa aparente positividade que ainda hoje seduz e infor-
ma muitos discursos sobre a arte digital. Afinados de há muito com a
inquietude e a poder de fogo crítico exercitado pelas artes já ao menos desde
o chamado ciclo das vanguardas, não poderíamos deixar tal instalação, de
implicações extraordinárias, sem reflexão.
Essa urgência crítica quanto à natureza da mediação tecnológica
acabou conduzindo a uma mudança bastante radical nos fundamentos de
nossa reflexão, que largou no porto a bibliografia vinda da neurologia con-
temporânea, para navegar com a bússola da filosofia. Esta nos parece, para
pensar a cultura, alimentar fala e aberturas muitos mais promissoras do
que aquelas oferecidas por um discurso de tal modo determinado pela ri-
gidez do modo da ciência de significar o mundo e o vivido, que não pode
revelá-lo senão sob o viés estéril e repetitivo do exercício de uma lingua-
gem uníssona e impensada, e sobre todos os fenômenos que quer explicar
Introdução 15
não parece dar a ver senão a si mesma. O problema da percepção, no en-
tanto, nos parece menos uma questão de explicar este ou aquele mecanis-
mo que possamos dominar ou controlar nas nossas sinapses e áreas
corticais, do que o modo como nos atamos ao mundo, como o vivemos e
como o significamos. A percepção, antes de qualquer outra posição que
queiramos assumir, deve ser vivida, capturada ali em sua gênese num corpo
em circunstância, que impõe o desafio extraordinário da presença e da
formalização da experiência vivida em suas diferentes manifestações. Esta
fala vivencial que entendemos retomar traz a marca da fenomenologia
merleau-pontyana que buscou, com um compromisso talvez até hoje sem
paralelo, abrir à experiência, por meio de uma admiração pelo mistério
inesgotável do vivido, o mundo perceptivo. Do discurso científico e sua
compulsão calculadora, seus gráficos, seus PET-scans e seus modelos
simulatórios, migramos, então, para a órbita da fenomenologia, sua busca
da descrição do vivido e sua conhecida crítica a certo modo de ser da ciên-
cia, e este trabalho reflete intensamente a mudança no modo de abrir e
abordar esse nosso campo de interesse.
Por meio dessa migração em direção à fala da filosofia, tivemos
oportunidade de não apenas de conquistar uma maior consciência (ou
menor inconsciência!) do exercício da linguagem, mas de amadurecer e
radicalizar nossas posições em todos os campos da articulação entre per-
cepção, tecnologia e arte que vem há tantos anos nos capturando. Se a obra
de Merleau-Ponty nos permitiu conduzir a reflexão sobre a experiência
perceptiva a um novo patamar, essa articulação entre percepção, arte e
tecnologia que buscamos já fora realizada de modo pioneiro no conhecido
artigo de Walter Benjamin sobre o impacto das tecnologias de reprodução
nos modos de produção, recepção e significação da obra de arte. Conquanto
Benjamin não tenha vivido para avançar as direções ali inauguradas, au-
tores mais recentes, que igualmente nos parecem oferecer posições com
as quais encontramos grande afinidade - e que nos ajudam a pensar aspec-
tos determinantes da experiência contemporânea -, ampliam e reelaboram
de maneiras diversas direções ali inauguradas. Assim, se não se pode di-
zer, de modo algum, que autores como Vilém Flusser - com sua radical
reflexão sobre a “caixa-preta” -, e Marshall McLuhan - com seus aforismas
surpreendentes - dialoguem diretamente com a obra benjaminiana, os
temas com que se ocupam guardam afinidade, no interesse pela tecnologia
e pela experiência do mundo a cada um deles contemporâneo. De certo modo,
talvez se possa dizer que, enquanto a reflexão de Benjamin é dialeticamente
ambígua na valoração da intervenção dos dispositivos tecnológicos, por
16 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
circunstâncias específicas dos anos 1930, o zelo com que McLuhan procura,
na década de 1960, não fazer de sua reflexão uma crítica negativa atesta o
incontornável da instalação tecnológica do cotidiano; ao passo que Flusser
já escreve, nos anos 1980, na iminência de uma paisagem tecnológica con-
sumada - cuja natureza e conseqüências procura investigar.
Se, ao curso destes últimos anos, as obras destes autores nos cati-
varam, e encontramos neles aberturas para pensar a contemporaneidade,
a reflexão sobre a tecnologia dificilmente pode ignorar as posições que
Heidegger procurou formular sobre o Ocidente e o problema da técnica,
desde sua controvertida atuação nos anos 1930 (a adesão e posterior rup-
tura, sem retratação óbvia, porém, ao partido nazista). Ainda ao início do
percurso deste trabalho, tivemos a oportunidade de apresentar, no ano
2000, em curso do Prof. Sérgio Bairon, um seminário sobre o conceito de
techné que nos permitiu descobrir, através de artigo cedido por Zeljko
Loparic, essa radical visão heideggeriana da natureza da técnica. Naquele
momento, o que nos surpreendeu foi encontrar ali uma reflexão que for-
malizava intuições que vínhamos examinando desde muitos anos, sobre a
eficácia e o fascínio verdadeiramente perturbadores que exercem as ma-
nifestações da técnica na recepção das obras de arte: verifica-se um certo
êxtase incontrolável, orgasmático, do público em geral, perante a superfi-
cialidade do virtuosismo circense e dos espetáculos tecnológicos, em de-
trimento das experiências muito mais significativas, que pesam o signifi-
cado dos gestos de linguagem, que buscam a potência da cada elemento, que
agregam, na presença decisiva da obra, aberturas poéticas, menos ou mais
sutis, mas que sobretudo articulam vivências muito mais ricas, que, alia-
da a uma disposição crítica, fazem verdadeiramente figurar os impensa-
dos do cotidiano. Vem daí, de perceber a eficiência da técnica em instalar,
nas artes, um discurso altamente eficaz e paradoxalmente vazio, o nosso
espanto com a reflexão da técnica em Heidegger. Posteriormente, pude-
mos aprofundar o entendimento da fala heideggeriana, e encontrar os
modos de trazê-lo à conversa que aqui se procura desenvolver. Não é, na
verdade, um desafio tão complexo. Notamos, com surpresa, a convergên-
cia de certas posições do filósofo da Floresta Negra, com a interpretação
da história pensada a partir das tecnologias de comunicação proposta por
McLuhan - discutiremos um pouco essas posições no correr de nosso tex-
to; e, sobretudo, pode-se notar que a obra de Flusser é mesmo um singu-
lar encontro entre a fenomenologia heideggeriana e a ênfase na interven-
ção dos dispositivos tecnológicos na mediação, que caracteriza a obra pouco
sistemática de McLuhan. Quanto aos laços que aproximam Heidegger de
Introdução 17
Merleau-Ponty, trata-se uma familiaridade mais simples de elucidar, pela
importância da fenomenologia de Husserl na maturação desses dois grande
filósofos, e mesmo pelas referências ao pensamento heideggeriano que se
encontram, aqui e ali, nos textos do fenomenólogo francês. Este leque de
grandes pensadores do século XX, Merleau-Ponty, Benjamin, Heidegger,
McLuhan e Flusser, constitui o núcleo da conversação desenvolvida neste
trabalho, e, esperamos demonstrar amplamente a possibilidade dessa
integração. Para sustentar os argumentos que, regra geral, retiramos des-
se núcleo, fazemos uso de razoável bibliografia de apoio.
Em paralelo a essa migração em direção a novas referências teóri-
cas, os anos de desenvolvimento deste trabalho se beneficiaram enorme-
mente da prática em sala de aula. A atividade docente nos cursos de
Tecnologia e Mídias Digitais, Comunicação das Artes do Corpo e Comuni-
cação em Multimeios, na PUC-SP, permitiram aprofundar vários aspec-
tos de nossa reflexão. No primeiro, pudemos por à prova nossa reflexão
num ambiente focado nas mídias digitais, através do desenvolvimento de
literalmente mais de uma centena de projetos hipermidiáticos realizados
por alunos; projetos que coordenamos, discutimos e acompanhamos - e
que nos ofereceram amostragem privilegiada do modo como uma geração
cuja experiência de mundo é, muito mais do que a nossa, configurada já no
âmbito dos aparelhos digitais, faz seu mundo: universo, referências, va-
lores, sensibilidade; ali, também, o diálogo com os colegas e a intensa tro-
ca de informações teóricas e técnicas permitiu uma constante verificação
das idéias e dos insights aqui desenvolvidos. No curso de Artes do Corpo,
tivemos a oportunidade certamente única de desenvolver uma disciplina
inteiramente voltada ao diálogo entre o universo literário e teórico que
fomos recolhendo ao longo desses anos - as aberturas que oferecem um
vasto e interdisciplinar conjunto de textos, sons e obras -, e a vivência, no
corpo, de um universo de sensação que a cultura e a educação deixam pas-
sar demasiadamente impensado; e, se a abertura ao mundo inaugurada
pelos sentidos já não fosse algo de enorme importância no que diz respei-
to à riqueza da experiência vivida de cada um, certamente para artistas a
possibilidade de acolher em seu corpo vivências sensoriais variadas, e ter
a oportunidade de refletir, individualmente e em grupo, sobre o signifi-
cado existencial daquilo que se experimenta permitiu compreender na
prática tanto a riqueza da experiência individual e os desafios da expres-
são de um mundo interno que é individual, subjetivo e singular - uma re-
lação consigo, sua história e seu corpo -, mas também as normatizações que
a cultura e o sistema de poder estabelecem no campo sensorial. Assim, a
18 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
busca por encontrar os melhores caminhos para ordenar esta pesquisa se
beneficiou, nos três últimos anos, de uma extraordinária aventura no
campo dos sentidos. Vale dizer que, se o nosso interesse fosse por uma
metodologia estritamente científica, teríamos, provavelmente, acumula-
do, com quase duas centenas de alunos, um incrível material de pesquisa,
com depoimentos individuais dos mais variados, colhendo histórias pes-
soais e descrições de vivências que dão a dimensão inesgotável do univer-
so dos sentidos; parece-nos, porém, que este material alimenta em gran-
de medida as direções que este trabalho tomou, sem que seja preciso com-
prometer a vivência construída em sala de aula com a transformação do
diálogo em dados objetivos de pesquisa - aquilo que se vive, cada qual
carrega consigo, em seu corpo. Por fim, no curso de Comunicação e
Multimeios, tivemos oportunidade de ler e reler os textos de Vilém Flusser
que mais nos inspiram, e colocá-los num debate articulado com estudan-
tes que, malgrado não tenham sempre a formação demandada por uma
leitura mais efetiva da reflexão flusseriana, experimentam hoje, de certo
mudo, o mundo técnico descrito pelo filósofo de Praga, que aterrissou no
Brasil e deixou polêmica e fértil contribuição em língua portuguesa.
A ordenação final que este trabalho assume, foi, portanto, resul-
tado de intensa experiência interdisciplinar. Essa interdisciplinaridade
representa, em termos metodológicos, uma espécie de risco, visto que
demanda domínio de um material vasto, e a articulação de um diálogo co-
erente entre diferentes campos de saber. Nossa formação em cinema e
música; nossa vivência na fruição e na criação artística; os variados desa-
fios profissionais que enfrentamos em diversas áreas da comunicação; os
encontros e desencontros na vida como no espaço mais regrado de sala de
aula, conferem, porém, acreditamos, um sentido claro a uma reflexão que
não perde nunca de vista o vivido: busca-se na tradição a fala, as abertu-
ras, as estratégias, para pensar aquilo que se vive. É do mistério de uma
existência que se reinaugura a cada instante, e daquilo que nela abrigamos
como pensado ou impensado, que emerge toda a significação que podemos
encontrar nos textos, nas obras, no mundo percebido. Nos capítulos que
se seguem, o leitor será levado a percorrer universos muito distintos: a
percepção, a técnica, a arte, o mundo contemporâneo digital. Se fomos bem
sucedidos em percorrer estes territórios e articular nossas posições sem
cometer barbaridades com seus fundamentos, nosso principal mérito será
o de fundar uma posição em alguma medida original para pensar a contem-
poraneidade: uma posição que somente essa história e o respeito às afini-
dades e afetividades vivenciais e conceituais, a escuta às próprias perple-
Introdução 19
xidades e a tentativa de formalizar nos termos da conversa do presente
aquilo que se recolheu pelo caminho tornam possível. É do esforço, por-
tanto, em construir esse diálogo entre a vida e a produção de conhecimento
formal, que emerge aquilo que pode, eventualmente, ser uma contribui-
ção singular ao pensamento da cultura contemporânea. Com todos os
inacabados que o leitor venha, certamente, a encontrar, serão perspecti-
vas que emergem da sua trajetória, da sua vivência, e é nessa diferença e
na singularidade de cada um que se funda o diálogo que tece o real. Este
trabalho, portanto, não foge da sua incompletude, nem do desafio de pro-
curar fundar esse lugar próprio, a partir de onde se pode pensar o presen-
te a partir da articulação entre a percepção, a arte e a tecnologia.
Os dois primeiros capítulos são dedicados à percepção. Em Os sen-
tidos e o sentido da experiência tentamos extrair da fenomenologia de
Merleau-Ponty alguns argumentos que serão decisivos em todo o desen-
volvimento deste trabalho. Trata-se, retomando principalmente a Fenome-
nologia da percepção de retomar o primado da percepção na gênese do sen-
tido e dos modos de formalização da experiência vivida. Para Merleau-
Ponty, a percepção inaugura nossas relações com o mundo, funda em nós
a própria idéia de verdade, me dá mesmo a gênese da racionalidade. Pro-
curamos reiterar a relevância do discurso merleau-pontyano no contexto
contemporâneo, e, sobretudo repor em questão o inacabamento e o mis-
tério do vivido, fazendo notar esse modo próprio à percepção de ocultar-
se para nos dar um mundo, em que não há ainda certo ou errado, que abri-
ga o impreciso e o indeterminado, mas que é pleno de significação: um
mundo perceptivo, pré-judicativo, que a cultura, esse empreendimento
coletivo, normatiza e explicita. Diremos que os sentidos, então, fundam o
sentido da experiência, nos lançam ao mundo e o vestem de significação.
A obra de Merleau-Ponty, entretanto, foi criticada de diversas formas, e nas
páginas finais do capítulo procuraremos tratar de algumas destas críticas
e mostrar aquela que consideramos sua maior limitação: a crença de que
um certo modo de ser da percepção é universal, e seus laços com uma for-
ma de perceber o mundo que é característica da cultura ocidental.
O segundo capítulo, Do ponto de vista ao ponto de experiência,
aprofunda então a discussão do campo perceptivo na cultura. Faremos um
exame de um variado arsenal de textos, que envolvem desde as experiên-
cias de Benjamin e Huxley com alucinágenos e os mundos de pacientes com
lesões cerebrais de Oliver Sacks, às descrições, oferecidas por uma antro-
pologia contemporânea dos sentidos, de diferentes modelos sensoriais em
diferentes culturas, que se explicitam em cosmologias muito distintas de
20 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
uma certa primazia da visão no Ocidente. Pretendemos mostrar que os
sentidos significam, sim, o mundo, mas que diferentes culturas operam
modos radicalmente diferentes de perceber e dar sentido coletivamente
ao vivido. Tentaremos trazer, tanto quanto nos é possível, mais próximos
do leitor o modo como os diferentes sentidos significam o mundo, e ten-
taremos também, tanto quanto possível, oferecer a nossa própria experi-
ência em conjunto com aquelas oferecidas pela literatura pesquisada. Pro-
curaremos opor à idéia tipicamente ocidental e moderna de “ponto de vis-
ta”, um conceito mais abrangente de “ponto de experiência”, que pode
descrever melhor o modo como diferentes culturas organizam o campo
perceptivo e explicitam uma gestalt experiencial, um modo de dar sentido
ao mundo. Ao final, colocaremos o nosso tema principal: a interferência
das tecnologias de mediação no equilíbrio do campo perceptivo, e sua in-
tervenção nos modos de perceber, significar a experiência e formalizar
conhecimento. Trata-se da parte da tese central de McLuhan, que já se
encontrava, porém, esboçada em Benjamin, e é reiterada por Flusser. Este
capítulo, que articula uma longa coletânea de fragmentos de textos - um
pouco ao modo como trabalhamos em sala de aula, utilizando este ou aquele
parágrafo para inaugurar um tema, ou concluir uma fala que o situa -, nos
parece, agora à distância, ter um pouco um pouco da escrita fragmentária
de McLuhan, embora sejamos menos originais e mais metódicos que o
professor canadense.
Introduzido o tema da técnica, buscaremos, no terceiro capítulo,
O mundo sem ruído : a utopia digital, estabelecer alguns predicados referen-
tes à técnica e à tecnologia. Aqui, os autores que serão centrais em nossa
reflexão serão Heidegger, com sua discussão sobre a técnica - lida numa
chave proposta por textos de Loparic e Antônio Abranches -, e as idéias de
“objetificação”, “instalação”, “armação”, postas em par com a interpreta-
ção da cultura ocidental como explicitação de “programa”, proposta por
Flusser. À medida que dispomos o problema da técnica como um modo de
ser, como um programa do Ocidente, e verificamos os laços entre o pen-
samento técnico e um certo modo do olhar - discutido no capítulo anteri-
or -, poderemos pensar a técnica como a maneira como percebemos o
mundo, e as tecnologias como explicitações de um regime perceptivo. Ten-
taremos acessar, assim, o interior da caixa-preta e, por meio de uma rápi-
da reflexão sobre as máquinas de imagem, verificar as intenções que in-
formam o universo tecnológico e que nos permitem sugerir um projeto de
mundo, uma utopia abrigada no interior dos dispositivos digitais, a de um
trânsito informacional imaculado. Algumas idéias de McLuhan e Benjamin
Introdução 21
serão também retomadas para definirmos o modo como se dá aquela in-
tervenção na cultura e na percepção já sugerida anteriormente, e seus la-
ços com o modo como definiremos técnica e tecnologia.
Finalmente, em Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos
procuraremos enfrentar o paradoxo da arte - esse território da cultura,
“canal ideológico” que, não obstante suas fronteiras móveis, possui cer-
tas especificidades, e do qual se afirma, quando em retrospecto histórico,
dar a ver uma época; mas ao qual, quando na efetividade do presente,
atribui-se também um poder específico de estar adiante de seu tempo.
Procuraremos examinar, alimentando-nos de autores como Benjamin,
Clement Greenberg, Ronaldo Brito e Martin Grossmann, o modo como se
pode abrir mão da noção hoje pouco operativa de vanguarda para enten-
der as condições que podem sustentar a arte como campo de conhecimento
capacitado a exercer pensamento poderosamente crítico, formalizado
como presença e fundador de experiência. Tentaremos propor alguns cri-
térios que - conquanto certamente transitórios, visto que a noção de arte
é fluida, histórica e mutante - permitem pensar, num mesmo registro de
uma percepção contemporânea, trabalhos menos ou mais apoiados por
recursos tecnológicos digitais, e analisaremos, por uma espécie de estra-
tégia comparativa, alguns artistas cujos trabalhos nos pareceram, ao lon-
go dos últimos anos, de especial interesse no contexto contemporâneo.
Tivemos o cuidado, aqui, de falarmos tão somente de obras que tivemos a
oportunidade de experienciar, no Brasil e no exterior , e cuja presença
deixou em nós marcas menos ou mais ricas, lembranças menos ou mais
indeléveis.
É com o arsenal reflexivo acumulado ao longo destes quatro primei-
ros capítulos que pretendemos, por fim, lançarmo-nos à cultura digital
contemporânea, e procurar definir um conceito de percepção digital, que
está na gênese da experiência contemporânea. Apresentamos esse conceito
pela primeira vez em 2003, no Subtle Technologies Festival, em Toronto,
e o quinto e último capítulo, O primado da percepção digital amplia radi-
calmente o artigo Sinestesia e percepção digital, que lemos, na universidade de
onde McLuhan lançou-se ao cenário dos anos 1960, para uma platéia de ci-
entistas e artistas de diversos países, durante 40 emocionantes minutos - foi
em Toronto, aliás, que conhecemos, por exemplo, Steve Heimbecker, cujo
projeto WCAM (Wind Cascade Array Machine) é discutido no capítulo an-
terior. Por um lado, tal ampliação busca uma descrição radical da me-
dida em que os aparelhos digitais hoje regulam todos os níveis da media-
ção contemporânea, do cotidiano aos jogos de poder econômico-militares.
22 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Por outro, busca avançar decisivamente nessa curiosa vocação sinestésica
abrigada na instalação digital, uma vocação que já havíamos, em 1999,
apontado, mas que podemos agora repor em bases bastante mais consis-
tentes, e colher conseqüências mais radicais. E, ainda, teremos prepara-
do uma situação reflexiva que permite distinguir com certa nitidez o modo
como o caráter técnico de tal ambiente saturado de sensação instala no
campo perceptivo os valores agenciados pelas utopias ambíguas guardadas
nas linhas de programa dos dispositivos digitais - uma percepção muito
alinhada a um sentido de mundo que, hoje, Gilles Lipovetsky tem chama-
do “hipermoderno”.
Nas páginas finais, poderemos fazer um rápido balanço daquilo que
este trabalho nos parece ter formalizado, suas contribuições à intensa con-
versação corrente e as direções em que nos lança. Para concluir esta intro-
dução, algumas prudentes notas sobre o que este trabalho não é:
a) Não é uma exposição enciclopédica, espécie de forma banco de
dados (como bem notou Manovich) sobre teorias da percepção, teorias da
tecnologia, teorias da arte moderna e contemporânea. Tais trabalhos têm
grande importância e utilidade, mas aqui trata-se, antes, de uma tentativa
de costurar argumentos para tecer idéias (para dialogar a partir de uma
certa posição). É, nesse sentido, um trabalho largamente conceitual;
b) Não é uma catalogação e subsequente categorização (igual-
mente: estratégia banco de dados) de trabalhos e procedimentos de lin-
guagem de arte eletrônica, tecnológica, arte digital, soft-cinema, web-art,
vídeo-arte, midia-arte, performance, instalações, cavernas e outros quetais
que - malgrado o prejuízo que se tem em não observar mais de perto
especificidades de obras especialmente interessantes, algumas even-
tualmente vistas aqui de relance - pertencem, como esperamos de-
monstrar, a um mesmo campo de forças da cultura digital contempo-
rânea, e têm sua leitura obscurecida por mitos modernistas que tenta-
remos desfazer, e por certo alheamento com relação a elementos
constitutivos da cultura digital - o fundo da percepção digital - que
procuraremos nomear e descrever;
c) Não é, já dissemos, uma tentativa de empregar argumentos da
neuropsicologia ou do cognitivismo para explicar a recepção, orientar a
fatura ou determinar a interpretação de obras de arte, ou da cultura de um
modo geral. Tal estratégia já foi por mim mesmo empregada (no trabalho
de 2002, já citado) e deste primeiro esforço adveio também uma consci-
ência precoce de seus limites e a migração para a órbita do pensamento
fenomenológico e da filosofia que este trabalho testemunha, espera-se com
Introdução 23
algum êxito. As marcas do trajeto anterior, porém, não foram delibe-
radamente escondidas ou apagadas, e são retomadas e discutidas aqui e ali
(sobretudo no primeiro e no último capítulo);
d) Não é a tradução para o cenário brasileiro de um, dois ou três
autores eventualmente desconhecidos em língua portuguesa, cuja versão
e contextualização (também útil, de toda forma) eventualmente pudessem
nos poupar do exercício árduo mas aventureiro do pensamento. Tal não é
a vocação do autor, que tem, como já se viu, alguma consciência dos riscos
implicados em sua empreitada e no entanto procura, no melhor de seu
compromisso, oferecer um trabalho que constitua a sua contribuição le-
gítima (e, na melhor das hipóteses, em alguma medida original e eventu-
almente polêmica por certa radicalidade, já que não há nada mais saudá-
vel ao conhecimento do que a discussão) ao nosso meio acadêmico;
e) Não é, por fim, uma tentativa de estabelecer diálogo com a psi-
canálise, que está fora de nosso alcance. O leitor que advier a este trabalho
com disposição aberta às suas (desta tese) proposições, terá mesmo o di-
reito de censurar-lhe pelo descaso para com a tradição psicanalítica, que
tem enorme contribuição à teoria da arte, do cinema e da cultura. Tal cen-
sura nos parece mesmo mais razoável que as duas críticas que já antecipa-
mos de certo modo acima, a da multidisciplinaridade e a do determinismo,
visto que a psicanálise ocupa um lugar extremamente problemático na
cultura tecnológica contemporânea, que por muitas vezes mesmo a nega -
e tal não é a disposição deste trabalho, daí a justificativa imprescindível
destas linhas. O leitor que trouxer consigo o rico patrimônio da reflexão
psicanalítica poderá fazer sua recepção na direção que lhe aprouver, even-
tualmente tomando aqui alimento para expandir estas reflexões às dimen-
sões das forças psíquicas interiores que se põem em operação num mun-
do constituído pelo primado da percepção digital. Sobretudo porque, mes-
mo se dando sobre um fundo comum da cultura, e marcada pela entropia
da mediação tecnológica - como se pretende demonstrar - a percepção não
é desligada dos processos mentais superiores e nem “imotivada”, de modo
que há enorme universo a ser explorado pela psicanálise no caminho que
queremos abrir.
Àquele que, após esta rápida exposição inicial, tiver interesse pela
nossa tese, desejamos uma leitura prazerosa e crítica - prazer sem o qual
não se corteja a verdade, crítica sem a qual, afinal, a conversação não per-
manece como abertura para uma qualquer verdade que por ventura de fato
(ainda) haja, na floresta de símbolos digitais multiplicados da cultura con-
temporânea.
Capítulo I
Os sentidos e osentido daexperiência
As quatro Névoas do Caos- o Norte, o Leste, o Oeste e o Sul -foram visitá-loele as tratou muito bemquando elas saíram, se perguntaramcomo poderiam retribuir-lhe a hospitalidadeVendo que o Caos não tinha buracos no corpoComo elas tinham(olhos, nariz, boca, ouvidos etc.)resolveram dar-lhe um buraco por diaao fim de sete diaso Caos morreuKuang-Tsé via John Cage via Augusto de Campos, 2003
Tomemos o famoso cubo de Necker. Não importa o quanto já se te-
nha escrito sobre essa simples representação gráfica e plana de um cubo
transparente, seu enigma, sua resistência à manipulação pelo nosso olhar
- ainda que o olhar esteja já esclarecido quanto às suas artimanhas -, essa
sua instabilidade caprichosa, esse seu humor, enfim, continuam os mes-
26 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
mos: diante de nossos olhos, as duas soluções do cubo - aquela que, diga-
mos, assenta sobre essa mesma página, e a outra, que se ergue da página
para o alto - continuam sua dança perpétua, seu ula-ula silencioso e
tranqüilo, zombeteiro quase. Mesmo quando uma intenção deliberada in-
veste o olhar que se projeta sobre ele, segundo uma vontade de reorgani-
zar o campo visual, o salto de lá para cá nos toma uma duração, uma fração
qualquer de tempo, num modo de ser como imagem e de se dar não aos
nossos olhos, mas à nossa consciência, que repõe, com simplicidade, todo
o mistério da experiência perceptiva do mundo. Não se trata da bengala que
é torcida ou oscila pelo efeito da água na refração da luz: aí é apenas uma
ilusão, vamos dizer assim, estável, bem comportada, até; meu olhar não
pode revertê-la, não pode desfazê-la (Descartes reservou precisamente à
razão este papel!), mas tampouco ela mesma desliza de uma configuração
à outra diante de mim da forma um pouco desrespeitosa como o faz o cubo.
Esse humor, essa ambigüidade, uma certa graça dessa resistência à racio-
nalidade determinada a ter as coisas disponíveis aos seus artifícios - e,
portanto, de certo modo quietas, ou, mais formalmente, constantes -,
parecem estar ainda mais explícitos quando Wittgenstein escolhe, para tra-
tar de problemas do pensamento e da linguagem, uma figura como a do
pato-lebre1:
1 “As aulas que Wittgenstein deu no último trimestre [de 1947] são particular-
mente interessantes, pois introduzem as questões das quais ele iria se ocupar
ao longo dos dois anos seguintes e que encontrariam sua expressão definitivano manuscrito que hoje constitui a parte II das Investigações filosóficas. Foi
nessas aulas que ele introduziu pela primeira vez a famosa figura ambígua do
pato-lebre.” (Monk, 1995:448)
Os sentidos e o sentido da experiência 27
Do mesmo modo como o cubo, com todo o seu status de uma forma
ideal, platônica mesmo, se reconfigura diante de mim alheio à minha von-
tade, o pato-lebre desmonta, ainda mais ironicamente - já que seu aspec-
to informal nos remete muito mais ao cotidiano de, digamos, jogos infan-
tis, do que a um certo aspecto laboratorial do cubo - o projeto de uma du-
plicação do mundo pela representação que nos livre do incômodo do corpo
e de sua finitude, da contingência de um vivido no qual cada instante en-
cerra uma infinidade de manifestações que recusam sua formalização in-
tegral em nome da riqueza da experiência, que nos dispense da dúvida do
mundo e de ter que retomá-lo sempre a cada instante. A ambigüidade do
pato-lebre parece querer fazer pouco do projeto de uma totalização mate-
mática da natureza: no vivido, o geometral está nu.
Pode-se imaginar que foi essa ordem de problemas que a experi-
ência renova sem cessar, essa multiplicidade de presenças tecendo a pre-
sença serena de um mundo que supera tudo de quanto eu possa dar razão,
e em cuja abundância me perco, que fez com que Descartes - e mesmo antes
dele, os gregos - e a filosofia se voltassem à busca de uma ordem que pu-
desse estar não aí, nessa superfície irresponsável e jocosa em que as ilu-
sões fazem pouco do meu olhar, mas que governasse, por detrás das apa-
rências, esse modo de ser de todas as coisas. Assim, em certo momento,
quando Merleau-Ponty quer fazer ver que, no percurso que foi da dúvida
ao método para construir uma certeza - de tal modo que esse movimento de
todas as coisas, esse Ser que brinca em torno de mim, e no qual eu me si-
tuo, não mais pudesse tomar-me como um de seus brinquedos, surpreen-
dendo-me com seus caprichos, ou, em outras palavras: impondo-me o
imponderável de um destino2 -, enfim, no esforço feito para desenvolver
uma lide com esse duplo que, entre outras re-
compensas mais imediatas, me gratificaria
com a posição de comandante das coisas, algo
se perdeu, uma objeção que lhe será feita será
a de que a sua vindicação de retorno é precisa-
mente a de um retorno àquilo cuja superação
era nada menos que a meta de toda a jornada
(Merleau-Ponty, 1990:68). Trocando em mi-
údos: o que visava Merleau-Ponty, ao querer
retornar a um mundo percebido de aparênci-
as ilusórias cuja superação constituiu justa-
mente o esforço de toda a história da filosofia,
e da ciência que dela nasceu? A resposta é sim-
2 “Que é a ciência, isto é, a filosofia grega? O primeiro filósofo grego foi Prome-
teu. Ésquilo põe em sua boca as seguintes palavras: ‘Mas o saber é muito menosforte que a necessidade’. [...] A supremacia do destino e a impotência diante
do destino, são esses os dois caracteres da téchne, isto é, do saber do início da
filosofia.” (Loparic, 1996:117-8). Voltaremos no próximo capítulo à questãoda téchne.
28 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ples: trata-se de conhecer sua própria origem, de modo a terem, filosofia
e ciência - aventuras da razão - a noção mais exata de sua própria identi-
dade, do ponto a partir de onde se fizeram, de sua gênese mesmo. E não
que a consciência desse brotamento da razão na experiência do mundo
fosse algo de que, em algum tempo de sua história, filosofia e ciência ti-
vessem consigo a lembrança, como fosse somente uma chave perdida no
caminho da conquista da representação: trata-se de uma origem que elas
nunca souberam ver. O corolário dessa constatação é fazer ver que a razão
clássica, que de tudo quer ter ciência, abriga talvez um impensado e vive
em certa inconsciência de si mesma. Retomar essa origem, como condi-
ção necessária à continuidade de uma razão que tome posse de si, e não dê
por certo esse impensado a partir do qual opera, é o projeto da Feno-
menologia da percepção (publicado na França em 1945), um volume que
tomou a Merleau-Ponty mais de uma década de esforço filosófico, e cujas
marcas se desdobram, de um modo ou de outro, em sua obra posterior.3
Já mais de meio século nos separa da tese merleau-pontyana so-
bre a percepção, e muito do impulso que a sustenta foi colhido em experi-
mentos psicológicos que, diante da vasta produção científica da segunda
metade do século XX, e em especial da multiplicação de trabalhos nas áre-
as da cognição e da neurologia nas décadas de 1980 e 1990, seria justo tal-
vez questionar. E, ainda, implica em pergun-
tar qual a razão de se retomar uma reflexão que
parece ter, assim, a chance de ter sido tão su-
perada quanto toda uma teoria anterior da
percepção que é ali desconstruída. É a crítica
um tanto vazia que fazem, por exemplo, um
Meyer4, quando afirma que qualquer filosofia
“só pode se fazer a partir de uma nova desco-
berta da ciência”; um Ramachandran - que
seguidamente desdenha “os filósofos”, como
se toda a variedade dos sistemas e dos temas da
filosofia fosse algo que se pudesse generalizar
deste modo, reduzindo-a a certa filosofia da
3 Ver, por exemplo, Lefort (2004:9): “O olho e o espírito é o último escrito que
Merleau-Ponty pôde concluir em vida. [...][Nele] interroga-a [à paisagem noTholonet] como que pela primeira vez, [...] como se todas as suas obras ante-
riores - e, antes de mais nada, o grande empreendimento da Fenomenologiada percepção (1945) - não pesassem em seu pensamento, ou pesassem de-mais, de modo que foi preciso esquecê-las para reconquistar a força do espanto
[...].”
4 Meyer (2002:9) afirma que a filosofia sempre fora feita pelos cientistas, e que,“de Pascal e Leonardo da Vinci a descartes e Leibniz, a filosofia continua sen-
do uma prática de cientistas. Mas eis que no século XX esse interesse dos ci-
entistas se individualiza, torna-se autônomo pela influência de homens maispreocupados em se refugiar na confortável história do pensamento humanodo que em compreender os novos paradigmas da ciência.” A essa afirmação,
com a qual não podemos estar em acordo, visto que manifesta um completodesconhecimento da filosofia do século XX, pode-se contrapor que a ciência,
por seu turno, quer se refugiar da história. Mais adiante, Meyer falará da “im-
prudências de Bergson” (Meyer, 2002:23-8), afirmando que “nenhuma tesede Bergson resistiu à neurofisiologia e à psicofisiologia.” Curiosamente, em
artigo mais recente, Oliver Sacks (Sacks:2004), discutindo pesquisas contem-
porâneas sobre a percepção do movimento, revalida algumas das teses deBergson, do que se vê bem onde está a imprudência!
Os sentidos e o sentido da experiência 29
consciência -5 ou ainda um Francis Crick, que
ironiza de forma talvez um tanto leviana toda
a discussão filosófica sobre a consciência.6
Quando se toma, porém, a argumentação de
Merleau-Ponty, o que se vai descobrir é que,
não apenas a reflexão da ciência contemporâ-
nea ainda assenta largamente sobre os mes-
mos preconceitos denunciados e discutidos na
Fenomenologia da percepção - aliás, sabe-se de
há muito que a ciência se faz sobre certa filoso-
fia, ainda que procure em geral ignorá-lo -,
bem como que trabalhos recentes sobre a per-
cepção incorrem no mesmo uso equivocado
(como Merleau-Ponty mostra bem), por
exemplo, da noção empirista de sensação (bas-
ta ver Meyer, 20027; ou Santaella, 19928). Por
outro lado, se certa ciência parece querer fa-
zer pouco da filosofia, trabalhos recentes nas
áreas de percepção (por exemplo: Engel e
König, 19989), inteligência artificial (Wheeler,
5 Ramachandran e Blakslee (2004:314-7) tecem críticas gerais à filosofia da cons-
ciência (que denomina “o filósofo”) - em especial à famosa “falácia do
homúnculo” - sem nomear, porém, a qual filosofia se referem. À de Chalmers?À de Searle? À de Husserl? Mais adiante, demonstra certa simpatia por Dennet
(Ramachandran e Blakslee, 2004:317). Esta discussão extrapola completamente
os limites deste trabalho, embora nossas simpatias quanto ao debate correnteestejam, acreditamos, claramente afirmadas no correr do texto.
6 Varela (1996:4) menciona a “characteristic bluntness” (aspereza; rudeza) de
Crick, ao passo que Noë e Thompson citam: “No longer need one to spend timeattempting... to endure the tedium of philosophers perpetually disagreeing with
each other. Consciousness is now largely a scientific problem” (apud. Noë e
Thompson, 2003:1). (“Não precisamos mais perder tempo tentando… supor-tar o tédio do perpétuo desacordo entre filósofos. A consciência, agora é, em
grande parte, um problema científico”.). Em especial quanto à “bluntness” le-
vantada por Varela, pode-se fazer uma singular comparação em termos do usoda linguagem por estes diferentes modos de abordar a consciência: enquanto
para Crick “You are nothing but a pack of neurons” (apud Varela, 1996:4),
(“Você nada mais é que um punhado de neurônios”) Merleau-Ponty já retomatodo o tempo a riqueza da experiência do mundo: “A melhor fórmula da redu-
ção [fenomenológica] é sem dúvida aquela que lhe dava Eugen Fink, assisten-
te de Husserl, quando falava de uma ‘admiração’ diante do mundo” (Merleau-Ponty, 1994:10). Acreditamos que o leitor entenda a que nos referimos (exceto
quando indicado na bibliografia, as traduções das citações são nossas).
7 Meyer (2002:45) adota a posição de Changeux, que, empenhado na busca dos“correlatos neurais da consciência”, menciona a busca pela “contrapartida
neuronal do que Diderot chama ‘apercepção das relações’”. Ora, em vista da
crítica de Merleau-Ponty às concepções clássicas da percepção, retomar Dideroté sintomático do cartesianismo implícito no modelo localizacionista que do-
mina as neurociências. Excelente crítica à questão dos NCC (neural correlates
of consciousness) se encontra em Noë e Thompson (2003).
8 Também Peirce recai no engano conceitual da “pura sensação”, cuja críticaefetuada por Merleau-Ponty é brevemente retomada no presente trabalho.
Como se dirá mais adiante, Varela e Shear (2002) e seu grupo retomam
Merleau-Ponty e a fenomenologia de Husserl para tentar tratar o “difícil pro-blema da consciência”.
9 Ao discutir os modelos coneccionistas do cérebro que emergem durante a dé-
cada de 1990, Engel e König (1998:185) afirmam que “Interestingly, theseconclusions imply a return to central insights of the Gestalt psychologists. [...]
And indeed, brain states seem to have a gestalt-like organization, since the
fundamental significance of the activity of individual neurons depends on thecontext set by other members of the neural assembly.” (“O interessante é que
essas conclusões implicam num retorno às intuições centrais dos psicólogos
da Gestalt [...] E, com efeito, os estados cerebrais parecem ter uma organiza-ção do tipo gestaltista, uma vez que a significação fundamental da atividade
de cada neurônio depende do contexto estabelecido por outros membros do
agrupamento neural”). Mais adiante, retomam Merleau-Ponty (Engel e König,1998:186-7) e Heidegger (Engel e König, 1998:186:n5; 187; 188:n13). A dis-
cussão da ciência, conquanto inevitável, não concerne diretamente à minha
discussão, conforme se verá. Se a tomo aqui, é para mostrar que, mesmo nestecampo tão árido, os pontos aqui defendidos encontram suporte.
30 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
199610) ou nos estudos da consciência [Varela
(1996); Varela e Shear (2002); Noë e Tompson
(2004)] retomam a filosofia de Husserl,
Merleau-Ponty e Heidegger, e ainda as hipóte-
ses gestaltistas, em busca de caminhos para tra-
tar os mistérios da experiência, da consciência
e da percepção que superem um modelo carte-
siano da mente, colocando a consciência num
corpo e numa circunstância - um corpo que ela
é (e não que ela habita) e uma circunstância que
não somente a define, como não pode ser res-
trita às artimanhas e às condições ideais de um
laboratório. De modo que vale retomar alguns
dos argumentos de Merleau-Ponty e tentar ver
o que nos abre esse seu retorno eloqüente, e tal-
vez insuperado, ao vivido da percepção. Após o
que, poderemos tentar mostrar que os limites
de seu trabalho não estão aí onde certa ciência
gostaria de vê-los - mas não pode encontrá-los,
visto que a ciência é um território cujo sentido,
procedimentos e alcance são bem elucidados
em Merleau-Ponty, e às suas questões pode-se
dizer que ele responde com suficiente clareza
(num modo talvez menos radical, mas solidário
a Heidegger11): sua filosofia é mesmo um ultra-
passamento que busca levar a própria ciência a
compreender a implicação de suas descobertas
-, mas naquilo de que ele não mesmo poderia
dar-se conta, dada a ambição de universalida-
de de uma essência da percepção aí desenhada,
e sua solidariedade, ainda que crítica, à tradição
filosófica moderna do Ocidente.
Trata-se, portanto, de retornar à expe-
riência. Diremos, de saída, que algo como o
“mundo” se faz presente para mim. Tomá-lo
assim, como presença para mim, não implica,
em princípio, e nem exclui, a possibilidade de
que este mundo seja algo em si, presente inde-
pendentemente da minha presença, que seja
10 Num interessante artigo em discute a questão da experiência estética, a partir
das telas de Mark Rothko, no terreno da robótica e A-life (artificial life), tam-
bém Wheeler (1996:226-34) recorre a Heidegger: “In fact, I suggest that if theHeideggerian picture is compelling, then there is good reason to think that the
dynamical systems perspective [...] combined with the concept of active
perception, provides a compatible framework for the scientific investigation ofthe mechanisms underlying world-embeddedness.” (Wheeler, 1996:229). (“De
fato, minha sugestão é que, se a descrição heideggeriana não pode ser recu-
sada, então há boas razões para se pensar que a perspectiva dos sistemas di-nâmicos [...] combinada com o conceito de percepção ativa fornece um qua-
dro adequado à investigação científica dos mecanismos subjacentes à imersão
no mundo”). Cabe certamente a questão de como Heidegger perceberia essaapropriação de Ser e tempo dentro do contexto de uma ciência, e, em especi-
al, de uma cibernética à qual criticou profunda e veementemente.
11 Em vários momentos de seus textos, Merleau-Ponty faz referências a Heidegger.“At about the same time [1936, quando conheceu as obras de Husserl], he
[Merleau-Ponty] became familiar with Heidegger´s version of phenomenology,
which would have an increasingly powerfull impact on his ruminations aboutthe visual, and much as well, in the decades to come.” (Jay, 1993:161). (“Por
volta da mesma época [1936, quando conheceu as obras de Husserl], ele
[Merleau Ponty] familiarizou-se com a versão heideggeriana da fenomenologia,que viria a ter um impacto cada vez mais poderoso nas suas ruminações so-
bre o visual, também nas décadas seguintes”). Embora Merleau-Ponty traba-
lhe com conceitos de Heidegger, este, entretanto, não esteve nunca diretamenteinteressado no problema da percepção, como lembra Loparic (1996:131).
Os sentidos e o sentido da experiência 31
um mundo objetivo, como o supõem certa filosofia e certa ciência. Um tal
mundo objetivo, porém, só posso supô-lo a partir do momento em que este
se apresenta, e tal presença se faz pelo chão que sinto sob os meus pés, pelo
vento ou pela água, por exemplo, em minha pele; pelas imagens que vejo,
pelos sons que ouço, pelo ar que respiro, pelos aromas que capturo, ou pela
matéria do mundo que transformo em mim mesmo quando me alimento
e que traz consigo sabores, texturas etc. É enfim, através do que a percep-
ção me oferece que se tece em mim a presença do mundo: um certo cená-
rio. Não se trata ainda sequer de considerar que os sons que ouço, por
exemplo, não existem por aí como o chão que piso - são apenas “ondas” que
percebo como sons: há uma comunhão, por assim dizer, mais intuitiva, en-
tre uma pedra que pego em minha mão e sua materialidade física, sua du-
reza, sua aspereza, sua permanência, do que entre os sons que ouço e sua
volatilidade. Trata-se, antes, de que cada elemento que me afeta, nesse ce-
nário que a todo instante reafirma sua presença, não apenas manifesta uma
alteridade - já que me descubro pelo que não sou -, mas me situa na cena.
Sou, nesse momento, diria Merleau-Ponty, “um sujeito perceptivo, liga-
do pelo corpo a um sistema de coisas” (Merleau-Ponty, 1990:57). Admi-
tindo que “nossa vida é inerente ao mundo percebido” (Merleau-Ponty,
1990:64), temos aí o que se pode, de saída, dizer da percepção: é o nosso
contrato com mundo:
“A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um
ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual
todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles.” [Merleau-
Ponty, 1994:6]
A percepção me dá um mundo, estou preso (ou talvez, para falar em
termos mais merleau-pontyanos: ligado) a ele. Se tomo uma caneta, ou um
lápis, em minha mão direita, e seguro essa caneta ou esse lápis entre meu
polegar e meu indicador, fazendo-a oscilar, não necessariamente muito
rápido, mas com movimentos regulares, para cima e para baixo, enquanto
fixo nela o meu olhar, a caneta ou o lápis parece dobrar-se, flexionar-se,
mudar a sua constituição material, a despeito da certeza que tenho, entre
meus dedos mesmo, daquela caneta ou daquele lápis. Sei que se trata de
uma ilusão − uma brincadeira simples, com a qual, desde de garoto, me
entretenho volta e meia, explorando os limites do meu olhar − e ela não
abala em mim a certeza do mundo, do mesmo modo como os sonhos não
me confundem, pela manhã, o “tecido sólido” do real. De muitos modos,
lembra Merleau-Ponty, ilusões e imaginário se integram ao dia-a-dia:
32 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
“A cada momento, meu campo perceptivo é preenchido de reflexos,
de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de
maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo
imediatamente no mundo, sem confundi-lo nunca com as minhas
divagações.” [Merleau-Ponty, 1994:5-6]
No entanto, se posso dizer que são ilusões, é só porque posso dis-
tinguir “ilusão” e “verdade”. Não é, no entanto − para nos mantermos a uma
distância regular do kantismo − algo que esteja em mim definido a priori:
o fato de que sei que o lápis ou a caneta não é tal como vejo não faz com que
a ilusão se desfaça: no instante ali em que se apresenta, é experimentada
por mim como tão real quanto possa ser − trata-se mesmo da graça que
encanta, sobretudo às crianças, nos espetáculos de magia. Será, no entan-
to, desvelada como artifício no instante mesmo em que a substituo por uma
nova verdade: quando cesso o movimento da caneta em minha mão, quando
acordo, ou quando descubro a haste nas mãos do ilusionista, sustentando
por detrás de um lenço a bola prateada que flutua. Certamente, seria pos-
sível, assim, conceber um conjunto de ilusões sucessivas, sem que se che-
gasse jamais a um “real”, uma verdade precisa e acabada. Cada uma delas
seria, no entanto, vivida por mim como “verdadeira” a partir do instante
em que desfaz a ilusão anterior e reintegra, diante de mim, uma totalidade
nova de mundo. Há, pode-se dizer, um inatingível aqui: se me ponho a
contemplar longamente um quadro − ou ainda, mais radicalmente, as te-
las em branco de Rauschenberg, ou o Branco sobre branco de Malevitch, que
me revelam meu próprio olhar instável − ou mesmo um objeto qualquer
de meu cotidiano como o monitor em que escrevo, a página que leio, a luz
que se espalha e constrói o espaço, menos ou mais íntimo, em que nos dis-
pomos à aventura tipicamente moderna da leitura, ou mesmo a caneta com
que brinquei há pouco, cada um deles não cessa de se renovar diante de
mim, desfazendo meus juízos provisórios e instalando novas soluções, de
modo que posso perfeitamente dizer que a série nunca chega ao fim. Cla-
ro, os filósofos meditaram longamente sobre o modo de ser dessa ilusão
inesgotável, e a “dúvida do mundo”, já dissemos, procede dessa ordem de
indagações que num limite pode adquirir até um caráter patológico − como
disse Flusser (1999:17), levada ao extremo, a dúvida deixa de nos pôr em
movimento, e, ao contrário, paralisa. Mas, se posso falar em “ilusão”, é
apenas porque já disponho de uma noção “verdade”, que pode ser a qual-
quer instante restituída. Disponho de um valor vivido que me é dado aí
mesmo, no instante e na abertura em que o ato perceptivo me dá um mun-
Os sentidos e o sentido da experiência 33
do cuja existência, de imediato, antes da dúvida, reconheço: disponho da
“experiência da verdade”, e a percepção emerge assim como “aquilo que
funda para sempre a nossa idéia de verdade” (Merleau-Ponty, 1994:13).
Enfim, como diz Merleau-Ponty:
“Nós estamos na verdade, e a evidência é a ‘experiência da verdade’.
Buscar a essência da percepção é declarar que a percepção é não
presumida como verdadeira, mas definida por nós como acesso à
verdade.” [Merleau-Ponty, 1994:13-4]
Meditemos aqui: tenho um mundo, e uma noção de verdade - tal
noção, experiencial, vivida, emerge de uma confiança natural na presença
das coisas que a percepção dispõe a meu redor. Trata-se da “fé perceptiva”,
e Merleau-Ponty sugere que, se filosofia e ciência poderão buscar, muito
mais tarde, os procedimentos lógicos e empíricos que certificam uma de-
terminada idéia do que se pode afirmar verdadeiro com a chancela da ra-
zão - o carimbo dado no balcão da principal repartição do Ocidente -, é
apenas por essa vivência primordial, anterior à fala, à reflexão e ao con-
ceito - a vivência das “coisas elas mesmas”, conforme propusera Husserl,
que funda em mim a noção de verdade, e que me é dada na percepção. Esse
espetáculo, essa presença, recomeçam a cada instante e posso dizer que são
“mundo para mim”. Mas, se a percepção me entrega um mundo, não pode
porém nunca entregá-lo por completo: minha experiência se dá dentro dos
limites estritos daquela fração das coisas em meu horizonte, sendo quem
sou, num instante do tempo, num lugar do espaço: num aí. Na sucessão dos
instantes, meu movimento, meus gestos, confirmam ou não aquilo que os
sentidos dispuseram a meu alcance; revelam-se diferentes aspectos des-
se cenário que partilho, e posso dizer que complemento isso ou aquilo,
retomo ou mesmo reorganizo este todo percebido que é meu mundo. É
nesse campo, necessário à minha perspectiva, que descubro, junto às coi-
sas mais sólidas, como o chão ou a pedra, e as mais voláteis, como o vento
ou o som ou os aromas, ou ainda junto àquelas em que percebo uma vida -
como plantas ou insetos - ou outras que constituem paisagem mais recen-
te - como robôs e computadores -, a presença de um outro. De tal modo que
a ele também um certo espetáculo se dá, e não é idêntico àquele que se
apresenta aos meus sentidos, visto que é conforme à fração que se dá à sua
experiência. Concorda, porém, em muitos aspectos, de tal modo que acei-
tamos este acordo, em que a minha experiência e a do outro se comple-
mentam e se entendem a respeito de coisas, como o mundo. É somente esse
mundo, sempre inacabado, que emerge do acordo entre as múltiplas pers-
34 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
pectivas que experimentam, sob diferentes ângulos, esse fluxo inesgotá-
vel de um Ser ao qual interrogam, que nos interroga sem cessar, e cuja to-
talidade não pode ser apreendida por nenhuma subjetividade por si só, que
Merleau-Ponty nos autoriza a chamar “mundo real”. O encontro com o
“outro”, assim, mostra o caráter unilateral da minha verdade, e inaugura
o senso comum, o acordo intersubjetivo, histórica e culturalmente demar-
cado, a respeito daquilo que constitui o “real” para a experiência partilhada.
Não se trata, porém, de negar que haja uma unidade mais ampla
nesse “real” que se dá em fragmentos a cada um, segundo sua experiência:
o todo a que se dirigem as consciências, em que participam o ego e o alter,
é um mesmo mundo, que “já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma
presença inalienável” (Merleau-Ponty, 1994:1), e apenas não se esgota
nesse acordo − “A idéia da verdade reside absoluta e inequívoca na vida,
ainda que a verdade só possa ser dita à meia”, como o disseram Bairon e
Petry (2000:90). O empenho da filosofia e da ciência clássicas tinha a su-
perar, então, no senso comum, não somente as ilusões, mas a pluralidade
das perspectivas. Ultrapassar o entendimento cotidiano e repor o cosmos
segundo um “olhar de sobrevôo”, ensinar a ver não somente uma ordem
oculta por trás das aparências, mas estabelecer uma totalidade inequívoca
de mundo, onde já não há mais ego nem alter, definida pelas construções
ideais da representação: os juízos libertos da circunstância. Ora, como
mostra Merleau-Ponty, desse modo, meu esforço em fazer razão da minha
experiência já não se dirige ao mundo que inaugurou em mim a reflexão,
nem ao acordo com um outro e sua fração de mundo, mas a Deus ou o que
quer que se queira que constitua a totalidade transparente, sobre a qual não
paira dúvida e que se encontra realizada de antemão nalgum lugar ideal,
12 “Considerar que nós temos uma idéia verdadeira é crer na percepção sem crí-
tica [...] É porque se supõe efetuado em algum lugar aquilo que para nós exis-te só em intenção: um sistema de pensamento absolutamente verdadeiro, capaz
de coordenar todos os fenômenos, um geometral que dê razão de todas as pers-
pectivas, um objeto puro sobre o qual trabalham todas as subjetividades. Nãoé preciso nada menos que esse objeto absoluto e esse sujeito divino para afastar
a idéia do gênio maligno e para garantir-nos a posse da idéia verdadeira.”
(Merleau-Ponty, 1994:70-1).
transcendente ao horizonte do vivido.12 Ao
acordo transitório das consciências encarna-
das e sua facticidade, substitui-se o acordo du-
radouro dos espíritos na totalidade. O “mun-
do objetivo” emerge assim não como o resul-
tado, sempre inacabado, de um empenho, mas
como uma de suas teses implícitas; e o exercí-
cio metódico da reflexão é arrancado do aí e
situado numa transcendência ideal donde
acessa essa misteriosa “verdade” acabada, a
explicação de tudo e todas as coisas. Assim, não
há mais conflito entre a minha perspectiva e a
do outro: tudo é razão, contabilizada e calcula-
Os sentidos e o sentido da experiência 35
da − um teorema de Pitágoras, por exemplo, ou a fórmula einsteiniana de
matéria e energia. A partir do mundo percebido − ou a partir daquilo que
nele se apresentou como tratável segundo os procedimentos definidos: os
objetos da ciência − foram lançadas as hipóteses, encenados os experimen-
tos, feitas as demonstrações e medições, e, havendo o rigor necessário, não
pode haver senão concordância: ergue-se, assim, o especular geometral do
mundo, o real fixado e liberto do paradoxo, o telos do objetivismo.
O que Merleau-Ponty censura seguidamente nessa filosofia, e mais
geralmente na ciência que ela sustenta, não é essa busca metódica de uma
verdade, nem o exercício dessa razão. É o esquecimento de sua origem, da
experiência do mundo vivido da qual ela só pode ser “expressão segunda”
(Merleau-Ponty, 1994:3), e de onde nasce todo o seu sentido:
“As representações científicas segundo as quais eu sou um momento
do mundo são sempre ingênuas e hipócritas, porque elas
subentendem, sem mencioná-la, essa outra visão, aquela da
consciência, pela qual antes de tudo um mundo se dispõe em torno
de mim e começa a existir para mim. Retornar às coisas mesmas é
retornar a esse mundo anterior ao conhecimento do qual o
conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação
científica é abstrata, significativa e dependente, como a geografia
em relação à paisagem − primeiramente nós aprendemos o que é
uma floresta, um prado ou um riacho.” [Merleau-Ponty, 1994:4]
De tal modo que a representação é um acesso legítimo ao Ser, con-
quanto abrigada na amplitude da experiência que busca explicitar, e não fe-
chada sobre si mesma, na lide com os signos vazios de um duplo absoluto:
“Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se encontram, as
percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve
ser posto à parte, transformado em Espírito Absoluto ou em mundo
no sentido realista.” [Merleau-Ponty, 1994:8].
Ou ainda, num trecho bastante conhecido:
“O verdadeiro Cogito não define a existência do sujeito pelo
pensamento de existir que ele tem, não converte a certeza do
mundo em certeza do pensamento do mundo e, enfim, não
substitui o próprio mundo pela significação do mundo. Ele
reconhece, ao contrário, meu próprio pensamento como um fato
36 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
inalienável, e elimina qualquer espécie de idealismo, revelando-
me como ‘ser no mundo’.” [Merleau-Ponty, 1994:9]
Formalizado desse modo, efetuada esta substituição da experiên-
cia das coisas pela sua reconstrução, o conhecimento não pode acomodar
senão segundo a ordem própria a uma racionalidade que se dirige a uma
teleologia ou um mito da verdade objetiva − esta mesma um conceito histo-
ricamente fundado −, a facticidade do vivido e sua resistência à redução ao
constante, ao estável e ao calculável. E a percepção não pode ser senão um
termo menor de uma cadeia causal em que a razão é o ponto mais elevado
(e não seria engano perceber aqui já desenhada a superioridade das fun-
ções corticais que dominará a neurologia até pelo menos a década de
199013), e os sentidos não são mais do que os “fornecedores dos dados” do
mundo exterior.
Seguidamente, Merleau-Ponty repetirá, de diferentes modos, em
contextos variados a mesma advertência: de nada vale procurar elucidar o
processo da percepção a partir de seus resultados acabados, projetando
sobre a experiência perceptiva conceitos que são produto da reflexão so-
bre um mundo tecido no perceber; e não basta, para compreender essa
gênese do mundo, o modo como ele é conduzido do indeterminado ao de-
terminado, fazer como que uma equação cujos resultados finais conferem,
mas cujos termos não correspondem àquilo que de fato se vive. Empirismo
e racionalismo o fizeram, ambos, recorren-
do, por exemplo, à noção de “sensação”: diz-
se, então, que os sentidos me dão qualidades
puras − um vermelho, um verde, uma nota
dó, um aroma de uma rosa − que valem por si,
a consciência sendo inteiramente cada uma
delas no ato do sentir. Uma vez tomados pelo
corpo, os estímulos sucessivos, vazios de sen-
tido, “caos de sensações”, seriam ordenados
através de procedimentos complementares,
segundo a lógica causal: poderiam ser “asso-
ciados”, pela contiguidade das sensações su-
cessivas, permitindo definir objetos pela
“constância” da correspondência ponto-a-
ponto entre os estímulos do mundo em mi-
nha retina e o objeto percebido; ou então, po-
deriam ser elucidados a partir das “recorda-
13 Para uma descrição sintética dos modelos que emergiram a partir do fim dos anos
80 e que desafiaram 100 anos de primazia do córtex como o ponto mais alto deum fluxo hierárquico de informações no cérebro, ver Cytowic (2000:153-62).
Os sentidos e o sentido da experiência 37
ções” sobre eles projetadas − estas possibilitariam a acomodação do per-
cebido num contexto de uma história capaz de vesti-lo de uma ordem e de
um sentido. Vejamos o que há de equívoco em tal modelo “sensação / as-
sociação / recordação”: de saída, a própria noção de “sensação pura” é em
si mesma uma ficção, já que os psicólogos gestaltistas demonstraram, de
maneira aliás bem conhecida, que a mais simples percepção que se pode
experimentar envolve relação de figura e fundo,14 determinando um con-
texto em que o que se percebe é, afinal, mais do que os estímulos permiti-
riam deduzir − o exemplo que Merleau-Ponty emprega, de início, é o de
uma estrutura bastante simples, a mancha branca sobre um fundo homo-
gêneo (Merleau-Ponty, 1994:24):
Percebemos aqui, mais do que simples pontos que se ligam por uma
lei de associação: os “pontos” são percebidos como uma “mancha”; as
margens da mancha como que lhe pertencem, e não ao fundo; já este últi-
mo parece prolongar-se sob a figura, que me parece colocada sobre uma
superfície contínua. “Cada parte anuncia mais do que ela contém, e essa
percepção elementar já está, portanto, carregada de um sentido” (Merleau-
Ponty, 1994:24). Percebo sempre um campo de relações, um todo “maior
que a soma das partes”, como diz o famoso aforisma da Gestalt - não há, de
outro modo, qualquer experiência perceptiva. Supor que a percepção possa
ser decomposta em partes extra partes é forçar sobre ela uma estrutura do
“mundo objetivo”, em que há “coisas” - decomponíveis em partes - e “va-
zios entre as coisas”; mas, na experiência perceptiva vivida, que me dá sem-
pre campos de relações, nada há que corresponda às noções de sensação
pura e correspondência ponto-a-ponto entre os estímulos e o percebido,
ou às partes autônomas de um modelo mecânico. A partir dessa impossi-
bilidade, dessa incompatibilidade entre o pensamento analítico e o tecido
perceptivo, as contradições que se encontram ao examinar a noção de sen-
14 “Quando a Gestalttheorie nos diz que uma figura sobre um fundo é o dado
sensível mais simples que podemos obter, isto não é um caráter contingenteda percepção de fato, que nos deixaria livres, em uma análise ideal, para
reintroduzir a noção de impressão. Trata-se da própria definição do fenômeno
perceptivo, daquilo sem o que um fenômeno não pode ser chamado de per-cepção.” (Merleau-Ponty, 1994:24).
38 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sação não mais deixam de vir à tona. Falou-se da correspondência ponto-
a-ponto entre os estímulos e os objetos formados na consciência. Mas o
cubo já não nos dissera há pouco que a experiência percebida se descola
de seus estímulos para constituir sua própria sintaxe? Ou, então, tomemos
um outro exemplo conhecido - e, pode-se dizer, igualmente irônico - as
retas de Muller-Lyer:
Novamente, o percebido instala sua própria maneira de ser, que
não comporta, antecede mesmo, e não anuncia os valores que se possa
encontrar ali após a análise, que nos revela a surpresa das linhas de medi-
das idênticas que nosso olhar não pôde apreender. Se me volto à estrutura
objetiva da figura, em que há linhas que verifico iguais, ângulos que de al-
gum modo intervêm em minha apreensão, e finalmente uma espécie de
tensão interna que emerge de suas relações, essa montagem já não tem
nenhuma relação com aquela experiência que pretende elucidar - não são
as linhas “iguais”, “paralelas”, mais “ângulos justapostos”, que criam uma
relação e causam a ilusão que agora desfaço. Uma descrição só pode ser
pensada nesses termos a partir dos resultados objetivos da análise, quan-
do retorno de minha presença no mundo ao refúgio de um pensamento que
não se mistura às coisas, que se crê além da cena. Caminho num parque e
vejo, ao longe, sobre um canteiro, uma mancha branca, e chego a pensar
que é uma embalagem plástica ou de papel que deveria ter sido lançada ao
lixo, e de repente essa mancha levanta vôo e descubro ali uma garça. A aná-
lise dirá que a garça sempre esteve ali, apenas não pude notá-la. Mas é jus-
tamente este não notar, em que mundo, paisagem, garça, já estavam para
mim como um horizonte presente mas indeterminado, em que meu corpo
está engajado em extrair, ou mesmo criar, no campo perceptivo, as “coi-
sas” - e aqui não diremos sequer “objetos”, já que estes definem precisa-
mente o mundo “objetivo” - que é o mundo sensível. Merleau-Ponty nos
convida a reencontrar esse modo de ser da percepção: “Precisamos reco-
nhecer este indeterminado como um fenômeno positivo” (Merleau-Ponty,
1994:27).
Os sentidos e o sentido da experiência 39
“Uma paisagem em dia de neblina”, a penumbra no quarto ao ama-
nhecer, quando o olho experimenta o limiar entre ter cores ou somente
tons de cinza, ou ainda as cores cambiantes do céu no “lusco-fusco”, noslembram o quanto vivemos em meio a situa-
ções indeterminadas, às quais recusamos o es-
tatuto de realidade, por conta das teorias que
nos obrigam a tratar sensações como defini-
das, num mundo de objetos definidos. Ao
fazê-lo, negamos o caráter experiencial de algo
que não é necessariamente “isso” ou “aquilo”,
mas “nem uma coisa, nem outra”. As cores,
que são bem o exemplo costumeiro da “quali-
dade pura”, mostram a dimensão dos proble-
mas aí colocados. Ora, uma coisa é ver cores -
dependentes de uma série de variáveis, como
luz, área ocupada pela cor, as cores em sua pe-
riferia, como o mostram os diversos trabalhos
apaixonadamente dedicados à cor, por Itten
(1996), Albers (1975), Pedrosa (2002), ou so-
bretudo Goethe (1993)15; e ainda assim, num
contexto da luz variável de um dia, vemos as
cores com certa permanência; outra é dar no-
mes às cores, tentar determiná-las segundo o
15 O relato de Goethe é célebre e, como se sabe, uma espécie de manifesto anti-
newtoniano. Traz inúmeras passagens que nos repõe a aventura do olhar que
se entrega às cores. Por exemplo: “Um dos mais belos casos de sombra colo-rida pode ser observado na lua cheia. O brilho da vela e o da lua podem ser
colocados em perfeito equilíbrio. Ambas as sombras podem ser apresentadas
com a mesma força e nitidez, de modo que as duas cores estejam perfeita-mente equilibradas. Coloque uma superfície na posição oposta ao brilho da
lua cheia, e a vela um pouco ao lado, a uma distância conveniente; coloque
diante da superfície um corpo opaco, e surgirá em seguida uma sombra dupla:a projetada pela lua e iluminada pela luz da vela será vista como um forte
amarelo-avermelhado e, ao contrário, a projetada pela luz e iluminada pela
lua, como o mais belo azul. Onde ambas as sombras se encontram, tornando-se uma só, será preta. A sombra amarela talvez não possa ser apresentada de
maneira mais contundente. A proximidade imediata do azul e a sombra preta
que se interpõe tornam o fenômeno ainda mais agradável. Pois quando o olharse demora um pouco na superfície, o azul, complementar ao amarelo, intensi-
fica novamente esse amarelo que o complementa, que por sua vez produz seu
oposto, um tipo de verde mar.” (Goethe, 1993:70). Descrições como essa, re-pletas ao mesmo tempo da força daquilo que foi vivido e expressas com uso
de vários “um pouco ao lado”, “talvez” e outras expressões que reservam um
espaço de indeterminação atravessam toda obra que Goethe dedica às cores.
Joseph Albers: Joseph Albers: Joseph Albers: Joseph Albers: Joseph Albers: Homenagem ao QuadradoHomenagem ao QuadradoHomenagem ao QuadradoHomenagem ao QuadradoHomenagem ao Quadrado (1964) (1964) (1964) (1964) (1964)
40 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
objetivante de um modo de pensar o mundo e suas coisas que é muito pos-
terior à experiência que o constituiu. Brakhage (1983:341) o diz bem: “[...]
quantas cores há num gramado para o bebê que engatinha, ainda não cons-
ciente do ‘verde’?” Se me deparo com o reflexo da luz refratada que me dá
as cores do espectro, numa repetição do experimento newtoniano, ou, mais
cotidianamente, tenho o espectro refletido na superfície de um compact-
disc, ou ainda, tenho as cores dispostas no acontecimento tão raro de um
arco-íris, há regiões de transição entre as cores que declaram enfaticamen-
te essa indeterminação, que não posso definir como “verde” ou “azul” ou
“laranja”, que não são “dizíveis”, e que pedem para ser “mostradas”, par-
tilhadas. E, ainda assim, na concordância de estarmos nos dirigindo a uma
mesma paisagem, sabe-se que não há identidade completa no modo como
experimentamos essa cor, bem como no modo como eventualmente a no-
meamos. Por fim, na “hora mágica”, aquela extensão escorregadia de tem-
po que antecede ou sucede o nascer ou o por do sol, nem mesmo os cálcu-
los e as “latitudes” dos filmes fotográficos encontram a precisão, como
ainda lembra Brakhage, que se dedicou de modo singular a essa empresa
poética do olhar: “[...] pode-se ainda fotografar uma hora após o nascer do
sol, ou uma hora antes do poente, naquele período tabu, em que nenhum
laboratório garante nada” (Brakhage, 1983:345). Não existe, enfim, algo tal
como “pura qualidade”: no quadro que vejo, de Magritte, é ainda o cachim-
bo, a despeito de suas advertências, o que vejo; o som que ouço é “um pás-
saro”, “um relógio”, “uma flauta”, “um sino”; aquele perfume, “uma flor”,
“o mar”, “o jardim”. A sensação pura só existe como “objeto tardio de uma
consciência científica”16:
“A teoria da sensação, que compõe todo o saber com qualidades
determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equívoco,
puros, absolutos, que são antes os ideais do conhecimento do que
seus temas efetivos; ela só se adapta à superestrutura tardia da
consciência [...] [No entanto] É ora a aderência do percebido a um
contexto e como que sua viscosidade, ora a presença nele de um
indeterminado positivo, que impedem os conjuntos espaciais,
temporais e numéricos de se articularem em termos manejáveis,
distintos e identificáveis.” [Merleau-Ponty, 1994:34]
16 É fácil lembrar que, na imagem como na música, a idéia de uma apreensão
das imagens ou dos sons despida de referência - os quadros abstratos de
Kandinsky, ou o som autônomo de Webern - são fenômenos relativamenterecentes e que determinaram uma mudança completa na disposição perceptiva
do fruidor.
Os sentidos e o sentido da experiência 41
As dificuldades derivadas do conceito de “qualidade pura” servem,
para Merleau-Ponty, de suporte a outras considerações, à medida que vão
se revelando os modos de ser do percebido. Este nunca me oferece, então,
“elementos claros e distintos”, como o desejaria o pensamento lógico, mas,
como os gestaltistas demonstraram, apresenta sempre “conjuntos signi-
ficativos” que se reorganizam conforme o contexto: as “coisas” só nos apa-
recem envoltas em relações, que podem assumir diferentes configurações
conforme um ponto de vista, conforme o sentido da situação para o viven-
te. Assim, ali onde a percepção nos abre um mundo indeterminado, pré-
objetivo, que não se sujeita às categorias do conhecimento que inaugura, a
sensação também não pode ser simplesmente reduzida aos estímulos pro-
vocados na periferia dos órgãos sensíveis; onde se dá a sua gênese, já estão
implicados processos de entendimento que antes eram considerados ex-
clusivos de funções superiores: trata-se de uma mescla de sentido bioló-
gico e psicológico. Merleau-Ponty vai tomar esse irredutível da sensação à
qualidade pura para desmontar as análises da percepção constituídas an-
teriormente aos estudos da Gestalt. Fala-se por exemplo, no empirismo,
em “associação” ou “projeção de recordações”, como fossem, já dissemos,
operações complementares que permitiriam, no primeiro caso, à consci-
ência relacionar as sensações por certa familiaridade − como “marcas que
se vão deixando sobre a cera”, lembra Carmo (2002) − ou, no segundo,
atribuir à intervenção posterior de uma história pessoal esse sentido psi-
cológico que a paisagem possa assumir para aquele a quem se apresenta.
René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: O uso da palavra IO uso da palavra IO uso da palavra IO uso da palavra IO uso da palavra I (1928-29) (1928-29) (1928-29) (1928-29) (1928-29)
42 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Mas a qualidade pura não era uma experiência fechada em si, de identifi-
cação total entre o sensível e o senciente? Ou, ainda, as sensações, em con-
junto, não eram o “caos das sensações”? Ora, segundo esse modelo, seria
necessário introduzir alguma outra operação que me permitisse, em pri-
meiro lugar, distinguir elementos que possam ser associados, por conti-
guidade ou aos fatos em minha memória. Uma qualidade que é por si não
pode existir senão em conjunto com outras qualidades que não se comu-
nicam; e minhas recordações só podem ser investidas sobre o percebido
se este já me oferece algo em que investir a lembrança. Só posso fazer associ-
ações porque este todo já se ofereceu a mim com um sentido; do contrário,
qualquer associação é igualmente possível. Ora, se se pretendia que fos-
sem as associações por certa familiaridade que me permitiriam constituir
uma cena a partir do teatro desordenado das qualidades puras e autônomas,
verifica-se que ou é tarefa impossível − já que aquilo que é experiência de
sensação pura e distinta, em que a consciência se perde, não admite por-
tanto associação alguma −, ou é tarefa desnecessária − já que, se posso fa-
zer associações, é porque a cena que deveriam ordenar já estava posta, e
portanto não há mais caos muito antes de que recordações possam ser
convocadas. O mundo que a percepção torna presente vai se desenhando,
então, como a presença de um cenário, já investido de certa ordem, certo
sentido; que é móvel, comporta ambigüidade, é vivo e inacabado, mas não
é redutível nem ao caos das sensações nem à pura somatória de partes
autônomas e distintas, como o quereria um modelo de um mundo objetivo:
“Se enfim se admite que as recordações não se projetam por si
mesmas nas sensações, e que a consciência as confronta com o dado
presente para reter apenas aqueles que se harmonizam com ele,
então reconhece-se um texto originário que traz em si seu sentido
e o opõe àquele das recordações: este texto é a própria percepção.”
[Merleau-Ponty, 1994:46]
Ou ainda:
“Perceber não é experimentar um sem número de impressões que
trariam consigo recordações capazes de completá-las; é ver jorrar
de uma constelação de dados um sentido imanente sem o qual
nenhum apelo às recordações seria possível.”
Se, na crítica de Merleau-Ponty, os empiristas procuravam solu-
cionar impasses da percepção através dos conceitos de associação e recor-
dação, que deixavam ainda um vazio, já que associar ou recordar são pro-
Os sentidos e o sentido da experiência 43
cedimentos que já demandam a tarefa anterior de definir, de algum modo,
aquilo a que se possa fazer associações ou ligar recordações, a tradição
racionalista não encontra menos embaraços diante dessa noção abstrata da
sensação pura. A estratégia racionalista é fazer uso dos conceitos de “atenção”
e “juízo”. A noção de atenção aparece também no pensamento empirista:
o caos de sensações só adquire aí alguma ordenação, me dá objetos, à me-
dida que volto sobre esta ao aquela parte de meu campo perceptivo o meu
foco, assim como um projetor lança uma luz indiferente aqui ou ali. Num
tal modelo, persiste ainda a lacuna de saber-se como, num campo de sen-
sações indiferentes, este ou aquele fenômeno podem solicitar a atenção, e
portanto a consciência permanece passiva e despida de intenções. Para o
racionalismo, ao contrário, os objetos já estão todos lá, definidos no mundo
objetivo e exato, bastando apenas que eu “preste atenção” para percebê-
los e tê-los à disposição. Mas, desse modo, lembra Merleau-Ponty, a aten-
ção não acrescenta nada, visto que, uma vez mais, quando a atenção se volta
sobre este ou aquele objeto, a ligação entre meu corpo e a paisagem já está
consumada: perde-se ainda a operação que me permite dispor de um ho-
rizonte, e o modo como literalmente me cria um mundo permanece em
silêncio. Num momento, está-se no caos das sensações; no momento se-
guinte, já é o mundo das coisas objetivas. A percepção persiste como “essa
surda presença do mundo que se sublima no ideal da verdade absoluta”. O
juízo intervém, aí, para expulsar o indeterminado: tenho dois olhos, mas
vejo apenas uma imagem, porque o julgamento determina às sensações sua
significação e as sujeita à sua ordem; “vejo, pela minha janela, chapéus que
se movem, e julgo que são homens” − conforme o exemplo consagrado de
Descartes. Num tal cenário, do qual me apropriei pelo ato de atenção e que
livrei de equívoco pelo exercício do julgamento, para experienciar, final-
mente, uma percepção, não cabem ilusões: o mundo objetivo e preciso está
aí à disposição de cada um, bastando apenas “prestar atenção” e julgar. Mas,
se a percepção se torna “interpretação”, o “sentir” tornou-se vazio: “a sen-
sação não é sentida” e palavras como “ver” ou “ouvir”, inerentes a uma cir-
cunstância, perdem o sentido frente a uma consciência que, antes mesmo
tenha “coisas”, de tudo já detém o estatuto (Merleau-Ponty, 1994:65):
“A tomada de consciência intelectualista não chega até esse tufo vivo
da percepção porque ela busca as condições que a tornam possível
em lugar de desvelar a operação que a torna atual, ou pela qual ela
se constitui.” [Merleau-Ponty, 1994:68]
44 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Ora, ainda uma vez, a teoria não acomoda de nenhum modo a am-
bigüidade esquiva das ilusões:
Não basta que eu saiba − e portanto disponha dos elementos ne-
cessários ao julgamento −, para reverter em mim uma imagem que em nada
corresponde aos estímulos objetivos17: é somente quando me desloco a um
ângulo apropriado, vendo, por exemplo, essa mesma figura a partir da ex-
tremidade de uma das retas, que o campo se reorganiza e as linhas emer-
gem em sua configuração paralela. Essa paisagem nova, essa reorganiza-
ção súbita do campo que encontro, pela minha teimosia e pelo meu inte-
resse, e já dispondo da chave da ilusão, é que constitui, finalmente, o que
é o ato de atenção − uma mudança nas relações de contexto a partir de cer-
ta motivação pela qual me dirijo a ele. Mas essa é antes um interesse, uma
intenção, que só existem em direção às coisas presentes, ao Ser que me
acolhe, do que a posse de um poder constituinte que torna possível que
haja, para mim, mundo. Por outro lado, Merleau-Ponty também adverte
que, quando se estabelece o julgamento ali mesmo onde a contingência
funda a presença do mundo, o que se obtém,
finalmente, é um juízo em que a potência de
laborar a reflexão da razão − que pretende, no
seu específico, descolar-se da circunstância
− fica comprometida. Bem como, já se disse,
o modo de ser do percebido − as hierarquias,
a solidariedade e as tensões entre as coisas, o
campo, a paisagem inacabada, onde dados
dos sentidos já se manifestam de imediato
conforme um certo sentido − permanece ina-
cessível. Enfim, a filosofia clássica não per-
cebe esse modo de ser, aquém ainda do certo
17 Um exemplo favorito de Merleau-Ponty é visão da Lua, que, para o especta-dor, muda seu tamanho ao longo de seu percurso no céu noturno, embora um
pensamento “objetivista” negue essa experiência já que, se a isolamos em-
pregando, por exemplo, um tudo de papelão, seu diâmetro permanecerá omesmo por toda a noite: “Se a lua no horizonte não me parece menor do que
no zênite quando a olho com uma luneta ou através de um tubo de cartolina,
não se pode concluir disso que também na visão livre a aparência é invariável.O empirismo acredita nisso porque não se ocupa daquilo que se vê, mas da-
quilo que se deve ver segundo a imagem retiniana. O intelectualismo também
acredita nisso porque descreve a percepção de fato segundo os dados da per-cepção ‘analítica’ e atenta em que a lua, com efeito, retoma seu verdadeirodiâmetro aparente.” (Merleau-Ponty, 1994:59).
Os sentidos e o sentido da experiência 45
e do errado, do mundo da percepção: “O empirismo não vê que precisa-
mos saber o que buscamos, sem o que não o procuraríamos, e o inte-
lectualismo não vê que precisamos ignorar o que procuramos, sem o que
novamente não o procuraríamos.” (Merleau-Ponty, 1994:56) Pelo preju-
ízo do mundo “objetivo”, e a tentativa de construir o percebido segundo a
lógica tardia da razão que ali brota, resulta, para Merleau-Ponty, uma filo-
sofia de certo modo manca, já que “o pensamento infinito que se desco-
bre imanente à percepção não seria mais o mais alto ponto da consciên-
cia, mas, ao contrário, uma forma de inconsciência” (Merleau-Ponty,
1994:68), alheio que está à sua própria gênese.
Mas como pode se dar tal alheamento, como é possível que toda uma
ciência e uma filosofia tenham permanecido por tanto tempo incapazes de
tratar, nos termos adequados (segunda essa fenomenologia), essa trama
perceptiva? N´O primado da percepção e suas conseqüências filosóficas, em que
apresenta à Sociedade Francesa de Filosofia uma espécie de síntese de seu
trabalho sobre a percepção, Merleau-Ponty chama a atenção ao fato de que
a fenomenologia e seu retorno às coisas só poderiam surgir no momento
em que o campo constituído no jogo das representações estivesse de tal
modo adensado, que se tornasse evidente o conflito entre as abstrações
conceituais e a experiência vivida: “[...] a fenomenologia não poderia se
constituir antes de todos os outros esforços filosóficos que a tradição
racionalista representa nem antes da construção da ciência. Ela mede o
afastamento entre nossa experiência e essa ciência; [...] como poderia
precedê-la? [...]”18 (Merleau-Ponty, 1990:70). Ainda assim, persiste a
18 Schérer (1981:272) ecoa Merleau-Ponty nisso que, regra geral, tem-se como avirtude do método fenomenológico: “A importância excepcional conferida a
uma filosofia cujo método e o programa põem em primeiro plano os direitos
do vivido, e o fazem de algum modo sair da sombra, encontra a sua origemnas múltiplas alienações ou reificações que privam o homem da posse de si
mesmo e a vida de seu sentido.”
questão de como a percepção pôde passar, por
assim dizer, desapercebida, por diferentes
doutrinas e ciências que sobre ela se posi-
cionaram, e mesmo a abrigaram naquilo que
ela tem de particular: ser a origem do pensa-
mento do mundo − Merleau-Ponty reconhe-
ce em Descartes e Kant esse estatuto da per-
cepção como um “conhecimento originário”
(Merleau-Ponty, 1994:74). A perda da experi-
ência perceptiva emerge, então, pelo próprio
modo singular como a racionalidade se cons-
tituiu, que é, para Merleau-Ponty, tão somente
um desenvolvimento das teses do mundo já
implicadas e oferecidas no imediato do perce-
ber. A “atitude natural” − o aceite irrefletido
46 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
do mundo que me é dado a perceber, esse que a fenomenologia sugere pôr
“entre parênteses” − é somente desdobrada pela filosofia e pela ciência,
que por fim simplesmente operam segundo uma tese já implícita na per-
cepção. O ato perceptivo é que faz crer nesses conjuntos de coisas banha-
das em sentidos às quais se lança a interrogação curiosa de uma razão que
as tematiza como seus objetos, e o “momento decisivo da percepção” é o
“surgimento de um mundo verdadeiro e exato” (Merleau-Ponty, 1994:85):
“A ciência e a filosofia foram conduzidas durante séculos pela fé
originária da percepção. A percepção abre-se sobre coisas. Isso
quer dizer que ela se orienta, como para seu fim, em direção a uma
verdade em si em que se encontra a razão de todas as aparências. A
tese muda da percepção é a de que a experiência, a cada instante,
pode ser coordenada à do instante precedente e à do instante
seguinte, minha perspectiva às das outras consciências − a de que
todas as contradições podem ser removidas, a de que a experiência
monádica e intersubjetiva é um único texto sem lacuna −, a de que
aquilo que é agora para mim indeterminado tornar-se-á
determinado para um conhecimento mais completo que está
antecipadamente realizado na coisa, ou, antes, que é a própria
coisa.” [Merleau-Ponty, 1994:85-6]
A razão aparece, assim, como uma extensão, uma explicitação da-
quilo que na própria experiência já está realizado, um sentido do mundo, a
tese do mundo verdadeiro e exato que a ciência procura avançar. Não há,
mais, a necessidade de se conceber a antítese clássica entre “razão” e “sen-
sação”. É a experiência perceptiva, com seu modo próprio de ser, que con-
duziu a gênese desse mundo aí explicitado, e se ele pôde erguer-se sobre essa
fundação da maneira tão resoluta como o fez, não é porque tenha delibe-
radamente esquecido essa sua origem no imediato, mas é porque é próprio
da percepção, e a sua conclusão final − e Merleau-Ponty fala mesmo em
“astúcia” −, ocultar-se, para dar a ver não a si mesma, mas o mundo:
“Não diremos mais que a percepção é uma ciência iniciante, mas,
inversamente, que a ciência clássica é uma percepção que esquece
as suas origens e se acredita acabada. O primeiro ato filosófico seria
então retornar ao mundo vivido aquém do mundo objetivo, já que
é nele que poderemos compreender tanto o direito como os limites
do mundo objetivo, restituir à coisa sua fisionomia concreta, aos
organismos sua própria maneira de tratar o mundo, à subjetividade
sua inerência histórica, reencontrar os fenômenos, a camada de
Os sentidos e o sentido da experiência 47
experiência viva através da qual primeiramente os outros e as coisas
nos são dados, o sistema ‘Eu-Outro-as coisas’ no estado nascente,
despertar a percepção e desfazer a astúcia pela qual ela se deixa
esquecer enquanto fato e enquanto percepção, em benefício do
objeto que nos entrega e da tradição racional que funda.” [Merleau-
Ponty, 1994:89-90; grifo nosso]
O tecido dessa percepção que assim se manifesta nas palavras de
Merleau-Ponty não é mais, então, oposto à razão. É somente porque cada
percepção “recomeça por sua conta o nascimento da inteligência”, antes
das categorias e dos objetos acabados da reflexão realista, e “tem algo de
uma invenção genial” (Merleau-Ponty, 1994:75) − já que literalmente fun-
da por si própria a paisagem inesgotável, inacabada, mas prenhe de signi-
ficação: “a estrutura, o sentido e o arranjo espontâneo entre as partes”
(Merleau-Ponty, 1994:91), em que atualizo a minha presença e a das coi-
sas a que me lanço −, que posso proceder no exercício da reflexão, tornar a
verdade não mais uma “noção” mas uma “idéia”, fundar o conceito, falar
em “objetividade”. Assim, o mundo inaugurado pela percepção nada tem
de semelhante a um “caos de sensações” que só servia para iluminar os
privilégios concedidos a uma razão que, para Descartes e os que se segui-
ram, deveria ser o “ponto mais alto da condição humana”. Mas, se não
elucida o modo como se efetivam suas relações com o mundo que preten-
de abarcar, sendo corpo em circunstância, “ser” no mundo, tal razão não
pode ultrapassar a condição de tão somente explicitar o percebido: só posso
dispor de “objetos” porque a percepção já me dá “coisas”, vestidas de sen-
tidos. Não é tampouco como o queria tardiamente Flusser (1963): a lingua-
gem, o nomear, o objetivar, constitui o salto do “caos” ao “cosmos”. Sem
dúvida, as representações nos permitem tratar abstratamente o mundo, e,
embora o próprio Merleau-Ponty tenha mais tarde se colocado esse pro-
blema complexo das relações entre a percepção e a palavra, pode-se suge-
rir que só nomeio o que percebo; ou que per-
cebo de modo diferente aquilo que nomeio;19
ou, ainda que, num jogo lingüístico, eu crie um
nome sem objeto, os significados que este po-
derá assumir são aqueles da minha experiên-
cia com esse nome.20 A percepção, como
emerge na Fenomenologia da percepção, é final-
mente essa abertura imediata ao brotamento
de um cosmos a ser explicitado, o contrato com
o real tornado efetivo no percebido que, na
19 “Luria (1961) também verificou que as crianças com menos de cinco anos ti-nham grande dificuldade para lembrar as diferenças entre pares de formas, a
não ser que as pegassem e sentissem seus contornos. Se o fizessem, e se, além
disso, dessem nome às formas, os erros na confusão de formas irregulares [...]eram completamente eliminados por volta de três a quatro anos de idade.”
(Vernon, 1974:35; grifo nosso).
20 Lakoff e Johnson (2002) também reiteram, em seu conhecido trabalho sobreas metáforas, esse caráter experiencial indispensável à compreensão da lin-
guagem.
48 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
medida exata em que se oculta, pode também dar-se a ver, e, como viu bem
Kuang-Tsé, nada tem de caótico: a percepção faz, por si própria, dissolver
caos em mundo.
Mas falou-se há pouco que a consciência elucidava esta ou aquela
ilusão pelo seu interesse pelo mundo a que se lança. Resta, então, nessa
nossa busca por alguns dos pontos cardeais da reflexão de Merleau-Ponty
sobre a percepção, colocar a noção husserliana de “intencionalidade”. Peça
chave da fenomenologia tal qual concebida por Husserl, a intencionalidade
joga um papel decisivo nessa abertura do universo perceptivo levada a cabo
na Fenomenologia da percepção. Como se sabe, à noção de uma consciência
à parte do mundo, que recebia passivamente os dados do exterior e os re-
lacionava para constituir o real, ou ainda à noção de uma consciência à parte
do mundo, que detinha as chaves para que este fosse “possível” e portanto
a norma da constituição dos seus objetos, Husserl opôs a noção de uma
consciência em ato, em circunstância, engajada no mundo, que só pode ser
conquanto sendo consciência de algo. Trata-se de um achado cujo impacto
a seu tempo foi significativo, pois que atinge diretamente o centro da re-
flexão moderna, a distinção entre sujeito e objeto.21 De fato, se a consci-
ência só pode ser “em ato”, caso contrário não existe, são os objetos a que
se dirige, conforme sua intenção, que permitem que ela seja deste ou da-
quele modo: a circunstância vivida constitui a consciência tanto quanto esta
constitui o mundo conforme sua perspectiva vivida. A célebre “redução
fenomenológica”, a epokhé22 husserliana, con-
siste, grosso modo, em ser capaz de, nas pala-
vras de Merleau-Ponty, “distender esse fios
que nos ligam ao real” (segundo ele a toma na
sua reflexão sobre a percepção), para, colocan-
do o mundo “entre parênteses”, apreender to-
dos os modos em que se manifesta essa inten-
ção com que a consciência se lança ao mundo,
surpreendê-la em operação, retirar dela todo
resquício de idealidade, de conceptualidade, de
modo a conseguir, finalmente, acessar “as coi-
sas elas mesmas”. Em Língua e realidade (1963),
sua reflexão a respeito da língua e da incompa-
tibilidade dos cosmos erigidos por diferentes
línguas, Vilém Flusser, por exemplo, reconhe-
ce no método fenomenológico um método que
nos ofereceria “a possibilidade de pormos em
21 “Esta, [a fenomenologia], não considera, de maneira inseparável, o ato e oobjeto que ele visa, mas estabelece sua união mediante a estrutura básica da
consciência, a intencionalidade, que revela a impossibilidade de um ato de
consciência não ter um objeto, não visar um objeto.” (Loparic, 1980:x). E ain-da: “Husserls concept of intentionality abolished the spectatorial distance
separating subject and object and made it necessary to revise traditional theories
of representation.”. (“O conceito husserliano de intencionalidade aboliu a dis-tância espectatorial que separa o sujeito e o objeto e fez com que fosse neces-
sário revisar as teorias tradicionais da representação”). (Levin, 1993:12).
22 Ferrater Mora (1994:217) escreve: “O termo ‘epokhé’ foi revivido com um sen-tido distinto do céptico na fenomenologia de Husserl. Este filósofo introduz,
com efeito, o citado termo na formação do método para conseguir a chamada
redução fenomenológica. Num sentido primário, a epokhé filosófica não sig-nifica mais que o fato de que ‘suspendemos o juízo acerca do conteúdo doutrinal
de toda filosofia determinada e realizamos nossas comprovações dentro do
quadro desta suspensão’ (Ideen, I, § 18; Husserliana, III, 33).”
Os sentidos e o sentido da experiência 49
parênteses os conhecimentos acumulados no curso da história, deixá-los
em pendência, como que disponíveis para futura referência, e aproxi-
marmo-nos da língua despidos destes conhecimentos”, embora conclua:
“É uma possibilidade que exige uma disciplina mental violenta. [...] Du-
vido que poderemos manter essa violência contra a nossa mente durante
muito tempo [...].” Trata-se, de certo modo, da descrição do empenho
necessário para se contrapor à “atitude natural” e − se podemos colocar as
coisas em termos da discussão que estamos propondo − também à “astú-
cia” da percepção em dissimular-se, descrita por Merleau-Ponty há pou-
co.23 Mais recentemente, Natalie Depraz (2002), em trabalhos realizados
junto ao grupo reunido por Francisco Varela na França, com o projeto de
tentar uma Neuro-fenomenologia24, isto é, procurar aí uma alternativa para
o estudo científico da consciência a partir da teses centrais de Husserl − já
que este, como dissemos, colocou finalmente a consciência em ato, ou, nas
palavras de Merleau-Ponty, há pouco, apontou um caminho que permitia
pensar não como o conhecimento é possível, mas como ele se torna atual −
23 Embora, para Merleau-Ponty, a percepção, do mesmo modo como se oculta,
pode também mostrar-se (Merleau-Ponty, 1994:92), para Flusser, como se vê,superar as determinações da língua constitui uma “violência contra a mente”.
Mais adiante, em Língua e realidade, afirma mesmo que a própria psicologia
da Gestalt - que, como vimos, é chave para a reflexão de Merleau-Ponty - seriaresultado da imposição da estrutura da língua sobre a realidade: “Receio que
a teoria da Gestalt é influenciada, inconscientemente, pelas línguas flexionais,
e que os psicólogos confundem a estrutura dessas línguas com a ‘Gestalt’ domundo.” (1963:76-7). Flusser, no entanto, como já sugerimos há pouco, não
absorve, em seu notável livro, a reflexão merleau-pontyana sobre a percepção.
24 Em 1996, Varela - célebre pela introdução, junto a Francisco Maturana, na déca-da de 70, do conceito de autopoiésis, tão querido de Gilles Deleuze e Felix Guatari
-, em resposta às questões colocadas por David Chalmers (1995) quanto ao “difícil
problema da consciência”, propõe retomar as teses centrais de Husserl para re-por, no domínio das neurociências, a consciência em ato, e fundar uma Neuro-Fenomenologia: “Neuro-Phenomenology is the name I use here to designate a
quest to marry modern cognitive science and a disciplined approach to humanexperience, thereby placing myself in the lineage of the continental tradition of
Phenomenology” (“Neuro-Fenomenologia é o nome que uso aqui para desig-
nar a busca de um casamento entre a ciência cognitiva moderna e uma aborda-gem disciplinada da experiência humana, situando-me desse modo na linha-
gem da tradição continental da Fenomenologia”) (Varela, 1996:1). Aspectos
diversos desse projeto estão discutidos de maneira plural e bastante interessan-te em Varela e Shear (eds.) (2002). Como costuma ser, um dos problemas chave
do acesso à consciência em primeira pessoa, proposto por Varela, é a questão
da linguagem. As dificuldades hermenêuticas aí postas estão bastante bem co-locadas, no mesmo volume, por Nixon (2002:257-67), em termos que, a bem
dizer, iluminam o trabalho pioneiro de Vilém Flusser sobre a linguagem (1963),
que dificilmente foi lido fora do Brasil, se é que foi mesmo lido no Brasil da for-ma como mereceria, à época de sua publicação. Enfim, em depoimento recente,
Gianotti (1999) admite que Flusser estava adiante de seu tempo.
50 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
, descreveu a redução em termos de “embodied practice” [prática encar-
nada], mostrando talvez mais determinação que Flusser em relação a tal
disciplina, mas referindo-se a ela em termos bem similares:
“This has nothing to do with anything mysterious or esoteric, even
if what is at issue is difficult, ‘contrary to nature’, as Husserl used
to say, something which is far from beeing self evident and which
pressuposes a certain amount of work, even of labour.” [Depraz,
2002:109]25
Assim, através do exercício disciplinado da redução,
“I learn to look at the world in another way, not that the first is
negated or even radically changed in its being, nor that certain
objects are henceforward substituted for others but, from the
simple fact that my manner of perceiving it, my visual disposition,
has changed, objects are going to be given me in another light.”
[Depraz, 2002: 98; grifo nosso]26
Depraz descreve, afinal, uma transformação qualitativa da per-
cepção, em que “reflection and incarnation and action are not opposed
until each begins to fertilize the other, thereby intensifying each other
to the point of becoming virtually indistinguishable from each other”
(Depraz, 2002: 97)27. Trata-se, enfim, do retorno à experiência vivida
renovando o significado da própria fenomenologia! Mas Merleau-Ponty
já o colocara com clareza, e a discussão sobre a consciência ultrapassa
largamente as ambições deste trabalho, embora não tenha sido possível
passar a seu largo. Nosso objetivo, porém, é colocar ênfase no mundo
percebido como sendo sua gênese, nos termos já descritos, e pode-se
afirmar que, afinal, quando Depraz fala em “look at the world in another
way” e em “visual disposition”, estamos falando do sentido do mundo se
25 “Isso nada tem de misterioso ou esotérico, não obstante o que está em ques-
tão ser difícil, ‘contrário à natureza’, como Husserl costumava dizer, algo que
está longe de ser auto-evidente e que pressupõe uma certa dose de trabalhoe de labuta”
26 “Aprendi a olhar para o mundo de outra maneira, não que a primeira seja ne-
gada ou mesmo radicalmente mudada no seu ser, ou que certos objetos se-
jam doravante substituídos por outros, mas, a partir do simples fato de minhamaneira de percebê-lo, minha disposição visual, ter mudado, os objetos virão
a me ser dados em uma outra luz.”
27 “Reflexão, encarnação e ação não se opõem até o momento em que uma co-meça a fertilizar a outra, intensificando-se dessa forma reciprocamente, a tal
ponto de se tornarem virtualmente indistinguíveis”.
Os sentidos e o sentido da experiência 51
fazendo em termos perceptivos. Por fim, se a redução fenomenológica
não tem, para Depraz, “nada de misterioso”, para Merleau-Ponty, por
outro lado, “[...] O mundo e a razão não representam problemas; diga-
mos, se se quiser, que eles são misteriosos, mas este mistério os define, não
poderia tratar-se de dissipá-los por alguma ‘solução’, ele está para aquém
das soluções” (Merleau-Ponty, 1994:19; grifo nosso). Uma vez mais, tra-
ta-se menos de dissipar o mistério das coisas do que de reconhecer que,
somente sendo inacabado e vivido em sua presença e seu mistério, o
“mundo” pode ser mundo, berço de todo o conhecimento possível. Do
tema da intencionalidade, que nos trouxe ao problema da consciência,
devemos reter que, se a consciência só se define pelos objetos a que visa,
conforme queria Husserl, no imediato da percepção, consciência e mun-
do estão entrelaçados na origem do sentido de uma única circunstância,
que não comporta a distinção cartesiana fundante da filosofia e da ciên-
cia modernas, o sujeito distinto de seus objetos. Eu sou, como diz,
Merleau-Ponty, “a fonte absoluta” (Merleau-Ponty, 1994:3), mas não
posso sê-lo sem as coisas que me constituem, e eu a elas.
René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: The blank checkThe blank checkThe blank checkThe blank checkThe blank check (1965) (1965) (1965) (1965) (1965)
52 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Podemos agora fazer um inventário daquilo que gostaríamos de ter
recolhido nesse breve mergulho na filosofia de Merleau-Ponty. Senso co-
mum (doxa), filosofia (ontologia) e ciência (epistemologia), emergem de
modo inescapável da experiência fundante do perceber, explicitam uma
tese do mundo dada já na própria imediaticidade da percepção, na gênese
de nossas relações com uma alteridade inesgotável da qual jamais nos apro-
priamos por completo, mas, antes, nos envolve e nos define. A percepção
é nosso contrato com o mundo, inaugura a própria noção de verdade; ela é
esse interesse que nos lança além de nós mesmos, que nos põe em relação
com as coisas que interrogamos movidos por uma “fé perceptiva” cujo pró-
prio modo de ser é ocultar-se para fazer brotar o mundo. Este se manifes-
ta para nós já banhado em um sentido, mas ainda aquém de um “verdadei-
ro” e de um “falso” nos termos abstratos de uma objetividade que lhe é
muito posterior - mas que estende essa sua tese implícita -, e abriga con-
tradições, ilusões e paradoxos: imanências e transcendências, como o lem-
bra enfaticamente Merleau-Ponty (Merleau-Ponty, 1990), já que temos
sempre uma totalidade que supera em muito aquilo que é dado, e que é
anterior ainda à representação, não sendo portanto um construto, mas sen-
do uma estrutura, um todo - um mundo. Assim, podemos dizer, que os
sentidos (a percepção) nos ligam ao mundo; ao fazê-lo, nos lançam além de
nós, a um espaço, um cenário, uma paisagem, uma alteridade que nos en-
volve - nos lança, enfim, em sua direção: nos dá sentido; ao fazê-lo, inau-
gura nossa noção de verdade e nos dá uma presença prenhe de significa-
ção inesgotável: vestida de sentido. Ora, podemos sugerir - Classen (1992)
e Howes (2003) também o fizeram - ao estilo de certa filosofia, que não há
acaso nesse jogo de palavras. Em inglês, “sense” é tanto “sentidos” como
28 No alemão, lê-se, em Heidegger (na tradução de William Lovitt): “To follow a
direction that is the way something has, of itself, already taken, is called in our
language ‘sinnan’, ‘sinnen’ [to sense]. To venture after sense or meaning [Sinn]is the essence of reflecting [Besinnen].” (“Seguir uma direção que é o cami-
nho que algo por si mesmo já tomou chama-se em nossa linguagem ‘sinnan’,
’sinnen’ [sentir] . Aventurar-se em busca de sentido ou significação [Sinn] é aessência do refletir [Besinnen]”). Aqui, direção e significação uma vez mais se
entrelaçam. Já nos dicionários de Henriette Michaellis (1934:554) e Leonardo
Tochtrop (1959:487), Sinn aparece associada aos sentidos, como em die fünfSinne: os cinco sentidos.
“significação” e como “direção” (Houaiss,
2001:704); no francês, “sens”, do mesmo
modo pode assumir qualquer destes três usos
(Burtin-Vinholes, 1972:531).28 No uso lusita-
no, “perceber” tem o mesmo significado que,
no Brasil, “entender”. Não parece de nenhum
modo fora de propósito, então, afirmar, em
síntese, que os sentidos (corpo), me lançam no
sentido (direção) do mundo, e o vestem de sen-
tido (significado).
Os sentidos e o sentido da experiência 53
Colocada assim como o fizemos, parece haver pouco a censurar na
tese de Merleau-Ponty. A razão foi recolocada em seu berço, certas antí-
teses clássicas foram revistas - sujeito e objeto estão imbricados na cons-
tituição do sentido primeiro do mundo; há continuum entre sensação e
razão - e, sobretudo, o corpo adquiriu estatuto renovado nas condições de
produção do conhecimento, já que é a partir da situação do meu corpo na
cena que toda essa perspectiva experiencial se organiza. De fato, o caráter
contemplativo e os privilégios concedidos à razão pela filosofia clássica
haviam reservado pouco ou nenhum papel ao corpo, senão o de coadjuvante
no empenho da mente ou da alma que abrigava, e que eram por direito se-
nhoras do acesso à verdade.29 Ao mesmo tempo, esse empenho em reto-
mar o solo experiencial e existencial da percepção - ainda que o tenhamos
percorrido aqui de modo bastante sintético - permitiu ultrapassar alguns
prejuízos que impediam a essa filosofia o acesso à presentidade pré-
objetiva a que Merleau-Ponty nos convoca. Se a abertura aí levada a cabo -
essa delicada costura - zela em termos existenciais pela ambigüidade do
mundo, ao mesmo tempo em que inaugura a possibilidade, a tese e o sen-
tido que animam o modo de vivê-lo e o discurso especular que posterior-
mente quer explicá-lo, dessa percepção acessada assim com interesse re-
novado o pensamento contemporâneo só poderia obter ganhos, o princi-
pal deles o reconhecimento desta origem, desse “jorro” da consciência em
sua gênese. A julgar pelo empreendimento realizado, a lacuna no pensa-
mento moderno diagnosticada por Merleau-Ponty estaria de certo modo
resolvida, e a razão daí resultante, mais ciente de si mesma, estaria habili-
tada a retomar um projeto da liberdade. A reflexão condensada na Fenome-
29 Numa cena de Je vous salue, Marie (Godard, 1983), Marie lê para Joseph tre-
chos de São Francisco de Assis: “Ao Sol, ele chamava ‘irmão Sol’; à Lua ele cha-
mava ‘irmã Lua’.” Joseph, que deseja ter relações com Marie - sobretudo por-que esta já está grávida, apesar de virgem - lhe pergunta: “E o corpo!? O que
ele diz do corpo?” Marie procura, por alguns instantes, pelas páginas do livro,
e, afinal, responde: “O corpo? Sim, cá está: irmão asno.” Certamente tambémpor influência do ascetismo cristão, o corpo foi considerado um entrave ao de-
senvolvimento do espírito.
30 “uma pequena indústria caseira de interpretação”.
31 "Quase que universalmente como um fracasso”. Jay menciona críticas de J. F.
Lyotard, Michel Foucault, Christian Metz, Luce Irigaray, e mesmo do pintor René
Magritte. Menciona também Richir e Lefort como “discípulos fiéis” do filóso-fo. Decerto é bom notar que Merleau-Ponty permaneceu uma referência para
aqueles ligados à linhagem fenomenológica: para Paul Ricoeur, foi o “maior
dos fenomenólogos franceses”.
nologia da percepção foi suficiente, segundo
Martin Jay (1993:165), para deflagrar “a small
cottage industry of interpretation”30; seus acha-
dos repercutindo, portanto, na “conversação
do ocidente” - para usar a expressão de Vilém
Flusser (1963:32-6), que, ao que parece, a to-
mou de Heidegger. Ao mesmo tempo, porém,
segundo os termos severos de Martin Jay, na fi-
losofia francesa que se seguiu à morte prema-
tura de Merleau-Ponty, em 1961, seu trabalho
foi lido “almost universally as a failure” (Jay,
1993:160)31 - a geração seguinte, estruturalis-
tas e pós-estruturalistas, demonstrando pou-
54 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
co interesse pela fenomenologia32 e suas “es-
sências” (ainda que o impacto duradouro de
Heidegger deva ser reconhecido em pensado-
res como Lacan ou Derrida, e ainda mais con-
temporaneamente num largo universo que vai
da cultura tecnológica à psicanálise).33 De um
modo geral, a agenda filosófica do pós-guerra
voltou-se para problemas políticos e as ques-
tões da linguagem, além da emergência da ci-
bernética, daí problemas de caráter ontológico
como a percepção parecerem menos urgen-
tes.34 Cabe ver então algumas das dúvidas que
foram colocadas sobre a tese de Merleau-Ponty.
Fizemos breve menção há pouco sobre
estranhamentos experimentados entre a ciên-
cia e filosofia no século XX.35 A extensão de tal
debate ultrapassa em muito este trabalho, mas
mesmo alguém como Meyer (2002:113), que
proclama uma suposta “vitória das neuro-
ciências”,36 num trabalho que quer rever O olho
e o espírito, de Merleau-Ponty (1961), tornan-
do-o simplesmente O olho e o cérebro, admite
que “a maioria dos atuais pesquisadores do
mundo vivo, pouco preocupados com a epis-
temologia, só pensa em aumentar a potência
de seu microscópio eletrônico, ou em pular
32 “French intelectuals lost interest in phenomenology, with its stress on meaningand expression .”(“Os intelectuais franceses perderam o interesse pela
fenomenologia, com sua ênfase na significação e na expressão”). (Jay,
1993:176).
33 O artigo The age of the world picture (1938) e The question concerningtechnology reaparecem na bibliografia contemporânea da cultura digital, por
exemplo Druckrey (ed.) (1996) e Kroker (2002). A aproximação entre o pensa-mento heideggeriano e a psicanálise (em especial Winnicott) tem sido traba-
lhada pelo Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas do Pro-
grama de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, e em es-pecial por Zeljko Loparic.
34 Ao mesmo tempo, um mal-estar generalizado na cultura européia diante dos
acontecimentos limites da II Guerra - os campos de extermínio e a bomba A -não poderiam abrigar facilmente certo otimismo e entusiasmo para com a ex-
periência vivida tematizados por Merleau-Ponty. É razoável também notar que
Heidegger permanecerá tratando seus temas em termos de essências - a es-sência da técnica, a essência da linguagem etc.
35 Um bom exemplo é Heidegger (1977), Science and reflection.
36 “As neurociências, vitoriosas mas incertas, são [no entanto] exemplares quan-
to à ambiguidade do saber científico que as construiu.” Se lemos Meyercorretamente, este parece pretender fazer certo balanço das conquistas das
ciências contemporâneas, proclamar seu triunfo, para em seguida anunciar seus
dramáticos limites que trazem à tona um certo vazio desta curiosa vitória dePirro: elimina-se todas as demais possibilidades de pensar a consciência, para
enfim perceber-se que esta alternativa, a única que se admite, encontra bar-
reiras talvez intransponíveis. Por fim, prega uma “ilusão necessária” (Meyer,2002:126), relativa à suntuosidade do ser humano e seu poder de desvendar
todo o universo: “Em primeiro lugar, a ciência, mesmo tendo chegado a um
nível extremo de perspicácia, encontra-se numa situação de precariedade e ins-tabilidade. Nenhum resultado, mesmo aquele que parece uma evidência, pode
resistir ao tempo. Pormenores, hoje obscuros, podem tornar-se amanhã indi-cadores poderosos; a capacidade de análise do cérebro humano, embora enor-
me, topa com a complexidade do real. A complexidade do objeto é ilustrada
pelo funcionamento do cérebro humano, e, particularmente pelo cérebro visu-al, cujo mecanismo pode achar-se além das capacidades máximas de apreen-
são. Não é inconcebível afirmar, é até possível desconfiar, que a imagem men-
tal dos objetos que nos cercam seja a mesma para todos os homens e que umavisão objetiva do universo tenha um sentido. Não é impossível que o cérebro
dos homens imponha à realidade conceitos que não tenham nenhuma rela-
ção com ela.” [Kant certamente gostaria de ler isso]. “Essa dúvida fundamen-tal vê-se fortalecida pela diversidade do vivente, que faz com que, afora o caso
excepcional de indivíduos oriundos do mesmo ovo, não haja dois tecidos or-
gânicos que sejam estritamente idênticos. Esse polimorfismo é particularmen-te desenvolvido no nível do sistema nervoso exposto a uma variabilidade ge-
nética - como todo tecido vivo - à qual se soma uma forte flutuação das influ-
ências ambientais. Nenhum cérebro pode pensar como outro, nenhum indivíduovê como outro.” Meyer, então, conclui: “O polimorfismo cerebral e sensorial
no centro da reflexão filosófica abre uma porta, certamente muito estreita, para
as interrogações sobre as sublimidades da alma humana e sobre a essênciamesma desta. É, com efeito, a unicidade de cada pensamento humano que faz
acreditar em sua responsabilidade, portanto, em sua liberdade. A suntuosidade
é apenas uma ilusão, mas uma ilusão necessária.” Um trecho como este, queecoa à distância Kant, reitera a tese da “fé perceptiva” de Merleau-Ponty, além
de, no limite, colocar a ciência par-a-par com as religiões, visto que falar em uma
ilusão necessária abriria, em princípio, uma boa conversa sobre quais ilusõessão necessárias, e com que finalidade. Teríamos, então, retornado à filosofia.
Os sentidos e o sentido da experiência 55
para a química, para aumentar e automatizar os processos de análise e de
síntese. Ignoram o que não observam; são apenas, como disse Bachelard,
‘trabalhadores da prova’” (Meyer, 2002:111). De todo modo - e deixando
de lado ainda os laços problemáticos entre ciência e poder, sobretudo na
história moderna -,37 uma posição de cunho científico poderia, por
exemplo, levantar restrições sobre as referências científicas emprega-
das por Merleau-Ponty, que fez um exaustivo apanhado do trabalho ex-
perimental da psicologia na primeira metade do século XX, apreciando
com maior interesse as descobertas de certos gestaltistas alemães -
Wertheimer, Kohler, Koffka e Goldstein, em especial -, mas não teria
como responder à vasta produção realizada na área ao final do século XX.
Os trabalhos clássicos deste grupo, entretanto, permanecem ainda refe-
rência importante - ver, por exemplo, Vernon (1974), Ramachandran e
Blakslee (2004; 2001), ou mesmo Sacks (2003), e outros. Já fizemos
menção, também, ao fato das teses da Fenomenologia da percepção, e mes-
mo os trabalhos de Husserl e Heidegger, estarem sendo retomados por
Varela e outros, de modo que - fazendo-se a ressalva de que muitos dos
trabalhos de enfoque localizacionista, que buscam os chamados
“correlatos neurais da consciência”, operam ainda com um modelo
cartesiano e representacionista da mente, que não pode dar conta do “in-
comensurável da experiência” (Noë e Thompson, 2004) - podemos nos
esquivar do fogo da ciência.
37 Ainda que a análise heideggeriana da questão da técnica tenha colocado adiscussão sobre a ciência em bases muito mais complexas e interessantes do
que simplesmente os compromissos ideológicos e seus laços com o poder
político e militar - dadas as fontes financeiras e a estrutura institucional que asustenta -, não deixa de ser curioso que Meyer passe ao largo desses proble-
mas e escreva O olho e o cérebro mantendo implícita uma tese idealizada da
ciência como puro conhecimento, na qual não se pode mais crer sem crítica.
38 “One of the oldest puzzles in psychology is the question of how language
evolved [...]. Alfred Russel Wallace was so frustrated in trying to answer this
that he felt compelled to invoke divine intervention. More recently, evenChomsky, the founding father of modern linguistics, has expressed the view
that, given the complexity of language, it could not have possibly evolved
through natural selection.”. (“Um dos mais antigos quebra-cabeças da psico-logia é a questão de como a linguagem evoluiu . Alfred Russell Wallace ficou
tão frustrado ao tentar responder essa questão que se viu forçado a invocar a
intervenção divina. Mais recentemente, mesmo Chomsky, o patriarca funda-dor da lingüística moderna, expressou a opinião de que, dada a sua complexida-
de, a linguagem não poderia ter evoluído por seleção natural”). (Ramachandran
e Hubbard, 2001:18-9).
No terreno da filosofia, as críticas a
Merleau-Ponty assumiram diversas formas. Já
em 1946, na apresentação à Sociedade France-
sa de Filosofia, Bréhier (Merleau-Ponty,
1990:71-2) manifesta um desconforto quanto
ao paradoxo de uma doutrina que quer retor-
nar ao pré-reflexivo ser posta em linguagem,
“De tal sorte que a sua doutrina”, diz, “para não
ser contraditória, deveria permanecer não
formulada, mas somente vivida”, já que falar
do imediato é “trair o imediato”. O salto da
percepção à linguagem não é um problema que
tenha sido resolvido nem pela filosofia nem
pela ciência.38 Merleau-Ponty tentará mais
adiante, num contexto já marcado pelas idéi-
as de Saussure e pelo ascendente discurso
56 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
lacaniano, encontrar uma resposta capaz de preservar o primado da per-
cepção, reconhecendo a autonomia da linguagem. Mas, se nossa leitura de
Merleau-Ponty é correta, não há necessariamente conflito entre a percep-
ção como “mute version of language, needing it to come to full speech”39 e
sua explicitação na linguagem, “so too language bears within it the residue
of its silent predecessor, which inaugurates the drama of meaningfulness
that is our destiny” (Jay, 1993:176)40. Guardados os limites deste trabalho,
a autonomia da linguagem recoloca o problema inesgotável da “diferen-
ça” e da “representação”, mas ainda não exclui a experiência como fonte
de significação. No conhecido trabalho de George Lakoff e Mark Johnson
(2002) sobre a metáfora, por exemplo, todo pensamento metafórico se ar-
ticula a partir do corpo e da experiência e só pode se compreendido a par-
tir de “dimensões que emergem de nossa experiência” (Lakoff e Johnson,
2002:269). Vimos também, há pouco, como a prática sistemática da obser-
vação da própria consciência deu a Natalie Depraz um significado renova-
do da redução husserliana. E ainda, a despeito das flutuações do pensamen-
to de Merleau-Ponty em busca da maturação de seus temas, segundo a nar-
rativa proposta por Jay, lê-se já na Fenomenologia da percepção:
“É função da linguagem fazer as essências existirem em uma
separação que, na verdade, é apenas aparente, já que através da
linguagem as essências ainda repousam na vida ante-predicativa
da consciência. No silêncio da consciência originária, vemos
aparecer não apenas aquilo que as palavras querem dizer, mas ainda
aquilo que as coisas querem dizer, o núcleo de significação primária
em torno do qual se organizam os atos de denominação e
expressão.” [Merleau-Ponty, 1994:12]
Em síntese, o que se sustenta neste belo parágrafo não são posições
triviais, e também aqui há uma solidariedade à noção de linguagem como
a “casa do ser”, que Heidegger formulará em sua famosa Carta sobre o
humanismo (1947), e retomará por diversas oportunidades.41 De forma que,
ainda aqui, nesse campo bastante complexo, pode-se sustentar ou perse-
guir teses centrais de Merleau-Ponty, cuja reflexão restou inacabada.
39 "versão muda da linguagem, precisando dela para acceder ao discurso pleno”.
40 “assim também a linguagem carrega dentro de si o resíduo do seu silente pre-
decessor, o qual inaugura o drama de significatividade que é nosso destino”.
41 Ver, por exemplo De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e umpensador (1959), em Heidegger (2003:71-120).
Os sentidos e o sentido da experiência 57
Dois problemas, nos parece, podem ser colocados à tese merleau-
pontyana com conseqüências mais interessantes. O primeiro engloba e
abriga de certo modo essa questão da linguagem, à qual nos referimos e em
seguida nos esquivamos, dada sua especificidade e complexidade: trata-se
da questão da percepção na cultura. O segundo deriva daí, e diz respeito à
percepção que possa ser característica da cultura ocidental moderna. Ora,
segundo aquilo que se depreende do primado da percepção que Merleau-
Ponty propõe, a cultura deve ser entendida como uma explicitação do per-
cebido. A percepção nos dá um mundo inacabado mas pleno de sentido,
um sentido que se desdobra em ato, gesto, razão − é razoável dizer, tam-
bém: linguagem. Na abertura primeira, aquém do certo e do errado, aquém
da lógica, aquém da objetividade e do julgamento, a redução poderia nos
permitir acessar, nestes “fios” que nos ligam ao mundo, modos de perce-
ber o tempo e o espaço, modos de perceber “coisas”, afetividades, dese-
jos, valores, pulsões − um leque de intencionalidade que é esta súbita apa-
rição do mundo para um sujeito numa época, num lugar, numa cultura.
Quando Walter Benjamin prepara sua impressionante análise do impacto
da tecnologia na cultura européia, em A obra de arte na época de sua repro-
dutibilidade técnica (1935) − e aqui começamos, pouco a pouco, a ultrapas-
sar os limites da fenomenologia −, toma essa variação dos modos de per-
ceber como uma de suas premissas:
“Ao curso dos grandes períodos históricos, juntamente com o modo
de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu
modo de sentir e perceber. A forma orgânica que a sensibilidade
humana assume − o meio no qual ela se realiza − não depende
apenas da natureza mas também da história.” [Benjamin, 1982:214]
Embora buscar uma “essência” da percepção implique buscar
aquilo que, nesse perceber, flutue de algum modo aquém da história e se
dê na aventura humana como um todo, em qualquer lugar e em qualquer
tempo − e vê-se então o risco implícito no projeto: convocar com tal
ambição o vivido pode implicar em novamente perdê-lo −, Merleau-
Ponty não ignora a circunstância histórica e cultural. Há uma tensão aí,
que certa forma anima a sua tese, já que se trata de buscar esse vivido da
experiência e ao mesmo tempo colocá-lo no patamar da conversação filo-
sófica moderna, que se quer operando além dos problemas colocados no
imediato. Quando se lê que:
58 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
“Quaisquer que possam ter sido os deslizamentos de sentido que
finalmente nos entregaram a palavra e o conceito de consciência
enquanto aquisição de linguagem, nós temos um meio direto de
ter acesso àquilo que ele designa, nós temos a experiência de nós
mesmos, dessa consciência que somos” [Merleau-Ponty, 1994:12],
é razoável entender-se que se fala de uma consciência que se su-
põe a mesma experimentada por Platão, Heráclito, pelo homem comum
egípcio e finalmente pelo homem de Lascaux, e que há um enorme risco
interpretativo aí implicado. Ou ainda, quando se tem que [a respeito da
noção de intencionalidade]:
“Quer se trate de uma coisa percebida, de um acontecimento
histórico ou de uma doutrina, ‘compreender’ é reapoderar-se da
intenção total − não aquilo que são para a representação as
‘propriedades’ da coisa percebida, a poeira dos ‘fatos históricos’,
as ‘idéias’ introduzidas pela doutrina − mas a maneira única de
existir que se exprime nas propriedades da pedra, do vidro ou do
pedaço de cera, em todos os fatos de uma revolução, em todos os
pensamentos de um filósofo. Em cada civilização, trata-se de
reencontrar a Idéia no sentido hegeliano, quer dizer, não uma lei
do tipo físico matemático, acessível ao pensamento objetivo, mas
a fórmula de um comportamento único em relação ao outro, à
Natureza, ao tempo e à morte, uma certa maneira de pôr forma no
mundo que o historiador deve ser capaz de retomar e assumir.”
[Merleau-Ponty, 1994:16]
Pode-se assumir que há aí a noção das transformações históricas
que a “opinião” atravessa − como em quando se fala em “perceber o
racionalismo segundo uma perspectiva histórica à qual ele pretendia es-
capar” (Merleau-Ponty, 1994:89) −, embora ainda não se possa supor
que a própria percepção esteja submetida a esta historicidade. Falar, no
entanto, em “intenção total” da percepção implica, de algum modo − con-
siderando tudo aquilo que já foi aqui discutido −, supor que toda esta
carga de historicidade incida sobre a intenção perceptiva. Mas, enfim,
quando se lê que:
“O trabalho que é ocasião desta comunicação é, quanto a isso, só
preliminar, posto que só fala brevemente da cultura e da história.
Sobre o exemplo da percepção − exemplo privilegiado, dado que o
objeto percebido está por definição presente e vivo − ele busca
Os sentidos e o sentido da experiência 59
definir um método de aproximação que nos dê o ser presente e
vivo e que deverá ser aplicado em seguida às relações do homem
com o homem, na linguagem, no conhecimento, na sociedade e na
religião, como o foi, neste trabalho, às relações do homem com a
natureza sensível ou às relações do homem com o homem no nível
do sensível. Chamamos esse nível da experiência de primordial,
para significar não que todo o resto deriva dele por transformação
ou evolução [...] mas no sentido de que revela os dados permanentes
do problema que a cultura busca resolver [...]” [Merleau-Ponty,
1990:64-5],
pode-se enfim reconhecer que, para além de uma conceituação
ideal de uma essência a-histórica da percepção, no projeto inacabado de
Merleau-Ponty não se perde de vista o epocal do vivido: o que se manifesta
como o empreendimento coletivo de uma cultura, abrigada num contexto
histórico, que explicita de um modo singular aquilo que a percepção inau-
gura. E, no entanto, do mesmo modo como sua ambição filosófica não foi
nunca a da ruptura em relação à tradição moderna,42 ou mesmo em rela-
ção a uma narrativa da modernidade − donde se pode ter um diagnóstico
dos sintomas descritos por Jay: talvez pareça um pouco forte, mas Merleau-
Ponty pode ser entendido como tendo vivido o paradoxo de ser um moder-
no no ocaso da modernidade −, a sua retomada do percebido, mesmo mu-
nida de instrumental para pensar a história e até mesmo a cultura, está mais
42 “Se a fenomenologia foi um movimento antes de ser uma doutrina ou um sis-
tema, isso não é nem acaso nem impostura. Ela é laboriosa como a obra de
Balzac, de Proust, de Valéry ou de Cézanne - pelo mesmo gênero de atençãoe de admiração, pela mesma exigência de consciência, pela mesma vontade
de apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente. Ela se
confunde, sob esse aspecto, com o esforço do pensamento moderno.” (Merleau-Ponty, 1994:20).
atada do que lhe foi possível calcular a certa his-
tória, e sobretudo a certa cultura perceptiva. De
fato, se ao tempo da Fenomenologia da percep-
ção Merleau-Ponty procura colocar todo o cor-
po em jogo, falando das traduções entre os
sentidos, do conhecimento perceptivo que só
pode se constituir numa “camada originária”
que é anterior à divisão dos sentidos − não
havendo partes do corpo mas somente corpo:
“[...] torna-se difícil limitar minha experiên-
cia a um único registro sensorial: espontane-
amente, ela transborda para todos os outros
[...]” (Merleau-Ponty, 1994:306) −, a própria
sustentação tomada às pesquisas da psicologia
já lhe obrigara ao emprego de exemplos pre-
dominantemente visuais, e a metáfora que
60 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
emerge mais freqüentemente é sempre a de um campo visual, de um ponto
de vista, de uma perspectiva. Em seus textos finais, a centralidade do olhar
torna-se explícita: em O Visível e o Invisível (1964), afirma que “certes, notre
monde est essenctiellement visuel; on ne ferait pas un monde avec des
parfums ou des sons”43, como lembra Ceitil (2001:42); e em O olho e o espí-
rito, ao mesmo tempo em que persiste a demanda a que a ciência
“torne a colocar-se num ‘há’ prévio, na paisagem, no solo do mundo
sensível e do mundo trabalhado tais como são em nossa vida, por
nosso corpo, não esse corpo possível que é lícito afirmar ser uma
máquina de informação,44 mas esse corpo atual que chamo meu, a
sentinela que se posta silenciosa sob minhas palavras e sob meus
atos” [Merleau-Ponty, 2004:14],
a música aparece como
“muito aquém do mundo e do designável para figurar outra coisa
senão épuras do ser, seu fluxo e refluxo, seu crescimento, suas
explosões seus turbilhões.”45 [Merleau-Ponty, 2004:15]
E, finalmente,
“O pintor é o único a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem
nenhum dever de apreciação” [Merleau-Ponty, 2004:15],
43 “Na verdade, o nosso mundo é principalmente e essencialmente visual. Não
se faria um mundo com perfumes ou sons.” Também em nota na Fenomenologiada Percepção, Merleau-Ponty afirma: “É verdade que os sentidos não devemser postos no mesmo plano, como se fossem todos igualmente capazes de
objetividade e permeáveis a intencionalidade. A experiência não os dá a nós
como equivalentes: parece-me que a experiência visual é mais verdadeira quea experiência tátil, recolhe em si mesma sua verdade e a acresce, porque sua
estrutura mais rica me apresenta modalidades do ser insuspeitas para o tato.”
(Merleau-Ponty, 1994: 641 n60).
44 E aqui logo se vê - como por todo o texto - a presença inescapável da cibernética.
45 Aqui, somos tentados a tomar o vocabulário de Meyer e falar em uma “impru-
dência” de Merleau-Ponty: O olho e o espírito foi o último texto publicado em
vida pelo fenomenólogo francês - portanto, devidamente revisado e sem oinacabamento dos escritos póstumos. Ora, em 1961, a música já estava pós
Schoenberg, Stravinsky, John Cage, Stockhausen, Shaeffer, Boulez etc. A sua
paixão pela pintura acaba abrigando sérias dificuldades na lide com as dis-cussões postas em jogo pela produção musical do século XX, e a verdadeira
luta ideológica travada aí, explicitamente no campo perceptivo.
Os sentidos e o sentido da experiência 61
para se concluir, mais adiante:
“É preciso tomar ao pé da letra o que nos ensina a visão: que por ela
tocamos o sol, as estrelas, estamos ao mesmo tempo em toda parte,
tão perto dos lugares distantes como das coisas próximas, e que
mesmo nosso poder de imaginarmo-nos alhures [...] recorre ainda
à visão, reemprega os meios que obtemos dela.” [Merleau-Ponty,
2004:43]
Num texto que retoma e atualiza as fundações de sua reflexão filo-
sófica, Merleau-Ponty acaba por expor também seu próprio irrefletido. Tal
é a conclusão, precisamente, de Martin Jay, que toma palavras de Luce
Irigaray: Merleau-Ponty “accorded an exorbitant privilege to vision - or,
rather he expressed the exorbitant privilege of vision in our culture” (apud
Jay, 1993:177)46. Ao localizar, de maneira extraordinária (e pode-se certa-
mente dizer: necessária, dados os laços que ligam uma filosofia a uma his-
tória), um vínculo anteriormente impensado entre percepção e sentido,
Merleau-Ponty não soube perceber o quanto a reflexão que inaugura está
sob tutela, restrita, limitada ela mesma por um modelo perceptivo: o
ocularcentrismo da cultura ocidental.
46 “concedeu à visão um privilégio exorbitante - ou ainda, expressou o privilégio
exorbitante da visão na nossa cultura”.
Capítulo II
Do ponto de vista aoponto de experiência
“E, clínico, abriu cada um dos meus olhos (porque eu só tenhodois?), e olhou bem dentro deles um olhar obsceno, imoral,um olhar frio, sem emoção, nem afeto, um olhar onde brilhavaapenas a branca luz de neon da lógica.”Paulo Leminsky, Agora é que são elas
“Tudo o que em mim sente está pensando.”Fernando Pessoa
Mesmo a tentativa de levantar apenas aspectos centrais da questão
da visualidade na cultura ocidental - conforme hoje se vê nas livrarias:
Einstein e a relatividade em 90 minutos1, em acordo com o modo absurdo
como experimentamos hoje o tempo cotidiano - escaparia dos limites deste
trabalho. Nosso objetivo aqui é muito mais procurar reassumir o lugar da
experiência perceptiva na constituição do sentido da experiência - para
sugerir uma estratégia através da qual pensar, mais adiante, alguns aspec-
tos do contemporâneo - do que proceder a uma retomada mais ampla de
um território já hiper-saturado de análises. No entanto, se pretendemos
mostrar o laço estreito entre esse pensamento da percepção que queremos
retomar e o modelo perceptivo que o limita, não podemos nos furtar a co-
locar em jogo alguns termos do chamado ocularcentrismo da cultura ociden-
tal. Poderemos assim, mais adiante, tentar revalidar de maneira singular
os aspectos da tese de Merleau-Ponty que nos parecem terem sido perdi-
1 Paul Strathern (1998).
64 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
dos pela discussão contemporânea, e o faremos justamente confrontando
esse modelo a modelos sensoriais de outras culturas - donde acreditamos
que ele se tornará cada vez mais evidente. O risco de colocar em jogo a
visualidade é grande: é um traço decisivo do Ocidente, e repor tal discus-
são de modo simplista incorre em equilibrar-se entre uma superficialidade
inútil e o discurso redundante. Talvez se possa fazê-lo, do modo sintético
que nos é necessário, a partir de um trabalho de arte, arejando um bocado
nossa discussão. Deixemos então o cubo de Necker, o pato-lebre e as ilu-
sões da Gestalt pelo Motivo perpétuo de Man Ray (1970).
Na ponta da haste de um metrônomo,
um olho. Trata-se de um remake de um traba-
lho original da década de 1920, Indestructrible
object. O surrealismo estava então em seu apo-
geu e buscava agredir tanto quanto possível o
senso comum, radicalizando algumas possibi-
lidades abertas pelo dadaísmo para liberar as
forças criativas e subversivas do inconsciente
na sociedade regulada pela ordem da razão.
Sem dúvida, o olho foi um dos alvos favoritos
dos surrealistas: Salvador Dalí, em suas “os-
tentações reacionárias”, nas severas palavras
de Giulio Argan (1992:361), jogou freqüen-
temente com o trompe l’oeil; Magritte, mais
conseqüente, praticou também a ilusão, mas
sobretudo submeteu o olhar cotidiano a um
escrutínio cuidadoso num grande número de
trabalhos que instalam sempre o poético pela
via do paradoxo - ainda nas palavras de Argan,
“Magritte tem a obsessão do banal e do misté-
rio, que muitas vezes faz coincidir”; ao lado de
Dalí - é preciso reconhecê-lo -, Luis Buñuel
submeteu, na tela espetacularizante de um ci-
nema ainda mudo, o olho, literalmente, ao gol-
pe impiedoso da navalha, em Un chien andalou
(1928). No gesto mais sutil de Man Ray, porém,
o olho antropomorfiza um singelo metrônomo.
Este pequeno aparelho é mesmo um signo a
um só tempo discreto e poderoso da mecani-
zação da Europa no século XIX, o século do
Man Ray: Man Ray: Man Ray: Man Ray: Man Ray: Motivo perpétuoMotivo perpétuoMotivo perpétuoMotivo perpétuoMotivo perpétuo (1970) - (1970) - (1970) - (1970) - (1970) - remake remake remake remake remake dededededeL’indestructible objet L’indestructible objet L’indestructible objet L’indestructible objet L’indestructible objet (1920)(1920)(1920)(1920)(1920)
Do ponto de vista ao ponto de experiência 65
“desencantamento do mundo”, do triunfo do capitalismo, da ruptura de-
cisiva com o que ainda restasse de uma tradição qualquer medieval pela to-
mada da paisagem urbana pela máquina e pelas formas de trabalho e de
poder daí derivadas. Criado em 1816 por um amigo de Beethoven, veio en-
tão o metrônomo juntar-se a esse quadro, eliminando a “desagradável” im-
precisão de ter-se de fazer uso de referências subjetivas e corporais - “an-
dante”, “allegro”, “grave” etc., fundadas na experiência vivida, é bom lem-
brar - para, finalmente, oferecer aos compositores, maestros e
instrumentistas, já de posse de uma linguagem plenamente esclarecida por
Haydn e Mozart, e ampliada de modo extraordinário por Beethoven, a pre-
cisão matemática aplicada ao andamento da composição! O metrônomo tra-
zia, enfim, um pouco de objetividade ao tempo musical. Decerto não se pode
ter como inocente a sua presença como objeto de contemplação, seu deslo-
camento duchampiano de acessório periférico, deixado sempre fora da cena
Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Luis Buñuel e Salvador Dali: Le chien AndalouLe chien AndalouLe chien AndalouLe chien AndalouLe chien Andalou(1928)(1928)(1928)(1928)(1928)
na música, a objeto estético no centro da cena.
No alto da haste do metrônomo, porém, há este
olho. Trata-se de um metrônomo ciclópico, e,
sobre a haste do aparelho, o olho pode oscilar de
um lado ao outro, pode escrutinar a cena de uma
multiplicidade picassiana de ângulos sem nun-
ca deixar de atrair soberanamente nossa aten-
ção, justamente por ser o olho, o motivo perpé-
tuo do pensamento ocidental. Esse oscilar, que
nunca fere a sua posição, é a própria síntese
das diversas “visões de mundo” que disputa-
ram a interpretação do conhecimento e do
mundo na modernidade - e que o surrealismo
tentou de tantos modos desafiar.
66 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
E o que é esse olho? Esse olhar que se sustenta a partir da máquina
é seu próprio criador, o olho que se dirigiu às coisas de um modo como
nenhum outro olhar, em nenhuma outra cultura: é o olho da razão. A par-
tir de diversas posições, a centralidade do olhar na cultura ocidental é rei-
terada seguidamente.2 Já em Platão3 a questão está posta, nas ilusões da
caverna, na verdade depositada na metáfora da luz, na definição do acesso
à verdade das idéias pelo “olho da mente”, na definição do eidos [aspecto,
forma].4 David Levin cita Hanna Arendt:
René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: René Magritte: False MirrorFalse MirrorFalse MirrorFalse MirrorFalse Mirror (1965) (1965) (1965) (1965) (1965)
2 Assumimos aqui posições que reaparecem em diversos textos em Levin (ed):Modernity and the hegemony of vision (1993). Heidegger parece ter sido o
primeiro a denunciar com clareza uma primazia da visão desde a Grécia. Por
exemplo, num texto que já citamos: “In theöria transformed into contemplatio,there comes to the fore the impulse, already prepared in Greek thinking, of a
looking-at that sunders and compartimentalizes. A type of encroaching advance
by sucessive interrelated steps toward that which is to be grasped by the eyemakes itself normative in knowing.” (“Na theöria transformada em
contemplatio, vem à tona o impulso, já preparado no pensamento grego, de
um olhar-para que separa e compartimentaliza. Um tipo de avanço abusivo porsucessivos passos interrelacionados em direção ao que é apreendido pelo olho
torna-se normativo no conhecer.”). (apud Jay, 1993:146).
3 Levin (1993:1) na verdade começa sugerindo um predomínio da visão já emHeráclito e Parmênides.
4 Em relação ao eidos, lê-se também em Heidegger (The age of the world picture,
1938): “Yet, in the other hand, that the beeingness of whatever is, is definedfor Plato as eidos [aspect, view] is the pressuposition, destined far in advance
and long ruling indirectly in concealment, for the world having to become
picture” (Heidegger, 1977:131).
5 “[..] desde os primórdios da filosofia formal, o pensamento foi concebido emtermos de ver [..] A predominância da visão está tão profundamente ermbutida
no discurso grego, e, portanto, na nossa linguagem conceitual, que raramente
encontramos uma consideração relativa a ela, que estava entre as coisas ób-vias demais para serem notadas”.
“[...] from the very outset, in formal
philosophy, thinking has been
thought in terms of seeing [...] The
predominance of sight is so deeply
embedded in Greek speech, and
therefore in our conceptual language,
that we seldom find any consideration
bestowed on it, as though it belonged
among things too obvious to be no-
ticed.” [apud Levin, 1993:2]5
Sem nos perdermos nessa origem gre-
ga do Ocidente, entretanto, tratemos de veri-
ficar a modernidade. Um historiador como
Crosby (1999) descreve minuciosamente a
passagem que a cultura européia experimen-
ta, na Baixa Idade Média, de um modelo qua-
litativo, em que quantias elevadas são mesmo
o sinônimo do infinito, do imensurável, do
Do ponto de vista ao ponto de experiência 67
incontável,6 a um modelo progressivamente quantitativo. A representação
visual é a chave desse “novo modelo”, em que se descobrira plenamente
os poderes da visão para medir tempo, espaço, compreender, representar
e, afinal, dominar todas as coisas.7
Falta ao relato histórico, talvez, a noção clara aos filósofos de que a
idéia de uma quantificação perfeita já estava implicada no modelo visual de
6 “Os artífices cristãos de números enveredaram pelo caminho da matemática
como sendo uma expressão de reverência. No século II, o bispo de Papias, umdos Padres da Igreja, escreveu que chegaria o dia em que as videiras cresceri-
am, cada qual com 10.000 galhos, e cada galho com 10.000 ramos, e cada
broto com 10.000 cachos, e cada cacho teria 10.000 uvas, e cada uva produ-ziria 25 ‘metros’ de vinho.” (Crosby, 1999:123)
7 “A contar das miraculosas décadas que cercaram a passagem para o século
XIV (décadas que não tiveram paralelo, em suas mudanças radicais de percep-ção, até a era de Einstein e Picasso) [...] Os europeus ocidentais desenvolve-
ram um novo modo, mais puramente visual e quantitativo do que o antigo, de
perceber o tempo, o espaço e o ambiente material.
“[...] em termos práticos, a nova abordagem foi simplesmente esta: reduza
aquilo em que você está tentando pensar ao mínimo exigido por sua defini-
ção; visualize-o no papel, ou, pelo menos, em sua mente, quer se trate da os-cilação dos preços na região de Champagne, ou da trajetória de Marte pelos
céus; e depois divida-o, de fato ou na imaginação, em unidades quantitativas
iguais. A partir daí você poderá medi-lo, isto é, contar as unidades. Você pos-suirá então uma representação quantitativa de seu tema, isto é, por mais
simplificada que ela seja, [...] uma representação exata. Poderá pensar nela
com rigor. Poderá manipulá-la e fazer experiências com ela [...].
“[...] Visualização e quantificação: juntas elas fecharam o cadeado, e a reali-
dade foi posta a ferros.” (Crosby, 1999:211-3).
8 Ver por exemplo, A república, livro X: a melhor parte de nossa alma é “aquela
que dá fé à medida e ao cálculo” (Platão, 1966:391)
9 “Os monoteístas ocidentais, lutando no início da Idade Média para estabele-
cer o monoteísmo entre fiéis politeístas e animistas, tinham certeza de que só
havia uma maneira certa de fazer as coisas e apenas uma versão correta decada canto: eles precisavam de um meio de escrever música. Os monges pro-
duziram a notação neumática. Durante gerações, ela foi pouco mais do que
uma coletânea de sinais, derivados dos antecedentes clássicos gregos e roma-nos de nossos acentos agudo, grave e circunflexo da língua escrita, menos per-
tinentes ao tempo do que ao som relativo. O que chamaríamos de acento agudo
indicava uma subida de tom; o acento grave, uma queda; e o circunflexo, umasubida seguida de uma queda. Esses sinais, ao lado de pontos e arabescos que
indicavam variações mais sutis − crescendos, pausas e vibratos −, eram cha-
mados neumas, palavra derivada do grego e que significa sinal, ou, mais pro-vavelmente, respiração. Eles não necessariamente diziam respeito a notas iso-
ladas, mas a sílabas do texto. Os neumas estavam para as notas como as pa-
lavras para os fonemas.” (Crosby, 1999:140-1)
10 Mesmo Descartes tendo desacreditado os sentidos e reservado à razão a fa-
culdade de desfazer as ilusões dos sentidos, regra geral há concordância em
que sua inspeção é construída por metáforas visuais, a começar pela distinçãoluz (conhecimento) - escuridão. Ver por exemplo Crary (1990).
razão concebido por Platão.8 De todo modo, cál-
culos, mapas, a notação musical - cuja estrutu-
ra deriva da escrita -9, a perspectiva - o olho do
sujeito, aliás ciclópico -, o uso de dispositivos
ópticos para a observação dos astros, e, por fim,
a escrita impressa, que “aumentou o prestígio
da visualização e acelerou a difusão da
quantificação” e “foi muito mais importante do
que a queda de Constantinopla” (Crosby,
1999:214), constituíram um cenário de que
emerge uma racionalidade “precisa, pontual,
calculável, padronizada, burocrática, rígida,
invariável, meticulosamente coordenada e ro-
tineira” (Zerubavel, apud Crosby, 1999:214),
sustentada na potência do olhar que a tudo fita
à distância, sem confundir-se com as coisas: o
sujeito cartesiano, que se apodera de seus
objetos.10 O destaque atribuído por Crosby à im-
prensa na consolidação de uma cultura visual, já
que, através dela, o Ocidente passava a “apren-
der fitando marcas padronizadas no papel”, rei-
tera a conhecida tese de Marshall McLuhan em
sua Galáxia de Gutenberg (1962): a invenção do
alfabeto, representação visual da fala, instalara
já na Grécia um lugar privilegiado para a visão
na formalização do conhecimento. Ao multipli-
car em termos precocemente industriais a pa-
lavra escrita, a imprensa torna a experiência do
conhecimento um ato visual, silencioso e indi-
vidual, em oposição a um modelo anterior, em
que os livros eram lidos em voz alta nas biblio-
tecas. De fato, a escrita impressa retira o caráter
oral da reflexão, confere ao livro o lugar de prin-
68 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
cipal instrumento do conhecimento, e substitui, como mediador principal
do saber e do poder,11 o ouvido pelo olho.12 De modo que, enquanto Leonar-
do da Vinci reivindica, como lembra Benjamin,13 a superioridade da pintu-
ra, a imagem fixa, duradoura e autônoma das coisas, perante o efêmero da
música, que depende de sua execução, Galileu, de posse de um telescópio,
pensa o universo como livro:
“A filosofia está escrita nesse grande livro, o universo, que se abre
permanentemente diante de nossos olhos, mas o livro só pode ser
compreendido se primeiro aprendermos a compreender a
linguagem e a ler as letras de que se compõe.” [apud Crosby,
1999:222]
Mas, em especial, a escrita alfabética do Ocidente não é somente o
predomínio de um modelo visual. Trata-se da fixação de um olhar
linearizado, fragmentador, sequencial, narrativizado: o olhar da razão me-
cânica que daí em diante não cessa de celebrar seus feitos, o maior deles a
tecnologia moderna.14 Assim, quando Heidegger define a modernidade
11 Laporte (2000:2-9) narra de modo curioso o lugar da palavra impressa na
organização do poder − a publicação de cópias impressas, em lugares públi-
cos, dos decretos de rei da França no século XVI, com o objetivo de governare unificar a língua nacional.
12 Crosby reitera essa transição, um fato favorito de McLuhan (por exemplo,
1995:240): “Uma sociedade [séc. XIII] em que o principal canal da autoridadeera o ouvido, inclinado para a recitação das escrituras e para os Padres da Igreja,
bem como para a soporífera repetição dos mitos e poemas épicos, começou a
se transformar numa sociedade em que preponderava o receptor da luz: o olho.”(Crosby, 1999:132-3). Howes (1993:10) trabalha, na antropologia, alguns dos
caminhos abertos por essa famosa distinção mcluhaniana “an eye for an ear”
(“um olho por um ouvido”). (por exemplo, McLuhan e Fiore, 2001a:44).
13 “Comparando a música e a pintura, escreve Leonardo: ‘A superioridade da
pintura sobre a música reside em que, desde o momento em que é chamada a
viver, não há mais razão para que morra, como é o caso, pelo contrário, da pobremúsica. [...] A música que vai se consumindo enquanto nasce, é menos digna
que a pintura, que com o verniz se faz eterna.’ (Trattato della pintura. primeira
parte, § 25, 27)” (apud Benjamin, 1982:230 n22)
14 A tese de McLuhan reaparecerá neste trabalho. Durante as duas décadas (1960-
1970) em que se deu sua produção mais conhecida, McLuhan não deixará de
reiterar e verificar diferentes aspectos de sua tese central, que reaparecem emtodas as suas obras. Por exemplo: “A passage to India by E. M. Forster is a
dramatic study of the inability of oral and intuitive oriental culture to meet with
the rational visual European patterns of experience. ‘Rational’, of course, hasfor the West long meant ‘uniform, and continuous and sequential’” (“Uma pas-sagem para a India, de E. M. Forster, é um estudo dramático da incapacidade
da cultura oriental, oral e intuitiva, de encontrar-se com os padrões europeus,racionais e visuais, da experiência. ‘Racional’, é claro, significou para o Ocidente
‘uniforme, e contínuo e sequencial’”) (McLuhan, 1995:157).
Do ponto de vista ao ponto de experiência 69
como “a era da imagem do mundo” (1938), em que a visualização se torna
o grande poder do homem, a máquina é a conclusão deste modelo visual:
“Machine technology remais up to now the most visible outgrowth
of the essence of modern technology, which is identical with the
essence of modern metaphysics.” [Heidegger, 1977:116]15
Vê-se bem aí o que é o metrônomo, esse pequeno objetivador do
tempo, o tempo mecânico, linearizado e mensurável, de uma era em que o
próprio infinito foi posto pelo olhar, na perspectiva, ao alcance da mão. A
partir de Descartes, o olho oscilará em diversas posições, racionalistas,
empiristas, idealistas, românticas, positivistas, existencialistas etc.. Tam-
bém os aparatos ópticos se multiplicam, modificam-se os modos de exer-
citar o olhar e as imagens da paisagem: as lentes, os microscópios, a câmera
escura, os zootrópios, taumatrópios, estereoscópios, praxinoscópios, pa-
noramas, fotografia, cinema, vídeo, infoimagens... Na contempora-
neidade, Derrida, Levinas, Foucault procurarão questionar seu estatuto.
Mas, ao fazê-lo - e, aliás, ao fazê-lo através do texto escrito -, não podem
abalar sua posição primordial. O surrealismo também não o pôde. Trata-
se do objeto indestrutível. Não é por acaso, então, que a percepção descri-
ta por Merleau-Ponty é o texto mudo que dá gênese à razão: a percepção de
Merleau-Ponty é a percepção do Ocidente.
Como já vimos, lá mesmo em Merleau-Ponty, não obstante o seu
recuo posterior ao olhar, a percepção, porém, não é apenas visão. Marshall
McLuhan cunhou bem a expressão “sensorial bias” - “arranjo dos sentidos”
- para sugerir que o campo perceptivo não deve necessariamente estar
definido por este ou aquele arranjo, e comporta alternativas. Mas essa
racionalidade sustentada pela primazia de certo modo de visão - e basta
olharmos a paisagem urbana para verificarmos as marcas desta história do
ocidente: a inundação de imagens em que habitamos - fundou, com a no-
ção de sujeito, a de indivíduo. A perspectiva, como bem demonstrou
15 “A tecnologia da máquina continua a ser até agora uma decorrência da essên-cia da tecnologia moderna, que é idêntica à essência da metafísica moderna.”
70 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Panofsky, num trabalho clássico,16 instala o sujeito na posição de doador
do sentido do mundo, a partir da posição que escolhe para ordenar a cena.
Que o modelo ocularcêntrico tenha mantido sua vigência, motivo perpétuo,
a despeito das diversas posições que buscaram rever os modos desse olhar,
é mesmo a prova de quanto essa fundação da experiência ocidental perma-
neceu inacessível ao pensamento moderno. Mas a noção de indivíduo abre
um espaço, também, para experiências divergentes, desde que dispostas a
pagar o preço de uma posição que não se articula facilmente com o senso
comum. Se o modo como estamos tentando pensar aqui a percepção, as-
sociando os sentidos, sentido e sentido, deve ser reafirmado por diferentes
significações que a realidade possa assumir segundo diferentes arranjos
do campo perceptivo como um todo, talvez possamos começar procuran-
do alguns exemplos próximos de como a fuga do modelo de percepção do-
minante apresenta o espetáculo do mundo (mesmo já sabendo que
espetáculo, que nos remete a espectador, guarda inescapável vínculo com a
primazia da visão) com sentido distinto daquele que é senso-comum. Por
exemplo, as experiências com haxixe de Walter Benjamin, ou os transes de
mescalina de Aldous Huxley.
Em Rua de mão única (1932), Benjamin também faz, em seus ter-
mos, o diagnóstico do modelo visual:
“Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto a sua
entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece.
O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia,
no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe
certamente não eram movidos unicamente por impulsos
científicos. Mas, no entanto, há no acentuar exclusivo de uma
vinculação óptica com o universo, ao qual a astronomia muito em
breve conduziu, um signo do que tinha que vir. O trato antigo com
o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez.” [Benjamin,
1997:68]
Segundo Gagnebin (1996), nos “textos fundamentais dos anos
[19]30 [...], Benjamin retoma a questão da ‘experiência’, agora dentro de
uma nova problemática: de um lado demonstra o enfraquecimento da
‘erfahrung’ [experiência tradicional, coletiva] no mundo capitalista em
16 Die Perspektive als “symbolishe Form” (1920). A perspectica como forma sim-bólica, edição portuguesa de 1999.
Do ponto de vista ao ponto de experiência 71
detrimento da ‘erlebnis’, a experiência vivida, característica do indivíduo
solitário.” Benjamin havia mergulhado ele próprio nas possibilidades sin-
gulares dessa experiência privada desde o final dos anos 20, entregando-
se à embriaguez do haxixe em diversas oportunidades, relatadas às vezes
por ele mesmo, às vezes por Ernst Bloch ou pelos psicólogos com quem
colaborou.17 Dos textos de Haxixe emergem diversas descrições de varia-
ções no modo de perceber o mundo, sob as quais este revela-se como ines-
gotável fonte de sentidos. Ao recontar uma narrativa do pintor Eduard
Scherlinger, registra:
“Para quem comeu haxixe, Versalhes não é grande o bastante, e a
eternidade dura um átimo. Por trás das gigantescas dimensões da
experiência íntima, por trás da duração absoluta e do espaço
imensurável, persiste no sorriso beatífico um humor prodigioso,
que se atiça ainda mais diante da ilimitada ambigüidade de todas
as coisas.” [Benjamin, 1984:22]18
À medida que descreve o transe com o haxixe, o campo perceptivo
se impõe. Tempo e espaço se transformam, uma praça modifica-se a cada
passante, a “intensidade das impressões acústicas” se impõe sobre todas
as outras, e Benjamin descobre, não sem um maravilhamento que certa-
mente agradaria a Merleau-Ponty, visto que mostra ao mesmo tempo o
inesgotável e o em si do real: “É incrível como as coisas resistem aos olha-
res”. Sob efeito do haxixe, Benjamin parece instalar-se ali onde a percep-
ção descrita por Merleau-Ponty opera: sons, aromas, cores, o toque de sua
bengala, tornam-se extraordinariamente expressivos; e, finalmente, a
lembrança de uma curiosa frase de Jensen19 permite confrontar “o senti-
do político e racional que eu lhe atribuíra com o sentido mágico e indivi-
17 Ernst Joël e Fritz Fränkel (ver Benjamin, 1984).
18 Curiosamente, este parágrafo reaparece em Haxixe em Marselha (Benjamin,
1984:29): “Agora faz-se valer aquela necessidade de um tempo e de um es-
paço desmedidos que caracteriza o comedor de haxixe. Como é sabido, essanecessidade é soberana e absoluta. Para quem comeu haxixe, Versalhes não é
grande o bastante, e a eternidade dura um átimo. Por trás das gigantescas
dimensões da vivência íntima, por trás da duração absoluta e do espaçoimensurável, persiste entretanto um humor prodigioso e beatífico que se atiça
ainda mais diante das contingências de espaço e tempo.”
19 “Richard era um jovem que se interessava por tudo o que fosse idêntico nessemundo” (apud Benjamin, 1984:34).
72 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
dual revelado ontem por minha experiência” (Benjamin, 1984: 32-6).
Quando se põe a fazer um balanço do transe propiciado pelo haxixe, conclui:
“[...] as formas isoladas, integrando-se nos mais diferentes grupos,
permitem quase sempre inúmeras configurações. Basta essa
constatação para que se evidencie uma das propriedades intrín-
secas do êxtase: sua incansável disposição para emprestar a um mesmo
estado de coisas - por exemplo, um cenário ou uma paisagem - os mais
diferentes aspectos, conteúdos e significações.” [Benjamin, 1984:38;
grifo nosso]
O transe do haxixe, tal qual relatado por Benjamin, revela, porém,
menos uma posição nova em relação ao campo perceptivo, do que a dis-
solução do sentido de mundo percebido no registro perceptivo dominan-
te, e sua substituição por um regime instável, onde os sentidos se multi-
plicam mas não chegam a assumir um caráter mais definido, exceto tal-
vez um certo sentido “mágico”, que lhe permite - e Merleau-Ponty
também apreciaria - perceber melhor o sentido da “racionalidade”. Por
fim, resta um narrador, já fora do transe - ou talvez possamos dizer: já
retornado do transe individual ao transe coletivo - que recupera aquela
experiência individual nos termos do acordo coletivo, lançando-a, como
texto, no caldo da cultura.
Talvez pudéssemos ter buscado nos Paraísos Artificiais de Baudelaire
e de Quincey também alguns relatos de uma percepção individual trans-
formada pelo efeito de algum agente externo. Decerto, Benjamin, o gran-
de leitor de Baudelaire, deve ter sido de algum modo inspirado pelo poeta
francês em suas incursões pelo haxixe. Tomemos, porém, a célebre aven-
tura de Aldous Huxley com a mescalina, o cacto alucinógeno cultuado pe-
los índios do México. Em 1953, mais de vinte anos após Admirável Mundo
Novo (1931) e suas pílulas de felicidade, Huxley mergulha, em As portas da
percepção, nas possibilidades abertas pela alteração da experiência
perceptiva. Admirador de uma tradição visionária que inclui Blake - de cujo
longo poema The marriage of heaven and hell (1790-1792)20 retirou o título
de seu relato -, Swedenborg, Ekhardt, Buda e outros, Huxley ingere a
mescalina na expectativa de experimentar o mundo das revelações místi-
cas, e é possível que tal expectativa tenha de algum modo hipotecado suas
20 O verso célebre de Blake é: “if the doors of perception were cleansed, everythingwould appear to man as it is: Infinite”. (“se as portas da percepção fossem
purificadas, tudo apareceria tal como é: Infinito”).
Do ponto de vista ao ponto de experiência 73
impressões, que podem ser lidas como uma espécie de manifesto místico
que terá sempre seus simpatizantes e seus detratores. Entretanto, quando
se lê seu texto segundo o modo de pensar a experiência perceptiva que
estamos propondo, esta emerge uma vez mais como gênese de sentido.
Não há dúvida para Huxley de que seu gesto visa libertar-se da
“percepção ordinária”. Já na etapa final de seu texto lê-se:
“Ver-se livre da rotina e da percepção ordinária, ser-lhe permitido
contemplar, por umas poucas horas em que a noção de tempo se
esvai, os mundos interior e exterior [...] − eis uma experiência de
inestimável valor para qualquer indíviduo.”21
De acordo com Huxley, a percepção ordinária é demasiadamente
limitada ao que é útil e, se os sentidos são libertos dessa vigência, há um
acesso a uma verdade das coisas que não condiz com o sentido prático do
real. Não se trata, porém, de um mundo alucinatório. Não é assim que este
se apresenta:
“O outro mundo ao qual a mescalina me conduzira não era o mundo
das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com meus olhos
abertos.” [Huxley, 1965:6]
Trata-se, antes, de uma mudança nos termos do contrato. Muito
embora o intelecto não sofra mudança perceptível (Huxley, 1965:12-3), as
categorias de tempo e de espaço perdem seu sentido habitual de modo si-
milar ao relato de Benjamin com o haxixe, e Huxley descreve uma inver-
são da hierarquia das qualidades definida pelo olhar da filosofia clássica:
as chamadas “qualidades primárias” (aquelas que poderiam ser exatas,
objetivamente medidas) tornam-se secundárias; ao passo que as chama-
das “qualidades secundárias” (aquelas dependentes da apreensão
subjetiva) tornam-se primárias:
“A mescalina aviva consideravelmente a percepção de todas as cores
e torna o paciente apto a distinguir as mais sutis diferenças de matiz
que, sob condições normais, ser-lhe-iam totalmente imper-
ceptíveis. Poder-se-ia dizer que [...] os chamados caracteres
21 Para maior clareza na nossa abordagem, procuraremos despir as citações deHuxley de alguns conceitos ali introduzidos por ele, como “Onisciência” e
“Peculiaridade”, por exemplo, que trazem uma carga semântica demasiada-
mente mística, que nos parece desviar um pouco a leitura. Acreditamos nãoter mutilado o sentido original nem feito uma apropriação indevida, fora de
contexto, das citações utilizadas.
74 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
secundários das coisas seriam os principais. Contrariamente a
Locke, [...] consideraria as cores dos objetos como mais
importantes e, pois, merecedoras de maior atenção que suas
massas, posições e dimensões.” [Huxley, 1965:14]
Sob essa gestalt alterada, operante fora dos padrões utilitários de-
terminados pela sua experiência cotidiana, Huxley, embora comunican-
do-se normalmente com sua esposa e o médico que lhe acompanham, vê
emergir para si um “mundo” completamente distinto daquele da experi-
ência ordinária:
“Ambos [esposa e psicólogo] pertenciam a um mundo do qual,
naquela ocasião, a mescalina me havia tirado − o mundo dos
personalismos, da dimensão tempo, dos julgamentos morais e das
considerações utilitárias.”[Huxley, 1965:20]
Talvez, porém, nenhum momento n’As portas da percepção dê uma
noção mais clara da mudança do sentido das coisas - que por sinal apare-
cem, para Huxley, “como elas são: infinitamente importantes” (Huxley,
1965:19) - do que o sentido que adquire a contemplação da obra de arte.
No arranjo da nossa cultura, a arte, como modernamente a entendemos,
tem sido considerada como campo do sensível e das questões perceptivas -
essa posição reaparece em vários autores, e é mesmo sugerida por Brehier
a Merleau-Ponty: que a tese do retorno ao vivido faria mais sentido como
poesia ou literatura do que como filosofia (Merleu-Ponty, 1990:72). Sabe-
se bem dos escândalos causados pelas obras das vanguardas modernas, na
pintura como na música, pela maneira como chocaram o hábito perceptivo.
Para o Huxley tomado pela percepção alterada pela mescalina, no entanto,
as pinturas modernas aparecem muito mais como manifestações do modo
de cotidiano de perceber, do que como divergências:
“[...] quais os quadros e esculturas que contribuíram para a
experiência religiosa de San Juan de la Cruz, de Hakuin, de Hui
Neng ou de William Law?22 Estas indagações estão além das minhas
possibilidades de resposta, mas tenho a convicção de que a maioria
dos grandes amantes da Peculiaridade23 pouco se preocupavam com
a arte − alguns, recusando-se simplesmente em levá-la em conta;
22 Respectivamente, santo e pensador católico (séc. XVI), mestre zen (séc. XVIII),
mestre zen (séc VI-VII) e místico inglês (séc. XVII-XVIII).
23 “Peculiaridade” é como Huxley nomeia a experiência visionária que dá aces-
so a esta verdade pura de todas as coisas.
Do ponto de vista ao ponto de experiência 75
outros, contentando-se com trabalhos que olhos de crítico
classificariam como de segunda ou mesmo de décima classe. [...]
A arte, creio eu, interessa apenas a principiantes, ou então a essas
obstinadas mediocridades que decidiram-se satisfazer com a
contrafação da Peculiaridade, com símbolos em lugar daquilo que
estes significam, com o cardápio elegantemente apresentado ao
invés da própria refeição.” [Huxley, 1965:16]
A arte, enfim, aparece ao Huxley tomado pela mescalina − e trata-
va-se de um quadro de Van Gogh! − como uma curiosidade de uma cultura
demasiadamente dependente dos sistemas de representação, incapaz de
relacionar-se com o real senão por meio de mediações que são meras fal-
sificações baratas da riqueza infinita das coisas elas mesmas. Mas Huxley
sabe que trata-se de uma visão distinta, e que não permanecerá para sem-
pre no reino dos visionários:24
“Pelo que me toca, nessa memorável jornada de maio, pude tão-
somente ser grato a uma experiência que me revelou, mais
claramente do que eu jamais pude discernir, a verdadeira natureza
do desafio [de ver o mundo] e o cunho inteiramente emancipador
da resposta.” [Huxley, 1965:25]
Uma vez mais, a experiência vivida permite compreender melhor
os limites e a natureza do senso comum e suas implicações em determinar
um sentido dominante e um modo de experiência do mundo, fora do qual
mesmo o que julgamos modos divergentes de lide com o sensível são sis-
temas altamente codificados e inseridos no leque da experiência aberta
pelo modo de perceber da cultura. Por fim, Huxley reconhece a impossi-
bilidade de habitar, neste ambiente, num transe permanente, mas reitera
o campo perceptivo, aquém da normatização sistemática, como a fonte e
berço do sentido do mundo:
“Raciocínio sistemático é algo sem o qual nós, seja como espécie ou
como indivíduo, não podemos passar. Mas creio que tampouco
podemos prescindir da percepção direta − e quanto menos
24 Há mesmo algumas considerações interessantes sobre a pintura pré-moderna
− Botticelli, Vermeer, El Greco, Rembrandt e outros − que mostram não ape-
nas a erudição de Huxley mas o modo como as obras podem ser vistas semprede ângulos renovados. Ver Huxley (1965:17-25).
76 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sistemática melhor − dos mundos exterior e interior que nos
serviram de berço.” [Huxley, 1965:49]
Novamente, as transformações no campo perceptivo, o desloca-
mento da gestalt, do modo de equacionar o sentido da experiência, dos ter-
25 Enfim, o que permite a Benjamin e Huxley trazerem suas vivências ao relato é
um domínio extraordinário da linguagem. Há notas de grande interesse sobre
a linguagem em ambos os textos. Huxley, por exemplo, escreve: “Cada um denós é a um só tempo beneficiário e vítima da tradição linguística dentro da qual
nasceu − beneficiário, porque a língua nos permite o acesso aos conhecimen-
tos acumulados oriundos da experiência de outras pessoas; vítimas, posto queisso nos leva a crer que esse saber limitado é a única sabedoria que está a nosso
alcance; e isso subverte nosso senso de realidade, fazendo com que considere-
mos essa noção como expressão da verdade e nossas palavras como fatos re-ais. Aquilo que, na terminologia religiosa, recebe o nome ‘este mundo’ é ape-
nas o universo do saber reduzido, expresso e como que petrificado pela limita-
ção dos idiomas” (Huxley, 1965:11). Em Benjamin, aqui no relato de Ernst Bloch(Benjamin, 1984:99), “O fato que emblemas heráldicos possam comportar-se
como espelhos, e de que haja uma transferência dos reflexos da água para os
brasões, inspira o paciente a escrever o seguinte verso: ‘Jorram vagas − trans-bordam armas’ (‘Wellen schwappen − Wappen schwellen’). Depois de várias
tentativas, esta sequência de palavras foi considerada a mais satisfatória. O
paciente [Benjamin] atribuía grande valor a este verso, convencido de que aíse reproduz lingüisticamente a mesma simetria espelhada das imagens e bra-
sões, e não de forma imitativa, mas em identidade original com as imagens
ópticas. O paciente declara com ênfase: ‘ quod in imaginibus, est in lingua’ [‘oque está na imaginação também está na linguagem’].”
26 Como curiosidade, nota-se que não estavam assim tão distantes: o mais im-
portante livro de Huxley, Admirável Mundo Novo é de 1931, a década dos“textos fundamentais” de Benjamin, que, por sinal, cita Huxley em longa nota
em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (Benjamin,
1984:228 n20).
mos que regem o contrato com o real, faz sur-
gir um cenário que não difere em seu em si -
nem por um momento Huxley duvida que as
coisas que percebe sejam as mesmas que se
dão a perceber para seus companheiros: tra-
ta-se de percebê-las de outro modo -, mas é sin-
gular em sua significação e só pode ser parti-
lhado no relato que o traz aos termos do acor-
do coletivo da cultura.25 A vivacidade com que
Benjamin e Huxley26 conseguem nos apresen-
tar seus mundos em transe é, naturalmente,
mérito do talento extraordinário com que ar-
ticulam seus relatos. Conquanto nos pareça
que ambos ilustram de maneira exemplar essa
tese da percepção que investigamos, o lugar
que neles ocupa a visão deve ser notado: en-
quanto o relato de Benjamin é predominan-
temente visual, ainda que abrigue uma multi-
plicidade de sensações táteis, olfativas, sono-
ras - há uma riqueza sensorial que emerge nos
cafés, nos sons que ouve, no vento que move
as cortinas - Huxley, pode-se dizer, reside em
seus olhos. Não obstante esteja determinado a
deixar a percepção cotidiana, não pode liber-
tar-se de uma fundação muito mais profunda
inscrita em seu modo de perceber pela cultu-
ra em que habita, a vigência soberana do olhar
- não há aromas nos jardins, toques de ben-
gala, ruídos da cidade. É o caso, talvez, de nos
perguntarmos pelas possibilidades divergen-
Vincent Van Gogh: Vincent Van Gogh: Vincent Van Gogh: Vincent Van Gogh: Vincent Van Gogh: Quarto em Arles Quarto em Arles Quarto em Arles Quarto em Arles Quarto em Arles (1889)(1889)(1889)(1889)(1889)
Do ponto de vista ao ponto de experiência 77
tes da percepção não apenas aparte dos transes alucinógenos, mas cons-
tituídas a partir de uma ordenação de mundo baseada em outras configu-
rações do campo perceptivo como um todo.
Merleau-Ponty buscara um retorno ao percebido, mas dissera que
só podemos constituir mundo a partir da visão e seu modo de apreensão
do mundo - um campo visual, com limites indeterminados, mas, enfim,
limites; em que, desde que esteja convenientemente iluminado, tudo tem
formas definidas, contornos; aquilo que é visível se apresenta com certa
permanência, ao mesmo tempo em que é apreensível à distância; as coi-
sas se apresentam “claras” e o pensamento pode ser “lúcido”. A filosofia
ergueu-se sobre esse olhar que constitui a paisagem calculável por uma ge-
ometria capaz de sintetizá-la em formas (visuais) ideais, abstratas; um
olhar que, malgrado as críticas que lhe tenham sido feitas, Merleau-Ponty
procurou ao menos recolocar numa posição esquecida, num berço primei-
ro, e de certo modo Benjamin e Huxley nos ajudaram a ilustrar esta posi-
ção. Mas, afinal, porque os demais sentidos não poderiam constituir mun-
do? Se a filosofia se fez a partir do olhar, pode-se perguntar, como faz Maria
João Ceitil (2001:42): “O que é que o mundo dos filósofos tem a ver com o mundo
dos jardineiros, dos perfumistas e dos músicos?” Mais ainda, porque o tato, por
exemplo, que me compromete com a resistência do em si e não me autori-
za mais a distância, não poderia fazer mundo? Ora, num mundo em que
reconheço “Eu- o outro - as coisas”, como propõe Merleau-Ponty, toco e
sou tocado, pelos outros e pelas coisas.
Recordemos um pouco algo do tato: aquilo que se oferece a meus
olhos pode ser uma miragem; o canto da cigarra me confunde; os aromas
do mundo, só os percebo na volatilidade da sensação; e os sabores desa-
parecem se tenho minhas vias respiratórias de algum modo comprometi-
Laerte, na Folha de São Paulo (2004) Laerte, na Folha de São Paulo (2004) Laerte, na Folha de São Paulo (2004) Laerte, na Folha de São Paulo (2004) Laerte, na Folha de São Paulo (2004)
78 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
das. Mas este chão em que piso, seja ou não uma aparência, não posso negá-
lo. Meus pés caminham sobre ele confiantes, e, passa a passo, o tocam. Aqui
e ali, objetos se interpõem em meu caminho, ou se oferecem a minhas
mãos. Essas percorrem superfícies que se mostram ásperas como são as
paredes, ou macias e suaves como a pele de uma criança. Secas e leves como
a farinha ou em grãos mais pesados e por vezes úmidos como a areia, ou
macilentas como a argila. Por outro lado, sou tocado e conheço um pouco
do outro quando sinto mãos que cumprimentam a minha mão com firme-
za, ou molengas como geléia, ou que a seguram com afeto e cumplicidade -
me reunem à companheira - ou mesmo ansiosamente, em busca de segu-
rança; minha pele recebe carinhos, atribui ao outro todo tipo de emoções
pela maneira como me toca. Retribuo este toque também tocando, e meu
toque, assim como aquele que recebo, é tão cheio de significados. E posso
mesmo me tocar: se minhas mãos seguram-se uma à outra, já não sei quem
toca ou é tocado,27 há um curto-circuito que de modo algum me confunde:
apenas fecha-me em mim mesmo. Essa intimidade inescapável com que
o tato nos integra ao mundo desestabiliza imediamente a distância regular
e descomprometida própria ao exercício da razão. Um dos relatos de Oliver
Sacks ilustra bem o mundo inaugurado pelo tato. Em Mãos, Madeleine J.,
uma senhora de 60 anos, cega, que jamais havia usado as mãos - mas cujas
capacidades sensoriais estavam na realidade intactas -, é levada finalmente
a empregá-las; e descobre pela primeira vez a impressão táctil, ao buscar,
tendo fome, um pão deixado propositadamente no raio de seu alcance.
Descobre, na “qualidade de bagel”,28 o prazer do tocar. Dessa vivência
fundante, em que o ego se entrelaça ao alter e se abre às coisas pelo toque -
“esse tipo de reconhecimento, não analítico mas sintético e imediato” -,
emerge, para Madeleine, a descoberta de um verdadeiro universo, um
“mundo cheio de encanto, mistério e beleza”. (Sacks, 2003:79).
A artista brasileira Lygia Clark, num conjunto de trabalhos reali-
zados nas décadas de 1970 e 80, explorou de modo extraordinário as
27 Este exemplo é de Merleu-Ponty, na Fenomenologia da percepção, e vê-se como
houve mesmo esse recuo em sua fase final, deixando de lado territórios aber-tos em seu trabalho de 1945, em benefício da primazia do olhar.
28 O bagel é um pão judaico. Note-se que, uma vez mais, não há qualidade pura:
não é uma sensação por si, é a “qualidade de bagel”. Do mesmo modo que aprimeira declaração de reconhecimento da famosa escritora deficiente (cega e
surda) norte-americana Hellen Keller foi “água” (“qualidade da água”) (Sacks,
2003:78).
vivências abertas por essa superfície tocante e
tocável do corpo, procurando, justamente,
como descreve tão bem Guy Brett (2001), sub-
verter a distância entre o dentro e o fora que
cindira a psiquê moderna. Num percurso hoje
já bem conhecido, em que se articula, numa
poética obsessiva mas quase didática, a supe-
ração, passo-a-passo, dos cânones modernos,
Clark parte da Obra Mole (1964) - esculturas de
Do ponto de vista ao ponto de experiência 79
borracha plenamente manipuláveis pelo espectador, que é convidado a
deixar sua posição contemplativa - para uma inclusão progressiva do cor-
po na experiência estética. Suas Máscaras sensoriais, já no fim dos anos
1960, são feitas para serem vestidas pelo usuário (do mesmo modo como
os Parangolés de Oiticica),29 e incluem aromas, sons e espelhos;30 ao final
dos anos 70, seus Objetos relacionais tratam de proporcionar uma experi-
ência intensa e delicada das superfícies e das possibilidades sensíveis do
corpo, ao ponto de adquirirem, para a artista, a dimensão de instrumen-
tos terapêuticos. A psicanalista Suely Rolnik relatou assim sua participa-
ção na Baba Antropofágica (1973) de Clark,31 em que diversas pessoas reti-
ram de um carretel em suas bocas fios que vão, em seguida, depositando
sobre outra participante, deitada no chão:
“[...] num plano totalmente diferente daquele onde se delineia
minha forma, tanto objetiva como subjetiva [...] Comecei a ver que
o corpo sem órgãos da baba-fluxo é uma espécie de reservatório
de mundos − de modos de existência, corpos, eus. [...] É um ‘fora
de mim’ que, estranhamente, me habita e ao mesmo tempo me
distingue de mim mesma − como diz Lygia, ‘o dentro é o fora’. Do
‘fora’ se produz um novo ‘dentro’ de mim.” [apud. Brett, 2001:47]
Se Merleau-Ponty sustenta que a pintura e o desenho são “o den-
tro do fora [do motivo] e o fora do dentro” [do pintor] (Merleau-Ponty,
2004:18), aqui, pelo toque, também superfície e interioridade se fundem,
29 A ligação e a cumplicidade ente Hélio Oiticica e Lygia Clark são bem conheci-
das, e suas trajetórias e obras têm sido discutidas extensamente nos últimos
anos. O salto conceitual levado a cabo por esses dois artistas tem sido usual-mente reconhecido como decisivo na arte contemporânea brasileira. Ver, por
exemplo, Milliet (1992); Basbaum, R. (1994); Brett (2001). Há, ainda, uma
profusão de outras fontes.
30 Ao vestir uma das máscaras de Clark, o espectador poderia ser surpreendido
com a imagem de seus próprios olhos. Bingo: a obra não remete mais à sub-
jetividade do autor, mas à do próprio espectador.
31 Sobre a Baba Antropofágica, realizada pela primeira vez com seus alunos daSorbonne em 1973, Lygia Clark escreve: “Tudo começou a partir de um sonho
que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria a boca e
tirava sem cessar de dentro dela uma substância, e, na medida em que isso iaacontecendo eu sentia que ia perdendo a minha própria substância interna e
isso me angustiava muito, principalmente porque não parava de perdê-la. Um
dia, depois de ter feito as máscaras sensoriais, me lembrei de construir umamáscara que possuisse uma carretilha que fizesse a baba ser engolida. Foi
realizada em seguida o que se chamou Baba Antropofágica, onde as pessoas
passavam a ter carretéis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba.”(apud. Milliet, 1992:139)Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Baba AntropofagicaBaba AntropofagicaBaba AntropofagicaBaba AntropofagicaBaba Antropofagica (1973) (1973) (1973) (1973) (1973)
Lygia Clark:Lygia Clark:Lygia Clark:Lygia Clark:Lygia Clark:Obra MoleObra MoleObra MoleObra MoleObra Mole(1964)(1964)(1964)(1964)(1964)
80 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
inaugurando dimensões existenciais a cuja significação nenhuma contem-
plação e nenhuma representação pode fazer equivalência, já que se inscre-
vem, por fim, diretamente na atualidade do corpo, sem qualquer media-
ção. Ao olho que toca o infinito, contrapõe-se o tato que nos dá nossa
carnalidade, nossa finitude em sua infinitude. E ainda, a riqueza aberta para
Madeleine J. pela descoberta do mundo tátil, seu exame do perfil das coi-
sas e dos rostos, que Sacks descreve como “não apenas as mãos de uma cega
explorando [...] [mas] uma mente meditativa e criativa, que acaba de abrir-
se para a plena realidade sensível e espiritual do mundo” (Sacks, 2003:79),
acaba por emergir em incontáveis esculturas, explicitada como expressão
e representação de um mundo ordenado a partir de uma sintaxe perceptiva
fundada numa primazia tátil.
Mas Oliver Sacks narra também certa noite em que a ala dos afásicos
- pessoas que não podem entender as palavras, portanto compreendem o
que se lhes diz somente através dessa gestalt que organiza o sentido da cena
-32 de um hospital em que trabalhava assistia, pela TV, o “discurso do Pre-
sidente”.33 O grupo abria gargalhadas, não continha o riso diante da fala
televisiva do líder político da nação que, ao modo de perceber dos afásicos,
deslocados do modo “normal” de experiência - em que a hierarquia da aten-
ção certamente se organizaria a partir da escuta das palavras - era escan-
caradamente falsa. A descrição que Sacks faz do ato da fala agradaria
aMcLuhan, para quem a linguagem oral é uma “extensão de todos os sen-
tidos” - expressão, manifestação de todo o corpo. De modo que os afásicos
aprendem a fazer o sentido das coisas, fazer mundo, como se vivessem em
32 “Não obstante sua condição [não entenderem as palavras], entendiam quase
tudo o que lhes era dito. Seus amigos, parentes e enfermeiras, que os conhe-
ciam bem, às vezes mal conseguiam acreditar que eles eram mesmo afásicos.Isso acontecia porque, quando lhes falavam com naturalidade, eles percebiam
uma parte ou quase todo o sentido. E, naturalmente, todo mundo fala com
naturalidade. [...] Pois embora as palavras, as construções verbais em si mes-mas, possam nada transmitir, a linguagem falada é normalmente impregnada
de ‘tom’, envolta em uma expressividade que transcende o verbal; e é precisa-
mente essa expressividade tão profunda, variada, complexa, sutil, que é per-feitamente preservada na afasia, embora a compreensão das palavras seja
destruída. Preservada − e muitas vezes mais que isso: fantasticamente inten-
sificada...” (Sacks, 2003:97)
33 Sacks não deixa claro qual presidente, mas suspeitamos de que se trata de
Ronald Reagan, tanto pela provável data do texto, não explicitada no livro (mas
que pela data da publicação tem grande chance de ser dos anos 80), comopela descrição de Sacks: “Lá estava ele, o velho Sedutor, o Ator, com sua hábil
retórica, seus histrionismos, seu apelo emocional.” (Sacks, 2003:96)
um país cuja língua desconhecem, e exercitam
a atenção às sutilezas que fazem parte do gesto
da fala, uma outra língua, corporal, gestual,
temperada de nuances sonoras. Um pouco
como Fellini, que orientava seus atores ama-
dores a expressarem sobretudo a gestualidade,
dizendo qualquer texto, gestos e expressões que
seriam depois reiterados pela dublagem que
lhes acrescentaria as falas corretas. Aí, para
Sacks, reside “sua [dos afásicos] capacidade de
compreensão - de perceber, sem palavras, o
que é ou não é autêntico”. A moral curiosa des-
se relato é que a gestalt divergente, alterada,
considerada normalmente como deficiente,
que tem dificuldade em participar do circo da
Do ponto de vista ao ponto de experiência 81
sociedade - essas pessoas estão, afinal, recolhidas a um hospital -, termi-
na por ter, através do campo perceptivo, um acesso ao sentido da cena mais
efetivo, mais verdadeiro, do que a percepção normal - em que, como lem-
bra Sacks, temos o “desejo de ser enganados”: enfim, “só os que tinham
dano cerebral ficaram ilesos, não foram logrados” (Sacks, 2003: 99-100).
À medida que avançamos, procurando, por aqui e por ali, tatear,
escutar, saborear o mundo percebido, este nos revela mais e mais o mis-
tério inesgotável da experiência vivida. Quem ousaria dizer assim que,
mesmo na leitura, uma palavra não pode nos surpreender, nos chocar, nos
desestabilizar de tal modo que a sentimos não num suposto intelecto que
mergulha absoluto no texto, mas em nosso corpo, como se nos atingisse no
coração ou no estômago? Não é, então, que não pudéssemos de algum
modo, ainda que sob a primazia do olhar, procurar acomodar estes outros
que não são os olhos: é que, ao mesmo tempo em que deixávamos que a
astúcia do olhar ocultasse-se a si mesma para nos dar o mundo, como viu
bem Merleau-Ponty, nós os excluímos como não pensáveis. Ceitil, em Uma
história aromática em Bagdade, belo artigo que busca não apenas discutir
mas trazer ao texto essas presenças vivas do mundo sensível, faz bem o
diagnóstico dos conflitos entre este modo de pensar, linear, visual, lógi-
co, transcendente em que nos fizemos, e as experiências que não tem aí
abrigo, pensares colocados na periferia do pensamento racional, o pensa-
mento “sob o império da luz”. “Será que o real se submete, em sua totali-
dade, a esse desejo voraz de não confusão, de clareza, de visibilidade?”,
pergunta. (Ceitil, 2001:38). Alternando a narrativa de um casal em crise,
que busca reencontrar a própria magia nas ruas de Bagdá, com reflexões
sobre a preponderância do modelo visual na filosofia e sua conseqüente
limitação dos modos de acesso à verdade, Ceitil inquire sobre as facetas da
convivência antitética entre razão e sensação construída no Ocidente, numa
linha que nos levaria talvez à trilha de Benjamin e Huxley:
“Há uma exuberância própria da embriaguez que nos abre para
outras formas de pensar. Formas de pensar que nos aproximam da
confusão com as formas de sentir: os limites esbatem-se, as
fronteiras tornam-se inexistentes ou deslocam-se, adquirem
flexibilidade, e o movimento do pensar confunde-se com o
movimento do sentir. Mas o pensamento filosófico [...] é um
pensamento que se exerce na regra, na contenção, no domínio de
si mesmo; é um pensamento que exclui a dimensão da alegria, da
festa, da exuberância, do excesso; se há algum excesso no nosso
82 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
modo de exercermos o pensamento é apenas um excesso de rigidez,
de contenção, de controlo... um excesso de um determinada idéia
de razão [...] que é incompatível com a exuberância sensual. [...]
porque os momentos de grande exuberância sensual são sempre
momentos onde os limites, as fronteiras, as diferenças são
interrogadas e transgredidas.” [Ceitil, 2001:38-9]
Perdidos sob o império do olhar e das suas certezas seguras,
trazidas sempre à luz, “fóbicas” em relação ao negativo, ao erro, ao obscu-
ro, ao contraditório, as personagens de Ceitil vasculham a exuberância
sensorial da cidade com os olhos, incapazes de tocarem seus corpos, ul-
trapassarem uma lógica que lhes aprisiona num único sentido pelo qual
acreditam encontrar a resposta à questão da feiticeira que os enviara para
que lá solucionassem esse enigma. Não sentem os sabores, não deixam
cheiros; a mulher que os hospeda queima os lençóis onde haviam dormi-
do para não ser contaminada pela sua maldição, pois “os lençóis não ti-
nham cheiro algum”; um jardineiro os expulsa de um jardim cujos perfu-
34 A essa descrição do passeio no jardim poder-se-ia comparar a interpretaçãoque faz McLuhan de versos de W. B. Yeats: “Blake saw Newton and Locke and
others as hypnotized Narcissus types quite unable to meet the challenge of
mechanism. W. B. Yeats gave full Blakean version of Newton and Locke in afamous epigram:
Locke sank into a swoon;The garden died;God took the spinning jennyOut of his side
“Yeats presents Locke, the philosopher of mechanical and lineal associationism,as hypnotized by his own image. The ‘garden’, or unified consciousness, ended.
Eighteenth-century man got an extension of himself in the form of the spinning
machine.”
(“Blake considerou Newton, Locke e outros como tipos narcísicos hipnotiza-
dos quase incapazes de enfrentar o desafio do mecanismo. W.B. Yeats expres-
sou a versão blakeana de Newton e Locke num famoso epigrama:
Locke foi definhando;o jardim se acabou;E o mecânico tearDeus dele arrancou
“Yeats apresenta Locke, o filósofo do associacionismo mecânico e linear, como
alguém hipnotizado pela própria imagem. O ‘jardim’, ou seja, a consciência
unificada, se acabou. O homem do século dezoito ganhou uma extensão de simesmo na forma de um tear”.) (McLuhan, 2001c:25).
Nesse verso, pode-se ler também a relação antitética entre a ideologia da
máquina e o pensamento religioso, que faria do século XIX, o século da má-quina, também o século do “desencantamento” do mundo.
35 Ver capítulo 1.
mes não sentiam, e, pior: “à sua passagem, as
flores iam murchando e morrendo” (Ceitil,
2001:42).34 Quando, na vivência desse
desencontro, ela chora, as lágrimas são “péro-
las de gelo” − os conceitos puros e distintos de
uma lógica que necessita da separação preci-
sa, limpa, entre sujeito e objeto, entre o bran-
co e o preto, entre o certo e o errado, entre
aquilo que pode ou não ser conhecido; que re-
cusa as sombras, e que não pode, assim, dar
abrigo à complexidade de um real que (mes-
mo a ciência do século XX o entendeu) não se
sujeita a categorias distintas nem tampouco
exclui aquilo que a razão considerou como não
pensável em seu próprio modo de ser: o caó-
tico, o sensível, o confuso, a penumbra; tudo
o que foi relegado, enfim, ao poético, territó-
rio de verdades menores.
A denúncia do contrato com o visual
feito por Merleau-Ponty é mais de uma vez
reposta por Ceitil.35 Porque é que só podemos
“ter mundo” através da visão? Cabe, aqui, uma
defesa do fenomenólogo francês. Afinal, quan-
Do ponto de vista ao ponto de experiência 83
do Ceitil reivindica um pensamento que retome e admita os
indeterminados do mundo sensível, sugerindo “a possibilidade de um pen-
samento soberano” (Ceitil, 2001:49) que não recuse o paradoxo, as contra-
dições e as complexidades do vivido, e, sobretudo, quando afirma que
“[...] o modelo de pensamento que se exerce na luz, no visível, na
distância, o modelo de pensamento que pretende ‘ver com os olhos
da alma’, mas não se atreve a respirar os aromas, a sentir a
envolvência dos aromas a penetrarem na carne, é um modelo de
pensamento que não nos serve, porque só nos interessa pensar
aquilo que o corpo, na sua dimensão mais carnal, mais sensível,
tem para nos dizer” [Ceitil, 2001:50],
parece justo admitir que Ceitil faz eco ou, ainda, vem somar ao pen-
samento de Merleau-Ponty, que já nos chamara, vimos, a tomar o “indeter-
minado como fenômeno positivo”, e pensar o conhecimento não como
“ideal” mas como “atual” para meu corpo neste ponto do espaço e do tem-
po. As personagens do relato se encontram, finalmente, quando redes-
cobrem sua subjetividade, constituída não no reinado absolutista do visu-
al, mas nos “corpos, aromas e sons”:
“Naquela manhã, ao acordar, ele tocou-lhe e sentiu, como nunca
tinha sentido antes, o aroma do corpo dela a murmurar-lhe sons
intraduzíveis ao ouvido. Sorriram. Podiam deixar Bagdade.” [Ceitil,
2001:50]
Superada a vigência do olhar, reencontrada a dimensão plena dos
sentidos, a expressão e a troca que integra o toque e os aromas que “mur-
muram” sons, resolveram-se, como numa obra de Lygia Clark, as dificul-
dades colocadas pela distância, pela objetividade, pelo terror da penum-
bra, e reabriu-se a possibilidade mesma do gozo, um gozo que Ceitil quer
recuperar para a filosofia e que “só é possível se confundirmos os discur-
36 Não queremos, naturalmente, depreciar as possíveis diferenças da percepçãofeminina e masculina. A questão encerra um território vasto, que extrapola
nossos limites, e que tem sido trabalhada, por exemplo, por Constance Classen,
embora haja também pesquisas no campo da neurologia buscando essas dis-tinções. Apenas apontamos que Ceitil corre o risco de comprometer um artigo
belíssimo ao abrir a possibilidade de uma interpretação dessa natureza. Um
interessante artigo que tenta discutir a questão da visualidade no âmbito dogênero é Assisting the Birth and Death of Philosophic Vision, de Andrea Nye
(em Levin, ed., 1993)
sos” - certamente como os amantes -, e Ceitil
aqui corre talvez o risco de ver sua aventura ser
lida como um encontro entre clichês: uma ra-
zão “masculina”, uma sensibilidade “femini-
na”. Mas, driblando a questão do gênero36 -
como o fizemos com a da linguagem -, resta a
questão: que mundos poderíamos constituir a
partir dos cheiros e dos sons?
84 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Sons e aromas são irmãos na sua volatilidade, na sua imateria-
lidade, na sua temporalidade. Tomemos, primeiro, o som. Quando digo
“ouço”, digo, de certo modo, que algo lá fora provoca em mim uma sensação
sonora - mas pode ser mesmo aqui dentro de mim, embora seja esta uma
experiência por vezes perturbadora: ouvir sons, vozes que não nos inva-
dem mas brotam de um não-sei-onde em nós (e nos sonhos, no entanto,
este mundo interno não nos afeta da mesma forma). Mas, naquilo que vem
de fora, moléculas de ar deslocadas numa velocidade suficiente para fazer
vibrar a delicada membrana de meus tímpanos provocam em mim tal sen-
sação, e se sua velocidade exceder um certo limite, meu sistema nervoso já
não a autenticará como som disso ou daquilo - poderei até mesmo tomar
ciência dela de outro modo, como um ultrassom (que foi, afinal, tornado um
acessório do sistema das imagens), mas não terei sensação sonora (o mes-
mo valendo para um infrassom). Não parece haver correlação intuitiva, no
caso do som, entre a sensação que experimento e o fenômeno físico a que,
analiticamente, a atribuo: que relação pode haver entre ondas mecânicas
e a sensação que me invade, entre os atributos da sensação e os do fenô-
meno físico que a provoca em mim? A sua frequência, definição tardia do
pensamento científico? Não existe, fora de mim, algo assim como som.37
No entanto, ele me comunica algo daquilo que percebo como som, me liga
ao fora de mim, e existe, talvez, no interior de meus semelhantes algo de
similar que nos permite chegar a um acordo, a um reconhecimento de que
algo lá fora ocorreu, e aqui, em nós, ocorreu como som. Tal sensação pode ser
descrita: minha cultura, minha linguagem me oferecem recursos para
comunicá-la a meus pares - trata-se de um som agudo ou grave, longo ou
curto, suave ou agressivo; trata-se de um som musical ou de um ruído (mes-
mo levando-se em conta que tal distinção é hoje incabível na música, va-
mos tomá-la por enquanto para efeito deste pensamento); vem de um ser
vivo ou de um objeto inanimado; vem dos elementos, da chuva, do vento, do
37 Pode-se dizer que é nosso aparato auditivo que inventa a sensação sonora. Isso,
porém, nada muda na tese de Merleau-Ponty e na nossa: trata-se de atentarpara como experimentamos esses sons, que sentido de mundo eles podem inau-
gurar, na experiência individual e no acordo intersubjetivo da cultura, do qual
um recorte rico pode ser feito pensando-se na música. E, ainda, tomada assimcomo explicitação do percebido, a música traduz de maneira surpreendente-
mente cristalina a história da percepção no Ocidente, a ponto de chocar seu
confinamento, por Merleau-Ponty, à expressão de “épuras do ser”.
fogo que crepita na fogueira, da água que corre
no riacho, ou é o silêncio da terra sob os meus
pés, e das estrelas. Este som tem também uma
intensidade: é sutil, delicado, no limiar de mi-
nha audição, ou então até mesmo de amplitu-
de tal que fere meus ouvidos e os agride por dias
a fio, até mesmo por toda minha vida, daí por
diante; e move-se no ar: parece mesmo voar
diante de mim, rebater nas paredes, ocupar o
Do ponto de vista ao ponto de experiência 85
espaço de tal modo que penso poder perceber sua origem, mas freqüen-
temente me engano, e se fecho meus olhos à sua fonte e me recolho em
escuta, por vezes não saberia dizer de onde vêm os sons que me invadem a
partir do mundo - e, mesmo que remotamente o saiba, se lhes viro as cos-
tas, não cessam, não se importam: ouço-os de todo modo. Não se pode,
enfim, dar as costas ao som.
Esse caráter particular do mundo sonoro que nos envolve (e nos
envolve particularmente como espécie biológica, visto que outros animais
escutam em limiares diferentes dos nossos e o som, como campo
perceptivo, mostra bem esse território que nos é comum - além do que,
afinal, jamais saberemos, como lembra o famoso artigo de Nagel, como é
ser um morcego, ou ouvir como um cão38) determina espaços e tempos.
John Cage, que fez ouvir o silêncio, algo que talvez tenha atemorizado ou-
trora os compositores, do mesmo modo como o vazio desafia o pensamento
- Merleau-Ponty não nos falara das lacunas da filosofia ocidental em tom
de advertência? -, acreditou, em certo momento, que o ritmo seria a qua-
lidade primeira, essencial da música, sua possibilidade distinta: estruturar
vivências do tempo. Compôs assim um variado e extenso repertório de
peças para percussão. Aquilo que Da Vinci julgava uma fraqueza da músi-
38 Thomas Nagel (1986): The view from nowhere. Trata-se de um artigo clássicona bibliografia sobre a questão da experiência interna, em que se define a
consciência a partir da idéia de que há “algo como ser um morcego”. Citado
por exemplo em Varela (1996) ou Chalmers (1995).
39 O episódio é celebre e mui citado (por exemplo, em Campos, A., 1986:214-5):aluno de Schoenberg − um teórico e conhecedor extraordinário da história da
harmonia na música ocidental −, Cage se dá conta de sua pouca vocação e
pouco entusiasmo para as questões harmônicas. O mestre lhe diz que “com-por sem saber harmonia é como bater a cabeça contra um muro”; o pupilo,
que, para receber lições que não poderia pagar, já lhe havia prometido dedicar
a vida à música, responde então: “Nesse caso, dedicarei minha vida a bater acabeça contra esse muro”. Desnecessário dizer que a verdadeira revolução
cageana − cujos gestos pontuais têm humor, inspiração e potência
duchampianos (foram, aliás, amigos) − poderiam ser talvez sintetizados muitomenos como as cabeçadas resolutas contra o muro do que como um dar as
costas ao muro e fazer ouvir toda uma paisagem de sons e possibilidades
composicionais abrigadas ali onde a tradição, presa à narrativa da evoluçãoda harmonia, não tinha sido capaz de procurar.
40 Visto essa teimosia obstinada da música chamada no Brasil “erudita” em pro-
curar manter-se em lugar à parte na cultura. É possível, porém, que essa ver-dadeira dérive corporatiste seja um fenômeno local brasileiro, em virtude de
dificuldades e compromissos sociais bastante específicos do circuito local.
ca, o efêmero do som, emerge então como um
terreno em que talvez não possa ser superada
- mesmo a montagem cinematográfica, que é
de certo modo uma espécie de materialização
visual de estruturas musicais, não pode batê-
la aqui: a música propõe vivências menos,
mais, ou muito complexas do tempo. Talvez a
aversão cageana à harmonia39- uma das bata-
lhas de uma verdadeira guerra estética ence-
nada no território da música ao longo do século
XX, e que é talvez o último reduto que persiste
do modernismo40 - o tenha feito perder de vis-
ta o modo como a harmonia também estrutu-
ra o tempo, o veste de intenções: pode fazê-lo
circular, sendo modal; pode ser hipnótico,
numa espécie de cubo de Necker sonoro, que
joga com as possibilidades de estruturar a ex-
periência sonora, oferecendo múltiplos pon-
tos de apoio que organizam o sentido da frase
musical, como em Violon Phase (1967), de
86 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Steve Reich; ou pode ser narrativo, como em todo o tonalismo do séculos
XVIII e XIX, quando organiza pontos de repouso, jornadas e pontos de che-
gada; ou mesmo quando instala um chão para então roubá-lo, como o fa-
zem vertiginosamente Wagner, com seus célebres cromatismos, ou mais
sutilmente Mussorgsky em Quadros de uma exposição (1874), com suas mo-
dulações que hoje são facilmente audíveis, mas que tiveram impacto em sua
época - vide o cuidado de Ravel em dar-lhe uma roupagem orquestral
muitas décadas depois da morte do autor; ou pode mesmo não me dar chão
algum, exceto talvez uma estrutura serial, como o fez Schöenberg. A har-
monia, junto aos pulsos e ritmos, molda, enfim, a experiência do tempo.
Contrapontos, polifonias, vozes que se reúnem e se afastam, e convivem
segundo encontros e desencontros e novos encontros; camadas de sons,
notas ou ruídos se sobrepõem e dispõem um recorte da pluralidade e da
infinitude dos ritmos que disputam a ordenação do tempo vivido. Essas
estruturas multi-temporais dispõem também relações figura-fundo -
Miles Davis, aliás, ficou famoso por subvertê-las -41 e campos de relações
que sustentam ainda aí, no terreno sonoro, os princípios da Gestalt.
Mas a música do Ocidente, conquanto surpreendente explicitação
do nosso modo de perceber os sons organizada a partir de Pitágoras,42 traz
também a marca de uma convivência inescapável com a preponderância do
olhar. Como bem lembra Crosby (1999:137-58), é a ainda à visualização que
o Ocidente deve a emergência desse mundo sonoro das complexas
polifonias que começam a emergir por volta do século XII - com nomes
como Leonin e Perotin -, e alcançam seu apogeu no século XVIII, com Bach:
a representação visual inaugura possibilidades inéditas de manipulação
dos materiais sonoros. E não apenas o olhar, mas a calculabilidade do tem-
41 Miles Davis tornou-se célebre pelo seu emprego dos silêncios em seus solos,que faziam ouvir o “fundo”, as cores postas pelo grupo a seu redor.
42 E também das tradições dos rituais judaicos, que estruturaram as primeiras
litúrgias católicas.
43 “Os músicos da ars antiqua quantificaram o som e o silêncio por volta de 1200,
cerca de 50 anos a um século inteiro antes do primeiro relógio mecânico do
ocidente. Os teóricos validaram e sistematizaram a quantificação musical numprazo de poucos anos, a contar dessa invenção. A base que eles construiram,
reverenciando a proporção matemática e o efeito real do som no ouvido hu-
mano subjaz a toda a música formal do Ocidente” (Crosby, 1999:149).
44 A música, pela sua precoce dependência dos instrumentos, é mesmo um terri-tório privilegiado para uma abordagem do impacto da tecnologia nas formas
de percepção da cultura.
po objetivado: a contar da invenção do relógio,
bastaram poucos anos para que a base sólida da
escrita musical Ocidental estivesse consolida-
da.43 A partir daí, na base instrumental, desde
os instrumentos renascentistas ao piano do
classicismo e as múltiplas ferramentas
tecnológicas empregadas no século XX, a mú-
sica não deixará de estar - a despeito da reivin-
dicação de autonomia - problematicamente
atada a todas as oscilações do olhar
indestrutível.44
Bertolucci, num filme especialmente
fundado sobre a música, Assédio (Besieged,
Do ponto de vista ao ponto de experiência 87
2000), confronta esses mundos sonoros explicitados nas tradições musi-
cais do Ocidente e da África. Para conquistar o amor de Shandurai (Tandie
Newton), a bela jovem africana, Jason Kinsky (David Thewlis), o solitário
pianista inglês, deve superar todas as barreiras impostas pelo caráter in-
conciliável de sua música, fundada na racionalidade e na transcendência
do espírito, em relação à música africana; deve compreender a lógica igual-
mente complexa dessa outra música que se funda não nas oscilações
abstratas do espírito romântico, mas nos ritmos do corpo. Quando busca
seduzir aquela outra pessoa, acessar seu mundo, fazendo-se escutar em sua
expressão pianística, recebe a resposta direta: “eu não entendo você... não
entendo essa música!”. Kinsky terá de buscar uma ponte entre sua cultura
e a de Shandurai, para depois fazer-se ouvir: trata-se de My favourite things
(1960), uma gravação lendária do quarteto do saxofonista John Coltrane,
um dos pontos altos da história do jazz moderno, o gênero que fundiu, na
América do Norte, as intrincadas e racionalizadas harmonias européias e
a corporalidade45 − e mesmo uma certa oralidade − das culturas negras de
45 Discutir a especificidade do jazz como gênero musical, e seu modo particular
de conferir um sentido novo e surpreendente aos materiais harmônicos e
melódicos que os mais importantes compositores europeus julgavam, lá peladécada de 1930, já praticamente esgotados é algo que, até onde sabemos,
não foi pensado do modo como deveria. A maior parte dos relatos sobre o
gênero tem enfoque histórico ou um registro crítico que não captura comple-tamente a sua importância. A noção de “swing” em especial nada tem de tri-
vial, e a leitura mais comum do jazz como “expressão de virtuosismo” fez perder
um tanto esse caráter difícil e subjetivo da vivência rítmica fundada no corpoe no coletivo que tendeu a se perder nas gravações mais recentes feitas em
sessões individuais e na produção hoje mais voltada aos formatos do merca-
do: It don´t mean a thing if it ain’t got that swing, (“Isso não significa nada senão tiver aquele suingue”) dizia, há décadas, Duke Ellington. Do ponto de vis-
ta do pensamento sobre a percepção, a performance do músico de jazz é algo
ainda mais complexo do que o exemplo merleau-pontyano do corpo que pen-sa através do jogo tênis: o instrumentista de jazz tem que perceber o contexto
e criar, numa velocidade fabulosa, idéias musicais que possuam direção, coe-
rência, expressão, beleza e valor estético que se desenhem em campos de for-ça harmônicos muitas vezes bastante complexos. Nem todos os instrumentistas
foram capazes de realizar completamente esta façanha, somente grandes ar-
tistas, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, John Coltrane e Bill Evans, por exem-plo. Miles Davis mesmo − talvez o maior artista da história do jazz, pela cons-
ciência dos problemas estéticos envolvidos no gênero, nunca pôde se expres-
sar com perfeição nos andamentos mais fortes.
origem africana. A questão da experiência do
tempo, articulada, como toda a narrativa do
filme, através da música, é explicitamente co-
locada quando Shandurai e seu colega italiano
Agostino (Claudio Santamaria) discutem após
uma longa e fracassada espera na fila da imi-
gração. Quando Agostino a convida para saí-
rem e se divertirem, ela − que luta para for-
mar-se médica − o repreende, irritada, dizen-
do que trata-se de “perda de tempo”. O
italiano responde: “Mas o que vocês africanos
entendem do tempo? Fomos nós que inventa-
mos o relógio!” Bertolucci responde por
Shandurai, cortando imediatamente para a
performance de John Ojwang, o poderoso can-
to pulsante africano acompanhado de um ins-
trumento nativo, o músico experienciando em
si, expressando e nos impondo mesmo todo
um modo de experimentar o tempo que não
tem a objetividade do relógio, mas uma preci-
são de ordem rítmica, fundada no corpo.
Mas o mundo sonoro também é singu-
lar em sua espacialidade. Atiro uma pedra num
88 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
poço, e é o som quem me dirá o quão profundo é esse poço; ou o eco de uma
gruta, que retorna e me dá a dimensão do espaço que há ainda adiante; como
dissemos certa vez, “na noite da noite escura, quem há de nos mostrar o
caminho é o som” (Basbaum, S.:1997). McLuhan refletiu de maneira bas-
tante interessante sobre a questão do espaço sonoro, e opôs, ao conceito
de espaço visual - limitado a uma certa abertura diante de mim, um certo
ângulo que minha visão dá conta, fora do qual tenho de mover-me para
abarcar outra fração do espaço -, o conceito de um espaço acústico:
“O espaço auditivo não tem um ponto de focalização favorecido. É
uma esfera sem limites fixos, espaço feito pela própria coisa, não
espaço contendo a coisa. Não é um espaço pictórico, encaixado,
mas dinâmico, em fluxo constante, criando suas próprias
dimensões de momento em momento. Não tem fronteiras fixas; é
indiferente ao background, ao meio circundante. Os olhos
focalizam, localizam, abstraem, situam cada objeto no espaço físico,
contra um fundo; o ouvido, porém, acolhe o som vindo de qualquer
direção. [...] É a sirena da ambulância, não o pisca-pisca, que nos
adverte primeiro.” [McLuhan e Carpenter, 1980:90-1]
Esse conceito merece ser elaborado: não se trata de negar os efeitos
da gestalt sonora, da estruturação do mundo a partir das coisas do espaço
acústico, que me dá, também, relações de figura e fundo, hierarquias espon-
tâneas, zonas de indeterminação, sons que são coisas e sons que não são “nem
isso nem aquilo”, ilusões sonoras também, e “pontos surdos” nesse espaço,
em que frequências se anulam pelo seu bate-rebate no ambiente e desapa-
recem para mim. Trata-se, antes, de um espaço imersivo, inclusivo, que se
distingue do campo visual: este se abre diante de meus olhos e delimita as
coisas e os espaços sem o caráter volátil, temporal e fugidio dos sons. A sirene
me alerta, mas não sei, de início, dizer a partir de onde precisamente ela soa,
como o faria com algo móvel em meu campo visual, ou ainda, tanto faz: a partir
de qualquer lugar, ela me atinge do mesmo modo; um som imediatamente
abaixo de mim, cuja fonte não permita à estereofonia de meus ouvidos de-
terminar minimamente uma diferença - e essa diferença no mais das vezes
já necessita ser pensada, é percebida simplesmente como presença num am-
biente -, soa da mesma maneira que se estivesse imediatamente acima. Não
46 Alguém que já tenha participado de sessões de gravação de música sabe da
complexidade do espaço sonoro: cada ponto da sala, cada posição do micro-fone, resulta numa sonoridade distinta. Mesmo assim, o som nos envolve e,
como disse há pouco, não se consegue dar as costas a ele.
tenho uma fração, um ponto de vista: ainda que
possa falar em “ponto de escuta”, sou envolvi-
do por um mundo sonoro em sua totalidade;46
sua natureza é distinta do mundo visual, não
Do ponto de vista ao ponto de experiência 89
tem limites nem contornos, sua extensão não pode nunca ser dominada como
o permite o campo visual. O cinema, que foi pensado sobretudo como um
meio visual, mais do que audiovisual, sempre se valeu das possibilidades
singulares da espacialidade do som: sobretudo em relação à tela plana e
bidimensional do cinema, o som, entre outras funções mais propriamente
semióticas - sentido narrativo, intenção da imagem, sentido histórico,
estruturação temporal, leitmotif etc. -, desde os filmes primitivos assumiu
este papel, singular, de conferir tridimensionalidade à imagem, preenchen-
do todo o espaço.47 A música contemporânea,48 e também o cinema comer-
cial mais recente, o têm explorado intensamente. Em Assédio, Bertolucci
explora ao limite essa espacialidade do som, convertida em territorialidade.
Cada qual, em sua solidão, instala seu mundo sonoro: Kinsky, a música eu-
ropéia, que toca ao piano e enche toda a casa; Shandurai, para preservar seu
mundo, ampliar e preencher de familiaridade seu pequeno quarto - já que
trabalha arrumando a casa para Kinsky, e esse é outro modo pelo qual se ar-
ticula na narrativa a relação entre a África e a Europa -, ouve, sempre, músi-
ca pop africana, que, naturalmente, dança. Cada qual, enfim, constrói seu
mundo sonoro, de fronteiras inexatas. Para provar a sinceridade de seus
sentimentos, Kinsky acabará abrindo mão de todos os seus bens - obras de
arte, tapetes, signos de uma longa tradição cultural européia - para financi-
ar a liberdade do marido de Shandurai, preso político na África. O limite
dessa renúncia estupenda ao conforto de uma identidade - identidade
“empoeirada”, de fato, como Bertolucci mostrará por diversas vezes, e que
só a novidade trazida pela alteridade encarnada na chegada da jovem africa-
na pôde revigorar - será, por fim, a venda por Kinsky de seu piano de cauda,
o símbolo mais forte da tradição musical européia. Essa tradição permane-
cerá viva, no entanto, nos jovens alunos de Kinsky - em especial um peque-
no prodígio, referência a Mozart -, e a contaminação, a mistura, o encontro
47 Ver, por exemplo, Gorbman (1984).
48 Já na década de 50 os compositores da vanguarda européia, vindos da tradi-
ção serial e eletrônica, fizeram extensa exploração de questões relativas ao
espaço. Ver, por exemplo Bousseur (1983:42-59); ou Terra (1996), sobre oPavilhão Phillips projetado por Le Corbusier para composição de Iannis Xenakis
em Bruxelas.
90 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
das culturas não oferece, para nenhum dos la-
dos, é o que nos diz enfaticamente Bertolucci,
nada o que temer.
Em comum com a música, os aromas
têm portanto isso de se desenrolarem no tem-
po e estabelecerem, sem limites muito preci-
sos, espaços.49 Além disso, como os sons, mi-
nha sensibilidade a esses seres químicos dilu-
ídos na umidade do ar é uma invenção do meu
sensório.50 Mas a temporalidade dos perfumes
é muito mais volátil do que a da música; seria
preciso ordenar séries de perfumes no tempo,
criar camadas de aromas, e mesmo assim as
fragrâncias não se sujeitariam ao mesmo tipo
de precisão a que se prestam os sons musicais,
já que sua duração tem limites tão imprecisos
como sua espacialidade: sua presença, seu
modo de ser, é distinta daquela do som. Assim
mesmo, há correspondências surpreendentes
aí, visto que os perfumistas descrevem seus
aromas, combinações de diferentes essências,
como “acordes”:
“You can actually smell the accords,
which are like musical chords. Per-
fumery is closed related to music. You
will have the simple accords, made
from two or three items, and it will be
like a two- or three-piece band. And
then you will have a multiple accord put
together and it becomes a big modern
orchestra. In a strange way, creating a
fragrance is similar to composing mu-
sic.” [Ackerman, 1995:49]51
Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: The medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massage (1967) (1967) (1967) (1967) (1967)
49 Vários autores comparam a música às fragrâncias. Francis Bacon, por exem-
plo: “And because, the breath of Flowers is farre Sweeter in the Aire (where it
comes and Goes, like the Warbling of Musick).” [“E porque o hálito das floresé muito mais doce no ar (onde ele vem e vai como os trinados da música).”]
(apud. Classen, 1993:23); ou “Do maior interesse é o facto de Edmond
Roudnistka, em Le Parfum, estabelecer um paralelismo entre a música e operfume; porque a música e o perfume supõem o tempo, desenrolam-se no
tempo.” (Ceitil, 2001:47)
50 A rigor, poder-se-ia dizer que todas as sensações são de algum modo criaçõesdo corpo, e daí se vê a extensão das dificuldades colocadas pelo “hard problem”
da experiência interna. Husserl procurou mostrar que, não obstante essa sub-
jetividade imanente, a consciência, em sendo “consciência de”, manteria umarelação estrutural com os fenômenos que a permitem ser consciência (ver
Schérer, 1981).
51 “É de fato possível cheirar os acordes, que são como cordas musicais. A perfu-maria é intimamente relacionada com a música. Temos simples acordes, que
são feitos de dois ou três itens e isso será como um conjunto de dois ou três
instrumentos. Então teremos combinado um acorde múltiplo e ele se torna umagrande orquestra moderna. Estranhamente, criar uma fragrância é similar a
compor uma música.”
Do ponto de vista ao ponto de experiência 91
Os acordes aromáticos contêm a nota “mais alta”, as “notas do
meio” e a “nota baixa”, numa estrutura idêntica à do acorde musical.52 Mas,
se posso fechar meus ouvidos àquilo que vem de fora, instalando-me como
o fez Cage, numa câmara anaecóica vedada aos sons do exterior (restaram-
lhe os ruídos de seu corpo, e ele entendeu: não há “silêncio”); ou, ainda,
se posso também fechar meus olhos, fitando as cores e manchas que me
dão impressões instáveis de mim e das luzes do ambiente, e que Stan
Brakhage quis recriar em filme - não posso deixar de respirar, nem posso
“respirar meu interior” em oposição a “respirar o exterior”. Meu vínculo,
a continuidade entre meu espaço interior e o espaço exterior, preenchido
com os aromas do mundo, não pode ser interrompido; trata-se da “cláu-
sula etérea” do contrato, que rege um vínculo definitivo e inescapável en-
tre o “dentro” e o “fora”, e aqui as distinções clássicas já não podem sus-
tentar-se. Não foi à toa que Ceitil escolheu, para colocar a questão do mun-
do sensível e do pensamento que poderia aí ser fundado - com tanto direito
a nos abrir a uma verdade qualquer das coisas quanto a racionalidade fun-
dada num certo olhar -, impor às suas personagens o desafio de reencon-
trar o universo aromático. De fato, se a música pode ser representada vi-
sualmente, tocada, dançada e cantada, e assumiu, no Ocidente, um enor-
me papel na cultura, não temos sequer as palavras para descrever os
52 “When Marilyn Monroe was asked by a reporter what she wore in bed, sheanswered coyly, ‘Chanel No. 5’. Its top note − the one you first smell is the
aldehyde, then your nose detects the middle note of jasmine, rose lily of the
valley, orris and ylang-ylang, and finally the base note, which carries the perfu-me and makes it linger: vetiver, sandalwood, cedar, vanilla, amber, civet and
musk.” (“Quando perguntaram a Marilyn Monroe o que ela vestia na cama,
ela respondeu maliciosamente, ‘Chanel No.5’. Sua nota principal - a que pri-meiro se sente é o aldeido, em seguida o nariz detecta a nota média de jasmin,
rosa, lírio do campo, lírio florentino e ylang-ylang e, finalmente, a nota de base,
que carrega o perfume e o faz durar: vetiver, sândalo, cedro, baunilha, âmbar,algália e almiscar”.) (Ackerman, 1995). Alguém que conheça um pouco da
estrutura dos sons musicais pode reparar também que, neste acorde de três
notas, cada uma delas se assemelha a um timbre diferente, constituído pordiversos harmônicos.
53 Ackerman (1995), Classen (1993), Howes (1998) e Ceitil (2001) fazem eco em
nossa carência de vocabulário para representar o mundo olfativo. Não se tra-ta, porém, de uma determinação biológica, como quer crer Ackerman, pelos
poucos vínculos que ligariam o circuito neural inaugurado no bulbo olfativo
(Douglas, 2002:224) − por sinal, a única estrutura neural exposta ao contatoexterior no corpo humano − às regiões corticais ligadas à linguagem. Classen,
Synott e Howes (1994) chamam a atenção ao rico vocabulário olfativo dos
Kapsiki, de Camarões ou dos Desana da Colômbia. Laporte (2001) descreveuma “assepsia” da língua francesa levada a cabo no século XVIII que teria
eliminado o vocabulário associado ao olfato.
aromas, e essa insuficiência da representação
mostra o quanto perdemos o acesso ao mundo
aromático.53 Nada, no mundo sensível, parece
mais difícil de ser apreendido pela ordem da
visão, nada se opõe mais ao visual do que o
mundo dos perfumes, dos cheiros, dos odores.
Constance Classen (1993:23-36), quando quer
demonstrar essa primazia da visão que já nos
fartamos de enfatizar, traz um exemplo preci-
so, por seu caráter cotidiano: a história da rosa.
Do Ocidente antigo ao moderno, as
rosas mantêm sempre um lugar de destaque no
universo experiencial e simbólico, e o modo
como suas qualidades mais evidentes, o aroma
e a beleza visual, assumem proeminência num
e noutro momento permite acompanhar a as-
censão do modelo visual e o esvaziamento do
sentido do mundo olfativo. Recorrendo aos
textos de religiosos, filósofos, poetas e aos
92 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
manuais de jardinagem ingleses dos séculos XVI e XVII, Classen mostra
como as rosas, valorizadas durante toda a Antiguidade e a Idade Média pelo
seu aroma − as fragrâncias das flores assumindo diversos tipos de signifi-
cações espirituais, curativas, rituais −, vão sendo progressivamente, a par-
tir do século XVIII, valorizadas por sua beleza plástica, visual, ao ponto de,
nos concursos de rosas promovidos por toda a Inglaterra durante o século
XIX, as flores serem julgadas apenas por sua aparência visual:54
“The emphasis on the visual aspect of the flowers was promoted by
the flower competitions which began at this time [fim do século
XIX] and in which flowers were judged by their visual appearance.
Compare the exhibition in ancient Rome of the rare bakam wood
which was highly valued for its incense, with the exhibition in mod-
ern flower shows of blooms which are much prized for their visual
perfections. Or, for that matter, compare the artificial roses of the
ancient Egypticians, which were crudely fashionable but annointed
with real rose oil, with the artificial roses of today, which are
scarcely distinguishable from real roses in appearance, but have
no scent.” [Classen, 1993:34]55
Quando se lê esse relato, que detalha os perfumes dos jardins lon-
drinos dos séculos XVI e XVII, e sua estetização visual a partir do século
XVIII, sente-se a tentação de relacionar o racionalismo cartesiano e sua
negação do mundo sensível, aos odores da Paris fétida do século XVI, des-
crita tão bem por Dominique Laporte (2000); ao passo que o empirismo
inglês e sua ênfase nas sensações teria emergido, ainda que já sob a sinta-
xe da visão, num território historicamente perfumado com os aromas de
rosas, violetas, lilases e outras fragrâncias, como escreve Francis Bacon,
em 1625:
54 Curioso trabalho mais recente, na área da neurologia, é Morrot, Brochet e
Dubourdieu (2001), que, em experiências em torno da influência da percep-ção das cores sobre a percepção olfativa, percebem, nos grupos franceses tes-
tados, a primazia da visão na determinação da experiência. Os provadores não
são capazes de perceber a identidade de sabores idênticos quando as coresdos líquidos diferem.
55 “A ênfase no aspecto visual das flores surgiu das competições de flores que
começaram nessa época [fim do século XIX] nas quais as flores eram julgadaspelas suas aparências visuais” Comparem a exibição na Roma antiga da rara
madeira bakam altamente valorizada pelo seu incenso, com a exibição, nas
modernas exposições de flores, de flores muito apreciadas por causa de suasperfeições visuais. Ou, nesse sentido, comparemos as rosas artificiais dos an-
tigos egípcios que eram rusticamente modeladas mas banhadas com verda-
deiro óleo de rosas, com as rosas artificiais de hoje, que mal se distinguem dasreais na aparência, mas que não têm qualquer odor.”
Do ponto de vista ao ponto de experiência 93
“And because, the Breath of Flowers, is farre sweeter in the Aire
[...] than in the hand, therefore nothing is more fit for that de-
light, than to know, what be Flowers, and Plants, that doe best per-
fume the Aire... That, which above all Others, yeelds the Sweetest
Smell in the Aire, is the Violet; ... next is the Muske-Rose. Then
the Strawberry Leaves dying, which is a most Cordiall Smell... But
those which Perfume the Aire most delightfully, not passed by as
the rest, but beeing Troden upon and Crushed, are Three: That is
the Burnet, Wilde-Time, and Water-Mints. Therefore, you are to
set whole Allies of them, to have the Pleasure, when you walke or
tread.” [apud. Classen, 1993:23]56
Gradualmente, o passeio no jardim, que era para Bacon uma jor-
nada através dos aromas, assumirá − sob o impacto visualista da filosofia
das luzes − o caráter contemplativo de um passeio numa galeria de arte. No
século XVIII, já se lê que “The perfection of the garden consists in the
number, beauty and diversity of the scenes” (Chambers, 1757, apud
Classen, 1993:27)57. Os jardins perdiam então suas essências! Tão rico e
sugestivo, porém, é o modo como os aromas atravessaram e foram signifi-
cados pela história ocidental − os banhos e os óleos perfumados dos egíp-
cios, os tapetes de rosas de Cleópatra; os perfumes dos gregos, aplicados
em cada uma das partes do corpo; os banhos de essências perfumadas nas
orgias romanas; a austeridade cristã e sua condenação da exuberância dos
56 “E uma vez o aroma das flores é muito mais doce no ar [...] do que nas
mãos, assim também nada é mais apropriado para essa delícia do que saber
quais são as flores e as plantas que melhor perfumam o ar. Aquela que,mais do que qualquer outra, deixa no ar o mais doce dos perfumes é a
Violeta; ... depois vem a rosa-mosqueta. Em seguida, as folhas caídas do
morangueiro, que têm um odor cordial... Mas as que mais deliciosamenteperfumam o ar , não quando se passa por elas, como as restantes, mas
quando são pisadas e esmagadas, são três: a saber, a Pimpinela, a Tomilho
e Hortelã-d’água. Portanto, deve-se criar alamedas inteiras delas para se terprazer quando se passeia ou caminha.”
57 “A perfeição do jardim consiste no número, na beleza e na diversidade das
cenas”.
58 Algumas dessas histórias − e muitas outras − podem ser lidas em Classen
(1993); ou em Classen, Synnot e Howes (1994); outras em Ackerman (1995).
59 Classen, Howes e Synnot o fizeram: Aroma, the cultural history of smell (1994).
perfumes, Deus sendo, ele mesmo, no entan-
to, essência e perfume; a busca no Oriente dos
temperos e aromas “do paraíso”; as cartas de
Napoleão a Josefina, pedindo-lhe que “não se
banhasse” para esperá-lo...58 −, que seria ne-
cessário todo um livro dedicado ao tema.59 Fas-
cinante como é, porém, tal abordagem antro-
pológica (à qual retornaremos ainda) nos abre
sobretudo o caráter simbólico da experiência
olfativa, o modo como cada época explicitou
nas significações dos perfumes uma filosofia
menos ou mais pensada, imanente ao cotidi-
ano. Do mesmo modo como se fez com a mú-
sica − vimos um recorte dessa história −, ou
mesmo com o tato: cada cultura, afinal, tem
também seus modos de toque, suas técnicas de
94 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
massagem, mesmo seus espaços interpessoais, ricamente codificados e es-
tabelecidos. Permanece, ainda, porém, a questão: pode-se fazer um mundo
sob a primazia do olfato?
Em O cão sob a pele, Oliver Sacks narra a curiosa aventura de Stephen
D., que sonhou ser um cão. Pela manhã, viu-se dotado de olfato prodigio-
so! Ao longo de três semanas, Stephen permaneceu num mundo em que,
embora as demais sensações tenham também sido intensificadas, o olfato
assumiu a primazia da gestalt experiencial:60
“Sonhei que era um cachorro − foi um sonho olfativo e acordei para
um mundo infinitamente aromático, um mundo no qual todas as
sensações, intensificadas como estavam, empalideciam diante dos
cheiros.” [Sacks, 2003:175]
O mundo vivido − poder-se-ia dizer: farejado − assumiu essa pers-
pectiva canina, mais ou menos como Diane Ackerman (1995:26) a descre-
veu, com humor, ao sugerir que os cães, ao farejarem os postes em seu
passeio matinal, liam as notícias do dia. Cada pessoa, cada rosto, cada lu-
gar, possuía seu próprio cheiro, distinto, e era reconhecido sem que fosse
necessário ver (Sacks, 2003:176);61 seria capaz de localizar-se em
Manhattan somente guiando-se pelos aromas de suas ruas e bulevares. As
emoções − alegria, medo − revelavam-se por seus cheiros, e a sexualida-
de, muitas vezes associada ao olfativo, embora intensificada, não era mais
interessante que todo o novo espetáculo, todo o mundo, e, uma vez mais, o
sentido, inaugurados por uma experiência organizada a partir de um ponto
de experiência singular:
“O prazer olfativo era imenso, mas também o desprazer − mas para
ele parecia menos um mundo de mero prazer ou desprazer e mais
toda uma estética, toda uma avaliação, todo um novo significado a
cercá-lo.” [Sacks, 2003:176; grifo nosso]
Uma vez mais, uma gestalt divergente organiza um sentido singu-
lar da experiência. Num campo perceptivo já não sob o império do olho
− seu tempo calculado e linear, seu espaço geométrico, suas distinções
representáveis e manipuláveis, sua distância sobretudo − mas, pode-se
60 Adotamos a expressão cunhada por Lackoff e Johnson em Metaphors we liveby (1980 − edição em portugês em 2002), e adotada por Howes (2003:31),extremamente feliz para os propósitos do presente trabalho.
61 Nota-se, no relato de Sacks, a mesma dificuldade em dispor de palavras ade-
quadas à descrição desse rico mundo aromático a que já nos referimos.
Do ponto de vista ao ponto de experiência 95
dizer, sob a tutela temporária do bulbo olfativo, emerge um mundo em
que “a abstração, a categorização [tornam-se] um tanto difíceis e irreais
diante do caráter imediato de cada experiência” (Sacks, 2003:176).62
Stephen conclui:
“O mundo do cheiro, o mundo dos aromas [...] tão vívido, tão real!
Foi como uma visita a outro mundo, um mundo de pura percepção,
rico vivo, auto-suficiente e pleno. Como eu gostaria de às vezes
voltar a ser cachorro.”
Stephen voltou ao normal − embora vez por outra roube um osso,
morda uma perna ou corra atrás de um carro.63 Podemos agora fazer um
balanço dessas jornadas em mundos abertos por alguns dos nossos senti-
dos − e seria desnecessário fazer um percurso similar com o paladar. Des-
te, acrescentaremos somente que nos dá a materialidade do mundo numa
intimidade muito maior que aquela conferida pelo tato. Afinal, nos per-
mite literalmente engolir a matéria, torná-la parte de nós, e há aí um mun-
do de afetos, absolutamente individual e subjetivo, a explicitar-se dentro
da oferta de sabores de uma vida − por fim, falamos em “bom gosto” e
62 Um texto muito bem humorado que retrata essa incompatibilidade entre aprimazia da visão e a do olfato é o texto de Luís Fernando Veríssimo (1999:134-
5), A Regininha: “Nenhum homem com mais de 40 está livre de aparecer uma
Regininha em sua vida. Aconteceu com o Dr. Arnon. O Veiga, que normalmen-te atendia no balcão, tinha ido tomar um café e o Dr. Arnon, apesar de ser chefe
da repartição, se vira obrigado a atender a moça. Ela se atrapalhara no preen-
chimento do formulário e o Dr. Arnon se vira obrigado a dar a volta no balcão,postar-se atrás dela e guiar sua mão pelo labirinto burocrático, sentindo o
perfume de sua nuca. É sabido que depois dos 40 os homens ficam indefesos
contra perfume de nuca.” Aqui, a burocracia, a vida ordenada ocidental,regrados pela distância da visão, são subvertidos pela intimidade do tato e,
sobretudo, pelo força do olfato.
63 Trata-se, naturalmente, de uma brincadeira que não visa atingir o texto de Sacksnem Stephen D.. Mas julgamos que a essa altura é gentil permitir ao leitor
respirar e retornar a si dessa vertigem das sensações, para que possamos pros-
seguir.
64 Se o leitor tomar a conhecida figura do “Homúnculo de Penfield”, notará, comalguma surpresa, a dimensão dos lábios, fonte infinita de sensações.
65 Em 2004, durante um seminário realizado por alunos da disciplina “Artes do
Corpo IV”, no sexto semestre do curso de graduação em Comunicação das Artesdo Corpo, na PUC-SP, os alunos nos fizeram inserir um pequeno fone de ouvi-
do no interior de nossas bocas, e, com os ouvidos e olhos vendados, literal-
mente escutar o som dentro do corpo. Foi uma experiência surpreendentementeintensa em fazer uma espécie de chamado a este mundo interior do corpo.
“mau-gosto” como um critério de clivagem
cheio de “não-ditos” sócio-culturais. A boca,
essa carne exposta, fonte inesgotável de sen-
sações,64 é mesmo o encontro de todos esses
mundos: nos dá de um só golpe o tátil − quen-
te, frio; duro, macio; ardido etc...; o olfativo −visto que se sabe ser aquilo a que chamamos
“sabor”, em sua maior parte, uma vivência de
aromas, bastando para constatá-lo que se pen-
se nos vinhos; é também carregado de visua-
lidade − há toda uma estética aí instituída, e
Luís Fernando Veríssimo certa vez escreveu
que não comeríamos, por exemplo, um bife
azul; e é mesmo sonoro − maçãs, cenouras e
batatas chips nos fazem ouvir, no movimento
de nossas mandíbulas e no cravar de nossos
dentes, sons que se fundam num espaço den-
tro de nós e nos remetem ao nosso universo
interior.65 E ainda, do mesmo modo como a
visão, o tato, os aromas e os sons são expli-
citados de maneiras diversas e dão gênese a
96 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
verdadeiros sistemas de signos − que envolvem identidade individual e
cultural, história e um universo significações menos ou mais sutis, que não
apenas são muito vastas para que possamos trata-lás aqui, mas talvez nos
fizessem perder o foco do que tentamos dizer −, também o mundo dos sa-
bores explicita e codifica toda uma relação entre o ser humano e o mundo
a seu redor: cada família, cada grupo social, cada povo, cada cultura, pos-
sui seus alimentos mais típicos, um cardápio e um paladar, ligados a valo-
res, à história, à geografia do seu ambiente. Talvez, mesmo, nada melhor
do que este terreno dos hábitos alimentares para mostrar uma familiari-
dade de nosso mundo sensível, de que fala Merleau-Ponty: “O sentir é essa
comunicação vital com o mundo que o torna presente para nós como o lu-
gar familiar de nossa vida” (Merleau-Ponty, 1994:84). Trata-se desse
mundo da percepção explicitado em nossa vida, em nossa cultura. Quando
estamos muito tempo longe de casa, queremos o conforto e o abrigo de uma
refeição de nosso país, de nossa família ou de nossa infância − queremos
o acolhimento de nosso mundo sensível, como de um abraço de uma pessoa
querida, um aroma de um jardim de nossos jogos infantis, as paisagens que
amamos −, e já nos referimos há pouco aos mundos sonoros das persona-
gens de Bertolucci.
Mas nossa experiência nunca é de tal modo especializada que se-
gregue cada um destes mundos dos demais: nosso mundo é uma totalida-
de em que as sensações se dão sempre num todo, cada uma delas faz parte
dessa gestalt experiencial que me cria e me ordena um mundo, com imagens,
aromas, sons, toques, sabores, cada qual intervindo em todos os demais.
Sabemos bem o modo como som e imagem se re-significam em contextos
audiovisuais; um perfume recupera lembranças e todo um mundo se refaz
em mim. A especialização é uma espécie de ilusão da experiência moder-
na, muito afeita à natureza dessa primazia categorizante e distintiva da vi-
são, e McLuhan e Carpenter lembram bem como a máscara ritual do es-
66 A antropologia reitera essa noção de uma “morada perceptiva”: “Lisa Law,for example, has examined how Filipino domestic workers living in Hong-Kong
take over the heart of the city on Sundays and recover the subtle forms of
sensory acculturation that occur in Chinese homes by recreating the tastes,smells, and sounds of their homeland” (“Lisa Law, por exemplo, examinou como
os trabalhadores domésticos filipinos moradores de Hong-Kong tomam posse
do centro da cidade nos domingos e se recuperam das formas sutis daaculturação sensorial que ocorre nos lares chineses, recriando os gostos, chei-
ros e sons da sua terra natal.”) (Howes, 2003:55).
quimó, apropriada pelo pesquisador e expos-
ta num museu à contemplação do olhar, nada
significa sem a dança que a anima e a voz que
faz falar através dela as divindades (McLuhan
e Carpenter, 1980:87-8). Esse mundo famili-
ar de imagens, aromas, toques, sons e sabores
em que nos sentimos abrigados, em que nos
expandimos no reconhecimento de nosso cos-
mos, é nossa morada perceptiva.66 Ao lado da
idéia de uma gestalt experiencial, fundada num
Do ponto de vista ao ponto de experiência 97
ponto de experiência (no Ocidente, um ponto de vista), devemos guardar, dos
universos percorridos até aqui, essa idéia: a percepção é nosso contrato
com o mundo, e nossa experiência se funda sobre essa fé perceptiva, a par-
tir da qual ordenamos um mundo pleno de significação que é como que
nossa morada. Heidegger, o filósofo que subverteu a vigência da “visão de
mundo” pela “escuta do ser” parece nos falar dessa morada n’O caminho
do campo (1949), em que descreve nostalgicamente o mundo de sua infân-
cia, recuperando uma paisagem serenamente sensual. O caminho do cam-
po se oferece “silenciosamente”; o tempo e a temporalidade são marcados
pelo relógio mas também pelos sons dos sinos; o espaço aberto é limitado
“pelos olhos e pelas mãos da mãe”; e “Entrementes, a consistência e o odor
do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da cons-
tância com que a árvore cresce” (Heidegger, 1969:68). É sobretudo pela es-
cuta que Heidegger nos abre poeticamente esse caminho do campo, e o
perigo que espreita é que “o homem de hoje não possa ouvir a sua lingua-
gem”. Por fim,
“Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do
castelo. [...] Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia
sobre as coisas. [...]
“Após a última batida [do sino da torre da igreja], o silêncio ainda
mais se aprofunda. [...] O apelo do caminho do campo é agora bem
claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
“Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira.
A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos
de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é
devolvida.” [Heidegger, 1969:71-2]
Conquanto a Origem a que se refere Heidegger ao final já não seja
certamente a de um ponto geográfico ou a de uma vida, mas a de uma es-
sência ou um acesso perdido ao Ser por toda uma cultura, o que reclama a
atenção é que a força desse chamado, disposta sempre através de uma fala
das coisas, tenha sido buscada nos sentidos do mundo abertos nessa pai-
98 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sagem de sua infância, uma paisagem plena de uma presença sóbria das
sensações, ordenada sobretudo pela escuta − um mundo que lhe abriga e
que recorda com nostalgia. Uma morada perceptiva, enfim.67
O que nos resta agora é verificar se os modos perceptivos, as gestalts
divergentes da norma visual do Ocidente podem fundar culturas cujo sen-
67 Loparic (2004:17-9) interpreta em termos mais psicanalíticos este belo texto,
e dá também indicações ricas sobre essa ligação de Heidegger com os espa-ços em que o filósofo alemão quis constituir morada: “A floresta negra não
era para Heidegger um idílio campestre, mas o único lugar onde ele podia vi-
ver e trabalhar criativamente.” (Loparic, 2004:27) “Destruída a Floresta Ne-gra pela intrusão decorrente da técnica, Heidegger perdeu o lugar onde pu-
desse se abrigar, viver e escrever. Onde é que ele buscou refúgio? Na palavra.
[...] Após constatar a ruína dos espaços que lhe eram familiares, Heideggerpassou a buscar na linguagem ‘a casa do ser’” (Loparic, 2004:29). Vê-se aí a
importância, para este filósofo extraordinário, de uma “morada onde se abri-
gar”. Ora, uma morada, como tentamos sugerir − ainda sabendo que a ques-tão da percepção não interessa especialmente a Heidegger nem a seus intér-
pretes −, deve ser este mundo aberto pela percepção numa gestalt experiencial.A posição de Heidegger quanto à percepção é de que esta já é segunda emrelação a uma abertura do Dasein ao mundo que é anterior à separação dos
sentidos (ver Jay, 1993:148). É uma posição que Merleau-Ponty tentou articu-
lar a partir de uma unidade primordial dos sentidos, à qual já nos referimos. Oproblema aí, a partir de nossa posição, é que se cai, por fim, numa certa “mís-
tica do ser”, que, conquanto nos pareça até atraente e fundamente um mun-
do filosófico poderoso, é bem menos “encarnada” do que a consciênciaperceptiva de Merleau-Ponty. Permanece, em suma, a questão de como pode
o Dasein abrir-se de fato à circunstância vivida sem a mediação dos sentidos.
68 Heidegger, como se sabe, associa esta mudança aos pós-socráticos (Jay,1993:146)
69 Tomamos aqui, de modo talvez simplificado, uma distinção que Jay (1993:146)
atribui a Heidegger: “Contrasting the early Greek attitude of wonder, which
lets things be, with that of curiosity, which is based on the desire to know howthey function, Heidegger linked the latter with the hypertrophy of the visual. In
Beeing and Time, he wrote: ‘the basic state of sight shows itself in a peculiar
tendency of Being which belongs to everydayness − the tendency towards‘seeing’. We designate this tendency by the term ‘curiosity’.” (“Contrastando
a atitude de admiração dos primeiros gregos, que deixa as coisas serem, com
a de curiosidade, que é baseada no desejo de saber como elas funcionam,Heidegger liga a segunda à hipertrtofia do visual. Em Ser e Tempo, ele escre-
veu: ‘o estado básico do olhar mostra-se numa tendência particular do Ser que
pertence ao cotidiano - a tendência para o ‘ver’. Designamos essa tendênciapelo termo ‘curiosidade’.”)
70 “A música era um dos componentes das quatro entre as sete artes liberais
conhecidas como quadrivium, no qual eram formados todos os estudantessuperiores da Idade Média. O quadrivium incluía a aritmética, a geometria e a
astronomia, que podemos admitir como matemáticas, e a música, que diría-
mos estar numa companhia curiosa. Mas a música, sendo uma questão dealturas dos sons e durações, é altamente sucetível à matemática, como con-
cordaram legiões de teóricos, desde Pitágoras até Arnold Schöenberg.” (Crosby,
1999:145-6).
tido coletivo de mundo seja ordenado a partir
de um arranjo sensorial distinto do nosso, cul-
turas fundadas num ponto de experiência dis-
tinto do ponto de vista.
Pode-se dizer então que há um olhar -
e não se trata de um olhar qualquer: trata-se de
um olhar em particular - que fez o Ocidente: em
algum momento, na Grécia,68 passamos a ver
o mundo não mais com um encantamento que
deixaria as coisas serem elas mesmas, mas com
certa curiosidade de saber como elas funcio-
nam.69 No entanto, séculos se passaram, épo-
cas, modelos religiosos, filosóficos, epistémes
tiveram e fizeram seu momento, erigindo-se
sobre esse modo impensado de voltar nosso
foco sobre o mundo. Ainda que fundado nessa
antiguidade clássica, este olhar curioso e
fragmentador somente assumiu sua plena vi-
gência na era moderna, a era da “visão de mun-
do”. Como lembra Jean-Yves Bosseur, a pro-
pósito da música medieval, até o Renascimen-
to o som mantinha certas prerrogativas, era
parte do quadrivium70 - uma posição que, como
se disse, Da Vinci, na Renascença, reivindicara
à pintura; Assim, “[...] Au Moyen Âge, l’ouïe
est considerée comme supérieure à la vue, de
par sa faculté de pénétrer à la fois l’âme et
l’esprit, de s’elever audelà de l’apparence
Do ponto de vista ao ponto de experiência 99
matérielle.” (Bosseur, 1999:22-3)71. McLuhan
(1997:82-93), enfatiza72 certo momento em
que, ao final da Idade Média, livros que eram
simplesmente um registro de um texto falado,
e eram lidos coletivamente, em voz alta, nas
bibliotecas,73 passam a ser lidos individual-
mente e em silêncio. Os livros fixaram, pre-
servaram e multiplicaram esse olhar que vinha
da escrita grega e romana, e agenciaram a tran-
sição de uma cultura predominantemente oral
a uma cultura predominantemente escrita.
McLuhan, e depois Walter Ong,74 que foi seu
discípulo, deram grande ênfase a essa distin-
ção do arranjo sensorial entre culturas letra-
das e não letradas, sociedades orais e socieda-
des alfabetizadas:
“Audile-tactile tribal man partook of
the collective unconscious, lived in a
magical integral world, patterned by
myth and ritual, its values divine and
unchallenged, whereas literate or vi-
sual man creates an environment that
is strongly fragmented, individualis-
tic, explicit, logical, specialized and
detached. [...] Any culture is an order
of sensory preferences, and in tribal
world, the senses of touch, taste, hear-
ing and smell were develloped, for very
practical reasons, to a much higher
level than the strictly visual.”
[McLuhan, 1995:240]75
71 “Na Idade Média, o ouvido é considerado superior à visão, pela sua capacida-
de de penetrar ao mesmo tempo na alma e no espírito, de alçar-se além da
aparência material.”
72 McLuhan reaparece em contexto mais estritamente filosófico em Romanyshyn(1993:351): “In addition, the interiorization of individual subjectivity in the act
of reading whithin the room of consciousness will find apt expression in the
private act of reading and in silence, unlike the manuscript consciousness ofthe Middle Ages, where reading was done aloud.” (“Além disso, a interiorização
da subjetividade individual no ato de ler dentro do espaço da consciência en-
contrará adequada expressão no ato privado de ler e em silêncio, ao contrárioda consciência manuscrita da Idade Média, quando a leitura era feita em voz
alta.”). A nota de rodapé do trecho remete à Galáxia de Gutenberg, sem men-
ção das páginas − já que de fato esta é discussão central do livro.
73 Crosby descreve bem essa transição: “[por volta do século XIII] A palavra audit[auditar] (da mesma raiz de audível e auditivo, que significa examinar através
da escuta de depoimentos, enveredou por seu estranho caminho de passar asignificar, quase sem exceção, examinar por meio da leitura, no mais absoluto
silêncio. [...] Durante séculos, os herdeiros do alfabeto romano têm tomado
por uma coisa natural a sua capacidade de escrever e ler com rapidez, como-didade e em silêncio. Mas nem sempre foi assim. Ler e escrever, no fim da
Antiguidade e no início da Idade Média eram tarefas difíceis. [...] A leitura tam-
bém era trabalhosa, não havia espaços entre as palavras e, quando os escribasdeixavam espaços, não o faziam necessariamente depois de cada palavra, mas
onde quer que lhes fosse cômodo, quer isto fosse ou não conveniente para o
leitor. Não havia divisões obrigatórias entre as frases ou parágrafos, nemtampouco grande coisa à guisa de pontuação, se é que existia alguma. [...]
Escrever não era nada mais do que a fala posta numa página, e, sendo assim,
não surpreende que os letrados da Antiguidade e dos primeiros séculos da IdadeMédia fizessem quase toda a sua escrita e leitura em voz alta. Surgiu e se dis-
seminou um novo estilo de leitura, por meio do qual o hábito da visualização,
com suas inclusões e exclusões especiais, implantou-se com mais firmeza namente ocidental. No século XIII, a leitura silenciosa − ágil e psicologicamente
interna − já era aceita como perfeitamente normal nas abadias e nas escolas
das catedrais, e começava a se espalhar pelas cortes e escritórios de contabi-lidade. Do século XIV chegaram-nos miniaturas de Carlos V sentado em sua
biblioteca − a primeira verdadeiramente real −, não escutando uma leitura feita
por outra pessoa em voz alta, mas sozinho e lendo para si mesmo, com os lábiosfirmemente cerrados. Antes de seu século, os quadros mostravam Deus e os
anjos comunicando-se com o seres humanos por meio da fala. Pouco depois
de 1300, um missal anglo-francês exibia a Virgem Maria apontando as pala-vras escritas num livro.” (Crosby, 1999:133-5)
74 Orality and Literacy: The technologizing of the world (1982)
75 “O homem tribal audio-táctil compartilhava do inconsciente coletivo, vivia nummundo mágico integral, cujos padrões eram o mito e o ritual, seus valores di-
vinos e incontestes, enquanto o homem visual cria um ambiente fortemente
fragmentado, individualista, explícito, lógico, especializado e destacado. [...]Toda cultura é uma ordenação de preferências sensoriais e, no mundo tribal,
os sentidos do tato, gosto, audição e olfato eram desenvolvidos, por razões
muito práticas, a níveis muito mais altos que o estritamente visual”
100 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
À parte o boom do mcluhanismo nos anos 1960,76 que adotaram seus
slogans de eficiência sintética verdadeiramente pop − alguns dos quais reto-
maremos mais adiante −, antropólogos contemporâneos77 tomaram seus
insights sobre os sentidos como uma hipótese a ser aprofundada. Expressões
como “interplay of the senses” (“jogo entre os sentidos”), “sensory bias”
(“padrão sensorial”), “sense ratio” (“proporção entre os sentidos”), que pro-
curavam descrever as diferentes maneiras de organizar a hierarquia dos sen-
76 Howes (2003) nota que “McLuhan appears to have been a victim of his ownmedia success. As a result, most of his theory has come down to us in the form
of sound bites − ‘the medium is the massage’, ‘global village’− and has flitted
down whitout receiving the sustained attention it deserves.” (“McLuhan pa-rece ter sido uma vítima do seu próprio sucesso na mídia. Resulta daí que a
maior parte da sua teoria nos chegou em forma de sonoros bordões - ’o meio
é a mensagem’, ‘aldeia global’ - e foi-se embora sem receber a cuidadosa aten-ção que merece.”).
77 Por exemplo, Ian Ritchie, Anthony Seeger, Edmund Carpenter, Constance
Classen, David Howes, Anthony Synnot (Classen, 2001).
78 “McLuhan and Carpenter collaborated in the Centre for Culture and Technologyat the University of Toronto throughout the 50’s and co-edited the Centre’s
journal, Explorations [...]. Their network of research associates included E. T.
Hall, [...] Dorothy Lee, Northrop Frye and many other luminaries” (“McLuhane Carpenter foram colaboradores do Centro de Cultura e Tecnologia da Uni-
versidade de Toronto durante a década de 50 e coeditaram a revista do Cen-
tro, Explorations [...]. Sua rede de pesquisadores associados incluía E.T. Hall,[...] Dorothy Lee, Northrop Frye e muitos outros luminares”.). (Howes, 2003:237
n5).
79 “McLuhan’s ideas were also field-tested after a fashion by Edmund Carpenter[...] Carpenter’s writing contains many interesting observations on different
modes of combining the senses, as in the following account of what was
involved in tracking game in the Arctic: ‘Reading tracks involves far more thanjust knowing where to look. Everything is smelled, tasted, felt, heard can be as
relevant as anything seen. I recall beeing out with trackers once and when I
stooped to scrutinize the trail, they stepped back, taking in the whole.Interpenetration & interplay of the senses are at the heart of this problem’”
(“As idéias de McLuhan foram também de certo modo testadas em campo por
Edmund Carpenter [...] Os escritos de Carpenter contêm muitas observaçõesinteressantes sobre diferentes modos de combinar os sentidos, como as que
se encontram no seguinte relato do que está envolvido no jogo de seguir pis-
tas no Ártico: ‘Ler pistas envolve muito mais do que apenas saber onde procurá-las. O que é cheirado, provado, sentido, ouvido pode ser tão relevante quanto
o que é visto. Lembro-me de ter saído uma vez com cães farejadores e quando
me curvei para examinar os rastros, eles recuaram, atentos ao contexto. Ainterpenetração e o jogo conjunto dos sentidos são o cerne desse problema.’”)
(Carpenter, 1973; apud Howes, 2003:150).
80 “pessoas de diferentes culturas não somente falam diferentes línguas como, oque possivelmente é mais importante, habitam diferentes mundos sensoriais”.
tidos − a gestalt experiencial −, de experimentar
e dar sentido ao mundo, cunhadas por
McLuhan, foram levadas adiante em trabalhos
de campo que procuraram descrever os vários
modos pelos quais diferentes povos “make
sense of the world” (“dão sentido ao mundo”)
(Classen, 1993:1). A afinidade entre a obra de
McLuhan e a antropologia inicia-se já nos anos
50, quando editara Explorations78 em parceria
com Edmund Carpenter,79 e Gutenberg Galaxy
(1962) muitas vezes recorre à obra do antropó-
logo norte-americano Edward T. Hall, que tam-
bém percebera o caráter particular dos mundos
sensórios de diferentes culturas: “people from
different cultures not only speak different
languages but, what is possibly more important,
inhabit diferent sensory worlds” (apud Howes,
2003:14)80.
Walter Ong perseguiu as sugestões de
McLuhan e produziu uma obra chave para
a antropologia dos sentidos, Orality and
Literacy: The technologizing of the world (1982),
aprofundando a reflexão sobre as distinções
entre as sociedades orais, baseadas na fala e
na escuta, e aquelas sustentadas na escrita e
portanto na visão:
Do ponto de vista ao ponto de experiência 101
“[...] ‘world view’... reflects the marked tendency of technologized
man to think of actuality as something essentially picturable and
to think of knowledge itself by analogy with visual activity to the
exclusion, more or less, of the other senses. Oral or non-writing
cultures tend much more to cast up actuality in comprehensive
auditory terms, such as voice and harmony. Their ‘world’ is not so
markedly something spread out before the eyes as a ‘view’ but
rather something dinamic and relactively unpredictable, an event-
world rather than an object world.” [Ong, 1969, apud Classen,
1993:121]81
Do mesmo modo, porém, como o olhar não necessita ser o olhar do
Ocidente − como bem lembra Constance Classen − também a distinção
oral-visual incorre numa generalização que reflete ainda as modalidades
perceptivas cujo emprego é mais acentuado na cultura do Ocidente.82 Uma
cultura oral pode ser fundada numa cosmologia de “vibrações”, como no
caso dos Hopis do Arizona; uma cultura visual pode dar mais importância
às cores do que aos aspectos “mensuráveis” das coisas, como no caso do
81 “[...] ‘visão do mundo’ ... reflete a marcada tendência do homem tecnologizado
de pensar a efetividade como algo essencialmente figurável e pensar no pró-
prio conhecimento por meio de analogia com a atividade visual, a ponto demais ou menos excluir os outros sentidos. Culturas orais ou sem escrita ten-
dem muito mais a ordenar a efetividade em termos auditivos abrangentes,
como voz e harmonia. Seu ‘ mundo’ não é tão marcadamente algo espalha-do diante dos olhos como uma vista, mas, antes, algo dinâmico e relativamente
imprevisível, um mundo de eventos, mais que de objetos.”
82 “Yet, there is no intrinsic reason why the simple non-possession of the visual
medium of writing should automatically make a society ear-minded. In fact,there is much sensory diversity among so-called oral cultures as there is
between such cultures and the visualist West. While ‘oral’ culture , therefore,
is a valid designation in so far as it indicates that a culture´s dominant mediumof communication is speech, it is not an accurate represenation of a culture’s
sensory model.” (“Mas não há razão intrínseca para aceitar que a simples não-
posse do meio visual da escrita devesse contituir uma sociedade auditiva. Defato, há mais diversidade sensorial entre as chamadas culturas orais do que
entre essas culturas e o Ocidente visualista. Portanto, ainda que ‘cultura oral’
seja uma designação válida, na medida em que indica que o meio de comuni-cação dominante de tal cultura é a fala, não é, no entanto, uma representa-
ção acurada do modelo sensorial da cultura.”). (Classen, 1993:122).
83 Um outro exemplo de significação da visão é dos suyas do Brasil (Classen,2001), que relacionam a visão à bruxaria. Por outro lado, adotam ornamentos
em forma de disco nos lábios e nas orelhas para recordar uma primazia da
oralidade na significação do mundo.
Desana, da Colômbia (Classen, 2001) − e terí-
amos aí um exemplo de olhar de certo modo
próximo daquele experimentado por Huxley,
que punha em relevo as “qualidades secundá-
rias”.83 Mas é justo reconhecer que a idéia das
culturas não letradas serem baseadas em dife-
rentes “interações dinâmicas entre os senti-
dos” [interplay among the senses], proposta
por McLuhan, abrigava naturalmente a hipó-
tese de outros modos de experimentar e dar
sentido ao mundo, e reconhece-se em seu tra-
balho este caráter pioneiro de ter aberto o
campo sensorial sob o ângulo da cultura. A
própria configuração, porém, do aparato sen-
sorial em “cinco sentidos” já é uma represen-
tação cultural − e basta para isso notar que o
que chamamos “tato” abriga pelo menos três
tipos de estímulos diversos: a pressão (toque),
temperatura (frio-calor) e a dor (esta última,
aliás, coloca no limite o problema da cultura e
subjetividade, visto que os limites e significa-
ção da dor física ou espiritual nas culturas abre
102 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
84 “A visão, a audição o gosto e o tato constituem os quatro básicos, enquanto oolfato fica no meio, ligando a visão e a audição com o tato.” Daí se nota tam-
bém a origem da relação entre as idéias de “aroma” e “essência”.
85 A propósito da fala como sentido, Classen comenta: “The thought of speechas a sense seems odd to us moderns. This is partly because we conceive the
senses as passive recipients of data, whereas speech is an active externalization
of data. It is also because we think of the senses as natural faculties and speechas a learned acquirement. The ancients, however, had different ideas on the
matter. They were apt to think of the senses more as media of comunication
than as passive recipients of data. The eyes, for exemple, were believed toperceive by issuing rays which touched and mingled with objects to which they
were directed.” (“A concepção da fala como um sentido parece curiosa para
nós, modernos. Isse se dá em parte porque concebemos os sentidos como re-cipientes passivos de dados, enquanto a fala é uma externalização ativa de
dados. Também porque concebemos os sentidos como faculdades naturais e
a fala como uma aptidão aprendida. Os antigos, no entanto, tinham diferen-tes idéias sobre o assunto. Eles concebiam os sentidos mais como meios de
comunicação do que como recipientes passivos de dados. Acreditava-se, por
exemplo, que os olhos percebiam emitindo raios que tocavam e matizavam osobjetos para os quais eram dirigidos.”). (Classen, 1993:2). Esse modelo medi-
eval da visão, que se lança às coisas, e portanto realiza aquela “experiência
cósmica” de que fala Benjamin, não é estranho à percepção tal qual descritapor Merleau-Ponty, esse perceber que se define na circunstância vivida, pelas
coisas a que visa e que lhe permitem fazer mundo. Embora não seja essa sua
intenção, pode-se interpretar algo de místico também em Merleau-Ponty. VerJay (1993:166).
86 “Sentido do equilíbrio, sentido do olfato, sentido do paladar, sentido da visão,
sentido do calor, sentido da audição, sentido da palavra, sentido do pensar,sentido do eu, sentido do tato, sentido da vida, sentido do movimento.” (Steiner,
1997:17). A Doutrina Antroposófica ainda hoje é base para muitas instituições
de educação, estudo, e mesmo saúde, em muitos lugares do mundo. Aqui emSão Paulo, a Dra. Beatriz Padovan desenvolveu e tem aplicado com sucesso
metodologia própria de reorganização neuro-linguística procurando fazer um
encontro entre as reflexões de inspiração “goetheana” de Steiner e as pesqui-sas contemporâneas na neurologia.
87 A escola portuguesa de antropologia visual (Laboratório de Antropologia Vi-
sual − Universidade Aberta do Porto) tem procurado vencer este desafio dan-do a voz ao outro, dando-lhe mesmo por vezes a câmera. Howes (2003:57),
porém, entende que a câmera é já um dispositivo demasiadamente especializa-
do visualmente, cuja objetividade não permite facilmente a inclusão dos de-mais sentidos: a densidade sensória envolvida num ritual não pode ser redu-
zida às imagens cinéticas de uma dança, por exemplo. Nesse sentido, prefere
manter o texto como expressão que permite evocar o universo sensível dacultura de maneira mais equilibrada. Que algum meio seja “mais equilibrado”
que os demais é algo, no entanto, que se pode discutir longamente.
toda uma extensa discussão: pense-se por
exemplo nos textos de Sade, no faquirismo dos
hindus ou nos rituais cristãos de auto-
flagelação); do mesmo modo, a propriocepção,
a sensação do corpo próprio, que Merleau-
Ponty chama mesmo de “mágica”, não se en-
caixa nos cinco sentidos que dizem respeito à
nossa relação com o exterior, os “dados dos
sentidos”, a partir do que falamos num “lan-
çar-se na direção do mundo” − talvez devêsse-
mos considerá-la, já que nos dá, por exemplo,
as vivências de “acima”, “abaixo”, “à direita”
ou “à esquerda”, mas isso não mudaria em
nada nossa tese. A origem da idéia de “cinco
sentidos” remonta a Aristóteles, que preten-
deu associar os sentidos aos elementos: terra,
ar, fogo, água e a quintessência: “Sight, hearing,
taste and touch constitue the basic four, while
smell falls in the middle, linking sight and
hearing with touch”84 (Classen, 1993:2). No
século I, Philo, tentando formular uma dispo-
sição dos sentidos adequada à sua interpreta-
ção do Velho Testamento, sugeriu que os sen-
tidos fossem sete, acrescentando os órgão
genitais e a fala;85 os Hausa nigerianos distin-
guem apenas dois sentidos: visual e não visual
(Classen, 1993:2-3); Rudolf Steiner propõe,
na doutrina Antroposófica, uma divisão em
doze sentidos.86 Os cinco sentidos são, assim,
apenas um modelo que fixou-se na cultura e
sobre o qual pouco refletimos, e que impõe so-
bre o campo sensível o caráter do Ocidente.
Vilém Flusser (1983:9-15) já dizia que a nossa
cultura é o “chão que pisamos”, e não sabemos
em que medida somos capazes de assumir o
ponto de experiência do outro87 − se é que o
somos em qualquer medida. Os etnólogos, por
muito tempo, procuraram compreender as di-
ferentes culturas aplicando-lhes esse nosso
Do ponto de vista ao ponto de experiência 103
olhar analítico, separando sons e imagens em contextos especializados de
imagens ou etnomusicologia, ou pensando as culturas como texto, por
exemplo (Howes, 2003:17-21). Do mesmo modo como no caso da máscara
do esquimó, de que falamos há pouco, a complexa interação entre os sen-
tidos que constitui o modo como uma cultura significa o mundo não pode
ser fragmentada para sua apropriação pelo nosso conhecimento, já que,
desse modo, tão somente reiteramos o sentido que já fazemos do mundo,
e perdemos uma vez mais a riqueza experiencial que nos dá a vivência do
outro e o inesgotável do real. Classen comenta, por exemplo, sobre as fa-
mosas “pinturas de areia” dos navajos:
“Las pinturas de arena de los navajos [...] son para ellos mucho
más que meras representaciones visuales. Creadas para
cerimonias de curación, las pinturas de arena están hechas para
ser aplicadas sobre el cuerpo de los participantes y no
simplesmente para ser contempladas. Desde una perspectiva
occidental convencional, coger arena de las pinturas y aplicarla
ao cuerpo ‘destruye’ la pintura. Desde el punto de vista de los
navajos, este acto ‘completa’ la pintura transfiriendo al cuerpo del
paciente, a través del tacto, el poder curativo que encierra la
representación visual.” [Classen, 2001]88
Em Worlds of sense, Classen (1993:121-31) tenta descrever alguns
exemplos de cosmologias fundadas em pontos-de-experiência bastante
distintos daquele do chamado Ocidente. Os tzotzil mexicanos, descenden-
tes dos Mayas, da região de Chiapas, possuem, por exemplo, uma
88 “As pinturas de areia dos navajos [...] são para eles muito mais do que meras
representações visuais. Criadas para cerimônias de cura, as pinturas de areia estãofeitas para serem aplicadas sobre o corpo dos participantes e não simplesmente
para serem contempladas. De uma perspectiva ocidental convencional, colher
areia das pinturas e aplicá-la ao corpo ‘destrói’ a pintura. Do ponto de vista dosnavajos, este ato ‘completa’ a pintura transferindo ao corpo do paciente, por meio
do tato, o poder de cura que encerra a representação visual.”
cosmologia termal. Todas as instâncias do vi-
vido são valoradas segundo a noção positiva de
calor (associado ao sol, “Nosso pai calor”),
símbolo central e ordenador do cosmos. O es-
paço é pensado denominando a região eleva-
da das montanhas, onde vivem, “território
frio” [cold country], em oposição à costa do
pacífico, as “terras quentes” [warm lands]; o
leste é o “calor emergente” [emergent heat]
(de onde nasce o sol), ao passo que o oeste é o
“calor evanescente” [waning heat], e o norte e
o sul são os “lados do céu”. O tempo é medido
em “ciclos de calor” [heat cycles] e os dias sa-
104 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
grados são “ciclos de calor maior” [major heat cycles]. Nascimento em
morte também são representados em termos de calor: ao nascerem, os
bebês são considerados “frios”, e portanto banhados em água quente,
aquecidos com cobertores e presenteados com signos de calor, “in order
to keep them warm until they have acquired enough heat to survive on their
own”89. Ao longo da vida, os tzotzil crêem, então, que se acumula calor, e a
cada ritual de passagem (batismo, casamento etc.), a quantidade de calor
- ou seja, de poder - do indivíduo aumenta. “Thus, the man who is very old
possesses90 the greatest heat possible for a human-being”, até tornar-se,
na morte, “completamente frio” [grow completely cold]. Nos rituais, to-
dos os sentidos são integrados, e o simbolismo termal é incorporado num
“sistema simbólico multi-sensorial” [multi-sensory symbolic system]. No
cotidiano, alimentos, cores, linguagem - todo o campo sensorial, enfim -
, os mitos e todas as instâncias do cosmos tzotzil são vividas e valoradas em
termos de “quente” e “frio”, e, em conseqüência também os papéis na hi-
erarquia social da comunidade são caracterizados termicamente:
“Thus, the social order of the Tzotzil community is structured accord-
ing to the thermal order of the cosmos, with the most important
members associated with the hot rising sun, and the least important
with the cold setting sun. Through their placement in communal
rituals, individuals know their degree of importance in the ‘ther-
mometer’ of social status. At the same time, such rituals serve to es-
tablish an exchange of heat-force between humans and deities.
Burning candles, called ‘tortillas’ for the gods are offered to the dei-
ties, while corn tortillas and cane liquor, ‘the heat of the sun’, are
consumed by the participants. In this way, the circulation of heat
force through the cosmos is assured.” [Classen, 1993:125]91
89 “a fim de mantê-los aquecidos até que eles tenham adquirido o calor sufici-
ente para sobreviver por conta própria”.
90 “Assim, o homem que é muito idoso possui o máximo de calor possível para oser humano”.
91 “Assim, a ordem social da comunidade Tzotzil é estruturada de acordo com a
ordem termal do cosmos: os membros mais importantes são associados como ardente nascer do sol, e os menos importantes com o frio por do sol . Pelo
lugar onde são situados nos rituais comunais, os individuos conhecem seus
gráus de importância no ‘termômetro’ do status social. Ao mesmo tempo, es-ses rituais servem para estabelecer uma troca da força calórica entre humanos
e divindades. A queima de velas, ditas ‘tortillas’, para os deuses, são ofereci-
das às divindades, enquanto tortillas de milho e licor de cana, ‘o calor do sol’,são consumidos pelos participantes. Dessa forma, fica assegurada a circula-
ção da força calórica através do cosmos”.
Do ponto de vista ao ponto de experiência 105
Finalmente, a mitologia cristã − já que a religião dos tzotzil agrega
elementos indígenas à doutrina católica trazida pelos espanhóis − é adap-
tada de modo a submeter-se à primazia termal na ordenação simbólica do
sentido do mundo:
“A long time ago, the Jews decided they were going to kill ‘Our Fa-
ther’ (the Sun). They caught him in a tree and and tried to hang
him, but he would not die. He went to hide in a sweat-bath house...
they decided to try to burn him, again without success, for he came
out of the fire younger than he was before. They decided that it
should rejuvenate them also, so all the Jews jumped on the fire and
died... this is why they always burn the Judas on Holy Saturday...”
[Gossen, 1974, apud Classen, 1993:126]92
Não se trata mais, enfim, de pensar uma “visão de mundo”, ou de
“ouvir o chamado de uma Origem”. Trata-se de sentir o calor do mundo
como valor positivo e projetar a dinâmica, a vivência, o conforto e a inti-
midade desse calor − do nascer do sol ao poente, do calor frágil dos bebês
à frieza dos mortos, da temperatura corporal amena do cotidiano à embri-
aguez do cane-liquor nos rituais, das fogueiras pela manhã e ao fim da jor-
nada nos campos cultivados − sobre todo o mundo vivido, e significá-lo a
partir deste ponto de experiência, dessa gestalt experiencial que ordena o
mundo a partir da sensação térmica.
Também a experiência olfativa, que governara os dias de cão de
Stephen D., pode constituir o ponto de experiência de toda uma cultura.
Quando se pergunta a um membro das comunidades ongee da ilha de Little
Andaman, na Baía de Bangala, “como vai você?”, a expressão empregada
em sua língua seria, no português, “como vai seu nariz?”; ou ainda: “quan-
do/porque/onde deve o nariz estar?” [when/why/where is the nose to be?]
(Classen, 1993:127). Os ongees, caçadores e coletores que não mantêm
praticamente nenhum contato com o mundo externo à ilha − bem, exceção
feita aos antropólogos −, ordenam seu mundo segundo a primazia do olfato.
Quando um ongee quer dizer “eu”, aponta para o próprio nariz. O modo
olfativo pelo qual a cultura ongee significa seu mundo é definida por eles
92 “Há muito tempo atrás, os Judeus decidiram que iriam matar ‘Nosso Pai’ (o
Sol). Eles o prendeream a uma árvore e tentatam enforcá-lo, mas ele nãomorreu. Ele foi se esconder numa casa de banhos... eles decidiram tentar
queimá-lo, mas novamente sem sucesso, pois ele saiu do fogo mais jovem do
que era antes. Eles decidiram que isso deveria também rejuvenescê-los, e as-sim, os judeus todos pularam no fogo e morreram... é por isso que eles sempre
queimam o Judas no Sábado de Aleluia...”
106 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
como um jogo de esconde-esconde [hide-and-seek], em acordo com a
alternância implícita nos atos de inspirar e expirar:
“The very alternation of life and space between the Ongee and the
spirits that lies at the heart of Ongee cosmology is ordered by an
olfactory model: the inhaling and exhaling of breath. The spirits
inhale the exhaled odour of a human causing the death of the hu-
man and the birth of a spirit. Conversely, a spirit dies and a human
is born when a woman consumes a spirit in her food. The Ongee
explains the alternating nature of their cosmos by saying that ‘it´s
never possible to inhale and exhale at the same time’. Whithout
this continuous process of exchange, the Ongee cosmos would be
still and lifeless. As the Ongee say, ‘We have to give and take... oth-
erwise all the game of hide-and-seek will come to an end’.”
[Classen, 1993:130-1]93
A partir desse ponto de experiência, a cultura ongee estabelece ci-
clos de vida e morte, dá a medida da saúde e do equilíbrio do indivíduo e
do grupo, ordena as relações com os outros seres vivos, com os espíritos e
com o cosmos, elabora tempo e espaço, mantém sua unidade comunitária.
Trata-se, sobretudo, de administrar o mundo controlando odores. O ver-
dadeiro fogo, por exemplo, não importa por sua luz ou calor, mas pelo seu
cheiro. No ciclo de vida e morte, o recém-nascido praticamente não tem
cheiro; à medida que cresce, adquire dentes e ossos firmes − o ossos são a
forma mais condensada de cheiro, e ali mora o espírito − e portanto vai
concentrando odor; quando morre, torna-se um espírito sem cheiro
[odourless spirit]. Os espíritos, por sua vez, estão constantemente famin-
tos por odores, e a morte é o momento em que um espírito se apodera do
odor de um indivíduo; o nascimento, por outro lado, acontece quando uma
das mulheres come, numa refeição, um desses espíritos famintos, que
então virá, digamos, não “à luz”, mas “ao cheiro”. Daí o jogo de “esconde-
93 “A própria alternância de vida e espaço entre os Ongee e os espíritos que está
no cerne da cosmologia Ongee é ordenada por um modelo ligado ao olfato: o
inalar e o exalar da respiração. Os espíritos inalam o odor exalado por um hu-mano causando a morte de um humano e o nascimento de um espírito. Inver-
samente, um espírito morre e nasce um humano quando uma mulher conso-
me um espírito na sua comida. Os Ongee expõem a natureza alternada do seucosmos dizendo que ‘nunca é possivel inalar e exalar ao mesmo tempo’. Sem
esse contínuo processo de troca, o cosmos Ongee seria parado e sem vida.
Como diz o Ongee, ‘Temos de dar e tomar... senão todo o jogo de esconde-esconde teria um fim’.”
esconde”: os ongee devem impedir os espíri-
tos de se apoderarem de seus cheiros; devem
matar os animais de que se alimentam “libe-
rando seu cheiro” [releasing their odour] − e
devem impedir também os animais de perce-
berem seus cheiros.
A saúde de um ongee depende do seu
equilíbrio “aromático”. O excesso de cheiro
o torna “pesado”, “frio”, e a cura passa por
Do ponto de vista ao ponto de experiência 107
aquecê-lo, para “derreter” o cheiro concentrado e retomar a saúde;
ferimento ou febre, em contrapartida, causam “leveza”, perda de chei-
ro, e o ongee é pintado com argila branca de modo a estancar a perda de
cheiro e restabelecer seu equilíbrio. As pinturas com argila são empre-
gadas em diversas circunstâncias, sempre com o propósito de regular,
conter e equilibrar a perda do cheiro, a força vital. Em rituais de inicia-
ção dos homens, quando se deseja atrair os espíritos, não se aplicam as
pinturas, precisamente com o propósito de liberar os odores dos que
serão iniciados. A comunicação com os ancestrais e com os demais seres
também é regulada pelos padrões das pinturas, que constituem um ver-
dadeiro código olfativo de comunicação (Classen, 1993:129). Durante o
sono, um ongee não repõe suas “forças”, mas seus cheiros. Quando um
ongee cumprimenta a outro (“Como vai o nariz?”), faz-se um ritual ba-
seado nesse princípio de troca:
“If one responds that one is heavy, one sits down on the lap of the
inquirer, and rubs one´s nose on that person´s cheeck. The
cerimonial act is supposed to remove some of the excess of odour
which is causing the sensation of heaviness. If the response is that
one feels light, the inquirer blows one´s hand as a way of ‘infusing’
odor and weight.” [Classen, 1993:127]94
Assim, a comunidade não apenas permanece em grupo para man-
ter uma coesão coletiva do odor e impedir os espíritos de se apoderarem
do cheiro deste ou daquele, mas cuida de trocar entre si o equilíbrio de
seus cheiros. Os ongees regulam suas estações e seu movimento pela ilha
em acordo com os ventos, os cheiros e os espíritos. O torale, o feiticeiro,
mistura-se aos espíritos, e decifra o movimento dos odores e dos espí-
ritos famintos por cheiros; as estações são determinadas pelos ventos que
sopram em diversas direções durante o ano espalham os cheiros e tra-
zem os espíritos famintos. De acordo com esses ciclos, o povo escolhe as
partes altas da ilha, ou o litoral, de modo a manter seu jogo de esconde
com os espíritos.
Curiosamente, no modelo sensório dos ongees, espíritos e huma-
nos partilham tato e olfato, ao passo que visão e audição são atributos ex-
94 "Se alguém responde que está pesado, senta-se ao lado de quem pergunta e
esfrega o nariz no queixo dessa pessoa. Essa cerimônia supostamente remo-veria o excesso de odor que está causando a sensação de peso. Se a resposta
é que a pessoa se sente leve, o que pergunta sopra na sua mão como um meio
de ‘infundir’ odor e peso.”
108 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
clusivamente humanos. Dentro da sociedade, “visão” e “audição” são atri-
butos de dois grupos distintos, que casam-se entre si para preservar o equi-
líbrio, “so that hearing and seeing is complete” (Classen, 1993:130)95. Com
as pinturas corporais e mesmo a simbologia das cores subordinadas ao
equilíbrio dos odores, estabelecido em termos de “leve”, “quente” e “ma-
cio” ou “pesado”, “frio” e “duro”, todo o campo sensorial dos ongees está
de fato submetido à primazia olfativa:
“[...] olfaction, indded, underlies all sensory processes, as the ulti-
mate reason for sensory knowledge of any kind is to be better able
to mantain the cosmos in a dynamic olfactory balance.” [Classen,
1993:127]96
Deveríamos, segundo uma lógica do Ocidente, descartar tal modo
de significar as coisas, de fazer mundo, a partir do modo de ser da experi-
ência olfativa e da respiração, apenas porque não há uma racionalização
como a entendemos, ou um sistema de representação descolado da expe-
riência vivida e flutuando numa região qualquer ideal, onde não mais se
respira as essências da natureza, do outro e dos espíritos? O contraste en-
tre esse tipo de modelo sensorial olfativo e o mundo por ele explicitado, e
o mundo que habitamos segundo o modelo visual do Ocidente, foi tratado
por uma antropologia evolucionista do século XIX a partir de um estatuto
darwininano que concedia à visão a posição mais nobre no processo
evolutivo. Costumava-se definir, assim, tais povos como “primitivos”
(Howes, 2003), segundo um modelo teórico que colocava a tradição euro-
péia, a burguesia, sua ciência e seu modo de vida, como os pontos mais al-
tos no progresso da raça humana. Curiosamente, ao final do ano de 2004,
quando um maremoto de grandes proporções (“Tsunami”) atingiu a costa
95 “de modo que o ouvir-e-ver se complete”.
96 “[...] o olfato decerto subjaz a todos os processos sensoriais, pois a razão úl-
tima para qualquer espécie de conhecimento sensorial é estar melhor capaci-
tado a manter o cosmos num balanço olfativo dinâmico.”
97 http://notícias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI448368-EI4502,00.html:“Métodos ancestrais salvam tribos primitivas indianas − Graças a sistemas
ancestrais de detecção de mudanças na natureza, as seis tribos primitivas in-
dianas que habitam as ilhas Andaman e Nicobar sobreviveram aos tsunamisque assolaram o sudeste asiático [...] Os aborígenes do arquipélago [...] sabi-
am que um desastre ia ocorrer na região, segundo V. R. Rao, diretor da Inspeção
Antropológica da Índia [...]: ‘Os nativos percebem um perigo eminente atra-vés de sinais biológicos’, afirmou Rao”. (03/01/2005). Houve vítimas entre os
nativos das ilhas Nicobar.
sudeste da Índia, deixando centenas de milha-
res de mortos em países hoje já sob larga in-
fluência dos modos de organização da econo-
mia, do poder, do conhecimento e da produ-
ção ocidentais − países integrados à “economia
globalizada” −, os povos das Ilhas Andaman,
entre eles os ongees, souberam interpretar
movimentos dos animais e não tiveram uma
vítima sequer.97 Poderíamos brincar, e dizer
que os ongees “sentiram no ar” os movimen-
tos da natureza, ou considerar as múltiplas for-
ças e compromissos econômicos e políticos
Do ponto de vista ao ponto de experiência 109
que impediram à razão virar seus olhos às tormentas do Oceano Pacífico,
mas certamente não se pode desconsiderar o conhecimento produzido por
um modo divergente de perceber, e de fazer mundo explicitando esse per-
ceber. É nessa direção que segue o pensamento de Classen:
“[...] sensory models are conceptual models, and sensory values are
cultural values. The way a society senses is the way it understands.
Thus, for example, the ethnographer A. R, Radcliffe Brown, com-
ing from a culture that emphasizes clear-cut distinctions, found
the ideas of the Andaman Islanders concerning spirits to be ‘float-
ing and lacking in precision’. Yet in the intermingling, olfatory
culture of the Islanders (who include Ongee) ‘floating and lacking
in precision’ is precisely how spirits are characterized. Spirits, like
odours, travel on the winds coming and going, sharing the same
world inhabitated by humans. they are not confined to any place,
they ‘[do] not have a distinct shape yet can be experienced every-
where’. The ‘imprecision’ that a visual culture finds disturbing,
therefore, can be normative for an olfactory culture, and where a
visual culture may emphasize location, an olfactory culture will
emphasize movement.” [Classen, 1993:136]98
98 “[...] modelos sensoriais são modelos conceituais e valores sensoriais são
valores culturais. O modo como uma sociedade sente é o modo como elacompreende. Assim, por exemplo, o etnógrafo A. R. Radcliffe Brown, provindo
de uma cultura que enfatiza nítidas distinções, achou que as idéias dos habi-
tantes das ilhas Andaman sobre espíritos eram ‘flutuantes e carentes de pre-cisão’. Ora, na cultura mesclada e olfativa da população de Andaman (que inclui
os Ongee), ‘flutuante e carente de precisão’ é precisamente o modo como são
caracterizados os espíritos. Como os odores, os espíritos viajam nos ventos,indo e vindo, compartilhando o mesmo mundo habitado por humanos. Eles
não ficam confinados num lugar, eles ‘não têm uma forma distinta, todavia
podem ser experienciados em qualquer lugar’. A ‘imprecisão’ que para umacultura visual é perturbadora, pode assim ser normativa para uma cultura ol-
fativa, e onde uma cultura visual enfatiza a localização, uma cultura olfativa
vai enfatizar o movimento.” Classen emprega citações recolhidas em Pandya,V: Above the forest: a study of Andamanese Ethnoamenology − cosmology andthe power of ritual. (Por cima da floresta: um estudo da Etnoamenologiaandamanesa - cosmologia e o poder do ritual), tese de doutoramento,University of Chicago, 1987.
99 Classen (1993:50-76) traz um capítulo (Words of sense) dedicado à origem
de uma série de palavras na língua inglesa. “Pensive: From the latin pensare,
meaning to weight and hence to ponder, consider” (“Pensativo: Do latimpensare, significando pesar e, portanto, ponderar, considerar”). (Classen,
1993:70).
Poderíamos seguir longamente nesse
fascinante terreno dos modos de perceber das
culturas. Classen, Synnot e Howes apresentam
numerosos exemplos que explicitam os mais
variados modelos sensoriais: os Sereer Nduts
do Senegal, com seu complexo vocabulário ol-
fativo; os Kalulis que dão primazia ao ouvido;
os Suyas do Brasil, os Hausas da Nigéria, os
Inuit esquimós, os Dassanetch da Etiópia, os
Tukano da Amazônia e muitos outros. Mas es-
taríamos fazendo uma antropologia e não é
esse nosso terreno nem nosso objetivo. Veri-
fica-se, no entanto, em todos os casos, que se
pensa como se sente − e não é demais lembrar-
mos que a própria palavra “pensar”, em sua
origem latina, está relacionada a “pesar”, pon-
derar:99 uma experiência vivida no corpo.
Acreditamos que podemos já considerar sufi-
cientes os exemplos descritos para reiterar-
110 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
mos: uma cultura pode ser pensada como explicitação de um modo de ex-
periência, uma determinada forma de realizar coletivamente uma gestalt
experiencial, vivida sob a primazia deste ou daquele sentido, de significar o
mundo a partir de certo ponto de experiência. O conjunto das manifesta-
ções da cultura, inclusive a linguagem,100 ao mesmo tempo em que são
explicitações deste ponto de experiência, retroalimentam essa posição e
operam a partir dela − como bem notou Merleau-Ponty, a percepção se
oculta para dar a ver o mundo em seus termos: os hábitos, a linguagem, as
tradições, fixam, reiteram o ponto de experiência desapercebido da cul-
tura, definindo a primazia deste ou daquele sentido de mundo. Mesmo no
caso das sociedades modernas, dominadas em larga medida pelos senti-
dos do Ocidente, onde a experiência individual encontrou, por diversos
motivos, espaço particular que permite a emergência de posições diver-
gentes de um modelo dominante, estas serão, precisamente, divergentes
em relação a uma regra geral; e deverão negociar, dialogar com esta, que
pode absorvê-los, diluí-los ou eliminá-los. Mas seria preciso ver de que
modos podem emergir estas posições dissidentes e em que medida: vimos
mesmo em Benjamin e Huxley a potência com que o olhar, mesmo deslo-
cado, persiste; e, neste último, sugeriu-se que mesmo a arte, terreno por
excelência do sensível, pode ser menos divergente do que muitas vezes se
pensa. Os artistas, afinal, são criados e educados no sistema dominante de
percepção, que incide em todas as instâncias do vivido: a nossa experiên-
cia se dá nas circunstâncias da cultura que dispõe um mundo sensível ple-
no de intenções, e, se aceitamos que este nos define tanto quanto possa-
mos defini-lo, devemos aceitar que nos formamos dentro das possibili-
dades abertas por determinada circunstância − muito antes que sejamos
100 Não estamos aqui desconsiderando a particular autonomia em relação à ex-
periência que a linguagem possa assumir, como assumiu no Ocidente. Flussera chama, bem a seu modo, “textolatria”: os textos se adensam e criam um
biombo, vedando nosso acesso ao mundo que deveriam explicar. Já foi comen-
tado, porém, no capítulo anterior, que a compreensão da linguagem está emalguma medida condicionada pela experiência vivida. Esta posição é enfatica-
mente sustentada por Lakoff e Johnson, como já se disse, e acreditamos que
não há equívoco em dizer que a reflexão de Heidegger também se alinha comela (a linguagem, afinal, é a “morada do ser”, e deve articular a abertura,
desocultar as coisas, não perder-se na própria “diferença”). Merleau-Ponty
também o declara explicitamente: “Um comentário filológico dos textos nãoproduziria nada: só encontramos nos textos aquilo que nós colocamos ali.”
(Merleau-Ponty, 1994:2).
capazes de questionar a atitude natural. Essa
última possibilidade, vimos, demanda inte-
resse específico, certo esforço, certa discipli-
na: perceber o perceber não é tarefa trivial.
Mais fácil, mais pragmático, é aceitar e habi-
tar o acordo coletivo e deixar-se levar pela cor-
rente. Vimos mesmo que descrever experiên-
cias divergentes demandou, para Benjamin e
Huxley, certo virtuosismo de linguagem.
Podemos então agora, estabelecidas as
bases de nossa reflexão - a fundação do senti-
do que damos ao mundo na experiência
perceptiva, que a cultura explicita segundo um
Do ponto de vista ao ponto de experiência 111
ponto de experiência -, sugerir que, caso se altere o equilíbrio desta gestalt
experiencial, caso se desloque o ponto de experiência, se o instabilize, for-
çando uma reorganização do campo perceptivo, igualmente se instabilize
e se modifique o sentido da experiência vivida na cultura - modificam-se
os termos do contrato, o acordo intersubjetivo, esse transe coletivo que re-
gula nossa relação com as coisas; redefinem-se as hierarquias do campo
perceptivo, reinaugura-se a significação do mundo.
Foi esta a tese a que Marshall McLuhan dedicou sua vida: disposi-
tivos tecnológicos externalizam funções do corpo - são “extensões do ho-
mem”. Ao fazê-lo, modificam o corpo - pense-se no impacto do carro ou
no uso de quaisquer ferramentas; intercedem no campo perceptivo, inau-
gurando modos de sentir e, se pensamos como percebemos - conforme temos
sustentado -, a partir daí estabelecem-se portanto novos modos de dar
forma ao pensamento, de exercê-lo e significar o mundo. Remodelam-se
também as formas de interação social, as formas de comunicação, de or-
ganização do conhecimento, os modos de produção: transformam-se as
percepções de tempo e do espaço - enfim, o mundo que se dá à percepção
e as formas de percebê-lo. Emerge uma nova modalidade de experiência,
caracterizada por uma específica configuração dos sentidos - “interplay
among the senses”, como já se disse há pouco - e define-se, enfim, um novo
“environment” (“ambiente”) sociocultural, em que o mundo é vestido de
uma nova significação. Esse ambiente em que habitamos passa desperce-
bido, como é da natureza do campo perceptivo, e emerge assim uma filo-
sofia impensada do cotidiano, explicitação dos modos de perceber domi-
nantes, determinados em larga medida pelas tecnologias de mediação:
“Media, by altering the environment, evoque in us unique ratios of
sense perceptions. The extension of any one sense alters the way
we think and act − the way we perceive the world. When these ra-
tios change, men change.” [McLuhan, 2001a:41]101
O catalizador da tese mcluhaniana foi, desde o início, o impacto da
invenção da imprensa sobre a cultura européia. Falamos há pouco, e o fi-
101 “Os media, alterando o ambiente, evocam em nós proporções específicas nas
relações entre os sentidos. A extensão de qualquer dos sentidos altera o modo
como sentimos e agimos — o modo como percebemos o mundo. Quandomudam essas proporções, mudam os homens”.
112 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
zemos através de um historiador, Crosby, sobre o papel exercido pelo li-
vro na consolidação da visualidade na Europa moderna - agenciando a
produção e a circulação do conhecimento segundo seu modo sequencial,
linear, visual, narrativo, racionalizante. O livro impresso, no entanto, não
fazia mais de que multiplicar a sintaxe perceptiva singular estabelecida já
na Grécia, a representação da fala por um alfabeto fonético. Diferentemen-
te de qualquer outra forma de escrita, o alfabeto fonético que traduz visu-
almente as palavras através da sua fragmentação em sons que não possu-
em qualquer significado - uma tecnologia única:
“[...] the phonetic alphabet was radically different from the older
and richer hyeroglyphic or ideogrammic cultures. The writings of
the Egyptian, Babylonian, Mayan, and Chinese cultures were ex-
tensions of the senses in that they gave pictorial expression to re-
ality, and they demanded many signs to cover the wide range of
data in teir societies − unlike phonetic writing, which uses seman-
tically meaningless letters to correspond to semantically mean-
ingless sounds and is able, with only a handful of letters, to en-
compass all meanings and all languages. This achievement de-
manded the separation of both sights and sounds from their se-
mantic or dramatic meanings in order to render visible the actual
sound of speech, thus placing a barrier between men and objects
and creating a dualism between sight and sound. [...] The balance
of the sensorium − or Gestalt interplay of all the senses − and the
psychic and social harmony it engendered was disrupted, and the
visual function was overdeveloped. This was true of no other writ-
ing system.” [McLuhan, 1995:241]102
102 “O alfabeto fonético era radicalmente diferente das mais antigas e ricas cultu-
ras de hieroglifos ou ideogramas. Os escritos das culturas egípcias, babilônicas,maias e chinesas eram extensões dos sentidos, pelo fato de que davam expres-
são pictorial à realidade e necessitavam de muitos sinais para cobrir o largo
espectro de dados em suas sociedades − ao contrário da escrita fonética, queusa letras sem significado semântico para corresponder a sons também des-
providos de significado semântico e com apenas um punhado de letras é ca-
paz de abarcar todos os significados e todas as línguas. Esse feito demandouque tanto as vistas quanto os sons fossem separados dos seus significados
semânticos ou dramáticos de modo a tornar visível o som real da fala, erguen-
do assim uma barreira entre o homem e os objetos e criando um dualismo entrea visão e o som. O equilíbro do sensorium - ou o jogo gestaltista de todos os
sentidos - bem como a harmonia psíquica e social que ele engendrava foi rom-
pido e a função visual foi desenvolvida além da conta. Isso não se deu comnenhum outro sistema de escrita.”
Sob esse enfoque, a ênfase na visua-
lidade, que a filosofia pudera perceber na
Grécia, é, para McLuhan, um atributo de uma
tecnologia - o alfabeto fonético -, que serviu
de instrumento à fixação do pensamento gre-
go, condicionando a representação do pensa-
mento em termos visuais, apropriando-se da
fala por fragmentos, e fazendo derivar daí
uma sintaxe lógica linearizante que nada mais
é do que a própria natureza do meio. O im-
pacto desta modalidade de escrita caracteri-
za para McLuhan o Ocidente: estrutura as for-
Do ponto de vista ao ponto de experiência 113
mas de organização do poder - pense-se, por exemplo no César que di-
zia “divide e conquista”, um dos primeiros a ler silenciosamente, segun-
do Crosby -; sustenta a lógica grega na escolástica medieval, convivendo
com uma sociedade ainda predominantemente oral, como vimos; final-
mente, determina o modo de perceber dominante, com a invenção da
imprensa por Gutenberg:
“Type, the prototype of all machines, ensured the primacy of the
visual bias and finally sealed the doom of tribal man. The new me-
dium of linear, uniform, repeateable type reproduced information
in unlimited quantities, thus assuring the eye a position of total
predominance in man´s sensorium.” [McLuhan, 1995:243]103
O que se segue, a história da Europa moderna, não é, portanto, para
McLuhan, apenas o império de um certo olhar: é a Galáxia de Gutenberg. De-
finido um novo campo perceptivo, fixado tecnologicamente e multiplica-
do em bases mecânicas, o que daí deriva é conseqüência das possibilida-
des abertas pela nova forma dominante de perceber as coisas e fazer mun-
do, visual, individual, racional: a explicitação do modo de perceber
engendrado na filosofia clássica grega num ambiente cultural como um
todo. Ciência - causalidade; cartesianismo - distinção sujeito-objeto, pon-
to de vista; individualismo - a experiência privada e silenciosa do estudo e
da escrita; nacionalismo - identidade nacional por via da unificação da lín-
gua, fixada e definida pela palavra impressa; reforma religiosa - livre in-
terpretação da Bíblia: cada qual, de posse de seu próprio exemplar do li-
vro, anteriormente um privilégio dos mosteiros; industrialismo - a máqui-
na derivada dessa ciência e a linha de montagem que reproduz a linha do
livro; são todos fenômenos que McLuhan deriva diretamente do modelo
perceptivo imposto pelo meio tecnológico. Radical como possa ser tal in-
terpretação da história, ela é surpreendemente coerente com a interpre-
tação da filosofia - a origem grega de certo modo de ver as coisas e a multi-
plicação desse olhar na Europa moderna. Os autores iluministas emergem,
de certo modo, como uma geração que opera os predicados do livro e mul-
tiplica com ele a potência do sujeito.
103 “O tipo, protótipo de todas as máquinas, assegurou a primazia do visual e fi-
nalmente selou o destino do homem tribal. O novo meio de tipo linear, unifor-me e passível de repetição reproduziu a informação em quantidades ilimita-
das, dessa forma assegurando ao olho uma posição de predominância total
no sensorium humano.”
114 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
A autoridade do livro é ilustrada de modo interessante ainda uma
vez por Constance Classen, que lembra, a propósito do choque entre a
cultura literária européia, visual, e a cultura inca, oral, por ocasião da
conquista espanhola:
“The sixteenth-century Spanish had a heavy reliance on written
documents and texts, pre-eminently the Bible, the text par excel-
lence. In the crucial encounter of the conquistators with the Inca
emperor Ataualpha in 1532, the Spanish priest accompanying the
expedition gave a brief summary of Christian doctrine, denounced
Inca religion as invented by the devil, and demanded that
Ataualpha become the vassal of the Holy Roman emperor. While
giving this adress the priest held a book, either the Bible or a
breviary, in one hand.
“Ataualpha, deeply offended by this speech, which was received by
him in a garbled form through a translator, demanded of the priest
by what authority he made these claims. The friar held the book up
to him. Ataualpha examined it, but as it said nothing to him, he
dropped it to the ground. This rejection of the essence of Euro-
pean civilization was the excuse the Spanish needed to begin their
massacre.” [Classen, 1993:110]104
O relato de Classen é obviamente escrito como uma reiteração im-
plícita da teoria de McLuhan, expandida por Walter Ong, cujas virtudes e
limites (em especial a redução dos modelos perceptivos à antítese visual-
oral) retoma em diversos momentos. O impacto da conquista é apresen-
104 “O século dezesseis hispânico apoiou-se pesadamente em textos e documen-tos escritos, proeminentemente a Bíblia, o texto por excelência . No crucial
encontro dos conquistadores com o imperador inca Ataualpa em 1532, o pa-
dre espanhol que acompanhava a expedição fez um breve sumário da doutri-na cristã, denunciou a religião inca como inventada pelo demônio e exigiu que
Ataualpa se tornasse vassalo do santo imperador romano. Ao ordená-lo o padre
segurava um livro em uma de suas mãos, a Bíblia ou um breviário.
“Ataualpa, profundamente ofendido por esse discurso, que lhe chegou vesti-
do com as roupagens dadas por um tradutor, perguntou ao padre com que
autoridade ele fazia tais alegações. O frade mostrou-lhe o livro. Ataualpa exa-minou-o mas, como este nada lhe dissesse, jogou-o no chão. Essa rejeição da
essência da civilização européia foi a desculpa que os espanhóis precisavam
para iniciar o massacre.”
105 “O Inca ficou assustado porque não podia compreender a escrita e pôs-se a
correr até morrer de fome [...]”
tado por Classen como a destruição do cosmos
oral inca, a divindade oral “silenciada” pela
divindade cristã, cuja potência reside na escri-
ta: “[...] The Inca was frightened because he
could not understand the writing and he ran
away until he died of hunger [...]”105 (Classen,
1993:118)
Para McLuhan, a crise da Galáxia de
Gutenberg se inicia com a invenção do telé-
grafo, e irá se aprofundando com os demais
meios que surgirão a partir do século XIX. O
impacto perceptivo de cada um desses meios
será tema de um capítulo de Understanding
Do ponto de vista ao ponto de experiência 115
Media (1965), em que procura examinar os
mundos abertos pelas diferentes tecnologias
- da fotografia à automação, que já nos anos
1960 percebera como fundadora de um mo-
delo pós-industrial. Na introdução, ao reite-
rar que “Every culture and every age has its
favorite model of perception”106 (McLuhan,
2001c:5), escreve:
“After three thousand years of explo-
sion, by means of fragmentary and
mechanical technologies, the Western
world is imploding. During the me-
chanical ages we had extended our
bodies in space. Today, after more than
a century of electrical technologies, we
have extended our central nervous sys-
tem itself in a global embrace, abolish-
ing both space and time as far as our
planet is concerned. Rapidly, we ap-
proach the final phase of the exten-
sions of man − the technological simu-
lation of consciousness.” [McLuhan,
2001c:3]107
A interpretação determinista de
McLuhan, com sua ênfase no impacto da
tecnologia sobre a gestalt perceptiva da cultu-
ra e os modos de significar o mundo que daí
emergem, encontrará um eco surpreendente
em Vilém Flusser (1986), para quem a histó-
ria do Ocidente pode ser pensada como uma
“dialética entre texto e imagem”. Para Flusser,
a era das imagens, anterior aos primeiros tex-
tos, é a “pré-história”, dominada pela consci-
ência mágica, determinando uma ordem tem-
poral circular, como é da natureza da simulta-
neidade da imagem; a era que se segue à
Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: Quentin Fiore: The medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massageThe medium is the massage (1967) (1967) (1967) (1967) (1967)
106 "[...] Cada cultura e cada época tem seu modelo de percepção favorito”.
107 "Após três mil anos de explosão, por meio de tecnologias fragmentárias e
mecânicas, o mundo ocidental está implodindo. Durante as eras mecânicas,
estendemos nossos corpos no espaço. Hoje, depois de mais de um século detecnologias elétricas, estendemos nosso sistema nervoso central num abraço
global, abolindo tanto o espaço quanto o tempo no que diz respeito a nosso
planeta. Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensõesdo homem - a simulação tecnológica da consciência.”
116 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
invenção da escrita é caracterizada pela dialética entre o pensamento
imagético e o pensamento conceitual dos textos, e constitui a “história pro-
priamente dita”, articulada pela linearidade narrativa da escrita; após a fo-
tografia, resultado da ciência - esta derivada da sintaxe do texto, como para
McLuhan -, mergulha-se numa “pós-história”, determinada pelo modo de
perceber o mundo imposto pela “inundação das imagens técnicas”. O texto,
linearização de imagens que visa superar a consciência mágica por estas
engendrada (“idolatria”), assume, na interpretação de Flusser, um caráter
semelhante ao descrito por McLuhan:
“A superfície da imagem vai ser transposta sobre a linha, a fim de
que seu conteúdo seja contado um por um, seja calculado, ‘ex-
plicado’. [...] Os conceitos, alinhados segundo regras ‘ortográficas’,
vão estabelecendo relações de cadeia (por exemplo: as da lógica,
da matemática, da causalidade). [...] No entanto: dado o feedback
entre gesto e consciência [segundo temos sugerido, uma operação
perceptiva] a zona conceitual vai se densificando, e as cadeias que
ordenam os conceitos vão sendo projetadas sobre a própria
circunstância, a qual passa a ser contável, explicável, calculável,
segundo as regras da escrita alfanumérica (exemplo: as ditas ‘leis
da natureza’). Conceituação vira textolatria. O que acaba de ser dito
é a descrição da consciência histórica do Ocidente.” [Flusser,
1986:66]
Também para Flusser, as formas de organização do pensamento de-
terminadas pela tecnologia de mediação se impõem sobre a forma como
percebemos o mundo, são projetadas sobre o real. O papel reservado, as-
sim, à invenção da imprensa, é o mesmo atribuído a ela por McLuhan: fa-
zer, pela “inflação de textos que expulsam as imagens da vida cotidiana”,
toda uma cultura perceber o mundo segundo a lógica historicizante e cal-
culável da escrita:
“Os textos, agora não mais impedidos por imagens, podiam avançar
com aceleração crescente ao longo de suas linhas, e as
conseqüências são a ciência pura e aplicada.” [Flusser, 1986:67]
Assim, também na leitura flusseriana o dispositivo tecnológico
incide nos modos de perceber e significar o real, incide no modo como
fazemos mundo e no sentido que este assume na modernidade - linear,
calculável, racional, narrativo, enfim: científico. E para Flusser, do mes-
mo modo, transformações sociais de enorme impacto, como a Revolução
Do ponto de vista ao ponto de experiência 117
Industrial, fazem parte, por assim dizer, do pacote em que a impressão dos
textos entrega uma escrita visualmente linear e uniforme ao caldo da cul-
tura européia.
Finalmente, retomamos um autor chave nas consideração relações
entre tecnologia, percepção e cultura. Décadas antes de McLuhan e Flusser,
Walter Benjamin, num texto extraordinário − A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica (1935) − já diagnosticara o impacto dos meios
tecnológicos em termos de uma transformação no campo perceptivo. Já na
epígrafe, cita Valery:
“Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo, são, há cerca de vinte
anos, o que sempre haviam sido.” [Benjamin, 1983:209]
A análise de Benjamin é bem conhecida: trata-se de perceber as
transfomações trazidas pela fotografia, pelo cinema e pelo fonógrafo so-
bre o modo como percebemos o mundo, o tempo, o espaço e em especial
as obras de arte, que são destituídas, pela reprodução em massa, da aura
que lhes garantia um poder mágico, religioso, “poder cultual”. Explicita-
mente, Benjamin quer fundar novas categorias estéticas, já que a experi-
ência da cultura que fundara os valores que sustentavam a estética clássica
e a potência da obra - sua unicidade, sua autenticidade: o caráter único da
presença do original, no lugar onde uma história ou uma tradição o entre-
garam ou conservaram - não são mais compatíveis com a experiência
deflagrada pelos meios de reprodução. Romper tais categorias implica
desfazer tramas de valor que sustentam estruturas de poder de classe, que
delas se beneficiavam: uma certa nobreza, e, posteriormente, uma certa
burguesia (sobretudo, um projeto fascista de poder que emergia em diver-
sos estados europeus). Em contrapartida, a perda da aura atinge também
o homem, visto que os meios técnicos, também para Benjamin, impõem
sua própria sintaxe inescapável: atuar num filme ou assisti-lo implicam
necessária identificação com a câmera; e nessa dialética entre o caráter
catártico - portanto libertador - da técnica, e sua mecanização e objetifi-
cação do humano pela perda da aura, vê-se emergir um modelo perceptivo,
característico da sociedade moderna de massas:
“A imagem [tradicional] associa tão estreitamente as duas
características da obra de arte, sua unicidade e sua duração, quanto
a fotografia associa duas características opostas: as de uma
realidade fugidia, mas que se pode reproduzir indefinidamente.
118 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Despojar o objeto de seu véu, destruir a sua aura, eis um sintoma
que logo assinala uma percepção tão atenta ao que ‘se repete
identicamente no mundo’ 108 que, graças à reprodução, ela chega a
estandartizar o que não existe mais que uma vez.” [Benjamin,
1983:216]
Assim, também em Benjamin, a tecnologia determina modificações
no meio onde se organiza a percepção, onde se dá a gênese da experiência da
cultura, com seus modos específicos de uma época. Quando define, genial-
mente aliás, essas modificações não apenas na perda da aura, mas na aber-
tura de um “inconsciente óptico” − mundos que passavam despercebidos no
fluxo cotidiano, e subitamente se abrem pela interferência do regime
audiovisual instaurado na sala de cinema − trata-se novamente de que
“Ampliando o mundo dos objetos que passamos a levar em
consideração [pela espetacularização de imagem e som na tela],
tanto na ordem visual como na ordem auditiva, o cinema trouxe,
conseqüentemente, um aprofundamento da percepção.” [Ben-
jamin, 1983:232]
Por fim, Benjamin diagnostica a maneira poderosa como essa nova
percepção, segundo as determinações do dispositivo, torna-se hábito, ins-
tala-se na experiência cotidiana - o novo modo, despido de aura, de fruição
da obra de arte:
“Mediante esta espécie de divertimento, que tem por finalidade nos
proporcionar, a arte confirma, implicitamente, que nosso modo
de percepção é hoje capaz de responder a novas tarefas. [...] É o
que faz atualmente através do cinema. Esta forma de recepção
mediante o divertimento, cada vez mais evidente em todos os
domínios da arte, e que é em si mesma um sintoma de importantes
modificações nos modos de percepção, encontrou no cinema seu
melhor campo de experiência.” [Benjamin, 1983:238]
108 Esta frase capturara Benjamin muitos anos antes. Ver o comentário que fize-mos sobre os textos de Haxixe.
Do ponto de vista ao ponto de experiência 119
Fazemos uma síntese, após este longo capítulo, dos argumentos que
pretendemos desenvolver até agora: toda a nossa experiência do mundo é
fundada na experiência perceptiva - os sentidos nos dão sentido (nos lan-
çam em direção ao mundo) e sentido (nos dão um mundo pleno de signifi-
cação); a experiência perceptiva se dá segundo uma gestalt experiencial, que
funda um ponto de experiência - em contraposição a um ponto de vista, ca-
racterístico da cultura ocidental; sob a vigência deste ou daquele ponto de
experiência, o mundo revela a infinitude dos sentidos que pode assumir;
a experiência perceptiva é dificilmente ela mesma percebida, visto que se
oculta para fundar um mundo; minha cultura, minha história, fundam este
lugar familiar da minha experiência, minha morada perceptiva; diferentes
culturas podem se fundar e reiterar pontos-de-experiência distintos, que
sustentam sentidos diversos da experiência coletiva; finalmente, autores
distintos e relevantes na discussão contemporânea (Marshall McLuhan;
Vilém Flusser; Walter Benjamin) parecem estar em acordo quanto ao fato
de que dispositivos tecnológicos incidem no campo da experiência
perceptiva da cultura como um todo, e fazem nascer sentidos de experiência
que lhes são característicos. O que pretendemos agora, então, é investigar
especificamente a natureza dos dispositivos tecnológicos e da experiência
que, a tomar os autores citados, tais dispositivos inauguram.
Capítulo III
Mundo sem ruído:A utopia digital
“Só a poesia possui as coisas em vida. O resto é necropsia.”Mário Quintana
Buster Keaton em Buster Keaton em Buster Keaton em Buster Keaton em Buster Keaton em Film Film Film Film Film (Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)(Allan Schneider, 1965)
Em Film (1965)1, o singular filme concebido e roteirizado por
Samuel Beckett, um homem é acompanhado obsessivamente por uma
câmera, sem que se revele seu rosto. A princípio, o vemos de maneira mais
distante; progressivamente, estaremos (nós: a câmera) flutuando num
enquadramento que oscila entre o primeiro plano e plano médio/ameri-
cano, no registro instável, quase documental, da câmera-na-mão. Ele (o
personagem) caminha de maneira aflita, rapidamente, tendo a seu lado
uma opressiva e vasta parede, um muro cujos limites, seja à direita, à es-
1 Dirigido por Allan Schneider; 20 min. de duração, P&B. Trata-se da única expe-
riência de Beckett com o cinema.
2 Flusser (1998:82) associa explicitamente o cinzento a certo universo histórico
da consolidação do capitalismo: “No século XIX, tudo lá fora era cinzento: muros,
jornais, livros, roupas, instrumentos, tudo isso oscilava entre o branco e o pre-to, dando, no seu conjunto, a impressão do cinza: impressão de textos, teorias,
dinheiro”. Crary (1990:137) cita, numa epígrafe, Heidegger: “... the nineteenthcentury, still the most obscure of all the centuries of the modern age up to now.”(“o século dezenove, ainda o mais obscuro de todos os séculos da era moder-
na até o presente”).
querda ou acima do quadro, não são perceptí-
veis, nem tampouco dedutíveis. De fato, se de
algum modo podemos imaginar tais limites,
somos induzidos a perceber este paredão
como uma sinistra e extensa muralha cinzen-
ta de uma zona urbana, possivelmente indus-
trial2 - não é um lugar, de toda maneira, em que
se pensaria para um piquenique de domingo:
é a cidade industrial, impessoal, inumana.
122 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Além de aflita e resoluta, a caminhada é também violenta: encolhido em
seu sobretudo escuro, calças escuras, cachecol e chapéu negros, suas
botinas largas - quase coturnos - em sua fuga de não-se-sabe-o-quê, o
corpulento e curvado personagem de Beckett praticamente atropela, aos
empurrões, um casal idoso. Quando o choque se dá, e o homem, de quem
não vemos a face, prossegue seu caminho, a câmera nos aproxima do ca-
sal. Ao lhes enquadrar o rosto, estes também descobrem a câmera que os
observa, com expressão que só pode ser descrita como “horror”: os olhos
se arregalam, a boca se abre, o temor que se manifesta nos faz pensar que
o aparelho - que se instala na vida e se apodera de sua imagem - é mesmo
como a própria morte. Mais adiante, na seqüência da vigilância persegui-
dora realizada pela câmera, o personagem (que ao final saberemos ser nin-
guém menos que um idoso e marcado Buster Keaton) - após desviar-se (e
de seu olhar) de uma possível moradora (esta também será surpreendida
e “horrorizada” pela câmera) - se introduz em um velho, cinzento e som-
brio edifício, cujas escadas sobe, até um quarto vazio: há apenas uma ja-
nela, uma cadeira, um espelho, um gato e um aquário em que nada um pei-
xe. O decorrer do filme, neste quarto fechado, nos mostra como Keaton,
sempre de costas para a câmera, tratará de eliminar todas as possibilida-
des de ser percebido por qualquer olhar que seja - mesmo o seu próprio: a
janela será fechada; o espelho, coberto; o gato, posto para fora; o aquário,
igualmente coberto. Seguro, então, de que não pode ser capturado por
qualquer olhar que seja, sentar-se-á na cadeira, ao centro da sala, para
observar diversas fotografias, instantâneos de sua própria vida. Acaricia-
rá apenas a foto do filho, e em seguida rasgará, em conjunto, essa e todas
as demais - ao cabo do que, pode, enfim, descansar. Ao relaxar, será então
surpreendido pela câmera, que pela primeira vez (não sem antes fazer uma
primeira tentativa, frustrada pela desconfiança alerta de Keaton) contor-
na a cadeira, em que o homem adormece, e apodera-se de seu rosto. Cap-
turado finalmente pela objetiva, morre.
Este filme inquietante pode ser entendido de diversos modos.
Pode-se sugerir que há aí um evidente jogo, já que esse não notar a câmera
que o persegue, e que permanece deliberadamente às suas costas por rua,
escada e no interior do quarto, pode ser pensado como algo que solicita
uma cumplicidade do personagem de Keaton3: afinal, é este quem lhe dá
3 Esta interpretação foi sugerida no debate sobre o filme envolvendo os críticos
Arlindo Machado e Ismail Xavier, com mediação de Jane de Almeida, em 26/
06/2004, no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo. As idéias de “jogo”e “dar as costas” ao maquinal não estão deslocadas, no entanto, do contexto
que tentaremos propor.
Mundo sem ruído: A utopia digital 123
as costas por todo o filme. Ou pode-se pensar, por exemplo, que ser é ser
percebido e que perceber é ser percebido, como sugere Jane de Almeida (2004),
citando Berkeley, em breves notas sobre a obra - e isto implica refletir so-
bre a percepção, um desafio que temos procurado enfrentar. Nesse sen-
tido, não há como fugir do fato de que - tendo em conta as sucessivas fa-
ces de horror (que sugerem de alguma forma, como já foi dito, a morte) re-
veladas nos momentos em que a objetiva (vigilante) se apodera de suas
imagens - ser capturado pela imagem, ser percebido pela lente objetiva da
câmera - ser, enfim, transmutado em objeto do qual a câmera, olho do
sujeito, se apropria -, é ser roubado da vida e mumificado, nadificado na
objetificação. Na célebre análise de Bazin da imagem fotográfica, a múmia
quer preservar o corpo de uma segunda morte, espiritual. Mas, ao mesmo
tempo, pode-se dizer que o que essa múmia fotográfica guarda é tão so-
mente um cadáver, o fantasma de um corpo já despido de vida.4 A distin-
ção cartesiana entre sujeito e objeto, constitutiva da ciência e da filosofia
modernas, e o extraordinário avanço do poderio científico do Ocidente
durante a modernidade, que tal distinção sustenta, estão intimamente li-
gados, já vimos, ao emprego de sistemas e aparelhos ópticos5. Estes mul-
4 Numa seqüência extraordinária de Je vous salue, Marie (Jean-Luc Godard,1983), filme que abriga várias referências ao universo heideggeriano, vê-se o
corpo nu de Eve (Anne Gauthier), enquanto a voz-over de Marie recita um texto
sobre a vida e o corpo, como se a primeira fosse para o último como as velasno inverno, as quais “só quando as acendemos é que podem nos dar calor”.
5 Sobre a relação entre modernidade e visão, há inúmeras abordagens: Johnathan
Crary, em Techniques of the observer, dá um relato minuncioso do uso dos apa-
relhos ópticos na cultura moderna e seu duplo estatuto nesta cultura: o deaparatos que se usa, e de metáforas do conhecimento. Além disso, Crary tam-
bém sustenta de modo consistente a tese de que cinema e fotografia não são,
como é comum se dizer, simplesmente sucessores da câmera escura da Renas-cença, numa linhagem direta em busca do realismo da imagem. De fato, per-
tencem a uma ordem social e de conhecimento inteiramente diversa.
6 Num belo artigo (A pintura, o cinema, a fotografia, a luz), Nélson Brissac Pei-xoto (1996) descreve o modo como a luz é símbolo no Renascimento, tornan-
do-se progressivamente matéria na pintura dos séculos XVIII e XIX e sobretu-
do na fotografia, e finalmente presença na arte contemporânea.
7 “Em certo sentido, Rape [Estupro] é uma dramatização brutal da descoberta
wharoliana de que a condição implacável da câmera arrebenta o comporta-
mento comum e impõe seu próprio regime.”
8 A “descoberta” wharoliana é menos original do que pensa Hoberman: já em
1935, Benjamin havia tratado explicitamente a questão da objetificação pela
câmera em alguns trechos de A obra de arte na era da sua reprodutibilidadetécnica, como se verá adiante.
tiplicam nossa visão e nos conferem esse po-
der de tratar toda a natureza, até mesmo a pró-
pria luz, através da qual se dá a visão, como
alvo do nosso olhar,6 indestrutível. A câmera
cinematográfica, sucedânea da câmera foto-
gráfica, é assim tão somente mais um dos apa-
relhos ópticos que emergem nesse contexto, e
o cinema, de certo modo, a sua síntese. A res-
peito de Rape, filmado por Yoko Ono e John
Lennon também nos anos 1960, em que uma
câmera, de maneira análoga à de Film, mas
mais ostensiva e não dissimulada em relação
à personagem, persegue deliberadamente
uma moça, até encurrala-la em seu aparta-
mento, Hoberman observa algo similar:
“In one sense, Rape is a particularly
brutal dramatization of the Wharolian
discovery that the camera´s implacable
state disrupts ordinary behavior to en-
force it´s own regime.”7 [Hoberman,
2002:407]8
124 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Tal modo de lide com as coisas do mundo que, ao objetificá-las, tor-
nando-as objeto de nosso olhar, submete-as “a seu próprio regime”, e ao
mesmo tempo as aniquila, parece ter sido entendido por esses artistas
como um modo operativo do aparelho foto-cinematográfico. Mas talvez
mesmo dos aparelhos de modo geral, e pode-se sugerir que operem desse
modo por tratar-se de reificação de um modo de negociar com o mundo
que os constitui. Em síntese: ao apoderar-se da imagem das coisas, tornan-
do-as objetos para nós, a câmera de cinema parece tão somente estar pon-
do em marcha uma forma (implacável) de perceber (capturar) o mundo
característica da cultura ocidental.
Discutimos, nos primeiros capítulos, certas relações entre a per-
cepção e a experiência do indivíduo, por si e na cultura. Esta última emer-
giu como um campo perceptivo, um território de sentido demarcado em to-
das as suas fronteiras sensoriais de tal modo a erigir um cosmos, um sen-
tido doado ao mundo pela experiência coletiva, fixado nas tradições,
linguagem, objetos etc., definindo um universo capaz de abrigar e infor-
mar a experiência individual. A cultura que nos interessa aqui, aquela em
cuja ordem (ou desordem) nos fizemos - antropofagicamente e enrique-
cidos por todos os tráficos e migrações - é a chamada cultura ocidental,
definida por Flusser como uma grande conversação -, e fizemos notar que
tal conversação parece ter sido realizada a partir desse ponto de experiên-
cia dominado pela primazia de um certo olhar. Ao curso da história, dife-
rentes culturas tingiram com variados tons a nossa conversação, mas difi-
cilmente se diria que essa forma ocidental de lidar com as coisas e explicitar
um determinado sentido do mundo não se impôs por quase todo o globo,
à custa, mesmo, do desaparecimento dos sentidos do mundo de muitas ou-
tras culturas - um patrimônio de conhecimento que não se poderá mais
recuperar. Esse olhar, que para Beckett é devastador, já havia sido pensa-
do nesses termos nas origens gregas do Ocidente: os gregos o descreveram
no olhar da Medusa, que, ao voltar-se sobre as coisas vivas, transforma-
va-as em pedra. Trata-se precisamente do modo objetificante de perce-
ber o mundo, explicitado em definitivo na modernidade. Traçamos, por-
tanto, alguns parâmetros para pensar a percepção, e, para que se possa
discutir, mais adiante, uma percepção digital, devemos, então, procurar fi-
xar algumas referências sobre os dois outros vértices da articulação trian-
gular a cujo exame nos lançamos: a arte e a tecnologia. Esta última, como o
Mundo sem ruído: A utopia digital 125
leitor deve já ter em conta, é uma das marcas dessa submissão imposta pelo
Ocidente à cultura planetária de forma geral, e é objeto das reflexões deste
capítulo.
Dissemos, ao final do capítulo anterior, que a tecnologia parece
intervir decididamente no campo perceptivo da cultura. McLuhan, que
dedicou boa parte de sua carreira aos modos dessa intervenção, já dissera,
na década de 1960, que “qualquer tecnologia pode tudo, menos somar-se
ao que já somos” (McLuhan, 2001b:26). Criticava, então, certo senso co-
mum segundo o qual os meios de comunicação, assim como os produtos
da ciência moderna, são neutros em si mesmos, e o modo como são em-
pregados é que define seu sentido9, bastando fazermos “uso ético” de suas
9 De acordo com Loparic, esta posição, questionada por McLuhan e Heidegger,e que esse último afirma ser então (1954) “corrente” é idêntica à de Jaspers
em 1949: “Segundo Jaspers, a técnica é um meio de realização pelo homem
de seus objetivos, em si mesma nem boa nem má, devendo ser submetidaaos controles racionais” (Jaspers [1949], apud Loparic, inédito:15). De acor-
do com Abranches (1996:84-5), a questão da “neutralidade axiológica” da
técnica começa a ser problematizada já no século XIX, intensifica-se no en-tre-guerras - quando o caráter tecnológico da modernidade é já explícito - e
acirra-se, naturalmente, na perplexidade diante dos fatos e das armas da II
Guerra Mundial.
10 Emmanuel Carneiro Leão traduz assim este pequeno trecho: “A maneira mais
teimosa, porém, de nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra”
(Heidegger, 2001:11). “Teimosa” porém, nos parece uma tradução menosadequada ao sentido original do que “worst” (pior), da tradução de William
Lovitt, citada em nosso texto.
11 As pontes que possibilitariam aproximar mais as reflexões de Heidegger eMcLuhan são numerosas e surpreendentes - algumas delas serão tratadas ao
longo deste texto, embora não seja o objetivo desta tese verificá-las extensa-
mente. Em Gutenberg Galaxy, McLuhan tece elogios explícitos a Heidegger:“Heidegger sufboards along the electronic wave as triumphantly as Descar-
tes rode the mechanical wave.” (McLuhan 1997:248). [“Heidegger desliza
(surfe) sobre a onda eletrônica tão triunfantemente como Descartes sobre aonda da mecânica” (McLuhan, 1977:333)] . A possibilidade (e a necessida-
de) de um estudo que verifique as relações entre estes dois pensadores cha-
ve do século XX já foram notadas por outros autores, por exemplo Heim (1993:xvi): “Future scholars will sort out how these two thinkers differ while sharing
many assumptions. [...] Both Heidegger and McLuhan saw that the computer
would pose less danger to us as a rival artificial inteligence than it would asan intimate component of our everyday thought and work.” (Futuros estudi-
osos irão verificar a maneira como estes dois pensadores diferem ao mesmo
tempo em que partilham diversas posições [...] Tanto Heidegger como McLuhanviram que o computador seria menos perigoso como uma inteligência rival
do que como um componente familiar de nosso pensamento e nosso traba-
lho cotidianos”.
possibilidades para estarmos guardados de seu
eventual potencial nocivo. A afirmação de
McLuhan ecoa, por surpreendente e distante
que pareça, o Heidegger que diz “we are
delivered over to it [technology] in the worst
possible manner when we regard it as
something neutral.”10 (Heidegger, 1977:4).11
Coloca-se, assim, sob interrogação essa opi-
nião comum que atribui tão somente aos seus
usos os significados da tecnologia, e é a partir
dessa dúvida que examinaremos a questão.
Digamos, em princípio, a partir da ex-
periência mais cotidiana, que a tecnologia pa-
rece abrigar um fascínio que lhe é próprio, e que
pode ser verificado, por exemplo, na atração
que exercem sobre as crianças os brinquedos
eletrônicos: andam, pulam, acendem luzinhas,
cantam canções, dançam etc.. Comparados aos
brinquedos tradicionais, “educativos” ou não,
os brinquedos eletrônicos têm esse seu apelo
irresistível. Esse fascínio multiplica-se na es-
fera do entretenimento coletivo, como quan-
do se atribui, de maneira corriqueira, grande
valor a filmes do cinema comercial de grande
público cujo atrativo reside em seus “incríveis
126 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
efeitos especiais”. Não se trata de fenômeno recente, já que, para nos man-
termos na história do cinema, a novidade tecnológica sempre exerceu aí
sua atração - ligada, sem dúvida, à demanda pela “impressão de realida-
de” -, de um modo que lhe é específico. Discutindo a transição do cinema
mudo ao cinema falado, Claudia Gorbman comenta:
“new technological developments in dominant cinematic represen-
tation do not contribute solely to greater ‘realistic effect.’ [...] it is
the novelty of technology that is celebrated for a while; its very pre-
sentation mystifies or makes a spetacle of the technology in ques-
tion.” [Gorbman, 1987:44]12
De modo geral, em toda a era moderna, tal fascínio pela novidade
tecnológica participou de um cenário em que o entretenimento foi - e cada
vez mais a partir do século XIX - o território da cultura onde as conquistas
impressionantes da ciência foram celebradas na experiência cotidiana.
Jonathan Crary (1990) descreve em detalhes o modo como as pesquisas
ópticas de Plateau, Purkinje, Roget, Brewster, Holmes, Wheatstone e ou-
tros resultaram rapidamente em brinquedos como taumatrópio,
12 “Novos recursos tecnológicos para a representação cinematográfica (ou
cinemática) não contribuem somente para um maior ‘efeito realista’. [...] É a
própria novidade tecnológica que, por algum tempo, é celebrada; é a sua pró-pria apresentação que mistifica ou faz espetáculo da tecnologia em questão”.
13 Do mesmo modo, poucos hoje referem-se aos panoramas, espetáculo visual
que teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XIX, e que, quase umséculo depois, Benjamin (1997:75-7) ainda visitava, em sua infância em Berlim.
Benjamin descreve o desinteresse pelo espetáculo do Panorama - uma tela
circular que dispunha uma paisagem como vista, por exemplo, do alto de umamontanha, a espectadores sentados em poltronas ao centro - no final do sé-
culo XIX: “Este era o grande fascínio das estampas de viagem encontradas no
Kaiserpanorama: não importava onde se iniciasse a ronda. Pois a tela, com osassentos à frente, formava um círculo, cada uma passava por todas as posi-
ções, das quais se via, através de um par de orifícios, a lonjura esmaecida do
panorama. Lugar sempre se achava. E, sobretudo, já pelo fim de minha infân-cia, quando a moda começou a se desinteressar dos panoramas imperiais, era
comum circular naquele recinto semivazio” (Benjamin, 1997:75-6).
14 Considerando a distinção feita por Loparic (inédito:18, n18) entre e jogo e brin-cadeira - “1) um modo de comunicação [...] ao mesmo tempo receptivo e cri-ador, 2) de um acontecer que não conhece regras fixas” (grifo nosso) -, seria
talvez mais preciso tratar tais “brinquedos” como “jogos”, já que o jogo com
tais aparatos mecânicos obedece a regras bem definidas para que seu resulta-do aconteça. Esse sentido de “jogo” é precisamente o que será desenvolvido
por Flusser, que fala em “jogar com os aparelhos”. Aqui, no entanto, é ade-
quado falar-se em “brinquedos” pois é precisamente neste sentido que taisaparatos foram e são tomados, ingenuamente, na cultura, desde o século XIX.
phenakistiscópio, zootrópio, praxinoscópio, calei-
doscópio, estereoscópio - boa parte desses asso-
ciada normalmente à história da invenção do
cinema -, que contribuíram decisivamente
para que o homem se habituasse à lide com o
maquínico em seu cotidiano. Cada um destes
brinquedos teve seu momento de glória na
cultura européia, glória tão volátil quanto pro-
gressivamente aceleradas se tornaram as mu-
danças tecnológicas: o taumatrópio foi supera-
do pelo phenakistiscópio; o zootrópio, pelo
estereoscópio e pelo praxinoscópio; o teatro
óptico, de Emile Reynaud, que reinou durante
anos como entretenimento visual e narrativo
em Paris, ao final do século XIX, foi simples-
mente jogado ao esquecimento pelo apareci-
mento do cinematógrafo Lumière13. Embala-
das na força e no prestígio dos êxitos da ciên-
cia como signo da razão e do progresso, essas
novidades tecnológicas, tornadas brinque-
dos14 e entretenimento, ofereceram à cultura
Mundo sem ruído: A utopia digital 127
de modo geral uma forma de participar de tais êxitos, e constituíram, des-
de então até hoje, atração por si15. Crary, porém, revela a sucessão desses
aparatos cotidianos no século XIX menos sob o encantamento mágico de
seu fascínio do que sob um prisma mais crítico, em que o observador de
imagens é convidado à cumplicidade para com diferentes dispositivos na
produção de suas próprias ilusões16, sendo submetido a um adestramento
progressivo para o convívio com uma nova ordem perceptiva - a ordem
regulatória e produtiva das máquinas. Não parece fora de propósito suge-
rir que esse mesmo gênero de adestramento pode ser apreciado na socie-
dades contemporâneas, em que os games digitais de diversos gêneros -
esses surpreendentes jogos interativos, não necessariamente narrativos e
potencialmente infinitos - reificam a presença do computador pessoal no
cotidiano e agenciam os ajustes necessários à percepção e ao corpo na cul-
tura urbana e na ordem produtiva do início do século XXI. Já havíamos
notado, com Benjamin, que esse modo de instalar-se no dia-a-dia pelo
jogo, pelo entretenimento, pela imersão lúdica, é uma das mais poderosas
estratégias de inserção de novos dispositivos na culturas - tornam-se no-
vos hábitos. Assim, tais aparatos podem ser tudo: úteis, divertidos, até
mesmo objetos elegantes - segundo uma ênfase no design que marca as
novas gerações de PCs e notebooks. Não são, porém, ao que parece, nem
neutros nem inocentes, já que o corpo, a percepção, a experiência vivida
são transformados no curso da convivência com as engenhocas.
Esse modo que a tecnologia possui, de introduzir-se nas práticas
do cotidiano pelas mais diversas portas, como objeto decorativo,
eletrodoméstico, entretenimento, como instrumento regulador de estru-
turas de produção, como ferramenta para a comunicação, trabalho ou ex-
pressão - em síntese, operando a mediação de todas as instâncias da cul-
15 Trata-se do que Dubois (2004:34-6) chama “a novidade como efeito de discurso”.
16 Vimos, com Sacks, no episódio dos afásicos, uma descrição dessa nossa ne-cessidade de ilusão, que pode ser pensada de muitas maneiras, do êxtase à
alienação.
17 Myron Krueger (em Heim, 1993:vi) - mais de uma década antes da redaçãodeste trabalho - já notava o mesmo (o que, no mais, nos parece óbvio, tal a
maneira ostensiva com que se pode verificá-lo no dia-a-dia): “However, [virtu-
al reality] is a technology that can be applied to every human activity and canbe used to mediate in every human transaction.” (“Entretanto, [a realidade
virtual] é uma tecnologia que pode ser aplicada a todas as atividades huma-
nas e pode ser empregada na mediação de todas transações humanas”.) Tra-taremos mais extensamente esta questão no capítulo final.
tura17-, implica na constatação de que, embo-
ra a novidade tecnológica guarde lá seu fascí-
nio, os níveis em que se insere e os usos que
adquire na cultura ultrapassam em muito o
caráter novidadeiro que possa ter. Se se assu-
me, então - e, afinal, qualquer outra postura
configura “estratégia de avestruz”, diria
Flusser, diante das transformações correntes
nas sociedades contemporâneas -, que não se
possa tomar aquilo que é posto pelos disposi-
tivos tecnológicos como algo neutro, isso de-
manda que se pense de maneira mais consis-
128 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
tente seus efeitos, seu modo de operação e as condições culturais de que
emergem. Embora tenha sustentado boa parte de seu pensamento sobre o
modo de operação da escrita alfabética, sua particularidade como
tecnologia, McLuhan deteu-se principalmente sobre os efeitos, procuran-
do observar a “mudança de escala, cadência ou padrão” que um “meio ou
tecnologia introduz nas coisas humanas”, e que constituiriam, à revelia dos
“conteúdos” veiculados, a “mensagem” do meio: “Em termos da mudan-
ça que a máquina introduziu nas nossas relações com outros e conosco
mesmos, pouco importava que ela produzisse flocos de milho ou cadillacs”
(McLuhan, 2001b:21-2). Como o conteúdo de um meio é sempre outro
meio18, não nos damos conta daquilo que é específico dessa mediação, e que
passa despercebido: quando finalmente o notamos, uma tecnologia já
constituiu um mundo à sua imagem e semelhança. Um olhar de relance na
paisagem contemporânea faz notar as práticas em que a tecnologia digital
se insere, e que já guardam a sua marca; é aí, nas transformações que emer-
gem nos velhos meios, diz McLuhan, que a “mensagem” de um novo meio
pode ser vista da maneira mais clara. Um passeio numa livraria, por exem-
18 McLuhan retoma essa definição, hoje bastante difundida, em vários momen-
tos. Por exemplo: “O conteúdo da escrita é a fala, assim como a palavra escri-
ta é o conteúdo da imprensa e a palavra impressa o conteúdo do telégrafo”(McLuhan, 2001b:22).
19 Um exemplo, ainda que deliberado, é O livro depois do livro, de Giselle
Beiguelman (2003). Trabalhos que antecipam de modo extraordinário aformatação do pensamento em ambientes hipermidiáticos são os livros de
Marshall McLuhan e Quentin Fiore ao final dos anos 1960, The medium is themassage (1967) e War and peace in the global village (1968). Naturalmente,o próprio projeto gráfico deste trabalho tem também a marca das possibilida-
des abertas pelos recursos digitais.
20 Manovich (2001:229) comenta o mesmo: “during the 1980s and 1990s, allimage-making technologies became computer-based [digitais, portanto], thus
turning all images into composites. In paralel, a Renaissance of montage took
place in visual culture, in print, broadcast, design, and new media.” “duranteos anos 1980 e 1990, todas as tecnologias de produção de imagem tornaram-
se tecnologias fundadas no computador, tornando todas as imagens composites(imagens compostas por camadas, layers). Paralelamente, um Renascimentoda montagem foi levado a cabo na cultura visual, na imprensa, nas imagens
transmitidas (TV), design e nas novas mídias (digitais)”.
21 Já em 1996, havíamos escrito: “COMPUTADORES são aceleradores” (Basbaum,
S., 1996:60), ciente de que a primeira intervenção dos computadores sobre osprocessos tradicionais de trabalho era a de virtualizá-los segundo o modelo
como eram praticados, de modo a acelerá-los radicalmente. O que, de mais a
mais, não é grande novidade: trata-se do que se chama de processo de produ-ção pós-industrial, disseminado em todos os níveis produtivos da sociedade.
plo, num centro urbano ocidental, nessa pri-
meira década do século XXI, vai revelar um
sem número de efeitos da mediação digital
sobre o “velho meio” da página impressa.
Pode-se notar, por toda parte, o crescente uso
de colunas para a editoração, em paralelo ao
texto principal, das notas ou fragmentos com-
plementares, simulando estruturas hiper-
textuais19; ou ainda, basta abrir qualquer revis-
ta na mesma livraria para verificar a marca das
possibilidades de design gráfico abertas pelo
uso de aplicativos de edição de imagens e de
editoração20 - para não falarmos no fato de que
a produção desse tipo de publicação, que exi-
gia, na década de 1980, cerca de duas dezenas
de profissionais, tornar-se realizável por cin-
co, por exemplo: a máquina não somente dan-
do conta das funções de algumas destas pesso-
as como também, de modo geral, acelerando
todo o processo21; mais sintomática, porém, é
a onipresença de títulos do tipo “100 invenções
maravilhosas”, “10 receitas para o sucesso”, os
Mundo sem ruído: A utopia digital 129
“30 truques do amor” etc., que parecem apontar para uma re-ordenação do
mundo literário sob a lógica do “banco de dados”22 - o próprio modo de
ordenação do mundo pelo computador, como descreveu tão bem Manovich
(2001:218-43). Assim, podemos assumir que há certa relação entre os
“efeitos” e o “modo de operação” do dispositivo tecnológico - seu “pro-
grama” -, e pode-se mesmo sugerir, ao menos como hipótese, que, por
todo lado, emerge o mundo-reflexo de uma lógica própria aos dispositi-
vos digitais.
Vilém Flusser (1998) deteu-se nesses modos de operação e, num
achado de grande efeito, chamou aos aparatos tecnológicos caixas-pretas:
sabe-se, em geral, do que se “alimentam” e o que “regurgitam”, mas não
se sabe como o fazem. Desconstruir seu poder e fascínio corresponderia a
“branqueá-las”, e já se sugeriu que esse branqueamento da caixa-preta
flusseriana poderia ser levado a cabo pelo domínio de seu modo de opera-
ção, a intervenção aí em seu programa;23 ou, ainda, pela dissolução de seu
impacto específico em discursos e suportes advindos de outras “zonas de
tempo”24 e de outras práticas artísticas e sociais25. Tais soluções, porém, não
satisfazem, visto que, no caso dos aparatos digitais, como se sabe - e se
pensarmos bem, isto vale para qualquer dispositivo -, a linguagem de pro-
22 Na música popular, alguns bons exemplos de “forma banco de dados” são
certos poemas de Arnaldo Antunes, que se desenvolvem numa extensa listagemde palavras, como O pulso (Antunes, Beloto, Fromer):
O pulso ainda pulsa/ O pulso ainda pulsa/ Peste bubônica, câncer, pneumonia/
Raiva, rubéola/ tuberculose, anemia/ Rancor, cisticircose, caxumba, difteria/Encefalite, faringite, gripe, leucemia/ O pulso ainda pulsa/ O pulso ainda pul-
sa/ Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia/ Toxoplasmose, sarampo,
esquizofrenia/ Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria/ Sífilis, ciúmes, asma,cleptomania/ O corpo ainda é pouco/ O corpo ainda é pouco/ Reumatismo,
raquitismo, cistite, disritmia/ Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia/ Brucelose,
febre tifóide, arteriosclerose, miopia/ Catapora, culpa, cárie, câimbra, lepra,afasia/ O pulso ainda pulsa/ O corpo ainda é pouco. (gravado pelos Titãs, em
1989, no álbum Õ Blésq Blom).
23 Ver Machado (2001:34-55): Repensando Flusser e as imagens técnicas.
24 A expressão “zonas de tempo” é empregada pelo Critical Art Ensemble (2001)
para discutir a multiplicidade, e por certo o antagonismo, de modos distin-
tos de lide com o mundo, mais ou menos integrados ao parque digital orainstalado - por exemplo, uma zona rural do NE brasileiro que sequer dispo-
nha de luz elétrica, e o modo de vida da juventude de Hong-Kong, a cidade
com maior número de computadores per capita no planeta: vivem em tem-pos muito diversos.
25 Ver Machado (2001:34-55): Repensando Flusser e as imagens técnicas.
gramação já é constrangida pelas exigências da
máquina; e o encontro com outras práticas
sociais ou outros ambientes não minimiza o
impacto da tecnologia: na verdade multiplica-
o, como mostram os inúmeros relatos sobre o
impacto da escrita sobre as culturas orais. Se
queremos entender aquilo que determina o
impacto social de uma tecnologia, e que pode
ser considerado - para além do mero impacto
da novidade tecnológica, dos conteúdos veicu-
lados ou do domínio dos códigos de programa-
ção - um “dizer por si próprio”, a “mensagem”,
em termos mcluhanianos, dos aparatos digi-
tais, talvez se possa aprofundar o exame da cai-
xa-preta de Flusser, para verificar aí as rela-
ções entre esse modo de operação e seus efei-
tos nas práticas culturais e na subjetividade.
Tomamos a visualidade como questão
central do Ocidente, e já anteriormente asso-
ciamos esse olhar peculiar à produção de dis-
130 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
positivos maquínicos - o que, de todo modo é evidente: só o Ocidente pro-
duziu esse tipo de máquinas, e, se temos considerado a percepção o berço
desse modo de pensamento, faz-se necessário admitir que este olhar está
investido de algum modo dessa maquinicidade. Um breve exame das má-
quinas da imagem pode nos ajudar a estabelecer alguns aspectos impor-
tantes no entendimento dessa imbricação complexa entre tecnologia, per-
cepção e subjetividade. Flusser chama às “imagens produzidas por apare-
lhos” (o primeiro deles, a máquina fotográfica) imagens técnicas, e lembra
que os “aparelhos são produto da técnica científica que, por sua vez, é um
texto científico aplicado.” (Flusser, 1998:32). É o caso de perguntarmos,
então, se tais imagens técnicas fazem perceber um mundo segundo esse
“texto científico aplicado” que informa sua produção, e essa nos parece a
maneira mais adequada de branquear a caixa-preta: trata-se de desvendar
esse pensamento técnico que a gerou. Somente na ciência do significado des-
sa técnica pode-se lidar com tais aparatos com algum grau de liberdade:
trata-se menos de dominá-los - dominar aparelhos não implica dominar
a técnica, pode mesmo ser o contrário -, do que compreender o que signi-
fica e em que implica a técnica de que emergem. Assim, se de fato o meio é
a mensagem, tal exame deve nos revelar um modo de perceber, pensar e
tratar as coisas que implica, afinal, num projeto de mundo inscrito na am-
bição de uma certa tecnologia - perpassando desde a gênese dos proces-
sos onde intervém, até as superfícies sintagmáticas regurgitadas pelo en-
cadeamento dos dispositivos. No caso dos aparatos digitais, chamaremos
tal projeto, implícito ao discurso que informa os aparelhos, utopia digital.
Para defini-la, é preciso então examinar o que é exatamente o que é a téc-
nica que informa a tecnologia de que emergem as imagens técnicas, e quais
suas implicações.
A câmera cinematográfica domina o século XX, e seu impacto so-
bre o imaginário coletivo só pode ser rivalizado pela televisão, que a partir
dos anos 1950 instala todo um conjunto próprio de relações espaço-tem-
porais e informacionais. Podemos pensar essa câmera como um aparato em
que convergem esse dois conceitos próximos mas não coincidentes: téc-
nica e tecnologia. Sabe-se, por Benjamin (1982) e Bazin (1991), por exem-
plo, que o dispositivo tecnológico teria posto em cheque a técnica do artista
- o fascínio mágico e sobretudo a potência dos dispositivos maquínicos
destituindo de suas funções o artista-artesão, sendo o abalo da função do
Mundo sem ruído: A utopia digital 131
pintor o exemplo paradigmático de tal intervenção. Pode-se fazer um pa-
ralelo um pouco trivial, e notar que, no mundo contemporâneo, da mes-
ma forma, os aplicativos de produção gráfica transformaram qualquer um
num potencial criador de imagens complexas, e os aplicativos musicais
tornaram bastante simples a criação de estruturas musicais (no que há aí
de positivo, falaríamos talvez em democracia26). É necessário, portanto,
distinguir técnica e tecnologia. São palavras muito próximas, e qualquer um
pode intuir que a segunda deriva da primeira. Têm no entanto estatuto tão
26 Pierre Levy, por exemplo, insiste bastante na idéia de uma tecno-democracia,
potencializada pela vocação rizomática do parque digital instalado e pela
autonomia e arbítrio do sujeito humano na cultura. Levy chega mesmo adesqualificar a teoria mcluhaniana, afirmando que “este gênero de proposi-
ção é, evidentemente, uma caricatura grosseira de uma análise das relações
entre a atividade cognitiva e tecnologias intelectuais” (Levy, 1993:149). Ora,enquanto Levy empreendia seu louvável esforço por pensar numa direção sin-
gular a constituição da era eletrônica, tanto o movimento volátil do capital,
descomprometido de lugar e de produção, típico da economia pós-industrial,como a emergência de uma cultura “recombinante”- na qual valores essenci-
almente modernos como a noção de autoria, por exemplo, sucumbem a novas
práticas de linguagem que elaboram até mesmo uma apologia do plágio -, e,ainda, a constituição de um “poder nômade” (ver Critical Art Ensemble, 2001)
replicavam, em todas as práticas sociais, do entretenimento à produção cien-
tífica, os modelos de mundo do aparato digital. Em contrapartida, o CriticalArt Ensemble (2001) discute, a partir da produção de documentários em vídeo,
o risco eminente de fiasco implícito em tal projeto (tecno-democracia), na are-
na da produção e circulação de discurso audiovisual na sociedade doespetáculo: não apenas, apesar da redução do custo das câmeras, o custo
econômico da finalização inibe a democratização do agenciamento do discur-
so - exclui o produtor independente e preserva o estatuto capitalista da pro-dução - mas, sobretudo, a inundação de imagens instalada pelos meios
tecnológicos, nas mãos do núcleo de produção comprometido com a ordem
simbólica do sistema, inibe qualquer iniciativa experimental mais consistenteao atender no registro do excesso à demanda pelo consumo de imagens: sim-
plesmente não há desejo de se produzirem mais imagens do que aquelas que
já se produzem. O caráter ideológico da própria base tecnológica das imagenstécnicas - não discutido especificamente pelo CAE, que silencia sobre a ques-
tão, nem no trabalho de Pierre Levy, que a nega - é objeto de considerações
que se seguem neste trabalho.
27 Conforme sintetiza Hubner (1979:470). Pode-se perguntar talvez se
“racionalidade objetivada” não constitui uma tautologia.
28 Em Paris, Texas (Win Wenders, 1988), por exemplo, Walt (Dean Stockwell) per-gunta a Travis (Harry Dean Stanton) se ele ainda “se lembra como se dirige”,
ao que este responde: “My body remembers” (meu corpo se lembra)...
diverso. Tecnologia, por exemplo, não consta
dos dicionários de filosofia, onde a técnica é
verbete freqüente. Estabelecer uma distinção,
aqui, pode ser bastante útil.
No mais comum, emprega-se a palavra
técnica como significando “o modo pelo qual
se realiza alguma transformação em alguma
substância”, o “saber que permite realizar uma
tarefa”. Fala-se, também, da técnica de um
bailarino, de um pintor, da técnica de um es-
cultor, da técnica de um fotógrafo, da técnica
de um compositor ou de um programador, ou
mesmo de um alfaiate. Uma técnica, é, assim,
um saber prático, que pode ser definido, por
exemplo, como uma “racionalidade objeti-
vada”.27 É razoável, porém, perguntar se toda
técnica, nesse sentido, teria em si necessari-
amente o emblema da racionalidade:28 pode-
se supor que, ainda neste mesmo sentido, a
técnica de um instrumentista - a habilidade
que lhe permite realizar a execução de certos
trechos de música mais ou menos difíceis, por
exemplo - derive de algo distinto de uma pura
racionalidade. Não parece resumir-se a
“racionalidade objetivada”, por exemplo, esse
saber de Cézanne que, segundo Merleau-
Ponty (2004:15), não tem outra técnica “a não
ser a que seus olhos e suas mãos se dão, à for-
ça de ver, à força de pintar”. Sobretudo, a fór-
mula não se aplicaria a um índio que trança seu
132 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
cesto de palha29, e exercita, portanto, um “saber”: “racionalidade” é um
valor ocidental, historicamente constituído, e sobrepor a razão aos modos
fazer coisas ou realizar tarefas nessa ou naquela cultura, indistintamente,
é abusar da palavra ou ter uma compreensão limitada do seu sentido.
Heidegger define melhor esse senso comum sobre a técnica, em que esta
emerge simultaneamente como “um meio para um fim” ou como “uma
atividade do homem”:
“Ambas as definições da técnica pertencem reciprocamente uma à
outra. Pois estabelecer fins, procurar e usar meios para alcançá-
los é uma atividade humana.” [Heidegger, 2001:11-2]30
Um meio para fins, um fazer do homem. Trata-se, no dizer de
Heidegger, de uma definição instrumental e antropológica - no domínio da
técnica, verifica-se esse curioso território do encontro entre o homem e
seus instrumentos. Mas, ainda aqui, técnica e tecnologia, que habitam um
campo de forças comum, são quase sinônimos: pode-se dizer que uma
29 Penso que o nosso exemplo do cesto indígena é similar ao do vaso feito pelo
oleiro heideggeriano, conforme descreve Loparic: “O oleiro da quadrindade[terra e céu, mortais e divinos] é um artesão, sim, ele faz jarras, mas ele não as
fabrica. [...] O oleiro heideggeriano não obedece nem às regras das linhas de
montagem industrial, nem às que nos impõe o mundo do trabalho manual. Oque ‘determina cada movimento do [seu] produzir’ é o vazio da jarra. No es-
sencial, o oleiro heideggeriano apenas enforma o vazio: ‘Por este, neste e a
partir deste [vazio], o oleiro modela a argila numa forma’. E Heidegger conti-nua: ‘Em primeiro lugar e sempre, o oleiro capta o incaptável do vazio e o põe,
como o continente, na forma do vasilhame.’” (Loparic inédito:19). Enfim, tam-
bém o artesão indígena não é um “trabalhador no sentido sociológico”.
30 Estaremos empregando aqui, simultaneamente, duas traduções do artigo de
Heidegger “Die Frage nach der Technik” - uma é brasileira (Heidegger, 2002),
feita por Emmanuel C. Leão, Gilvan Fogel e Márcia S. C. Schuback; a outra, norte-americana, feita por William Lovitt (Heidegger, 1977). O motivo desta dupla
referenciação é que a língua portuguesa consegue capturar melhor determi-
nadas nuances do alemão de Heidegger, intraduzíveis para o inglês (conformeLovitt o admite, em diversas passagens); um conceito como das Bestand apa-
rece na tradução brasileira como “dis-ponível”; na americana como “standingreserve”, e Loparic traduz como “constanteado”. Como estamos, regra geral,assumindo a leitura de Loparic da obra de Heidegger, daremos preferência à
sua tradução.
31 A tradução norte-americana de William Lovitt (Heidegger, 1977) dos textos emque Heidegger desenvolve sua reflexão sobre a técnica chega porém a con-
fundir os dois termos, traduzindo “Die Frage nach der Technik” (1949 - que
Loparic traduz para “A pergunta pela técnica”) por “The question concerningtechnology”. Trata-se de uma simplificação equivocada da discussão proposta
neste ensaio seminal.
tecnologia é também um meio criado pelo ho-
mem para satisfazer fins criados pelo ho-
mem31. Entretanto, técnica, como dissemos
acima, tornou-se um conceito filosófico, ao pas-
so que a tecnologia permaneceu apenas uma
palavra de uso mais ordinário. É preciso
examiná-las distintamente, desatar esse nó, e
fazer emergir para cada qual um sentido mais
definido que nos permita avançar.
É no contexto da segunda metade do
século passado que os poderes extraordiná-
rios, a ferocidade da técnica moderna -
hidrelétricas, siderúrgicas, aviões, armas
atômicas, por exemplo -, se colocam como
um problema desafiador, e o Ocidente se põe
a questionar o significado dessas suas inven-
ções. Conforme nota Abranches (1996), essa
interrogação, que começa a se manifestar no
século XIX, aprofunda-se no período entre-
guerras (Admirável Mundo Novo, por exemplo,
Mundo sem ruído: A utopia digital 133
é de 1931), mas impõe-se como inescapável após a II Guerra. Heidegger,
que já vinha se inquietando com o tema desde os anos 1930 (Loparic,
1996) - por influência de leituras de Jünger e Nietzsche -, enfrenta ex-
plicitamente a questão em A pergunta pela técnica32 (1953). Desde Ser e
Tempo (1927), o fenomenólogo alemão vinha trabalhando numa fala dis-
tinta da tradição metafísica ocidental, e a radicalidade da pergunta
heideggeriana pela técnica - em busca sempre de uma essência (Wesen),
algo mais original ou anterior a partir de onde esta possa se constituir e
assuma um perfil que se manifesta em tudo que é técnico - abre uma com-
preensão singular do que parece ser mais exatamente essa técnica da qual
emergem os “textos científicos” - que informam a “técnica aplicada” que
determina a “programação” dos aparelhos. Com Heidegger, pode-se cla-
rear significativamente sua relação com a percepção e a cultura, ultrapas-
sar o “programa” da caixa-preta e os “efeitos”, e reencontrar o sentido
dessa força singular de que estes emergem.33. Em tal anterioridade, essa
essência não pode ser, ela mesma, algo de caráter técnico:
“A técnica não é igual à essência da técnica. Quando procuramos a
essência de uma árvore, temos de nos aperceber de que aquilo que
rege toda árvore, como árvore, não é, em si mesmo, uma árvore
que se pudesse encontrar entre as árvores.
“Assim também a essência da técnica não é, de forma alguma, nada
de técnico [...]” [Heidegger, 2002:11]
32 Esta é a tradução dada por Zeljko Loparic ao artigo Die Frage nach der Technik- datado por Loparic (1996) de 1949, e por Lovitt (1977: x) de 1955. A discus-são deste texto de Heidegger, freqüentemente citado na discussão contempo-
rânea sobre tecnologia, é o centro do artigo de Loparic (1996) Heidegger e aquestão da técnica - que procura acompanhar o tratamento deste conceitoatravés da obra do filósofo alemão. O problema mais gritante da tradução de
Lovitt é, ao nosso ver, a identificação entre técnica e tecnologia, como já apon-
tamos na nota anterior. O confronto entre as duas traduções é a única manei-ra de procurar, sem ter a leitura do alemão, apreender de modo um pouco mais
adequado o texto de Heidegger. O artigo de Loparic não apenas traduz me-
lhor os conceitos heideggerianos, como oferece uma leitura de Heidegger queé a que estamos adotando aqui.
33 O editor da importante publicação eletrônica de cultura e tecnologia, Ctheory(http://www.ctheory.net), Arthur Kroker, afirma mesmo que “Martin Heideggeris the theorist par excellence of the digital future” (“Martin Heidegger é o te-
órico por excelência do futuro digital”) (Kroker, 2002:1).
Se existe algo como uma essência da
técnica, portanto, vigora em tudo quanto seja
técnico, assim como habita em tudo que está
em sua órbita. Trata-se, então, de penetrar
nesse seu modo de ser, e descobrir aquilo que,
não sendo ele mesmo uma técnica, é capaz de
determiná-la em todas as formas que assuma;
um campo de forças, ou, sobretudo, um modo
de exercício do pensamento que favoreça o
aparecimento dessa lide com as coisas do
mundo, a qual nomeamos então “técnica”; que
a antecede e que a partir dessa anterioridade
governa a maneira técnica de dispor o mundo
e suas coisas: a técnica, vê-se através de
Heidegger, não é esse conjunto de soluções
134 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
práticas para esse ou aquele contexto, esse ou aquele problema: é, antes, o
próprio modo de figurar um problema, de formalizar questões, de dispor os ter-
mos de real de tal modo que se possa apreendê-lo e, posteriormente, intervir nele
de uma maneira planejada. Com Heidegger, a técnica moderna - a partir da
qual se produzem, como uma explicitação tardia, os aparatos tecnológicos
- aparece claramente como uma herança da metafísica grega, a contempla-
ção (teoria) que progressivamente caminha em direção à intervenção
(práxis), sua aplicação sobre as coisas do mundo: “O pensamento, desde
que foi concebido como teoria, não é menos técnico do que qualquer práxis
e não há distância entre eles”, nota Abranches (1996:87). A chave do en-
tendimento da técnica aparece como essa passagem singular em que, de
súbito, o mundo se dispõe como “um conjunto sistemático de problemas
práticos teoricamente tratáveis” (Abranches, 1996:85). Tomada por uma
determinação de vencer as forças do acaso e do destino - “vontade de po-
der”, como mais tarde a definiu Nietzsche -, a metafísica grega se apodera
do mundo pelo ato da contemplação teórica, arranca suas coisas e temas
de um fluxo heraclitiano de todas as coisas e funda o império da razão. Com
este, fundam-se também não somente uma linguagem - uma forma de di-
zer o mundo -, mas uma maneira de existir em meio aquilo que já está, e
que consiste em, progressivamente, pelo exercício da teoria e sua aplica-
ção sobre as coisas, praticar, quase como um passatempo - um modo de
vida, enfim -, a instalação do mundo por meio da intervenção calculada. E
entende-se, finalmente, que a técnica não é uma criação da civilização
ocidental, e que trata-se exatamente do reverso: é o pensamento técnico
que inventa o Ocidente. A técnica e o Ocidente coincidem,34 e “a metafísica
deixa de ser um absoluto teórico, a totalidade incontornável de nosso pos-
sível acesso ao ser do mundo, para converter-se naquilo que encomendou
o Ocidente” (Abranches, 1996:85).
34 “A técnica, o pensamento técnico (teórico), a metafísica e o Ocidente coinci-
dem” (Abranches, 1996:87). Nesse belo artigo, O enigma da técnica, publica-do no número 3 da Revista Item - uma revista de arte -, Antonio Abranches
apresenta, de modo límpido e sem demandar um domínio especializado dos
conceitos tecidos por Heidegger, uma síntese da interpretação heideggerianado problema da técnica.
35 Para uma excelente introdução à interpretação heideggeriana da técnica e aos
conceitos propostos por Heidegger, ver Loparic (1996).
Lido numa primeira chave, o pensa-
mento heideggeriano da técnica formula uma
espécie de manifesto ecológico precoce, visi-
onário mesmo. A techné, tal qual pensada nos
gregos, é um modo de produzir (“poiésis”) a
paisagem do real; “produzir” é trazer as coisas,
inicialmente ocultas em meio ao ente, à pre-
sença (“desocultar”)35. O modo poiético da
techné, porém, é distinto do modo produtivo
da natureza (“physis”), que implica um “dei-
xar ser” pelo qual as coisas emergem, são
Mundo sem ruído: A utopia digital 135
“desocultadas”, segundo seu próprio modo de se fazerem: tal qual o lavra-
dor, que entregava ao solo a semente na época certa e aguardava seu bro-
tar, “quando lavrar ainda significava cuidar e tratar” (Heidegger, 2001:19).
Ao passo que a técnica, por seu turno, ordena, orienta, organiza, rege uma
espécie de assalto às coisas, logo estendido à totalidade do ente; uma pro-
vocação que arranca dali aquilo que lhe é de serventia, segundo um modo
bastante específico de significar a paisagem. A natureza apresenta-se não
mais como aquilo com que se convive, com que se lida segundo um senti-
do de cuidado e proteção, mas como reserva de energia, fonte de recursos,
jazida ou estoque disso ou daquilo: um rio passa a ser visto por seu poten-
cial hidrelétrico, o solo tão somente como fonte de minérios ou campo
potencial para produção dos alimentos - dos quais se exige uma produti-
vidade máxima; uma paisagem, por sua serventia a uma indústria do turis-
mo36. Conquanto se fale em “indústria”, porém, não se trata de denunciar
um caráter exploratório usualmente associado à avidez pelo lucro que ca-
racteriza o capitalismo. A regência da técnica, seja no capitalismo como no
comunismo, implica numa demanda pela “mobilização total” (termo que
Heidegger toma aos escritos de Jünger), em que todo o ente é pensado como
um conjunto de disponibilidades, figuradas como estoque, a ser solicita-
do a todo momento pelos diversos níveis produtivos - estes também en-
tendidos, todos, como disponibilidades. Num tal modo de significação e
ordenação, as coisas já não são mais sequer “objetos”: são “constanteações”
(das Bestandt)37, “estoque de reserva”38, e não somente a natureza, mas o
próprio homem são significados e apropriados pelo exercício impensado
- já que é mesmo o único modo do pensar - do pensamento técnico e sua
36 E, naturalmente, a realidade como uma reserva de filmes documentais.
37 A tradução é proposta por Loparic (1996).
38 “Estoque de reserva” - que tomamos à tradução norte-americana de Lovitt
(Heidegger, 1977) - empobrece um tanto a linguagem heideggeriana, mastambém esclarece um pouco o “constanteado” de Loparic. Carneiro Leão
(Heidegger, 2001), emprega “dis-ponibilidades”.
instalação do mundo. Não se trata mais, então,
de uma ingenuidade nostálgica, conservadora,
que reivindica um mundo “natural” anterior à
dominação da técnica, nem tampouco da re-
flexão ecológica que procura regrar - tecnica-
mente - a fúria da exploração dos recursos pla-
netários: trata-se da constatação de que o pró-
prio homem está sujeito às determinações da
técnica; ele mesmo é significado como esto-
que, sujeito à regência de uma essência
inescapável que é seu próprio modo de ser - a
técnica engendra uma espécie de armadilha
que determina ao homem sua própria posição
no cenário. Na totalização de todo o ente se-
136 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
gundo o modo de significação posto aí em marcha, o papel reservado ao
homem é o de fazer cumprir essa essência - prosseguir na explicitação téc-
nica de toda a paisagem.
Essa forma de enquadrar todas as coisas segundo o monopólio de
um sentido único - dispô-las como “constantes” -, que se sobrepõe a to-
dos os demais sentidos que se possa atribuir àquilo que deveria abrigar um
sentido inesgotável - conforme vimos no primeiro capítulo -, que acessa
e se apodera de tudo como calculabilidade e manipulabilidade por meio da
representação e da formalização teórica aplicadas ao mundo, tornando toda
a paisagem mera “instalação”, é o que Heidegger chama “armação” (Ge-
stell)39. Em síntese, como o coloca Loparic:
“Que modo de produção, de desocultamento do ente, é a técnica
moderna? O de provocação do ente no seu todo. Provocação que
transforma, estoca, distribui, conecta. Controla e securitiza.
Constanteia (beständigt) tudo. É como constanteado (das Bestandt)
que hoje existe tudo o que está presente. A constanteação reúne.
Não se trata de um fazer humano. Pelo contrário, o homem é
reunido à instalação do constante, por uma provocação unificadora
que Heidegger chama de armação (Gestell). A armação, diz
Heidegger, ‘é a reunificação de uma alocação que coloca o homem
na posição de desocultar o efetivo à maneira de instalação do
constanteado’.” [Loparic, 1996:128]
Enfim, a lógica objetificante da armação, fruto de uma filosofia que
quer vencer o destino, define o Ocidente em seu nascedouro, e de sua for-
ça emerge a técnica moderna, essa que instala tudo que há; sendo nosso
próprio modo de ser - e isto explica a estranha familiaridade com que con-
vivemos com os aparatos técnicos -, nos deixa, aparentemente, sem saí-
39 “Armação” é a tradução de Loparic (1996), cuja interpretação da obra deHeidegger adotamos. Carneiro Leão traduz Ge-stell para “com-posição”
(Heidegger, 2001). Lovitt traduz para o inglês como Enframing (Heidegger,
1977). A versão de Lovitt é extensamente citada na bibliografia internacionalque discute o território da tecnologia e cultura. Por exemplo, Kroker (2002) e
Crary (1990).
da: adquire uma preponderância tal que ela
mesma “aloca” o ser humano nessa posição
irrecusável de senhor de todas as coisas (e que,
afinal, já não são mais sequer “coisas”, mas
“estoque de reserva”, “constanteações”) e re-
cursos sobre ou sob a terra. Sobretudo, sob a
vigência da técnica, o homem se torna esse
estranho senhor que não governa: é governa-
do por uma destinação estabelecida de há mui-
to, uma ordem da representação aniquiladora
- já que encerra o sentido do ser numa única
Mundo sem ruído: A utopia digital 137
significação, e começamos a entender a extensão da reflexão beckettiana
em Film -, da apropriação matematizante, da vontade de poder, da qual,
como diz Abranches (1996), o ser humano ocidental já nasce refém40. Pou-
co importa, desse modo, qual seja a ideologia ou o processo em que se ves-
te a voracidade objetificante da técnica - ela é o nosso próprio modo de ser,
o Ocidente encomendado pela metafísica grega, e realizado em seu mais
alto grau pela ciência moderna.
Trata-se, enfim, de uma situação tal em que o olhar da Medusa nos
objetifica a nós mesmos e nos coloca numa posição onde não podemos
senão multiplicá-lo: pode-se negar que é essa a imagem do homem pro-
duzida pela ciência moderna, que pratica mesmo a engenharia genética?
Que exerce e multiplica essa maneira de pensar que recolhe as coisas -
inclusive o gene - como seus “objetos”, como se tudo aquilo ao redor do
“sujeito” estivesse como que destinado aos seus artifícios, e adquirisse uma
existência legítima como “fenômeno” no “mundo” (este mesmo, coisa
humana) somente quando admitido no seleto universo de suas represen-
tações? Fora dos limites metodologicamente delimitados, conquanto tran-
sitórios, desse terreno, os fenômenos são meras “ilusões”, delírios que
emergem de maneiras “primitivas” ou “patológicas” de experimentar e
nomear visíveis e invisíveis, já que não correspondem às determinações
dessa prática cuidadosamente polida, lapidada, em acordo com uma
teleologia do real “objetivo”, em que não há lugar para o “mistério” ou o
“inesgotável” do vivido - senão em equações que procurem reduzi-lo ao
mínimo impossível, cercando-o com probabilidades e sistemas de esta-
dos, e dispensando os incalculáveis como “desprezíveis” ou “irrelevantes”.
Por fim, trata-se de erguer um vasto espelho numérico daquilo que é, ou
um dia foi, por si próprio, de tal modo a transformá-lo, por uma espécie
curiosa de pingue-pongue ou feedback, naquilo que se esgote
40 “Porque a técnica não é uma esfera particular da experiência humana, por-
que sua disseminação lingüística e historial é abrangente, a única possibili-dade que se abre para nós é a de falar da técnica em meio à sua dominação,
buscando compreender o quão refém é um refém que já nasce em poder de
seus seqüestradores” (Abranches, 1996:87).
41 O chamado “efeito borboleta” consiste na constatação de que fenômenos apa-
rentemente desprezíveis podem deflagrar eventos de grandes proporções - o
“bater de asas de uma borboleta no Brasil pode detonar um tornado no Texas”,como afirmou o físico Edward Lorenz em 1979 (apud Gleik, 1990:9-30).
comportadamente na projeção de um cálculo,
na extensão desse método - território existen-
cial bastante restrito, afinal, mas que já não
necessita, após a ruptura dos átomos, das via-
gens espaciais e da engenharia genética (e ou-
tras façanhas que constituem, sem dúvida,
uma imponente antologia de sucessos), dar
mostras de seus poderes de coação frente a
tudo quanto seja calculável. Que é, afinal, o
nomear de um “efeito borboleta”,41 senão o
esforço desse pensamento teoricamente con-
138 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
cebido em calcular e abarcar até mesmo esse ou aquele aspecto minima-
mente desprezível, seja qual for o embaraço em que este vínculo
longamente ignorado entre todas as coisas implique? Filósofos do vivido,
nem Merleau-Ponty e nem mesmo Heidegger ignoram ou desprezam as
façanhas da ciência moderna: o que se censura aí é que se pretenda, pelo
método, um monopólio da verdade, como se este sentido de mundo aber-
to pela técnica fosse o único de todas as coisas; como se o real se esgotasse
nesse acesso ao ser que o pensamento técnico não percorre, mas devassa,
ao mesmo tempo em que veda todos as demais possibilidades de signifi-
cação que a experiência vivida abriga - além, naturalmente, da pulsão de
poder impensada que aí se manifesta 42.
Assim entendida, a essência da técnica que governa tudo aquilo que
é técnico - da qual, afinal, emerge essa ciência, cujos “textos científicos”
permitem a formalização das soluções da “técnica aplicada” - não é mais
nem tampouco um “meio para fins” ou “um fazer do homem”, mas aquilo
que nos constitui historicamente - que constitui, aliás, a própria noção de
“história” -, de tal modo a experimentarmos nossa existência nos termos
dessa curiosa ilusão de senhoridade sobre a natureza e sobre todas as coi-
sas que o Ocidente explicita: trata-se as conquistas científicas, sejam ar-
mas, equipamentos de vigilância, ou clones, como “conquistas da huma-
nidade”. A “armação” - poderíamos falar mesmo em “enquadramento” -
destina o homem a essa lide com o mundo, e então não se trata somente da
ciência: quando nos abrimos o caminho que permite de algum modo ver -
ainda que de relance e na hesitação que forçosamente se abriga no exercí-
cio do pensamento que, então, se percebe tão tecnicamente determinado
42 Flusser (1983:45-6), em Pós-história, manifesta posição idêntica, distinguindo
saber (da ciência) da sabedoria: “isto coloca o problema da relação entre
ciência e crítica da ciência, entre saber e sabedoria. O da relação entre ciên-cia e filosofia. Um dos aspectos que distingue nossa cultura de todas as
demais é que, no Ocidente, o filosofia dá a luz à ciência, e que a ciência vai
devorando a filosofia da qual nasceu. Aonde quer que a ciência se firme, delá a filosofia vai sendo expulsa. Para os gregos pós-socráticos a natureza era
o campo da filosofia, e ainda os barrocos falavam, de maneira metafórica,
em ‘filosofia natural’ ao fazerem ciência da natureza. Mas atualmente osfenômenos naturais não permitem que sejam filosofados: a ciência os ocu-
pa. O fenômeno humano parecia por muito tempo terreno da filosofia, mas
foi ocupado pelas ciências, sobretudo pela psicologia, até recentemente dis-ciplina filosófica, mas atualmente ‘especialização’ científica. O último exemplo
deste processo é a ocupação da política pela politologia, e da estética pela
informática. O fim da filosofia. O único campo que resta à filosofia é o dacrítica à ciência, mas trata-se de campo escorregadio: desliza ciência aden-
tro. O saber vai devorando a sabedoria”.
- a dimensão da medida em que a técnica nos
governa, pode-se notar o quanto vivemos tec-
nicamente a administração de nossas vidas, os
agenciamentos do cotidiano, a lide com a
espiritualidade, a compreensão de nossos de-
sejos. Por fim, a própria vontade revela-se, em
larga medida, tecnicamente determinada,
pulsão de cálculo: “O instinto da animalidade
e a ratio da humanidade tornam-se idênticos”
(Loparic, 1996:125).
O conceito heideggeriano de armação
difere pouco daquilo que Flusser chama pro-
grama do Ocidente. Do mesmo modo, o pro-
grama é esse modo de ser que nos determina
Mundo sem ruído: A utopia digital 139
de uma maneira tal que nos colocamos, de modo impensado, à sua dispo-
sição, já que é assim que o sentido do mundo se apresenta, e não sabemos
vivê-lo de outra forma: é a nossa cultura, é o “chão que pisamos”. Em Pós-
história, Flusser (1983:26-7) distingue essa cosmologia programática, que
“considera o universo situação na qual determinadas virtualidades ineren-
tes nela desde a sua origem se realizaram ao acaso, enquanto outras
virtualidades continuam irrealizadas, e se realizarão no futuro”, da
cosmologia causalística (o universo é resultado de situações prévias) e da
finalística (o universo é uma situação rumo a um estágio final estabelecido
- destino). Aplicada à cultura contemporânea, no mundo instalado pela
técnica moderna, tal visão programática assume contornos de uma situa-
ção limite, em que a
“própria programação humana vai sendo programada por aparelhos.
Por certo: determinados programadores se julgam, subjeti-
vamente, ‘donos’ das decisões e dos aparelhos. Mas, na realidade,
não passam de funcionários programados para assim se julgarem.”
Tal “programa” não é, portanto, muito diferente daquilo em que
implica a armação de Heidegger: também para Flusser o homem é ele mes-
mo “reunido” e colocado a serviço de uma força que lhe determina um
modo de ser. Como no lançamento de um dado, em que cada qual das suas
seis faces deverá, inevitavelmente, ocorrer ao cabo de um número sufici-
ente de lances, os paradoxos e irrazões da cultura ocidental (que, tanto para
Heidegger como para Flusser explicitam-se nos horrores da II Guerra, esta
tão somente uma “destinação da técnica” ou uma “virtualidade do progra-
ma”) estavam já inscritos no programa do Ocidente, cujas virtualidades,
cedo ou tarde, terão forçosamente que ocorrer. Da mesma maneira que, em
Heidegger, o ser humano serve à ordenação técnica da armação, em Flusser
ele contribui, de um modo ou de outro, para o aperfeiçoamento do progra-
ma do aparelho - o aparelho visa apenas seu próprio aperfeiçoamento, e
serve-se dos seres humanos para tal. A lista de exemplos cotidianos de
nossa integração no aperfeiçoamento da aparelho é extensa, quase tedio-
sa: na verdade, fazemo-lo todos os dias, ao nos integrarmos à crescente bu-
rocracia digital. A distinção fundamental entre essas duas visões podero-
sas e problematizantes do mundo contemporâneo reside em que, enquanto
Heidegger considera-a uma herança grega, Flusser vê a instalação do pro-
grama na herança judaico-cristã. À parte os diferentes pontos de partida,
são visões em muitos aspectos coincidentes, que mais se somam do que se
excluem quando se trata de interpretar o presente tecnológico. Para am-
140 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
bos, a possível saída reside no pensamento poético, numa ética e numa lin-
guagem não objetificantes: para Heidegger, somente a poesia pode ofere-
cer à filosofia aberturas ao ser a partir das quais criar conceitos que possi-
bilitem um “habitar poético”, um “existir humano totalmente diferente da
armação” (Loparic, inédito), ao passo que, para Flusser (1998), cabe à arte
(no caso específico, à fotografia), “apontar o caminho para a liberdade”.
Entretanto, falamos numa filosofia impensada do cotidiano, cuja
gênese teria se dado num momento (filosofia clássica grega) em que, de
algum modo, o mundo apresentou-se de tal modo a ser percebido como um
conjunto de padrões mensuráveis, identificados, “como conceitos, idéias
e valores, a um sentido particular do ser” (Abranches, 1996:88);
associamo-lo a um certo sentido, um modo de significar e lidar com o
mundo que vigora em todas as instâncias da cultura, que se sobrepõe a
outros sentidos que assuma o real e veda mesmo o acesso à riqueza ines-
gotável das coisas, dispondo-as como objetos progressivamente
manipuláveis - e, por fim, “constanteados”, “disponíveis”. Uma essência
que se manifesta num modo de vida, numa linguagem, que dá origem a uma
ciência - que, enfim, se explicita em toda uma cultura, do cotidiano infor-
mal à ciência de ponta. Comparamo-la mesmo a um certo olhar, e falamos
inclusive em “familiaridade”, uma certa naturalidade com que acolhemos
a instalação progressiva do cotidiano. É forçoso reconhecermos que todos
esses termos correspondem às relações entre percepção e cultura que, há
pouco, procurávamos sugerir, através de uma retomada de Merleau-Ponty
e do exame de um conjunto variado de textos. Estamos, então, na circuns-
tância de dizê-lo: a técnica é a percepção do Ocidente. Explicitada em
metafísica, ciência, tecnologia, linguagem, essa constatação - se os capí-
tulos anteriores conseguiram dizer o que pretendiam - não deveria surpre-
ender. O que surpreende, de fato, se se aceita essa interpretação da ques-
tão da técnica inaugurada por Heidegger - e reiterada por Flusser, que, de
todo modo, tem claros traços heideggerianos -43, é o modo como essa de-
finição do Ocidente, segundo a qual este explicita às últimas e mais radi-
cais conseqüências um ponto de experiência, coincide com a interpreta-
ção da história proposta por McLuhan: a metafísica grega, que para
Heidegger abriga já a essência da técnica, é o ponto onde se define a escri-
43 Em palestra sobre a condição judaica, no instituto Goethe, em 1979, Flusser
critica a permanência na Alemanha durante os anos 30 e eventual engajamentonazista do filósofo alemão, mantendo sempre aberto à reconhecimento à sua
obra: “A história passa com desdém pela atitude de Heidegger, o maior dos
pensadores da atualidade” (Flusser, 1979:20).
Mundo sem ruído: A utopia digital 141
ta como suporte do saber ocidental - uma modalidade de escrita peculiar,
já vimos, que fragmenta palavras em fonemas, instala uma sintaxe grávida
de lógica, racionalizante, causal, historicizante -; e que, de fato, pode ser
aí entendida como a primeira e decisiva formalização desse modo de per-
ceber o mundo. E vimos que Flusser, esse misterioso ponto de encontro
entre Heidegger e McLuhan, sugere o mesmo.
A técnica, portanto, não é um modo do fazer, é um modo de perceber
o mundo que esse fazer explicita. Um modo de perceber e de fazer sentido do
mundo que vem, desde longe, determinando a lide com as coisas, o “fazer
mundo” do Ocidente. Pode-se, finalmente, distingui-la com precisão da-
quilo que é daí a manifestação extrema, explicitação radical desse perce-
ber, a tecnologia. A ciência moderna, fruto de uma certa visualidade mul-
tiplicada no emprego de aparelhos ópticos, torna-se a mais poderosa força
objetificante da cultura ocidental, a principal responsável pela “aniquila-
ção das coisas”, como o coloca Heidegger (Loparic, inédito). Embora a crí-
tica da objetificação total de todas as coisas reapareça com vigor em Walter
Benjamin e, como vimos, em Vilém Flusser, parece ser Heidegger quem
vai mais além. Por força da armação, todas as coisas hoje presentes já não
são sequer objetos: existem apenas como constanteações, são apoderadas
como disponíveis, desocultadas, trazidas à presença apenas como instala-
ções. É a partir daqui que se pode tentar propor uma distinção entre técni-
ca e tecnologia: a técnica é essa herança longínqua da techné grega, do seu
olhar de Medusa; a técnica moderna, fruto da ciência moderna, aniqui-
ladora e objetificante, produz, então certo saber técnico que informa os apa-
relhos tecnológicos. Técnica é um modo de perceber-pensar as coisas do
mundo; a tecnologia automatiza, autonomiza, multiplica esse pensar. Os apa-
relhos são produtos culturais, e portanto querem ser “bons” segundo uma
determinada ordem de valores (armação; programa), e sua finalidade é
“emancipar o homem do trabalho”, isto é, tornarem-se progressivamente
autônomos. Para isto, como diz Flusser, servem-se do homem para seu cons-
tante aperfeiçoamento. Se os aparelhos autonomizam determinado pensar
técnico, tornam-no parte integrante do dia-a-dia; ao se tornarem hábito, es-
condem o pensar que os informa sob a lide cotidiana, damos as costas a essa
sua intervenção. Ao mesmo tempo em que reificam esse saber, dissimulam-
no, escondem-no na caixa-preta: é isso o que define a tecnologia.
142 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Tanto Heidegger como Flusser percebem que a instalação dos apa-
relhos e a objetificação técnica no cotidiano transformam o próprio modo
do ser humano de lidar com o mundo: informam a subjetividade através
do hábito. Ao formularem assim a questão da técnica e da tecnologia, dis-
tinguem uma natureza humana daquilo que se poderia chamar de um modo
de ser das máquinas. Tal distinção entre “humano” e “maquínico” adqui-
re hoje uma dimensão tal, que, em certos autores, aparece já mesmo bor-
rada: Rogério da Costa (1997:65), por exemplo, fala mesmo que “são tan-
tas as contaminações entre humano e maquínico que já não se sabe mais
onde começa um, onde acaba o outro: a subjetividade humana já é consti-
tuída de inúmeros elementos maquínicos, ao passo que as máquinas ad-
quirem, progressivamente, uma proto-subjetividade.” Tal modo de ver as
coisas reitera aquilo que se aqui entende como os efeitos da armação e do
programa, já que máquinas e humanos se contaminam, numa progressiva
mistura das tintas, e se co-implicam na realização de um projeto prede-
terminado por uma forma impensada (e tecnologicamente multiplicada)
de perceber o mundo. Essa familiaridade com que se dá a interação entre
o humano e o maquínico, o “amálgama funcionário-aparelho”, como defi-
ne Flusser, por meio de uma identificação do homem com algo de si nas
máquinas, através da qual estas podem informar a subjetividade, foi defi-
nida genialmente por McLuhan nos anos 1960 como a Narcose de Narciso:
“The greek myth of Narcissus is directly concerned with a fact of
human experience, as the word Narcissus indicates. It is from the
Greek word narcosis, or numbness. The youth Narcissus mistook
his own reflection in the water for another person. This extension
of himself by mirror numbed his perceptions until he became the
servomechanism of his own extended or repeated image. The
nymph Echo tried to win his love, with fragments of his own speech,
but in vain. He was numb. He had adapted himself to his extension
of himself and had become a closed system.” [McLuhan, 2001:41]44
44 “O mito grego de Narciso está diretamente ligado a um fato da experiência
humana, como a própria palavra Narciso indica. Ela vem da palavra narcosis,
entorpecimento. O jovem Narciso tomou seu próprio reflexo na água por ou-tra pessoa. A extensão de si mesmo pelo espelho embotou suas percepções
até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem prolongada
ou refletida. A ninfa Eco tentou conquistar seu amor por meio de fragmentosde sua própria fala, mas em vão. Ele estava sonado. Havia-se adaptado à ex-
tensão de si mesmo” (McLuhan, 2001b:59).
Assim, para McLuhan, as tecnologias
de comunicação são extensões narcotizantes do
ser humano. Esse integra-se à máquina, for-
ma com ela um sistema fechado, em que sua
subjetividade é redesenhada por meio de pro-
gressiva anestesia daquelas funções que são
maquinicamente extendidas, automatizadas,
autonomizadas: torna-se por fim servo do
Mundo sem ruído: A utopia digital 143
aparelho. Que as tecnologias sejam extensões de nossos corpos, dificil-
mente será posto em dúvida por qualquer autor que seja - e essa definição
protética dos instrumentos é bastante disseminada: carros, máquinas de
guerra, microscópios, câmeras, pinças, celulares, seja lá o que for que pos-
samos localizar no domínio dos dispositivos e aparatos, do instrumental e
do tecnológico, estamos tratando com extensões de funções de nossos cor-
pos, aparentemente limitados para dar conta das tarefas que deles se soli-
citam; inventamos geringonças de todas as ordens capazes de desempenhar
tais e tais funções com maior eficiência, com menor risco, com maior preci-
são, com mais velocidade etc.. McLuhan sugere que se deva pensar cada uma
dessas tecnologias em seu registro específico, já que, ao efetuarem suas
tarefas, expandindo as possibilidades e modificando as configurações (his-
tóricas) do corpo humano, tais próteses imprimem um emblema seu, ca-
racterístico, aos corpos, processos e produtos resultantes de tais práticas
produtivas, seja lá de que natureza forem. Tratam-se, afinal, dos efeitos que
há pouco comentávamos, e, ainda aqui, McLuhan encontra-se com
Heidegger, para quem é o conjunto de dispositivos, usos e necessidades que
orbita em torno dos aparelhos que constitui a técnica: naturalmente, o
conjunto de efeitos que McLuhan procura descrever - a disseminação da
sua presença dissimulada na intimidade cotidiana - permite ver o alcance
da armação, o modo como nosso dia-a-dia - nossos desejos, necessidades
e o modo de satisfazê-los - vai sendo ordenado e determinado pelo enca-
deamento quase incalculável dos vários níveis dos aparelhos, e a adequa-
ção, uns aos outros, de seus programas. “Já nenhum homem pode contro-
lar o jogo. E quem nele participar, longe de o controlar, será por ele con-
trolado”, arremata Flusser (1998:88)45.
Uma ética da utilização, dizíamos, toma os aparelhos como neutros,
e McLuhan teve o mérito inegável de formular com clareza a pergunta pela
intervenção da mediação tecnológica, tão fácil de ser negligenciada, dado
esse modo aparentemente familiar com que os aparatos se instalam no
cotidiano - pode-se dizer que ocupam a casa, modificam a decoração,
transformam nossos hábitos sem nem mesmo pedirem qualquer licença
e sem que nos demos conta. Mesmo um filósofo como Merleau-Ponty
(2004), que articula com clareza o método e as implicações existenciais da
45 Conquanto a fala de Flusser seja sempre intensa, não deveria haver surpresa:
se se aceita que os aparelhos definem as regras de seu uso, portanto um “jogo”,deve-se também reconhecer que “jogar é ser jogado”, como lembram Bairon
e Petry (2000).
144 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ciência, não parece nunca problematizar a tecnologia. Pensando a pintu-
ra, descreve o ato criador em termos de “expressão”, e dá pouca ou nenhu-
ma importância à questão implícita ao aparato técnico46. O equipamento
com que Cézanne trabalha pouco importa: desaparecem tintas, pincéis, tela
ou papel, diante da obra em sua grandeza expressiva singular, que se ofe-
rece à experiência e ao deciframento que permitiriam o encontro, ao fi-
nal, pelas “mônadas contemporâneas” ou pelas “comunidades abertas das
mônadas do futuro” de um “sentido original inequívoco” - trata-se mes-
mo de um privilégio expressivo da obra: aquilo que a constitui, que tece sua
verdade e ao qual o instrumental empregado não pode senão servir. Mes-
mo em seus escritos sobre o cinema47, a base técnica nunca é tematizada, e
é sempre a obra finalizada - a que Benjamin (1995:30) chamou “máscara
mortuária da concepção” - que importa, pois dá testemunho do gesto ex-
pressivo, preserva e transporta o sentido para além de sua zona de tempo,
destacando-se do (e no) fluxo da vida. Também Heidegger, no caminho que
conduziu à sua posterior desconstrução radical da questão da técnica, par-
tilhou, eventualmente e a seu modo, essa posição. Em A origem da obra de
arte (1935), fazia desaparecer a importância do instrumento em relação à
obra a que seu emprego conduz (Loparic, 1996:119-21). Não há nenhuma
importância atribuída aqui, nesse modo de entendimento do gesto expres-
sivo, ao instrumental ou à técnica empregados pelo artista. Não se perce-
be a medida mesma em que esta ou aquela técnica, este ou aquele arsenal
instrumental possuem uma marca tal que constitua traço de historicidade
e sentido em si mesma. Não que Merleau-Ponty ignore o significado his-
tórico da perspectiva, por exemplo.48 Mas é que trata-se, afinal, da pintu-
ra, engendrada numa narrativa histórica onde pincel, tintas e o suporte
constituem um arranjo que permanece constante por cerca de 400 anos a
partir do Renascimento, de uma forma aliás não muito distinta da câmera
de cinema: essa não se transformou, essencialmente, após a câmera dos
Lumière,49 e a mediação do dispositivo mecânico pouco importa a um crí-
tico extraordinário como André Bazin - exceto pela sua objetividade essen-
cial, da qual Bazin não deriva qualquer possível negatividade. Mas é a au-
46 Sobre a “expressão” em Merleau-Ponty, ver o extenso estudo de Marcos José Muller(2001), ou, por exemplo, O olho e o espírito (Merleau-Ponty, 2004:134-5).
47 Por exemplo, O cinema e a nova psicologia (1945), em Xavier (1983).
48 Ver, por exemplo, O olho e o espírito (Merleau-Ponty, 2004:29).
49 Por exemplo, ver Bazin (1991:66-81): A evolução da linguagem cinematográfica.
Mundo sem ruído: A utopia digital 145
sência dessa tematização que constitui, nesses autores, uma marca de épo-
ca, e é possivelmente a velocidade do tempo contemporâneo que nos faz
hoje notar com mais clareza a impermanência, a transitoriedade e o im-
pacto das mediações técnicas e sua historicidade - McLuhan, aliás, dizia
mesmo que o privilégio da era tecnológica era acompanharmos, ao longo
de uma vida, mudanças que antes levavam centenas de anos.
Dissemos, então, que as tecnologias não são neutras: informam
corpo, subjetividade (como se, aliás, se pudesse pensá-los separadamen-
te), coletividade. Tomemos a fotografia - o momento singelo em que a mão
é demitida de quaisquer funções relevantes na produção da imagem,
doravante reservadas ao olho (Benjamin, 1982:211) - como um modelo de
todos os aparelhos, como o faz Flusser (1998). Um olhar por sobre o uni-
verso sintagmático inaugurado pela fotografia pode intuir facilmente dois
modos de pensá-la: num primeiro caso, alinhado ao que se disse no pará-
grafo anterior, afirma-se que a fotografia (e, por extensão, todo o univer-
so das imagens técnicas) seria instrumento de expressão que o artista
manipula, e cujos resultados habitam um território determinado pela ar-
ticulação, sob comando do fotógrafo, que envolve técnica e criação, de uma
50 Tal visão, que este trabalho tem por ingênua, aparece mesmo no Benjamin de
1931, que afirma: “No entanto, o decisivo da fotografia continua sendo a re-
lação entre o fotógrafo e sua técnica. Camille Recht caracteriza essa relaçãocom uma bela imagem. ‘O violinista precisa primeiro produzir o som, procurá-
lo, achá-lo com a rapidez de um relâmpago, ao passo que o pianista bate nas
teclas, e o som explode. O instrumento está à disposição do pintor, como dofotógrafo” (grifo nosso). Afora reiterar aquilo que dissemos sobre o senso co-
mum da relação fotógrafo-aparelho, esse parágrafo aponta um aspecto im-
portante da questão da intervenção tecnológica na cultura, que é a reflexãoque a seu respeito pode emergir da música, mais do que da pintura. É comum
ouvir-se de músicos que “a música chega sempre atrasada à transição histó-
rica”: dão como exemplo o tonalismo, que, ao se consolidar somente ao fimdo século XVII, traria à música a noção de sujeito com um século de atraso
em relação à pintura, que já o fizera através da perspectiva. É natural, visto
que a música se encontrava, no quadro histórico do Renascimento, abrigadano seio da Igreja, a instituição decisivamente conservadora. No entanto, o
impacto exercido pelo piano na consolidação da música européia ao final do
século XVIII e no século XIX (tido sob um certo enfoque como seu apogeu)oferece vasto campo à reflexão sobre as relações entre tecnologia e cultura,
que não serão feitas aqui por desnecessárias à exposição em vista, ainda que
nos pareça que tal impacto reitere fortemente nossa argumentação.
51 Essa posição é tão imanente ao senso comum que, ao se trabalhar o Ensaiosobre a fotografia de Flusser (1998) em sala-de-aula (nós o fizemos durante
o segundo semestre de 2004), a primeira reação dos jovens alunos da gradu-
ação é postular a fotografia como expressão.
forma, no fundo, não muito distinta daquela
do pintor: a câmera está para o fotógrafo do
mesmo modo que, para o pintor, seus pincéis;
o fotógrafo pinta com seu olho e sua objetiva.50
Quem, num território da conversa fiada coti-
diana, onde não se interrogue além da super-
fície dos fenômenos, questionaria o que está
descrito acima?51 Bazin pensou mesmo assim
no século XX: a máquina fotográfica, afinal,
realiza a própria tarefa realista do pintor, já
que a natureza, ao imprimir-se por si só na
superfície fotossensível, “faz mais do que imi-
tar a arte; ela imita o artista” (Bazin, 1991:24),
com a vantagem de que fazê-lo liberta a ima-
gem da “hipoteca da subjetividade”. Um se-
gundo modo, igualmente intuitivo, de pensar
a questão, entretanto, emerge também já no
século XIX: a considerarmos a máquina foto-
gráfica um instrumento que pertence à ordem
das máquinas e da técnica moderna - que
transforma a paisagem do século XIX -, pode-
146 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
se facilmente pensar que há aí algo de, então, absolutamente novo - e fa-
lávamos também há pouco no fascínio das novidades. Mesmo Heidegger
(2001:12), ao buscar dar a ver uma anterioridade que tenha governado a
destinação do saber no Ocidente, considera justo afirmar que “desta [a
técnica moderna], afirma-se com certa razão ser algo de completamente
52 Na tradução americana de Lovitt: “The instrumental definition of technology
is so uncannily correct that it even holds for modern technology, of which wemantain, with some justification, that it is, in contrast to the older handwork
technology, something completely different and therefore new” (Heidegger,
1977:5).
53 Heidegger comenta: “Pretende-se, como se costuma dizer, ‘manusear comespírito a técnica’. Pretende-se dominar a técnica. Este querer dominar torna-
se tanto mais urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do
homem” (Heidegger, 2001:12). Imagem conhecida da ficção científica podetraduzir tal temor pela submissão do próprio homem pelo poder da técnica: o
HAL de 2001, Uma odisséia no espaço (1969), obra-prima de Kubrick. Bastan-
te conhecida também é o manifesto chapliniano quanto ao mundo ordenadopelas máquinas, Tempos Modernos (1936).
54 “As tentativas de teorização são rudimentares. Os inúmeros debates realiza-
dos no passado sobre esse tema de fundo não conseguiram libertar-se do es-quema grotesco utilizado por um jornal chauvinista, Leipziger Ainziger, para
combater a invenção diabólica de além-Reno. Querer ‘fixar efêmeras imagens
de espelho não é somente uma impossibilidade, como a ciência alemã o pro-vou irrefutavelmente, mas um projeto sacrílego. O homem foi feito à imagem
e semelhança de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum
mecanismo humano. No máximo, o próprio artista divino, movido por umainspiração celeste, poderia atrever-se a reproduzir esses traços ao mesmo tempo
divinos e humanos, num momento de suprema solenidade, obedecendo às
diretrizes superiores de seu gênio, e sem qualquer artifício mecânico.’” (Benja-min, 1996:92). Aqui, a fotografia é recusada em termos religiosos que pouco
esclarecem a questão por ela deflagrada.
55 “A polêmica que se manifestou, no curso do século XIX, entre os pintores e osfotógrafos no que diz respeito ao valor respectivo de suas obras, dá-nos hoje
[1935] a impressão de responder a um falso problema e fundar-se numa con-
fusão” (Benjamin, 1982:221). Aqui, Benjamin assinala esse conflito - descritotambém por outros autores, por exemplo Bazin (1991) - entre pintura (expres-
são artesanal, arte) e fotografia (gesto mecânico), para em seguida formular
um dos muitos pontos extraordinários de “A Obra de arte...”: “Já se haviamgasto vãs sutilezas em decidir se a fotografia era ou não uma arte, mas, preli-
minarmente, ainda não se perguntara se esta descoberta não transformava a
natureza geral da arte”. Como bem observa Gasché (1994), o já consagradodiagnóstico de Benjamin da “destruição da aura” abriga ambigüidades: “É
preciso admitir, no entanto, que certos valores ligados ao aurático tornam di-
fícil - especialmente quando se mostra que a eliminação da aura do ser huma-no singular é uma função de sua transformação num ser de massa - sustentar
que Benjamin poderia ter realmente endossado sua destruição radical. De fato,
esses ‘valores’ vêm a ser exatamente aqueles da unicidade, da singularidade eda autenticidade, e eles explicam em grande medida a ambivalência evidente
no tratamento que Benjamin dá à aura” (Gasché 1994:195).
diverso e por isso novo face à técnica artesanal
mais antiga”.52 Junto ao fascínio novidadeiro
com que as engenhocas são acolhidas publica-
mente desde o século XIX, já habita, porém,
certa reserva quanto aos poderes que as má-
quinas praticam e à capacidade do homem de
dominá-los53. Benjamin (1996:99) dá teste-
munho da emergência dessa visão mais som-
bria da técnica quando afirma que, nas ima-
gens dos fotógrafos “posteriores a 1880 [...]
distinguia-se com clareza crescente uma pose
cuja rigidez traía a impotência daquela geração
em face de progresso técnico” (grifo nosso). Que
o aparelho - neste caso, a máquina fotográfica
- seja percebido como algo em si antagônico ao
humano (e portanto à arte), é suporte das mui-
tas discussões do século XIX a respeito do pos-
sível status da fotografia como obra de arte,
mencionadas por Benjamin em Pequena histó-
ria da fotografia54 e n´A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica55.
Trata-se, portanto, do par antitético
bem conhecido: uma intencionalidade do
“maquínico”, que seria contraposta a um “hu-
mano” - este tão dificilmente definível e his-
toricamente contaminado por aquele. Essa
intencionalidade maquínica explicita um certo
modo de tratar as coisas, uma percepção tec-
nicamente determinada que os aparelhos ins-
talam no cotidiano, e falávamos, há pouco,
num certo “projeto de mundo” implícito, por-
tanto, ao pensamento que informa a progra-
mação, a lógica inscrita no interior das caixas-
pretas. Os aparelhos, dissemos, são objetos
Mundo sem ruído: A utopia digital 147
culturais, produzidos segundo uma ordem de valores: visto que querem
“resolver problemas”, engendram, articulam, valores de um mundo
“bom”; definem critérios de “como as coisas deveriam ser”, e tornam esse
projeto automático, operante por si mesmo, tanto quanto possível
tecnologicamente - seu modo de ser insere-se no cotidiano e torna-se fato
consumado. Um exemplo sutil e revelador dos valores que sustentam o
projeto maquínico e a oposição aí abrigada entre as possibilidades huma-
nas e as da máquina é a invenção do caleidoscópio, em meados do século XIX.
Dizia, então, Brewster, o inventor:
“There are few machines, indeed, which rise higher above the op-
erations of human skill. It will create in an hour, what a thousand
artists could not invent in the course of a year.” [Brewster, 1858,
apud Crary, 1990:116]56
Os valores que animam esse inocente brinquedo traem todo o uni-
verso axiológico que guia a expansão inédita da ciência no século XIX, e o
triunfo absoluto da técnica que o maquínico celebra. A máquina é enten-
dida como mais eficaz e produtiva em quaisquer tarefas que a elas se possa atri-
buir, e o modo como se formaliza aí um antagonismo entre arte (obra do
humano: limitado, falível, subjetivo) e ciência (obra do humano: racional,
objetivo, universal) é explícito. Trata-se do conflito já posto mesmo por
Platão n´A república57, entre um projeto de mundo concebido pela razão
(cuja manifestação mais pragmática é naturalmente a ciência moderna),
versus a poesia (entendida como contrafação, imitação, verdade derivada,
esvaziada de qualquer significado prático ou produtivo), que aparece cris-
talino no caleidoscópio. Este não é apenas mais produtivo, mas mais criati-
vo do que os artistas: produz até mesmo por si próprio, com pequena ajuda
do corpo humano - a mão que o manipula, o olho que foca -, que se adapta
às exigências do aparelho. Pode-se dizer, então, que um brinquedo apa-
rentemente tão inocente como o caleidoscópio seja vazio de discurso? Que
não haja nele “intenções ocultas”, como o diria Flusser? Poderíamos di-
zer, parodiando o conhecido “complexo de múmia” de Bazin (1991) - uma
56 “Há, de fato, poucas máquinas que se elevem tão acima das habilidades hu-
manas. Ela criará, em uma hora, aquilo que mil artistas não poderiam inventarao longo de um ano”.
57 A recusa de Sócrates em abrigar na República a produção dos poetas é men-
cionada por Benjamin em O Autor como produtor (1996:120), e pode ser lidano Livro X d´A república (por exemplo, na edição da Edições de Ouro: Rio de
Janeiro, 1966).
148 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
obsessão em preservar o ser pela aparência, que animaria as artes plásti-
cas desde o princípio -, que uma psicanálise do maquínico permitiria de-
finir um “complexo de caleidoscópio”, que habita essa ambição de poder
de qualquer dispositivo.
As análises do universo das “máquinas de visão” feitas ao longo do
século XX - portanto, já no campo de forças habitado e cada vez mais
saturadamente definido pela mediação tecnológica e industrial da comu-
nicação e da produção - dão a entender essa medida em que as tecnologias
se mostram como “conteúdos” por si mesmas, articulando mensagens
autônomas que vão à revelia daquilo que se costuma chamar “conteúdo” de
um meio, ou “mensagem” dentro do paradigma técnico-informacional.
McLuhan, ironizando a discussão que se desenrolava nos anos 1960 a res-
peito da qualidade do conteúdo dos programas de televisão - isto é, que uma
programação televisiva que veiculasse, vamos dizer, alta cultura (empre-
gando um chavão frankfurtiano) resolveria o impacto social causado pelas
imagens em massa e em rede do tubo catódico -, elaborou mais um de seus
certeiros e sintéticos aforismas, ao afirmar que “the content of a medium
is like the juicy piece of meat carried by the burglar to distract the watchdog
of the mind”58 (McLuhan, 2001c:18). Aquilo a que se chama “conteúdo”
seria quase uma isca para a atenção, ao passo que a experiência engendra-
da pelo meio tecnológico é que seria, de fato, o seu conteúdo - autônomo,
indiferente aos seus usos, e que comunica-se por si: o meio é a mensagem.59
Que os suportes tecnológicos detenham tal conteúdo intrínseco,
inscrito neles mesmos, que torna refém de tal estrutura qualquer forma
58 “Pois o ‘conteúdo’ de um meio é como o pedaço de carne suculento que o
ladrão leva para distrair o cão-de-guarda da mente”. Marchand (1998:42) nota
que esse aforisma é uma adaptação de observações de T.S. Eliot, de quemMcLuhan era grande admirador, sobre o modo como a poesia afeta seu leitor:
o “significado” do poema seria apenas um modo de manter o leitor atento, ao
passo que seus efeitos seriam de fato toda a experiência sensorial deflagradapela leitura.
59 O núcleo do pensamento de McLuhan aparece por toda parte, tal a maneira
como tornou-se parte do entendimento da intervenção da tecnologia na cul-tura. Em Flusser, como se verá, a referência é constante; em Santaella, por exem-
plo, pode-se ler: “Toda nova linguagem traz consigo novos modos de pensar,
agir, sentir” (Santaella, 2001:392).
60 Portanto, antes mesmo que o estruturalismo emergisse explicitamente comoum método que permitia pensar as epistemes históricas no eixo sincrônico.
61 A perspectiva como forma simbólica.
sintagmática fixada sobre tais suportes, idéia
que emerge de maneira decisiva nas obras de
McLuhan (The Gutenberg galaxy; Understanding
media) e Flusser (Ensaio sobre a fotografia), não
é algo que não tenha freqüentado o horizonte
da exegese das linguagens e da cultura desde o
início do século XX. Já na década de 192060,
Erwin Panofsky, em um ensaio célebre61, de-
finia a perspectiva albertiana como uma “for-
ma simbólica”, que, ao reunir divergências
estilísticas dos artistas do quinqueccento sob
uma “descrição do mundo segundo um pro-
cesso racional e passível de repetição” (Wood
1999:15), permitia entender ali uma “visão de
mundo” (Weltanschauung). Tal caráter racio-
Mundo sem ruído: A utopia digital 149
nal e repetível - pode-se até sugerir, precocemente algorítmico, ou
programático - é que permite, precisamente, que a perspectiva apareça
para alguns autores62 como a primeira tecnologia de produção de imagens.
No sentido em que estamos procurando tratar aqui tecnologia, a perspec-
tiva abriga toda uma série de ambigüidades. Trata-se, no dizer de Panofsky,
de uma estrutura de formalização de conhecimento visual que assinala “o fim
da teocracia da Antigüidade” e o “começo da <<antropocracia>> moderna”
(Panofsky, 1999:67). Portanto, uma estrutura de transição, que permite a
ligação entre dois mundos: um mundo em que emerge a figura do sujeito
moderno (materializado no estabelecimento do ponto de vista), e ao mes-
mo tempo uma realidade pensada ainda na órbita da totalização vertical do
mundo pela religião católica, cuja temática é dominante na produção
62 Por exemplo: Grossmann (1996), Bazin (1991), ou Manovich (2001).
63 Ver também Arlindo Machado (1984).
Antonello da Messina: Antonello da Messina: Antonello da Messina: Antonello da Messina: Antonello da Messina: São Gerônimo em seusSão Gerônimo em seusSão Gerônimo em seusSão Gerônimo em seusSão Gerônimo em seusaposentos aposentos aposentos aposentos aposentos (1474)(1474)(1474)(1474)(1474)
imagética em que se matura a técnica perspec-
tivista; por outro lado, tal técnica (já que não é
ainda autônoma) é desenvolvida através, ou im-
plica no desenvolvimento, de aparatos primiti-
vos de enquadramento, autonomizando a orga-
nização do campo visual em imagem, como se vê
nas famosas gravuras de Duhrer. Híbrida de
técnica e tecnologia, de Idade Média e Moder-
nidade, de razão e fé, a significação implícita na
perspectiva é, porém, inequívoca: através des-
ta, da metáfora da janela e da constituição de um
espaço visual unificado, que coloca à disposição
do homem o próprio infinito, a perspectiva é o
“olho do sujeito”,63 é a “forma simbólica” que
delimita e reifica a prática do “ponto de vista”,
e com ela a ascensão de uma epistemologia
(antropocentrismo moderno) em que a visão
mediada (e, posteriormente, verificável) do in-
divíduo, lançada ao mundo a seu redor, é mais
constitutiva da verdade deste mundo do que a
própria palavra de Deus.
150 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Não é o caso de retomar aqui a artificialidade de tal olhar, que não
corresponde em absoluto ao olhar espontâneo que se lança sobre o mun-
do.64 A perspectiva emerge como uma técnica que articula uma visão de
64 Para retomar a questão da artificialidade da perspectiva monocular-artificial-
albertiana pode-se ler o original de Panofsky (A perspectiva como forma sim-bólica) ou o livro de Arlindo Machado A ilusão especular (1984). Um argumentobastante simples basta para demonstrar a artificialidade da técnica
perspectivista, que é seu caráter monocular, já que a visão humana é ativa e
binocular. Será preciso aguardar até o século XIX para que tal monocularidadeseja posta em questão e se pense pela primeira vez na binocularidade da vi-
são humana. O estereoscopio, brinquedo popular que joga com a diferença
angular dos dois olhos para construir uma outra ilusão, agora tridimensional -sob muitos aspectos discutível, como mostra bem Crary (1990:119-26) - é fru-
to dessas pesquisas sobre a fisiologia da visão.
65 O exemplo célebre, dado por Arlindo Machado (1984), é o da Última Ceia:pintada por Da Vinci no início do século XVI, a derradeira refeição de Cristo
reitera a centralidade desse no mundo Renascentista, um universo ele mesmo
em transição, mas incapaz de romper com a ordem medieval, e em que, se-gundo Luiz Costa Lima (1982:27-8) “nobres e burgueses harmonizam seus
interesses e suas mútuas carências pela troca das mulheres: casando seus fi-
lhos, o lustre dos títulos e o tesouro das moedas são intercambiados. De mãosdadas, burgueses enobrecidos e fidalgos aburguesados estabelecem o com-
promisso pelo qual aborta o capitalismo renascentista”. De um tal mundo, de
tensões políticas resolvidas sob a bênção do casamento, emerge um pensa-mento que “se dociliza e prefere o terreno mais dócil da escavação filológica”
e um universo artístico que é “uma esfera que se fecha e se completa, de um
estilo que se integra em si mesmo.” Se Da Vinci representa a Santa Ceia comouma cena plena de equilíbrio e de harmonia, integrada ao contexto sócio-his-
tórico de que toma parte, cerca de um século depois - já às portas de entrada
do barroco - Tintoretto pintará a mesma cena a partir de um ponto de vistaoblíquo, que traduz um sentido diverso: Cristo agora não ocupa mais o centro
da cena, e em primeiro plano estão Judas e os mercadores com quem negocia
a venda de seu mestre. Trata-se de um mundo em que o “pacto” renascentistajá não vigora, e em que emergirá a consciência burguesa. Em ambas as telas,
a de Da Vinci e a de Tintoretto, é, porém, o ponto de vista a chave da constitui-
ção do sentido e o ponto de partida para seu deciframento.
66 Crary busca distinguir observador de espectador: “Unlike spectare, the Latin
root for spectator, the root for ‘observe’ does not mean ‘to look at’. Spectator
also carries specific connotations, specially in the context of nineteenth-centuryculture, that I prefer to avoid - namely, of one who is a passive onlooker at a
spetacle, as at an art gallery or theater.” (Crary, 1990:5) (“Diferentemente de
spectare, a raiz latina de espectador, a raiz de ‘observar’ não significa literal-mente ‘olhar para’. Espectador também carrega conotações específicas, espe-
cialmente no contexto da cultura do século XIX, que prefiro evitar -
notadamente, a de alguém que olha passivamente um espetáculo, como numagaleria de arte ou sala de teatro ou cinema”).
67 "observare significa ‘modelar os atos, portar-se de acordo’, como na observa-
ção de regras, códigos, regulamentos e ações. Apesar de ser obviamente al-
guém que vê, um observador é sobretudo alguém que vê dentro de um deter-minado conjunto de possibilidades, alguém que está envolvido num sistema
de convenções e limitações”.
mundo (a constituição do sujeito) por si pró-
pria. Independentemente do tema ou do
enquadramento escolhido, a imagem será
sempre uma reiteração de que é o olho do su-
jeito, aquele que contempla o mundo, quem
determina o significado de uma cena.65 Do
mesmo modo como a perspectiva constitui, à
revelia dos motivos bíblicos ilustrados com
emprego de seus procedimentos, o ponto de
vista do sujeito, também os séculos XVII e
XVIII reservam papel destacado a um procedi-
mento de produção de imagens, mais precisa-
mente a um aparelho, inseparável da consti-
tuição de um observador moderno66:
“observare means ‘to conform one´s ac-
tion, to comply with,’ as in observing
rules, codes, regulations and actions.
Though obviously one who sees, an ob-
server is more importantly one who
sees whithin a prescribed set of possi-
bilities, one who is embedded in a sys-
tem of conventions and limitations.”67
[Crary, 1990:5-6]
Ou seja, um observador é aquele que vê
dentro dos limites de um regime de visua-
lidade historicamente constituído. Como
descrito em detalhes por Crary (1990) em
Techniques of the observer, a câmara escura ocupa
um lugar destacado na cultura européia do
período − seja como modelo da visão humana,
metáfora do processo do conhecimento, ou
aparato utilizado para observação. Segundo
Crary, o emprego sistemático desse dispo-
sitivo, seja como objeto de uso em práticas
Mundo sem ruído: A utopia digital 151
sociais distintas, seja como metáfora
filosófica, redefine a posição sujeito (que a
perspectiva instalara na produção da
imagem)68 em termos que lhe são especí-
ficos.69 Ao fazer “um corte ordenado ou
delimitação do campo” visual, a câmera escura
não realiza apenas, por si mesma, o trabalho
de enquadramento, permitindo que daí se
proceda ao exame do mundo. Alinhada ao
modelo epistemológico da ciência clássica −em cuja emergência, aliás, desempenha um
papel significativo: basta tomarmos a
experiência do prisma de Newton70 −, também
institui um modo de significar o mundo que
lhe é específico, seja como modo de
observação “em condições ideais” de um
fragmento isolado da “realidade”, ou como um
olhar que, instalado e segregado em tal
câmera, tende à negação do corpo71 e ao
favorecimento da formalização de uma noção
de sujeito idealizada, quase divina − a
poderosa abstração que será, em seguida,
pensada criticamente por Kant.
68 Em Baudry, a origem do sujeito é explicitamente associada à perspectiva. A
designação sujeito é apontada como aparecendo nos textos de Pellerin Viator,
e coincidindo ali com a localização do olho do observador na pirâmide visuala partir da qual se elabora a imagem na perspectiva artificial. (Baudry,
1983:386).
69 Trata-se de um dispositivo que “defines the position of an interiorized observer
to an external world, not just a two dimensional representation, as in the casewith perspective. [...] What is crucial about the camera obscura is its relation
of the observer to the undemarcated, undifferentiated expanse of the world
outside, and how its apparatus makes an orderly cut or delimitation of thatfield allowing it to be viewed, without sacrificing the vitality of its beeing”
(Crary,1990:34). (“define a posição de um observador interiorizado em relaçaoao mundo externo, não somente uma representação bidimensional, como no
caso da perspectiva [...] O que é crucial na câmara-escura é a relação em que
instaura o observador para com o campo extenso não-demarcado eindiferenciado do mundo exterior, e como o aparato um corte ou delimitação
ordenada desse campo, permitindo que ele seja visto, sem sacrificar a vitali-
dade de seu ser”.
70 “Among the well known texts in which we find the image of the camera obscu-ra and of its interiorized and desimbodied subject are Newton´s Opticks (1704)
[...]. Near the beginning of the Opticks he recounts: ´In a very dark chamber, at
a round hole, about one third Part of an Inch, broad, made in the shut of awindow, I placed a glass prism, whereby the Beam of Sun´s Light, which came
in at that Hole, might be refracted upwards toward the opposite wall of the
chamber, and there form a coloured image of the Sun’.” (Newton, Opticks, apudCrary 1990:40). (“Entre os textos bem conhecidos nos quais encontramos a
imagem da câmara escura e de seu sujeito interiorizado e des-incorporado está
a Optiks, de Newton (1704) [...]. Próximo ao início de Optiks, ele escreve: ‘Numacâmara muito escura, num buraco de cerca de um terço de polegada, feito numa
janela fechada, eu coloquei um prisma de vidro, de tal modo que um raio de luz
solar, que incidia sobre o buraco, pudesse ser refratado para cima em direção àparede oposta da câmara, formando ali uma imagem colorida do sol’”).
71 Guy Brett (2001:44), comentando a obra de Lygia Clark, toma também a lei-
tura de Crary e as conseqüências do modelo da câmera escura no corpo doobservador: “estrutura da visão definida pela invenção da camera obscura,
que separou o ato de ver do corpo como um todo”.
Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Rembrandt Harmenszoon van Rijn: Filósofo emFilósofo emFilósofo emFilósofo emFilósofo emmeditaçãomeditaçãomeditaçãomeditaçãomeditação (1631) (1631) (1631) (1631) (1631)
Camara escuraCamara escuraCamara escuraCamara escuraCamara escura (século XVIII) (século XVIII) (século XVIII) (século XVIII) (século XVIII)
152 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Entretanto, é com o surgimento da fo-
tografia, na década de 1830, que as questões
que dizem respeito à tecnologia e cultura, às
relações homem-máquina na arte e ao signi-
ficado da mediação assumem lugar determi-
nante. Como diz Flusser (1986:67), seu signi-
ficado (da fotografia) não pode ser exagerado,
e o impacto de seu aparecimento na Europa do
século XIX emerge de diferentes formas em
inúmeros autores, seja como um fenômeno
liberatório - em Bazin -, seja como destruição
- em Benjamin -, ou como aparelho técnico
produtor de um imaginário que reunifica a
cultura - em Flusser (1998)72 ou Crary (1990)73.
Um sem número de autores74 dedicou-se ao
tema, e a abordagem que aqui se segue não se
pretende abrangente: não visa outro objetivo
do que fixar a discussão nos termos propostos
- um breve exame dos modos de significação
das próteses tecnológicas.
Em Ontologia da imagem fotográfica,
André Bazin (1991:19-26) define, a partir da
fotografia, as bases de uma influente reflexão
72 “A invenção da imprensa e a introdução da escola obrigatória generalizaram
a consciência histórica; todos sabiam ler e escrever, passando a viver ‘histori-camente’, inclusive camadas até então sujeitas à vida mágica: o campesinato
proletarizou-se. Tal consciencialização deu-se graças a textos baratos: livros,
jornais, panfletos. Simultaneamente, todos os textos tornaram-se mais bara-tos (inclusive o que está a ser escrito). O pensamento conceptual barato ven-
ceu o pensamento mágico-imagético [pensamento regido pelas imagens] com
dois efeitos inesperados. Por um lado, as imagens protegiam-se em ghettoschamados ‘museus’ e ‘exposições’, deixando de influir na vida cotidiana. Por
outro lado, surgiram textos herméticos (sobretudo os científicos), inacessíveis
ao pensamento conceptual barato, a fim de se salvarem da inflação textual ga-lopante. Deste modo, a cultura ocidental dividiu-se em três ramos: a imagina-
ção marginalizada pela sociedade, o pensamento conceptual hermético e o
pensamento conceptual barato. Uma cultura assim dividida não pode sobrevi-ver a não ser que seja reunificada. A tarefa das imagens técnicas é restabele-
cer o código geral para reunificar a cultura” (Flusser, 1998:37). O sintoma mais
imediatamente verificável da “imaginação” (tradução em imagem) dos textosserão os filmes, que tornam “visível a magia subliminar que se escondia nos
textos baratos”, apropriando-se vorazmente dos romances produzidos no sé-
culo XIX. O encadeamento dos aparelhos produtivos se faz ainda aqui perfei-tamente visível: progressivamente, boa parte dos escritores norte-americanos
(principalmente), escreverão já com o propósito de terem seus romances com-
prados e adaptados ao cinema. Um bom exemplo é Michael Crichton.
73 “Within this new field of serially produced objects, the most significant, in termsof their social and cultural impact, were photography and a host of related
techniques for the industrialization of image making. [...] photography and money
become homologous forms of social power in the ninetheenth century. They areequally totalizing systems for binding and unifying all subjects within a single
network of valuation and desire. As Marx said of money, photography is also agreat leveler, a democratizer, a ‘mere symbol,’ a fiction ‘sanctioned by the so-called
universal consent of mankind’. Both are magical forms that establish a new set
of abstract relations between individuals and things and impose those relationsas the real” (Crary, 1990:133).
(“Dentro desse novo campo de objetos produzidos em série, os mais
significantes, em termos de seu impacto social, foram a fotografia e um con-
junto de técnicas de industrialização da fatura de imagens a ela relacionadas.[...] A fotografia e o dinheiro tornaram-se formas homólogas de poder social
no século XIX. Elas são sistemas igualmente totalizantes na conexão e unifi-
cação de todos os indivíduos dentro de uma única rede de valoração e desejo.Com disse Marx a respeito do dinheiro, a fotografia é também um grande
nivelador, um democratizador, ‘um mero símbolo,’ uma ficção ‘sancionada pelo
chamado consenso universal da humanidade’. Ambos são formas mágicas deestabelecer um novo conjunto de relações abstratas entre os indivíduos e as
coisas e impor essas relações como o real”).
74 Arlindo Machado, Lúcia Santaella e Rubens Fernandes Jr. são alguns autoresbrasileiros que dedicaram-se à discussão do impacto da fotografia; Benjamin
e Flusser produziram textos seminais, comentados na discussão que se segue;
McLuhan também escreveu sobre a fotografia e sua abordagem completabastante bem as de Flusser e Benjamin. Bazin dedicou-lhe um texto que é re-
ferência aqui; Susan Sontag, cujo trabalho não aparece nesta tese, é também
uma freqüente referência no tema. As discussões em torno da fotografia sãoimensas e somente isto já bastaria para dar prova de sua relevância na cons-
tituição da cultura em curso em 2005.
Mundo sem ruído: A utopia digital 153
que visa o cinema. Bazin, cuja produção crítica extraordinária75 foi forma-
dora da geração da Nouvelle Vague francesa - Godard, Truffaut, Rivette,
Rohmer etc.76 -, marca também o apogeu de um modo de pensar o cinema
que se funda no encantamento com o espetáculo inaugurado pela
tecnologia; reflexão que não soube - ou à qual não coube -, porém,
problematizar a mediação tecnológica de que depende o filme. Nos textos
de Bazin, o suporte tecnológico permanece, como na sala de projeção, ou
como no filme de Beckett, invisível, às suas costas. É interessante retomar
suas posições centrais à luz da discussão que temos procurado conduzir,
visto que, sob vários aspectos, esse texto aparece como uma reiteração da
análise da fotografia e do cinema que Benjamin fizera sob as sombras do
fascismo, vestida agora, porém, de um otimismo humanista propulsionado
pela vitória dos aliados77. A chave da análise baziniana é a objetividade da
imagem do foto-cinematográfica, e, sob tal viés, a fotografia e o cinema são
vistos como fenômenos positivos, até mesmo liberatórios. Para Bazin, o
realismo mimético que emergira com a perspectiva escravizara a pintura
ocidental à aparência, ao ilusionismo da forma especular, alimentando um
“desejo puramente psicológico de substituir o mundo exterior pelo seu
duplo”, que “devorou pouco a pouco as artes plásticas” (Bazin, 1991:20) -
75 Sobretudo, a reflexão sobre a evolução da linguagem do cinema (Bazin,1991:66-81), que distingue um cinema “clássico” de um cinema “moderno”
a partir das relações entre a imagem do cinema e o real, e da minimização
dos efeitos de montagem através do emprego da profundidade de campo edo plano-seqüência é decisiva para a compreensão dos problemas formais do
discurso cinematográfico (ver também Xavier, 1977:54-81).
76 Não se trata de um feito trivial: que mais pode almejar um crítico além deformar uma geração de realizadores que mudaram a história de uma arte?
Nesse sentido, não deixa de ser curioso que Bazin tenha falecido em 1958,
às vésperas do início da Nouvelle Vague, já que Os incompreendidos (1959),de François Truffaut, dedicado ao crítico, é o marco inaugural do movimento.
77 Sobre Bazin e sua fé na imagem foto-cinematográfica, Ismail Xavier (1991:9-
10) escreve que a “conjuntura de vitória sobre o fascismo e de reconstruçãodo mundo dentro de uma nova ordem encontrou expressão numa análise da
cultura construída em termos de um humanismo renovado. [...] Nele [Bazin]
se articulam fé religiosa e humanismo técnico a conceber a produção indus-trial da imagem como promessa de conhecimento, um ‘estar em casa’ no pla-
neta, uma exploração iluminadora dos segredos do mundo.”
78 Respectivamente, os nomes a que se atribui a invenção da fotografia e do
cinema.
79 Esta frase extraordinária é também citada por Jean-Luc Godard (1999c:117)
em seu Histoire(s) du cinéma, capítulo 3b.
nesse sentido, aliás, vale notar o quanto esse
movimento corresponde ao da filosofia mo-
derna. Ao comprometer a imagem com a rea-
lidade horizontal da matéria, em detrimento
de seus laços com uma cosmologia vertical, es-
piritual, que caracterizara a pintura medieval,
a perspectiva mimetizara não apenas a aparên-
cia das coisas do mundo, mas a própria traição
de Adão:
“A perspectiva foi o pecado original da
pintura ocidental. Niepce e Lumière78
seus redentores.”79 [Bazin, 1991:21]
Tal redenção implica por um lado, re-
alizar, por meio da objetividade do aparato téc-
nico (despido do incômodo da subjetividade),
um projeto especular pelo qual o homem teria
sempre procurado salvar da morte, pela “cor-
rupção do tempo”, a si mesmo e às coisas, atra-
vés da preservação da aparência - o citado
154 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
“complexo de múmia”, que teria animado, para Bazin, a gênese das artes
plásticas. É curioso notar que, se a fotografia realizara, sobre a emulsão
química fotossensível, a reificação em escala industrial do olhar da Medusa
- não somente congelando a aparência das coisas nos sais de prata da pe-
lícula (como a mulher de Lot fora tornada em estátua de sal, lembra
Godard)80, mas ao mesmo tempo multiplicando a sua reprodução, como
notara Benjamin -, o que se poderia chamar, sem embaraço, de um mate-
rialismo implícito a essa automação científica do “ponto de vista”, o cine-
ma exponencializa essa apropriação materialista do real: captura não ape-
nas a substancialidade da luz - que já fora um feito singular da fotografia, e
que sem dúvida deve ser creditado de algum modo quando se fala na “fim
da aura” -, mas, finalmente, subjuga ao olhar indestrutível a própria
substancialidade do tempo. No cinema,
“consecução no tempo da objetividade fotográfica, [...] pela
primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração
delas, como que uma múmia da mutação.” [Bazin, 1991:24]
80 Mais recentemente, Godard (1999c:36), nas Histoire(s) du cinéma, cap. 3a (Lamonnaie de l’absolu) encontra essa imagem bíblica para exprimir o mesmo: a
transformação da mulher de Lot em estátua de sal é comparada à fixação dopassado nos “sais de prata da película”. O brilho desse achado genial, que
reitera o nosso argumento, é apenas arranhado por um erro do cineasta, que
confunde a mulher de Lot com as filhas: “les livres saints nous disent / qu’avantde partir en voyage/ les filles de Loth/ voulurent se retourner/ une derniére fois/
et qu’elles furent changées en statues de sel/ or, on ne film que le passé/ je
veux dire/ que ce qui se passe/ et ce sont des sels d’argent/ que fixent lalumière”. (“Os livros santos nos dizem/ que antes de partir em viagem/ as fi-
lhas de Lot/ desejando se voltar/ uma última vez/ e que elas foram transforma-
das em estátuas de sal/ ou, não se filma senão o passado/ posso dizer/ aquiloque se passa/ e são os sais de prata/ que fixam a luz”).
81 “Por diferentes caminhos, encontramos a mesma aposta de Bazin. Ela se des-
dobra em formulações certamente discutíveis com tem mostrado a produção
teórica mais recente, empenhada em assinalar os limites de seu idealismo, nateoria da imagem e do cinema moderno, nas expectativas históricas. Vivemos
seu futuro e tais limites são claros, o jogo está feito. [...] Distante deste [dos
frankfurtianos] e de outros diagnósticos sombrios (?), a cinefilia podia abrigara aposta de Bazin, viver o mundo da reprodução mecânica como promessa de
redenção, sem a melancolia barroca de uma reflexão mais recente (penso em
Barthes a prenunciar a morte no clic da máquina), sem viver o vazio do simu-lacro que a poluição imagética de hoje nos reserva. Podia então esperar, como
ocorrera no início do século, a harmonia entre ciência e arte, o espírito e a
matéria, técnica e estética, esta utopia da modernidade expressa de formaoriginal na obra de Bazin, canto de cisne dos evangelhos do cinema, sem dú-
vida o mais brilhante” (Xavier, 1991:14).
Por outro lado, essa espetacular e com-
pleta realização mecânica do projeto especular
resulta ser historicamente decisiva para as ar-
tes plásticas “artesanais”, já que
“Ao mesmo tempo sua libertação e
manifestação plena, a fotografia
permitiu à pintura ocidental
desembaraçar-se definitivamente de
sua obsessão realista e reencontrar sua
autonomia estética.” [Bazin, 1991:15]
O que Bazin sugere não é trivial: em
síntese, toda profusão de possibilidades esté-
ticas realizadas na pintura pela arte moderna
(com conseqüências extraordinárias nas lutas
simbólicas do século XX) é atribuída aí à inven-
ção da fotografia! Por muito que Bazin seja pos-
sivelmente o mais extraordinário dos autores
franceses cuja fé na imagem cinematográfica
tornava possível uma conciliação do par
antitético humano versus maquínico81, o que
pode por vezes passar despercebido em tal lei-
Mundo sem ruído: A utopia digital 155
tura otimista é a dimensão do impacto aí atribuído à fotografia na cultura
européia do século XIX. No mesmo texto, Bazin faz rápida menção a que,
“Liberado do complexo de semelhança, o pintor moderno o relega à mas-
sa” (Bazin, 1991:22), com o que se conciliam também certa inacessibilidade
da obra de arte moderna - e toda a agressividade com que esta se voltara
contra o imaginário dominante - e o espetáculo endereçado às massas - que
desejavam, como notara Benjamin, tudo mais próximo e acessível82. O
mundo de Bazin é um mundo conciliatório, que crê na redenção pela téc-
nica, e toda sua reflexão conduz na direção de um elogio que está longe de
ser trivial, deve-se reconhecê-lo, ao cinema neo-realista italiano - pelos
vínculos estreitos que este assume com a realidade italiana do pós-guer-
ra83. Não se pode deixar de notar, porém, que o “complexo de múmia”
baziniano, ao apostar na linearidade com que é comum se interpretar a
sucessão dos aparatos ópticos, da perspectiva ao cinema84, faz perder de
vista o “complexo de caleidoscópio”85 que anima essa industrialidade que
caracteriza, queira-se ou não, a inserção dos dispositivos maquínicos no
cotidiano.
82 Ver também Pintura e cinema (Bazin, 1991:172-7).
83 Aqui vê-se decisivamente a marca de Bazin sobre Godard, também para
Godard o cinema italiano das décadas de 1940 e 1950 constitui-se, pelo seu
encontro com a realidade do pós-guerra na Itália, o ponto culminante da his-tória do cinema no século XX. Ver Godard (1999c), e Histoire(s) du cinéma,
cap. 3a.
84 “A câmara escura de Da Vinci prefigurava a de Niepce” (Bazin, 1991:20).
85 Ao identificar-se com o espírito de massas que define o cinema - em diversosmomentos reitera a crença na força do filme para democratizar a pintura e os
livros -, e não localizar os conflitos que em muitos sentidos se faziam presen-
tes numa guerra simbólica então - e ainda hoje, em outros termos - em curso,Bazin deixa mesmo passar despercebido o significado da automação das
máquinas de visão. Como um extraordinário analista que não percebesse um
fragmento de discurso decisivo em seu paciente, afirma entusiasmado: “Nafotografia, imagem de um mundo que não sabemos ou não podemos, a na-
tureza, enfim, faz mais do que imitar a arte; ela imita o artista”. Aí está, na
substituição do olho humano pelas virtudes da objetiva, que permite à natu-reza desvencilhar-se do incômodo da mediação humana pela eficiência e trans-
parência da objetiva, o ato falho que trai o complexo de caleidoscópio.
86 “As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real. O re-flexo da calçada molhada, o gesto de uma criança, independia de mim distin-
gui-los no tecido do mundo exterior; despojando o objeto de hábitos e pre-
conceitos, de toda uma ganga espiritual com que minha percepção o reves-tia, poderia torná-lo virgem à minha atenção e, afinal, ao meu amor” (Bazin,
1991:24).
Pode-se notar então os parentescos de
Bazin com Benjamin, já que “arte moderna”,
“massa” e, sobretudo, “objetividade”, que
emergem no texto do crítico francês como par-
ticipando do campo de forças deflagrado pela
fotografia e pelo cinema na cultura, são ques-
tões centrais de A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica. Se Benjamin, por
exemplo, falara de um inconsciente óptico
aberto pela espetacularização da imagem do
real na tela de cinema, tornando visível aquilo
que passava despercebido no cotidiano - da
mesma forma que Freud fizera perceber mun-
dos insuspeitados no discurso verbal -, de for-
ma análoga, para Bazin, a “objetividade essen-
cial” da fotografia, ao tornar possível a fixação
das aparências do mundo, faz com que possa-
mos amar aquilo que não havíamos sido capa-
zes de ver, presos ao exercício limitado da vi-
são no dia-a-dia (Bazin, 1991:24)86. Essa
objetividade essencial, que define inequivoca-
156 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
mente um positivo específico da fotografia em Bazin, é problematizada,
porém, em Benjamin, que, sabe-se compara a relação entre o pintor e o
“operador” da câmara cinematográfica àquela estabelecida entre e o curan-
deiro mágico e o cirurgião (“operador”, também): enquanto o primeiro
preserva certa distância em relação ao paciente - a distância de sua auto-
ridade -, o segundo instaura a própria autoridade pela intervenção no in-
terior do corpo; a relação do pintor com a realidade é “global”, ao passo que
a do cameraman é a do cientista: fragmenta-a “num grande número de
partes, cada uma das quais obedece a leis próprias” (Benjamin, 1982:230).
Trocando em miúdos, a especificidade da câmera está na potência com que
devassa a intimidade do real.
Essa verificação de que o gesto do operador da câmera equivale
ao do cientista moderno se faz presente em outras das observações com
que Benjamin apreende o fenômeno cinematográfico, sobretudo no que
se refere às implicações dessa objetividade da imagem. A experiência do
cinema é, por exemplo, incompatível com aquela proposta pelo teatro,
onde ainda se pode experimentar a aura do ator, ao passo que a media-
ção da câmera impõe sobre esse seu próprio regime. Ator e público devem
submeter-se às condições do aparelho. O ator representa agora para a
câmera, que o submete a um teste, em que os vencedores são “a estrela e
o ditador” (Benjamin, 1982:226 n19); o público, para chegar até este,
deve identificar sua experiência não apenas com o ponto de vista, mas
com a própria lógica da câmera:
“A atuação do intérprete é assim submetida a uma série de testes
óticos: Esta é a primeira das duas conseqüências resultantes da
necessária mediação dos aparelhos entre a atuação do ator e o
público. A segunda decorre do fato de que o intérprete
cinematográfico, não apresentando suas ações pessoalmente, não
tem, a exemplo do ator de teatro, a possibilidade de adaptar sua
representação, enquanto ela se processa, às reações dos
espectadores. O público encontra-se, assim, na situação de um
expert cujo julgamento não é alterado por nenhum contato pessoal
com o intérprete. Só penetra intropaticamente no ator penetrando
intropaticamente no aparelho. Assume, portanto, a mesma atitude
que este aparelho.” [Benjamin, 1982:222-3]
Assim, o caráter positivo da catarse destrutiva imposta pela
tecnologia de mediação começa a ser desconstruído em outros termos −
Mundo sem ruído: A utopia digital 157
reside aqui a ambigüidade já comentada do texto benjaminiano. Não parece
fora de propósito afirmar que tal identificação (“intropática”), necessária
e mesmo espontânea para que se dê o espetáculo (faz parte do contrato
espectatorial), está aqui colocada em termos quase similares à narcose de
Narciso de McLuhan, ou do complexo funcionário-aparelho de Flusser, com
décadas de antecedência. É preciso, entretanto, verificar que condições
são estas dos testes, qual regime é este imposto, pela ordem da câmera, a
espectador e ator, e que consiste em seu modo próprio, tecnológico, de
operação − os valores inscritos em seu programa. Como Benjamin responde,
trata-se daquele em que todas as coisas são reduzidas à condição de objetos:
“Há algum tempo que bons conhecedores admitem que, como
escrevia Arnheim em 1932, no cinema, ‘é quase sempre
representando menos que se obtém mais efeito...’87 O último
progresso consiste em reduzir o ator a uma acessório, que se
87 A eficácia da interpretação “naturalista” no cinema narrativo é um dos achados
de Griffith. Bazin tem a esse respeito um texto onde define o caráter do ator nocinema segundo sua personalidade e não sua performance como ator. Godard
fará uso constante e irônico de tal caráter do ator no cinema, nomeando
freqüentemente seus personagens com o nome dos atores que os interpretam.
88 A que se acrescenta, em nota: “é o caso, por exemplo, da tentativa de certos
encenadores, como Dreyer em Joana D’arc, de suprimir a maquilagem dos
atores. Dreyer passou meses reunindo os quarenta intérpretes que deviamrepresentar os juizes no processo de inquisição. Sua busca assemelhava-se à
procura de acessórios difíceis de encontrar” (Benjamin, 1982:224 n18).
89 “As primeiras fotografias eram todas em preto-e-branco, mostrando que tinham
a sua origem numa determinada teoria da óptica. A partir do progresso daQuímica, tornou-se possível a produção de fotografias a cores. Aparentemen-
te, pois, as fotografias começaram por abstrair as cores do mundo, para de-
pois as reconstituírem. Na realidade, porém, as cores são tão teóricas como opreto e o branco. O verde do bosque fotografado é imagem do conceito ‘ver-
de’, tal como foi elaborado por determinada teoria química. O aparelho foi pro-
gramado para transcodificar um tal conceito em imagem. Há, por certo, umaligação indireta entre o verde do bosque fotografado e o verde do bosque lá
fora: o conceito científico de ‘verde’ apoia-se, de algum modo, sobre o verde
percebido. Mas entre os dois verdes interpõe-se toda uma série de codificaçõescomplexas. Mais complexas ainda do que as que se interpõem entre o cinzen-
to do bosque fotografado a preto-e-branco. Deste modo, a fotografia a cores
é ainda mais abstracta que a fotografia em preto-e-branco. Mas as fotografiasa cores escondem, para o ignorante em Química, o grau de abstração que lhes
deu origem. As brancas e pretas são, pois, mais ‘verdadeiras’. E quanto mais
‘fiéis’ se tornarem as cores das fotografias, mais estas serão mentirosas, es-condendo ainda melhor a complexidade teórica que lhes deu origem. (Exem-
plo: o ‘verde Kodak’ e o ‘verde Fuji’)” (Flusser, 1998:59-60).
escolhe como característico e se põe
em seu justo lugar.” [Benjamin,
1982:224]88
Trata-se da reificação, em bases
tecnológicas, do olhar da ciência, aquela que
produziu os textos científicos dos quais a
câmera é, dizia Flusser, “técnica aplicada”.
Que o olhar da câmera seja o olhar de uma certa
razão é algo que se pode reconhecer de outras
formas - “preto” e “branco” não são, por
exemplo, valores da experiência, mas o modo
como, de longa data, os pintores opuseram, na
técnica do desenho, as “qualidades primári-
as”, “objetivas” e estruturantes da imagem, às
“qualidades secundárias” das cores; e mesmo
aí, no terreno das cores, Flusser tem o conhe-
cido exemplo do “verde Fuji” versus o “verde
Kodak”, com que demonstra que as cores vis-
tas nas fotografias coloridas são teorizações,
abstrações radicais que buscam objetificar nas
camadas da emulsão fílmica esse incalculável
das cores vividas89. Por meio dessa instalação
de uma vasta superfície imagética codificada
158 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
segundo as determinações conceituais da técnica aplicada, multiplicada in-
dustrialmente, todo o olhar da cultura se adestra segundo o modo da
objetificação exercida pela aparelho - sobretudo pela sedução e pela fami-
liaridade com que aceitamos os dispositivos90. Benjamin percebeu antes,
e melhor que qualquer outro, a dimensão do vivido posta em jogo pela in-
tervenção dos aparelhos no campo perceptivo, quando definiu essa radi-
cal transformação do olhar não nos termos de uma redenção da liberdade
estética e poética da pintura, mas como a instalação inescapável de uma
nova ordem de experiência na cultura. A destruição do passado e a insta-
lação do presente, por via da liquidação da tradição. Sua descrição é de uma
síntese ao mesmo tempo abrangente, irônica e de uma lucidez prodigiosa
que se descola largamente das discussões que lhe eram contemporâneas:91
“Poder-se-ia dizer, de modo geral, que as técnicas de reprodução
destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição.
Multiplicando-lhe os exemplares, elas substituem por um
fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma
90 Também em Heidegger o olhar da câmera assume o mesmo caráter. Em De umaconversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador (1953/54),Heidegger (P) coloca as seguintes palavras como proferidas pelo Professor
Tezuka (J) , da Universidade Real de Tóquio, a respeito do filme Rashomon, de
Akira Kurosawa (1950):
“J- Ao dizer que o filme é realista, referia-me a outra coisa, completamente
diferente. Referia-me ao fato de o mundo japonês ter sido aprisionado pela
objetividade e colocado à disposição da fotografia.
P- Se ouvi corretamente, o senhor quer dizer que o mundo oriental e o mundo
técnico-estético da indústria cinematográfica são incompatíveis.
J- É o que penso. Qualquer que seja a qualidade estética de um filme japonês,já o simples fato de o nosso mundo ser apresentado num filme obriga-o a entrar
no âmbito do que o senhor chama de objetividade. A objetivação do filme é
uma conseqüência da europeização crescente.” (Heidegger, 2004:85).
Segue-se interessante diálogo sobre o teatro Nô japonês e as diferenças entreo modo do gesto de linguagem ocidental e o oriental.
91 A lucidez espantosa expressa por Benjamin nesse texto, razão de sua extraor-
dinária longevidade, poderia certamente ser atribuída às condições extremasem que foi escrito, no apogeu do nazismo. Outro de seus textos cujo impacto
é decisivo no curso da conversação que herdamos do século XX, Sobre o con-ceito de história, é seu último ensaio, escrito em 1940, sob o impacto do acor-do de 1939 entre Hitler e Stalin (a este respeito, ver Gagnebin (1996), WalterBenjamin ou a história aberta.
única vez. Permitindo ao objeto
reproduzido oferecer-se à visão ou à
audição em qualquer circunstância,
elas lhe conferem uma atualidade.
Estes dois processos conduzem a um
considerável abalo da realidade
transmitida: ao abalo da tradição, o que
é a contraface da crise que atravessa
atualmente [1935] a humanidade e de
sua atual renovação. Seu agente mais
eficaz é o filme. Mesmo considerado
sob sua forma mais positiva, e
precisamente sob esta forma, não
podemos apreender a significação so-
cial do cinema caso negligenciemos seu
aspecto destrutivo, seu aspecto
catártico: a liquidação do elemento
tradicional na herança cultural. Esse
fenômeno é particularmente sensível
nos grandes filmes históricos; quando
Abel Gance, em 1927, gritava com
entusiasmo:
Mundo sem ruído: A utopia digital 159
“‘Shakespeare, Rembrandt farão cinema... Todas as lendas, todas
as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de religiões e
as próprias religiões... esperam sua ressurreição luminosa, e os
heróis batem em nossas portas pedindo para entrar’ 92
“sem querer nos convidava para uma liquidação geral.” [Benjamin,
1982:213-4]
Quem seria capaz de dizer que o que está descrito acima não se apli-
ca à transição que a cultura ocidental ora atravessa, em direção a uma rea-
lidade mediada em toda a sua extensão, em todos os seus processos pro-
dutivos, em todos os seus processos de gestão, de produção de conheci-
mento e em todos os seus processos de comunicação, pelas tecnologias
digitais? Troquemos o cinema pelos computadores e teremos aí a mais
precisa definição daquilo que hoje atravessamos: a liquidação da experi-
ência que nos foi legada pelo século XX e a instalação de um regime de ex-
periência de uma ordem completamente diversa, segundo o impacto de-
cisivo e específico da mediação digital. Há pouco, no capítulo anterior,
dissemos que todo o sentido que podemos dar ao mundo brota da experi-
ência do mundo, do estar no território perceptivo instaurado na cultura.
Ora, se se aceita que a tecnologia modifica por completo tal experiência -
e quem poderá dizer ao contrário, frente ao cotidiano contemporâneo -,
pode-se inferir que se modifica no mesmo registro o sentido da experi-
ência, o campo de significado possível ao estar no mundo: liquidação ge-
ral. Re-inaugura-se a cultura.93
Uma vez transportado ao território de uma nova ordem de experi-
ência, qualquer instância da cultura não mais poderá ser percebida, com-
preendida, segundo a ordem de valores e o sentido de mundo a que um dia
pertenceu. É um enorme equívoco, em termos da experiência deflagrada
- seja pelo processo de criação, seja pelo de fruição - dizer, por exemplo,
que as versões de Shakespeare levadas, no século XX, à tela, por, digamos,
92 Gance (1927:94-6), apud Benjamin (1982:214).
93 De um modo talvez menos enfático, Benjamin já o havia notado (a propósito
dos opositores que tentam invalidar a fotografia por seu caráter tecnológico,conforme exemplo dado acima) em Pequena história da fotografia (1931): “E
foi com este conceito fetichista de arte, fundamentalmente antitécnico, que
se debateram os teóricos da fotografia durante quase cem anos, naturalmen-te sem chegar a qualquer resultado. Porque tentaram justificar a fotografia
diante do mesmo tribunal que ela havia derrubado” (Benjamin, 1996:92).
160 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Orson Welles (Othello, 1952) ou Lawrence Olivier (Henrique V, 1944) - para
citar algumas das consideradas “mais fiéis” aos textos originais - consti-
tuem ou restituem uma experiência de teatro elizabetano. O sintoma de-
cisivo, por fim, da liquidação de uma ordem de experiência e da instalação
de um novo regime perceptivo pela intervenção da tecnologia, em que se
funda um novo “mundo da minha familiaridade” - em que se deposita a “fé
perceptiva” e se experimenta um sentido de mundo que emerge de um novo
campo perceptivo - está, já vimos mesmo há pouco, na impossibilidade de
autores extraordinários como André Bazin e Maurice Merleau-Ponty per-
ceberem a especificidade do regime tecnológico: tanto Bazin como
Merleau-Ponty pertencem à geração que cresceu após a consolidação da
experiência do cinema, não assistiram à enorme transformação que este
impôs, ao contrário de Heidegger - que, vindo de uma infância no interi-
or da Alemanha, experimentou o choque da tecnologia desfazendo suas
memórias e suas moradas (Loparic, 2004) -; ou de Benjamin, que experi-
mentou, em sua infância, os panoramas e a Berlim anterior à rápida con-
solidação do cinema como uma linguagem de enorme empatia com o es-
pírito moderno das massas. Tal empatia não se deve somente ao desejo de
ter as coisas “próximas” e “idênticas”, como notou tão claramente Benja-
min. O realismo, sob a onipresença da objetividade da ciência, marcara
todo o século XIX. O cinema praticamente celebra a chegada do século XX
- uma posição histórica investida de enorme carga simbólica -, e sucede
rapidamente à fotografia, associando, à reprodução mecânica do real, o
tempo: o movimento e a duração das coisas vistas, como mostrou Bazin. A
consolidação da lógica narrativa do cinema de massas, por meio da mon-
tagem clássica - a decomposição da cena em várias tomadas, segundo a
análise racional da ação - consagra o filme comercial como o entreteni-
mento dominante da primeira metade do século XX, uma força de enorme
empatia e poder coercivo frente ao imaginário das massas urbanas. Essa
disposição do mundo como objeto de meu olhar, a apropriação da reali-
dade através da sua fragmentação analítica linearizada em termos narra-
tivos e em bases mecânicas configura, enfim, o cinema comercial domi-
nante, que seduz também grandes intelectuais como Benjamin, Merleau-
Ponty, Bazin, e outros. Não poderia ser mais natural: narrativa, máquina e
análise e apropriação do real através de sua fragmentação são algumas das
marcas mais fortes da modernidade, que o cinema (industrial) reifica e
expande na forma de mercadoria multiplicável. Que Baudry (1983), já na
década de 1970 - pós-McLuhan, portanto -, tenha posto finalmente uma
interrogação sobre as implicações ideológicas da base tecnológica do ci-
Mundo sem ruído: A utopia digital 161
nema, verificando ali, na experiência do es-
pectador na sala escura, diante das imagens
especulares e perspectivistas da projeção, o
prazer multiplicado de um “super-sujeito” -
identificado ao ponto de vista de uma câmera
móvel e de uma montagem que torna seus po-
deres de observação onipresente quase divi-
nos -, é o corolário natural: o efeito-sujeito94,
descrito por Baudry, dava a cada cidadão co-
mum, convertido em espectador, a ilusão por
cerca de duas horas, de ser o onipresente e
poderoso sujeito moderno, que domara a na-
tureza e todas as coisas - tal qual o cientista, o
filósofo, o artista: o herói moderno, enfim.
Anthony Perkins: Anthony Perkins: Anthony Perkins: Anthony Perkins: Anthony Perkins: Le ProcèsLe ProcèsLe ProcèsLe ProcèsLe Procès (Orson Welles, 1962) (Orson Welles, 1962) (Orson Welles, 1962) (Orson Welles, 1962) (Orson Welles, 1962)
94 Em Cinema: efeitos ideológicos do aparelho de base, Jean-Louis Baudry (1983)
sugere, a partir da discussão do modelo do sujeito na pintura perspectivista e
do estádio do espelho lacaniano, a efetivação de um “efeito-sujeito”, quan-do da experiência de se assistir a um filme narrativo: o espectador, identifica-
do-se com a câmera - sua mobilidade e multiplicidade de pontos de vista -,
experimenta uma multiplicação da impressão de “fonte do sentido” do mun-do: sente-se uma espécie de “super-sujeito”, e daí a fonte do seu prazer. Baudry
igualmente assinala esse curioso modo de operação do filme, cujo efeito (con-
tinuidade) depende da ocultação de seu modo de operação (descontinuidade)- o que tão somente confirma a maneira como definimos a tecnologia, pela
automação de um saber técnico e sua dissimulação.
Verificamos que o dispositivo tecnológico, explicitação peculiar da
percepção do Ocidente, intervém nesse campo perceptivo de onde emer-
ge, instalando um regime que lhe é próprio, por meio de sua inserção no
cotidiano. Tal regime parece estar em acordo com um modo de lide com o
mundo que caracteriza certo saber inscrito na caixa-preta: o cinema, por
exemplo, fruto de uma ciência fundada na potência do sujeito em subme-
ter todas as coisas à condição de seus objetos - ou, ainda, de suas
“constanteações”, estoque de imagens para filmes, porque não? -, reifica esse
olhar nas superfícies sintagmáticas e na experiência espectatorial que ins-
tala na sala escura. Tal potência de reificação dos valores e saberes que in-
formam sua gênese, através da dissimulação e de sua disseminação, por
162 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
meio do hábito, nas práticas cotidianas, inaugura uma nova ordem de ex-
periência e daí a característica ilusão de reinauguração do mundo e de seu
sentido que é atributo dessa potência caleidoscópica da mediação
tecnológica. Mas falávamos acima de uma utopia digital, e as reflexões que
procuramos esboçar acima não eram senão a tentativa de estabelecer al-
guns parâmetros que permitissem, afinal, que se tente sugerir qual o pro-
jeto de mundo, quais os valores que, podemos agora dizê-lo com alguma
razão, parecem ser articulados pelos dispositivos digitais, e que, podería-
mos supor, estariam dissimulados na experiência agenciada pelo parque
digital que ora se instala de maneira global.
As tecnologias digitais são o ponto culminante de uma cadeia de
dispositivos intimamente associada ao projeto racional do mundo que ca-
racteriza a era moderna. Tê-las assim, como ápice de uma certa forma de
lidar com o mundo, pode decorrer, é claro, de que é essa a tecnologia que
articula todas as instâncias do presente neste início de século XXI, de tal
modo que não surpreende que apareça a nós como conclusiva - pode ha-
ver, em curso, universos tecnológicos que se venham a instalar e que ul-
trapassem as possibilidades abertas pelos aparatos digitais, mas não somos
capazes de concebê-los. De há muito, aliás, temos vindo imaginando, na
ficção como na prática científica, o mundo administrado sob a tutela des-
ses computadores - ao qual, finalmente, parecemos ter chegado. E quan-
do se lança os olhos por sobre diferentes abordagens da presente cultura
digital, esta sempre aparece, de diferentes modos, como a conclusão de
uma narrativa - aliás, chegou-se mesmo a falar, recentemente, em “fim da
história”95, embora a partir de problemas bastante diversos daqueles que
temos procurado tratar. Assim, aqui e ali o parque digital reaparece em
chave teleológica, como realização do projeto pitagórico de um mundo re-
95 Francis Fukuyama: The end of history and the last man. New York: Free-Press,
1992. Poder-se-ia argumentar que esse fim da história, pela ausência de umapolarização de forças imperiais, como propôs Fukuyama, não é de todo sepa-
rável de uma vitória tecnológica dos EUA sobre a URSS.
96 Também Benjamin, em Rua de mão única, parece fazer uma espécie de apolo-
gia aos modos de escrita que o computador parece inaugurar, quando escre-ve: “A máquina de escrever só tornará alheia à caneta a mão do literato quan-
do a exatidão das formações tipográficas entrar imediatamente na concepção
de seus livros. Provavelmente serão necessários então novos sistemas, comconfigurações de escrita mais variável. Eles colocarão a inervação dos dedos
que comandam no lugar da mão cursiva” (Benjamin, 1997:29).
duzido a números; como reprodução integral
dos processos de pensamento; como síntese de
todas as matrizes da linguagem (sonora, visu-
al, verbal); como convergência de todas as
mídias; como reunificação do campo sensorial
(cindido na modernidade, como veremos mais
adiante); como instrumento que permite a
conclusão do projeto poético deflagrado por
Mallarmé em Un coup de dés (1897) - em
direção à concretude verbivocovisual da pala-
vra, como sugerem os poetas concretos brasi-
leiros96 -; como ferramenta pela qual todas as
Mundo sem ruído: A utopia digital 163
formas de ciência se praticam hoje; como má-
quina terminal do ciclo das máquinas de ima-
gem do Ocidente - perspectiva, câmera escu-
ra, fotografia, cinema, televisão, vídeo,
infoimagens97. Mesmo para Heidegger, a ci-
bernética é a destinação final da história do
saber técnico “encomendado” pela metafísica
grega, é a “cientificidade terminal”98. Por toda
parte a que o ciberpresente comparece, vem
vestido nos trajes de tecnologia final, pela qual
todo um sonho científico e tecnológico torna-
se realizável99. De fato, das fantasias sugeridas
pela ficção científica, a partir de Jules Verne,
talvez a única que permaneça irrealizada é a
idéia de um teletransporte - obsessão do trans-
porte de seres vivos e objetos por via da
97 Esta série é descrita por Dubois (2004) como uma seqüência progressiva deabstrações tecnológicas: a perspectiva (com seus dispositivos de
enquadramento) e a câmera escura são máquinas de “ordem um”, pois rea-
lizam a tarefa do olho de enquadrar o espaço indefinido; a fotografia é de“ordem dois”, pois autonomiza o gesto da mão, deixando a tarefa de produ-
zir a imagem ao olho (como notara Benjamin); o cinema é máquina de “or-
dem três”, pois retira a imagem da materialidade (ainda) manipulável do pa-pel e automatiza a projeção; a televisão e o vídeo (sobre os quais não nos
detivemos) são de “ordem quatro”, já que dispensam o arsenal de revelação
e montagem para automatizar a transmissão em tempo real; finalmente, asinfoimagens (imagens digitais) são de “ordem cinco”, já que concluem a nar-
rativa das máquinas de imagem abstraindo, por fim, o próprio real, que é pro-
duzido na própria máquina e já não é mais um referente da imagem.
98 “A nova ciência fundamental, diz Heidegger num texto de 1966, é a ciberné-
tica, ‘teoria do controle de planificação e de organização do trabalho huma-
no’, teoria que, acrescenta ele, ‘constrói a linguagem para o intercâmbio deinformações’. O traço fundamental da cientificidade terminal ‘é o seu caráter
cibernético, isto é, técnico’. Agora, todas as categorias têm exclusivamente a
função cibernética, tendo perdido ‘qualquer sentido ontológico’ que aindapossuíam em Kant. O domínio sobre o saber é exercido pelas operações e
modelos do pensamento representacional calculador.” (Loparic, 1996:129)
99 Vide a voracidade da busca pela solução dos enigmas da consciência peloemprego de máquinas de imagem digitais e pelo deciframento do genoma
humano, também por via do poder de simulação e cálculo dos aparatos
computacionais.
100 Dirigido por Kurt Neumann, 1958. Refilmado por Cronenberg em 1986 e lan-
çado no Brasil como A mosca.
101 “Starting with his Dissertatio de arte combinatoria, of 1666, he [Leibniz] wasconcerned with the dream of a perfect, logical language. To this end Leibniz
worked on a number of schemes involving the use of numbers to represent
concepts, which could then be manipulated to determine whether statementswere true or false. This was paralleled by his interest in calculating machines,
which he built and which he saw as being able to undertake some of these
logical processes of induction, as well as his development of binary notation.[...] Though after his death his work in logic and language was largely neglected
in favor of other aspects of his work, he is now seen as having anticipated
many of the developments surrounding computer. His intention to formalizetought in a logical system clearly anticipates both the development of
programming languages and of Artificial Intelligence” (Gere, 2002:29-30). (“A
começar de sua Dissertatio... , de 1666, Leibniz estava interessado no sonhode uma linguagem lógica perfeita. Para este fim, Leibniz trabalhou em diver-
sos esquemas envolvendo o emprego de números para representar concei-
tos, que podiam então ser manipulados para se determinar se as afirmaçõeseram verdadeiras ou falsas. Isto foi feito paralelamente ao seu interesse por
máquinas calculadoras, que ele construiu e que via como sendo capazes de
realizar alguns desses processos de lógicos indutivos, bem como seu desen-volvimento de notação binária.[...] Apesar de que após a sua morte suas
pesquisas em linguagem e lógica terem sido negligenciadas em favor de ou-
tros aspectos de seu trabalho, ele hoje é visto como tendo antecipado muitosdos desenvolvimentos ligados ao computador. Sua intenção de formalizar o
pensamento num sistema lógico antecipa claramente tanto o desenvolvimento
de linguagens de programação como da Inteligência Artificial”).
desmaterialização e rematerialização que
deflagra o pesadelo de A mosca da cabeça bran-
ca,100 mas que no seriado Jornada nas estrelas é
tido como tecnologia totalmente elucidada.
Poderíamos, do mesmo modo, dizer que os
computadores são uma espécie de máquinas
que realizam um certo ideal cartesiano, já que
finalmente dispensam as ilusões da experiên-
cia direta e dispõem à manipulação simples-
mente os calculáveis, os matematizáveis, as re-
presentações exatas do mundo: mas então
estamos no ponto de inflexão da modernidade,
em que se consolida este poderoso encontro
entre a matemática e a metafísica que deságua
na ciência moderna, e não é simples obra do
acaso que Leibniz já propusesse uma “lingua-
gem perfeita”, a formalização lógica de todo o
pensamento, vista hoje como uma antecipação
pioneira de problemas tematizados pelas lin-
guagens de programação e pelas pesquisas em
Inteligência Artificial101. Gostaríamos de suge-
rir, então, que os computadores contemporâ-
neos estão fortemente ligados não apenas à
164 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
questão da técnica - nos termos que já discutimos -, mas mais intimamente
ao projeto de mundo levado a cabo na modernidade, que progressivamente
se mostra como a utopia de um mundo sem ruído.
Ao cabo do século XVII, o exercício metódico da razão, formaliza-
do por Descartes e praticado pela consciência burguesa emergente, defi-
ne a passagem para a modernidade102. Mas é o século XVIII, através dos fi-
lósofos iluministas, em conjunto com os êxitos da ciência - sobretudo
Newton - que determina, sabe-se, a preponderância do poder da razão, e
estabelece-se aí um caráter ordenador que quer estender essa razão a to-
dos os níveis do cotidiano: um projeto de mundo. Como lembra Menezes,
citando Habermas, “na sua fundação, a utopia liberal do Iluminismo for-
mulava um projeto de modernidade que atribuía lugares às coisas e con-
sistia ‘nos seus esforços para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade
e a lei universal, e a arte autônoma de acordo com a suas lógicas internas’”
(Menezes, 2001:39). Por meio da Revolução Industrial (que se processa na
Inglaterra ao longo do século mas se consolida com a máquina a vapor, por
volta de 1770) e da Revolução Francesa (favorecida pela força das desco-
bertas técnicas que tornam a ordem econômica fundiária insustentável)103,
a Europa assistirá à liquidação da velha ordem e ao estabelecimento das
condições da consolidação e expansão de um capitalismo monopolista no
século XIX. A filosofia das luzes, fundada na certeza do cogito cartesiano, e
que celebra a potência da “visão de mundo” e a apropriação do real por meio
da representação visual e das tecnologias visuais - mapas, telescópios etc.
-, lida mal, porém (vimos no capítulo anterior), com aquilo que não se
submete ao regime da luz. Como diz Ceitil (2001:38), “A não evidência do
102 “Todo o século XVII é atravessado pela crítica acerca da tradição culturológica
européia. Da história então conhecida, considerada como discurso retórico efalseador, à teologia, então refratária a incorporar os dados fornecidos pelas
descobertas, viagens e explorações recentes, passando pelo direito (Grocius),
pela filosofia (Locke, Spinoza, Leibniz), pela literatura (Boileau e Pope), pelacrítica dos costumes (Pierre Bayle ...), por todos esses ataques, esperanças,
recuos e promessas, a razão procura impor sua supremacia sobre os princípios
da autoridade e da tradição absolutistas” (Costa-Lima, 1982:29)
103 “Tal modo de racionalização [contábil, capitalista] não se daria, entretanto,
apenas pelo equilíbrio contábil, ou porque, de repente, o homem acedesse em
desenvolver, encantado, seu senso prático nos negócios. A racionalizaçãoempresarial muito menos teria tido condições de vencer por si mesma a polí-
tica aristocrático fundiária da França pré-revolucionária e da Espanha, caso não
fosse acompanhada e beneficiada pelo surto de descobertas e aperfeiçoamen-tos técnicos” (Costa-Lima, 1982:36).
pensamento que se afasta do modelo da luz é
algo de ameaçador para um pensamento que
não está aberto ao regime da incerteza, do erro,
da falha, da incompletude. O pensamento
constrói-se segundo o modelo do visível ten-
do em vista a eficácia, a verdade, a ausência de
erro.” No conjunto desse empenho raciona-
lizante já estava, vimos, a utopia leibniziana de
uma linguagem lógica perfeita. Os valores da
razão iluminista definem o esforço tecnologi-
camente sustentado de organização produtiva e
disciplinar que caracterizará o século seguinte.
Mundo sem ruído: A utopia digital 165
Com a liberação da produção (e do lucro) das amarras do trabalho
artesanal, sob o império da técnica, o século XIX realiza uma total trans-
formação na paisagem européia: migração do campo para as cidades, ex-
pansão da economia de mercado, definição de novas relações de trabalho
e de métodos de administração e controle de uma sociedade progressiva-
mente mais complexa - um processo conhecido, de modo geral, como a
consolidação do capitalismo104. Numa sociedade que assume, desde então,
ritmo progressivamente acelerado ditado por sucessivos avanços
tecnológicos105, que servem à sua ordenação racional segundo as deman-
das da produção e circulação de mercadorias, da multiplicação das
transações comerciais e da expansão do mercado, a crescente
complexificação do gerenciamento social e as demandas pela administra-
ção e incremento da produção fazem emergir um sem número de estraté-
gias e máquinas. Estabelece-se uma lógica da abstração, padronização e
mecanização em todos os níveis: mercadorias serão padronizadas em nome
da produtividade industrial e semiotizadas em termos de valor de troca; o
104 Costa-Lima (1982:36-7) cita Weber: “‘... Só podemos dizer que toda uma épo-
ca é tipicamente capitalista quando a satisfação das necessidades se acha,
conforma a seu centro de gravidade, orientada de tal modo que, se imagina-mos eliminada esta forma de organização, fica em suspenso a satisfação das
necessidades [...] A premissa mais geral para a existência do capitalismo mo-
derno é a contabilidade racional do capital como norma para todas as gran-des empresas lucrativas que se ocupam da satisfação das necessidades coti-dianas’”. As conhecidas contradições sociais criadas pelo capitalismo são
associadas à aplicação dessa razão contábil - razão dirigida - à esfera daadministração empresarial que visa ao lucro, de tal modo que ‘tudo o que não
é diretamente abrangido por seu raio de ação resta sujeito à irracionalidade
provocada pela própria área privilegiada do sistema. [...] a irracionalidadesistêmica é assim a contraparte natural da racionalidade empresarial’. Foi, no
entanto, o desenvolvimento da tecnologia que ‘forneceu a contraparte devi-
da para a expansão da economia de mercado’. Pois, como sintetiza Weber,permitiu: a ‘emancipação da técnica e, correlativamente, da possibilidade delucro quanto aos vínculos que ligavam o homem às matérias do mundo orgâ-nico. [...] A mecanização do processo produtivo mediante a máquina a vaporliberou a produção das travas orgânicas do trabalho, [...] Por último, graças à
associação com a ciência, a produção de bens econômicos emancipa-se das
travas que a ligavam à tradição’” (os grifos são de Costa-Lima).
105 McLuhan (2001:83) diz, citando Whitehead, que “a grande descoberta do
século XIX foi a descoberta da técnica da descoberta”.
106 Nasce aqui, em meados do século XIX, sob o nome de C-T-R (Computing
Tabulating Recording Company) a empresa que em 1924 receberia o nomemais adiante o nome de IBM (Gere, 2002:35).
processo de manufatura será dividido em eta-
pas de maneira a tornar-se mais eficaz e dis-
pensar o trabalho especializado; os indivídu-
os serão, assim, pensados como peças
permutáveis, dispensáveis e controláveis,
numa estrutura de trabalho maquínica. A ne-
cessidade de controlar de forma rápida e efi-
caz dados e números que dizem respeito ao
gerenciamento da produção, dos negócios, das
transações financeiras, dos indivíduos, faz
com que sejam desenvolvidas técnicas de or-
ganização, produção e gerenciamento
informacional, materializadas em diversos
dispositivos tecnológicos - máquinas de cal-
cular, máquinas de tabular dados, máquinas
registradoras, sistemas de arquivos, máquinas
de escrever.106 Faz parte deste contexto o
Difference Engine, máquina que elabora tabelas
matemáticas para a navegação e produção, cri-
ado pelo inglês Charles Babbage e comumente
considerado um antecedentes dos computa-
dores modernos, que marca, nas palavras de
Gere (2002:25), “a link between calculating
166 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
machinery and rational industrial management that has never since been
broken”107. Também o telégrafo, criado na década de 1840, pertence a essa
demanda pela circulação de informações, permitindo não apenas agilizar
e remodelar negócios e mercados, mas também, e sobretudo, controlar a
rede ferroviária e as operações militares. Vai se estabelecendo aí esse laço
permanente entre tecnologia e poder - político, econômico, militar, não
necessariamente nessa ordem - que, sabemos, é operante até hoje108.
Do mesmo modo, o dispositivo de tabulação e armazenamento de
dados em cartões perfurados, criado por Hollerith para o censo norte-
americano, em 1880, e que permitia definir a identidade individual de
107 “um elo entre a maquinaria de cálculo e o gerenciamento industrial que não
será mais desfeito”.
108 Sobre o telégrafo, ver por exemplo, Mattelart (1994:19-20). Gere (2002:31)
associa a invenção do telégrafo à instalação inicial da “sociedade da informa-
ção”: “The tellegraph offered a means of coordinating and organizing therailways, thus initiating one aspect of what James beniger calls ‘the control
revolution’, which, for Beniger, represents the ninetheenth century beginnings
of the ‘Information Society’, commonly supposed to be a more recentphenomenon”. (“O telégrafo oferecia um meio de coordenar e organizar as
estradas de ferro, iniciando portanto um aspecto daquilo que James Beniger
chama ‘a revolução do controle’, que, para Beniger, representa o início, no sé-culo XIX, da ‘Sociedade da Informação’, normalmente tida como um fenôme-
no mais recente”).
109 ver Gunning (2001).
110 A respeito da inquietação gerada pela aceleração e abstração do cotidiano noséculo XIX, Gere (2002:28) cita uma interessante charge publicada num jornal
norte-americano: “An American cartoon of the 1870s showed a rag doll next
to a notice declaring that it is ‘a real baby by the Act of Congress’, being offereda piece of paper upon which it is written ‘This is milk by the Act of Congress’,
while on the wall there are a number of pictures, including one of a house
inscribed with ‘this is a house and lot by act of the architect’ and one of a cow,similarly declaring ‘this is a cow by act of the artist’. Beneath is a banknote saying
‘this is money by the Act of Congress’. Here it is possible to see the prefigurings
of both our current concern with virtuality and simulacra and of the anxietiessuch concepts generate.” (“Um cartum americano dos anos 1870 mostrava uma
boneca de pano ao lado de uma nota declarando que ‘este é um bebê real por
Decisão do Congresso’, à qual se oferecia um pedaço de papel sobre o qualestava escrito ‘Isto é leite por Decisão do Congresso’, enquanto na parede havia
diversas imagens, incluindo uma de uma casa com a inscrição ‘isto é uma casa
e um terreno por decisão do arquiteto’ e uma de uma vaca dizendo ‘isto é umavaca por decisão do artista’. Abaixo há uma nota de papel-moeda dizendo ‘isto
é dinheiro por Decisão do Congresso’. Aqui, pode-se ver uma antecipação das
nossas questões correntes quanto à virtualidade e ao simulacro, e das ansie-dades que esses conceitos provocam.”).
111 Ver Gere (2002:26-7).
acordo com um conjunto de dados e padrões
determinados e arquiváveis, caracteriza bem
aquilo que, mais tarde, Foucault chamará de
“sociedade da vigilância” - a imposição de dis-
ciplina por meio do controle do indivíduo, que
assume, tal qual as mercadorias, o caráter de
um elemento calculável, controlável e
permutável, tanto em seu papel social como na
linha de montagem. Nesse mesmo contexto de
circulação e administração de signos em escala
multiplicada de que fazem parte a invenção do
telégrafo, a máquina de Hollerith e as máqui-
nas de lojas e escritórios, participam a fotogra-
fia - multiplicando a circulação de imagens, e
também rapidamente empregada em sistemas
de identificação criminal -,109 e, sobretudo, a
disseminação do uso do papel moeda e de ou-
tras formas de crédito, que instalam uma rea-
lidade em grande medida fundada na abstração
e no campo simbólico110. Na ciência, entre os
inúmeros avanços realizados no século XIX,
assiste-se ao ultrapassamento do paradigma
mecanicista pelo da termodinâmica, com
Helmholtz, Clausius e Kelvin. A noção de
entropia, definida por Clausius como “tendên-
cia do universo ao equilíbrio termodinâmico”,
será mais tarde comparada, por Boltzmann à
“perda de informação”111. Essa redefinição por
Boltzmann da idéia de entropia dá contraprova
Mundo sem ruído: A utopia digital 167
da crescente importância que assume, ao curso do século XIX, a questão da
informação, no gerenciamento de valores, mercadorias e indivíduos, den-
tro das demandas regulatórias de uma ordem social produtiva fundada na
tecnologia e na administração do real por meio da manipulação de signos.
A importância que assume a noção de informação - e todas as pos-
sibilidades de controle social e produtivo por meio da abstração e da re-
presentação que aí estão implicadas -, bem como a lógica booleana - em que
todos os elementos da lógica algébrica podem ser reduzidos a “0s” e “1s” -
, formulada por George Boole em dois trabalhos por volta de 1850112, são
legados do século XIX que serão decisivos para a emergência de uma
tecnologia informática no século seguinte. Mas, mais do que isso, é impor-
tante perceber que, no projeto moderno de instalação do mundo, associ-
ado normalmente ao Iluminismo, e levado a cabo através da aliança entre
a razão, a ciência e o poder político, econômico e militar (sempre entrela-
çados), a questão da informação emerge pelas demandas da velocidade, da
matematização do real - para efeito de representação e controle -, da
permutabilidade e da reprodutibilidade - de mercadorias e signos -, da efici-
ência de todos os processos planejados, da produtividade como razão de ser
de todos os empreendimentos sociais. É num contexto em que todos este
valores são já operacionalizados tecnologicamente, e constituem a regên-
cia técnica de um grande aparelho maquínico social - em que, como lem-
112 “The work of the self-taught mathematician George Boole in formulating
symbolic logic would become a crucial element in the future development ofinformation technologies. Boole made a number of brilliant contributions to
mathematics, but his most famous was to be found in his books Themathematical analysis of logic [1847] and An investigation in the laws ofthought [1854]. In these works he succesfully applied algebraics methods to
logic, thus allowing logical relations to be calculated in a mathematical manner.
One of Boole´s insights was that his algebraic logic worked using only twonumerical values, 1 and 0, which could stand respectively for the universe and
nothing” (Gere, 2002:29). (“O trabalho do matemático autodidata Geroge
Boole na formulação de lógica simbólica iria se tornar um elemento crucialno desenvolvimento futuro das tecnologias de informação. Boole fez diversas
contribuições brilhantes à matemática, mas as mais famosas estão em seus
livros A análise matemática da lógica e Uma investigação sobre as leis do pen-samento. Nessas obras ele aplicou à lógica métodos algébricos com êxito,
permitindo antão que relações lógicas fossem calculadas de modo matemá-
tico. Um dos insights de Boole foi que sua lógica algébrica operava com ape-nas dois valores numéricos, 1 e 0, que representariam, respectivamente, o uni-
verso e nada”).
bra Costa-Lima (1982:36), somos convertidos
em “jogadores aos quais não se perguntou se
queriam jogar” -, e em que o telefone, o rádio
e o cinema se somam à crescente circulação de
signos, que as idéias que constituem a
tecnologia digital tomam corpo. No correr dos
anos 1930, as tecnologias informacionais
avançam a passos largos, parte de um cenário
de já ostensiva presença tecnológica, em que
começam a aparecer, dissemos, reflexões que
problematizam a técnica. Ao curso da década
em que Aldous Huxley escreve seu Admirável
mundo novo (1931) - uma crítica severa à ins-
talação de uma ordem social rigorosa por meio
da racionalização de todos os processos soci-
ais, incluindo a seleção genética e o consumo
de drogas de felicidade -, e Benjamin escreve
A obra de arte... (1935), H.G. Wells propõe, num
168 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
verbete para a Encyclopédie Française, uma “enciclopédia mundial perma-
nente” (Gere, 2002:39) - idéia que vinha sendo perseguida também pelo
pacifista belga Paul Otlet. Simultaneamente, Alan Turing, na Inglaterra
(1936), propõe os conceitos centrais para uma “máquina de estados”, ca-
paz de resolver por procedimentos algorítmicos quaisquer problemas
matemáticos113, ao passo que Claude Shannon escreve nos Estados Unidos
sua dissertação de mestrado114 - base da sua Teoria da Informação -, e di-
versos engenheiros, nos Estados Unidos e na Europa, desenvolvem dispo-
sitivos calculadores e computadores que constituem passos decisivos em
direção aos computadores modernos115. São, essencialmente, poderosas
calculadoras, que não almejam ainda a manipulação simbólica, nem
tampouco possuem memória.
A II Guerra Mundial será o catalisador da invenção do computa-
dor e da formalização das idéias que constituirão, no pós-guerra, todo um
novo universo discursivo, em que emergem os computadores modernos.
O enorme esforço de guerra exige notáveis avanços tecnológicos, dada a
necessidade de calcular alvos, produzir radares, decifrar códigos e mes-
mo produzir armamento - o Projeto Manhanttan empregou diversas des-
sas máquinas nos enormes cálculos necessários ao desenvolvimento das
bombas atiradas sobre Hiroshima e Nagasaki. Ao final do conflito, os al-
tos investimentos feitos em pesquisa resultarão nas primeiras máquinas
com o perfil dos computadores modernos: na Inglaterra, o MK-I já pos-
sui memória eletrônica, e leva em conta a questão não mais apenas do cál-
113 É importante notar que o trabalho de Turing, em resposta ao
Entscheidungproblem de Hibert - que solicitava um algoritmo geral para to-das as equações matemáticas -, conquanto o mais bem sucedido e mais co-
nhecido, não foi, naturalmente, o único trabalho abordar o problema dos
algoritmos (Penrose, 1993:35). Qualquer história da computação faz men-ção à obra de Turing, mas uma boa exposição, bastante didática da Máquinade Turing, a máquina de estados conceitual que é decisiva para o concepção
dos computadores modernos, pode ser lida em Penrose (1993:31-80).
114 A symbolic analysis of relay and switching (Uma análise simbólica de
retransmissão e alternância de sinais).
115 Vannevar Bush, nos Estados Unidos, constrói seu Differential Analyser (1930)
- uma sofisticada calculadora analógica -; Konrad Zuse, na Alemanha, cons-trói a Z1 - uma calculadora digital (1938); também nos EUA, Atannasoff e
Berry controem o Atatnasoff-Berry Computer (1938), e Aiken constrói, com a
IBM, o Harvard Mark I (seguido pelos Mark II, III e IV) (1939) (Gere, 2002:39).
116 Electronic Numerical Integrator and Computer (Integrador e Computador
Numérico Eletrônico).
culo, mas da manipulação de signos, e nos Es-
tados Unidos o ENIAC116 (projetado para auxi-
liar os cálculos da bomba A, mas concluído
apenas após o final da guerra, em 1945) já é um
dispositivo bastante mais veloz que todos os
seus antecessores. É, porém, o EDVAC, com-
pletado em 1946, que realiza pela primeira vez
a chamada “arquitetura de von Neumann”,
que caracteriza os computadores modernos,
contendo uma unidade de memória - capaz de
armazenar dados e instruções -, uma unidade
de cálculo aritmético, entrada e saída de dados
e uma unidade de controle. Ao mesmo tempo,
as idéias que permitiram construir tais dispo-
sitivos são formalizadas em diferentes discur-
sos relacionados à informação, controle, or-
Mundo sem ruído: A utopia digital 169
denação e codificação que constituem poderosos paradigmas do pensa-
mento da segunda metade do século XX, e estão intimamente relaciona-
dos à tecnologia digital: a Teoria da Informação, de Shannon, a Ciberné-
tica, de Wiener, a Teoria Geral de Sistemas, de von Bartallanfy e a Inteli-
gência Artificial117. As duas primeiras são quase onipresentes na cultura
digital contemporânea: quando se fala em “tecnologias de informação”
(TI)118, ou “cibercultura”, tem-se uma vaga noção do modo como essas
teorias determinaram, através de sua reificação no parque tecnológico, a
paisagem contemporânea.
Aos investimentos feitos na II Guerra, seguiu-se o maciço inves-
timento feito pelos sucessivos governos norte-americanos em tecnologia
computacional e nas pesquisas teóricas nesses campos a ela associados, sob
a justificativa da Guerra Fria contra a extinta URSS. Bilhões de dólares fo-
ram investidos, ao longo das décadas de 1950 e 60, em programas milita-
res que tornaram as máquinas mais ágeis, com maior capacidade de
processamento; desenvolveram a memória magnética e as linguagens de
programação; bem como interfaces e dispositivos que hoje se fazem pre-
117 A origem das pesquisas em Inteligência Artificial está intimamente ligada aos
trabalhos de Turing no pós-guerra, e o primeiro encontro científico dedicadoao tema, organizado por Alan Newell e Herbert Simon em 1956 - e do qual
participam Claude Shannon e Marvin Minsky - termina de maneira eufórica,
com Newell e Simon prevendo que num futuro próximo “um computador se-ria campeão mundial de xadrez, comporia música esteticamente significativa,
descobriria e provaria um teorema matemático e que a maioria das teorias psi-
cológicas tomaria forma de programas de computador” (Gere, 2002:55). Po-der-se-ia dizer, ironicamente, que trata-se do ponto onde o complexo de calei-
doscópio começa a manifestar sintomas histéricos - além de retomarmos a
questão, determinante aqui, do pensamento técnico e o modo como, pararetormarmos a citação de Flusser que fizemos há pouco, o “saber” vai expul-
sando a “sabedoria”. De todo modo, uma excelente e importante discussão
dos limites da inteligência artificial encontra-se em Penrose (1993), e a ques-tão dos computadores e do xadrez é uma importante questão contemporâ-
nea, que exigiria um exame detalhado dos matches de Garry Kasparov contra
diversas máquinas recentes.
118 Ver, por exemplo, Siqueira (2004): 2015 - como viveremos: O impacto dastecnologias da informação e da comunicação na vida humana, na próximadécada, segundo a visão de 50 famosos cientistas e futurologistas do Brasil edo mundo. Trata-se de um relato jornalístico ingênuo e superficial sobre o fu-turo tecnológico, cujo conteúdo, porém, é revelador do modo como se cons-
trói hoje o senso comum quanto ao futuro próximo.
sentes em toda parte - monitores, mouses,
interfaces gráficas, processadores de texto,
matematização e manipulação de imagens grá-
ficas, multimídia. Ao final da década de 1960,
realizam-se os primeiros experimentos em
rede com a hoje lendária ARPANET, que
conectou diversas universidades norte-ame-
ricanas (Gere, 2002:47-74). Todo esse apara-
to, desenvolvido sob maciça propaganda anti-
soviética, tinha como objetivo criar um siste-
ma de segurança independente da falibilidade
do elemento humano, em que se pudesse fazer
circular informações e ordens com rapidez e
precisão, não apenas através de diferentes
percursos mas, finalmente, sem que a infor-
mação estivesse vinculada a um único centro -
o conceito que formula aquilo o Critical Art
Ensemble (2001) chamará “poder nômade”, o
poder sem sede material nem centro fixo.
Numa época marcada, na superfície da cultu-
ra, por estupenda prosperidade econômica e o
conseqüente otimismo que os Estados Unidos
170 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
experimentam após a II Guerra - prosperidade intimamente associada aos
investimentos do estado na indústria bélica -, a paranóia nuclear e
anticomunista da Guerra Fria são uma sombra que turbina tecnologias e
idéias criadoras de uma curiosa perspectiva de controle e comando total de
um mundo cada vez mais complexo, em que qualquer coisa poderia ser
analisada como um “componente” de um “sistema”, ao mesmo tempo cada
vez mais manipulável, simulável, calculável - de tal modo que essas técni-
cas poderiam ser aplicadas indiferentemente tanto a armas e estratégia
militar, como a máquinas, organização industrial, gerenciamento de ne-
gócios, administração urbana e práticas de governo: ao exercício do poder
e à eficiência econômica de forma geral.
Mas o propósito destes parágrafos é o de procurar precisar de al-
gum modo os valores que orientam o pensamento técnico inscrito na cai-
xa-preta digital, já que cremos que eles encerram aí um projeto de mun-
do. Não é difícil notar que essas velozes máquinas calculadoras e
processadoras de símbolos estão estritamente ligadas aos valores que ar-
ticulam as demandas de poder, controle e produtividade do século XIX; e,
como diz Gere (2002:46) a respeito do projeto da “máquina de estados”,
protótipo conceitual do computador moderno,
“Turing´s conceptual machine, capable of beeing reconfigured in
an infinite number of different states, is the perfect, idealized
model of capitalism as a universal machine, in which different
phenomena, labour and commodities are homogenized in order
to be exchanged, manipulated and distributed.” [Gere, 2002:46]119
Dissemos, porém, que a questão da técnica ultrapassa o problema
da consolidação do capitalismo, e talvez possamos buscar algo mais nos
valores que constituíram essas teorias chave na constituição do parque
digital contemporâneo - informação e cibernética -, um parque que sem
dúvida lubrifica a máquina capitalista, mas possui ainda algo que lhe é es-
pecífico em termos do seu projeto caleidoscópico. A teoria de Shannon, que
persegue o fluxo impecável das informações transmitidas por sistemas
maquínicos, será pouco depois expandida - como já na década de 1940
119 “A máquina conceitual de Turing, capaz de ser reconfigurada num número infi-
nito de diferentes estados, é o modelo pefeito, idealizado do capitalismo comomáquina universal, no qual diferentes fenômemos, trabalho e mercadorias são
homogeneizados de modo a serem trocados, manipulados e distribuídos.”
sugeriam Weaver (1975) e Wiener (1993) - a
todos os campos de conhecimento - da antro-
pologia à biologia, da comunicação à sociolo-
gia e mesmo à estética, e sobretudo ao geren-
ciamento industrial e comercial, dada essa
aplicabilidade aparentemente universal do
Mundo sem ruído: A utopia digital 171
conceito de informação. Em sua origem, porém, baseia-se numa interpre-
tação hoje bem conhecida dos processos de comunicação, um esquema que
envolve uma “fonte”, um “transmissor”, um “canal”, um “receptor” e um
“destino” - por exemplo, numa conversa telefônica, aquele que fala é a
“fonte”; sua fala é codificada pelo fone (o “transmissor”), em “sinal”; é
conduzida pelo “canal” (seja a rede de fios da telefonia antiga, ou a cone-
xão sem fio dos aparelhos celulares atuais); decodificada novamente em
fala pelo aparelho (“receptor”) daquele que escuta; e finalmente ouvida
pelo seu companheiro de conversa (“destino”). Qual o desafio que se co-
locou, na prática, nesta bela solução de engenharia de comunicação? Nas
palavras de Warren Weaver, parceiro de Shannon,
“No processo de transmissão do sinal, é infelizmente característico
que certas coisas não pretendidas pela fonte de informação sejam
acrescidas ao sinal. Esses acréscimos inúteis podem ser distorções
de som (na telefonia, por exemplo), estática (no rádio), distorção
na forma ou tons de uma mensagem (televisão), erros de
transmissão (telegrafia ou fac-símile). Todas essas alterações no
sinal podem ser chamadas de ruído.” [Weaver, 1977:28, grifo nosso]
O ruído, o acaso incalculável que intervém nos processos de troca
de informação, adquire uma valoração negativa bastante específica. Esses
elementos indesejáveis, que degradam a qualidade das informações em
trânsito e perturbam o fluxo comunicacional, só podem ser “espúrios”:
“Quando há ruído, é certo que o sinal recebido foi selecionado a
partir de um conjunto mais variado de sinais do que o origi-
nalmente pretendido pelo emissor” [...] A incerteza que decorre
de erros ou da influência de ruído é uma incerteza indesejável. Para
obtermos informação útil do sinal recebido, precisamos subtrair
a porção espúria.” [Weaver, 1977:31]
Em termos das tecnologias de comunicação, no âmbito estrito da
engenharia - tirante aqui, por um breve momento, as implicações que há
pouco atribuímos ao discurso técnico -, tal recusa do elemento incerto, que
intervém ao acaso nos processos de troca de informação, é mesmo com-
preensível. Entretanto, quando se tem em mente a maneira como os ter-
mos da Teoria da Informação foi progressivamente aplicável a todos os
níveis e processos sociais, pode-se dizer então que há aí uma utopia da
filtragem, a utopia de um mundo sem acaso, sem interferência, um mun-
do absolutamente controlável e matematizável, enfim, podemos dizê-lo,
172 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
um mundo sem ruído. Não é outra coisa que se lê em Norbert Wiener - a
quem Shannon (1975:125) dedica “reconhecimento do mais alto nível” -,
o criador da cibernética, especialmente entusiasta da aplicação dos con-
ceitos informacionais à “comunicação e controle de homens e máquinas”,
que reflete sobre as questões da indeterminação dos fenômenos na física
estocástica de Boltzmann e Gibbs em Cibernética e sociedade:
“Pois tal elemento causal, tal orgânico inacabamento (incompleteness),
é algo que, sem recorrer a uma figura de retórica por demais violenta,
podemos considerar como mal; o mal negativo que Santo Agostinho
caracteriza como inacabamento, em contraposição ao mal positivo e
maligno dos maniqueus.” [Wiener, 1993:13]
120 A análise de Mattelart segue num elogio às posições de Wiener, com o qual,
em vista dos argumentos que temos tentado apresentar, não podemos nos pôrde acordo, embora seja justo para com a integridade do texto desse importan-
te teórico chileno - e com um diálogo plural - citar por inteiro: “Ela [a socieda-
de da informação] é [para Wiener] incompatível com o embargo ou a práticado segredo, a desigualdade do acesso e a transformação em mercadoria de
tudo o que circula nos canais de comunicação”. Mas vimos que a própria ra-
zão de ser destas tecnologias e os valores que elas agenciam estão intima-mente associados às mesmas forças que agenciam aquilo que Mattelart ou
Wiener denunciam. Caímos aí então na “ética da utilização”, cujo caráter inó-
cuo já discutimos anteriormente.
121 Gere procura, através dessa filiação, distinguir o discurso do Estruturalismo, que
emerge na França no pós-guerra com Levy-Strauss e em seguida Barthes,
Althusser, Lacan e Foucault, e que guarda lá suas relações com as possibilida-des de pensamento sistêmico abertas pelo paradigma informacional:
“Structuralism emerged in a very different context to Cybernetics, General
Systems Theory, Molecular Biology, Artificial Intelligence and Information Theory.The latter were largely the product of Britain and the United States, and refleted
current techno-scientific concerns. Struturalism was both a Continental
european development and one that took place largely within the socialsciences. Furthermore, it inherited much of the anti-humanist approach that
animated Marxism and Freudian psychonalysis, two of its forebears. The other
informational discourses by contrast were largely embedded in a liberal-humanist enlightenment tradition”. (Gere:2002:57-8) (“O Estruturalismo emer-
giu num contexto muito diferente daquele em que emergiram a Cibernética, a
Teoria Geral de Sistemas, a Biologia Molecular, a Inteligência Artificial e a Te-oria da Informação. Essas últimas são em larga medida produto da Inglaterra
e dos Estados Unidos, e refletiam as preocupações tecno-científicas então
correntes. O Estruturalismo foi ao mesmo tempo um produto europeu conti-nental e que teve lugar sobretudo nas ciências sociais. Além disso, herdou muito
da abordagem anti-humanista que animou o Marxismo e a Psicanálise
Freudiana, dois de seus antepassados. Os outros discursos informacionais, emcontraste, estavam largamente imersos na tradição do humanismo-liberal
iluminista.”).
Nas próprias palavras de Wiener, o aca-
so, o descontrole, enfim, é caracterizado como
o “mal negativo” em termos agostinianos! Pou-
co importa que Wiener faça advertências, como
lembra Mattelart (1994:157-8), quanto ao uso
privilegiado dos meios de circulação de infor-
mação pelas elites do poder. Trata-se de uma
crítica ingênua, dentro de uma utopia de uma
sociedade da informação que “só pode ser uma
sociedade em que a informação circule sem en-
traves”120, desde que essa circulação livre e uni-
versal se dê nos termos da ausência de ruído,
essa recusa dos elementos “espúrios” que Ceitil
definira tão elegantemente como a fobia de tudo
aquilo que é do “regime da incerteza, do erro, da
falha, da incompletude” - e vemos aí com cla-
reza a relação de filiação, notada também por
Gere (2002:57), entre esses discursos informa-
cionais que emergem no pós-guerra - teoria da
Informação, Cibernética, Teoria Geral de Siste-
mas, Inteligência Artificial -, e a “tradição libe-
ral humanista” herdada do projeto Iluminista121.
O parque tecnológico digital aparece então com
clareza como a reificação tecnológica do projeto
de ordenação do mundo segundo os predicados
da razão técnica agenciados pelo Iluminismo, e
já não surpreende que o digital articule quase ao
Mundo sem ruído: A utopia digital 173
limite do paroxismo todos os valores que atribuímos há pouco à
modernidade: calculabilidade, matematização do real, manipulação do real por
meio da representação, velocidade, precisão, permutabilidade, circulação univer-
sal de signos, reprodutibilidade, racionalidade, eficiência, produtividade, contro-
le. O aparato digital transfere à base tecnológica que agencia hoje todas as ins-
tâncias do real, segundo a lógica da dissimulação e reificação no hábito, to-
dos os valores do projeto moderno: a utopia do mundo exato, sem sombra,
sem mistério, sem ruído. É emblemático e surpreendente verificar então essa
linha que liga a escrita à tipografia, esta à máquina de escrever e esta, final-
mente, à máquina de Turing - já que matemático inglês baseou-se, sabe-se,
na máquina de escrever para propor o modelo de sua máquina universal de
estados: trata-se da emancipação e reificação ao limite dessa história da per-
cepção técnica das coisas e do mundo. E tal a sua eficiência em por em mar-
cha esse leque de valores modernos, que não surpreende, e é mesmo ade-
quado, que um historiador como Gilles Lipovetsky (2004) perceba o mun-
do em que se dá a experiência contemporânea como hipermoderno.
Resumimos aquilo que pretendemos formular neste capítulo: a
tecnologia possui um fascínio próprio e se ajusta facilmente ao dia-a-dia.
Entretanto, os aparatos tecnológicos não são simplesmente instrumentos
neutros, e para compreender aquilo que lhes é próprio associamos seus
efeitos a seu modo de operação - o “programa” da “caixa-preta”. Fez-se
necessário compreender qual o modo de pensamento que opera aí, e su-
gerimos então que é preciso distinguir técnica e tecnologia: a técnica é de
um modo de lide com as coisas do mundo que caracteriza a cultura ociden-
tal, é mesmo a percepção de onde emerge nosso modo de pensar -
tornamo-nos todos olhos da Medusa, segundo uma “armação” ou o “pro-
grama”, que determina nosso lugar e o de todas as coisas, a realidade tor-
nando-se, progressivamente, mera “instalação”; por outro lado, as
tecnologias são materializações de certo saber técnico, que escondem,
automatizam, e reificam no cotidiano por meio do hábito - e examinamos
algumas tecnologias da imagem para verificar ali a instalação de uma or-
dem experiência que realiza, no campo perceptivo, os valores que as in-
formam. Por fim, definimos, a partir dos argumentos sugeridos, um pro-
jeto de mundo inscrito na caixa-preta dos dispositivos digitais - os valores
que animam esse ápice da explicitação da percepção técnica: a utopia de um
mundo sem ruído. Para que possamos verificar o caráter da experiência
perceptiva que o digital ora instala, resta apenas, em seguida, que busque-
mos refletir um tanto sobre algumas questões relativas ao campo da arte.
Capítulo IV
Da invenção dapaisagem aolabirinto de espelhos
“E depois no quarto gol foi uma jogada puramente criativa, daarte brasileira, no sentido da improvisação, eu pego a bola nomeio campo, vou driblando todo mundo e faço o gol ...Foi pura arte.”Jairzinho, comentando seu golaço, o quarto de Brasil 4 X 1 Tchecoslováquia, naCopa do Mundo de 1970.1
É praticamente senso comum que a arte expressa a sensibilidade
de uma época, o modo de perceber e pensar de uma cultura, seu modo de
“fazer mundo” explicitando um sentido dado na percepção, para retomar
o registro de nossa fala dos primeiros capítulos. Mas é também senso co-
mum a idéia, introduzida com fulgurante êxito pela arte moderna, de que
artistas estão “à frente de seu tempo”; são “antenas da raça”, como disse
certa vez Pound - e não deixemos passar despercebido o caráter maquínico
desta metáfora, já que certamente não é à biotecnologia das antenas das
formigas que se refere. Com vistas a limpar o terreno para que se possa falar
numa percepção digital e na gênese do sentido da experiência contemporâ-
nea, tentaremos, nas próximas páginas, lidar com esse território delimi-
tado historicamente pela cultura ocidental - instituição de raízes
inescapavelmente européias, portanto, malgrado a sua planetarização: a
força centrípeta que parece atrair irresistivelmente a esse modo de lide com
o simbólico obras e conceitos vindos hoje dos cinco continentes, como se
1 Ver Gerheim (2002): Foi pura arte.
176 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
vê nas bienais e nos grandes museus2 -, e trata-se de lidar com o paradoxo
deste campo de produção de conhecimento, “canal ideológico”, como su-
gere Brito (2001), que parece estar simultaneamente dentro e fora de seu
tempo. Tentaremos evitar a irresistível digressão: a arte convida à refle-
xão, faz parte da experiência da arte que multipliquemos a vivência do sen-
sível e possamos descobrir a partir dali as tramas conceituais que a engen-
dram. Foi por isso que, no meio dos anos 1990, Ricardo Basbaum (1995)
escreveu, num pequeno texto no número inaugural da revista Item, que era
preciso acessar as obras a partir de nosso aparato perceptivo sensorial e
conceitual - recusar um ou outro é recusar a vitalidade da experiência con-
creta inaugurada pela circunstância da obra, experienciá-la de maneira
incompleta, não extrair suas conseqüências mais radicais, múltiplas e ne-
cessárias, rejeitar seu papel propositor e reflexivo no tecido da cultura, sua
potência como presença (d)e pensamento. Mas percepção e pensamento
estão intimamente ligados, vimos, e a obra de arte é talvez onde essa liga-
ção acontece da maneira mais poderosa: território privilegiado, portanto,
onde talvez se mostre esse objeto astuto que perseguimos, uma certa per-
cepção. Vejamos então como se funda esse lugar no mundo contemporâ-
neo e alguns modos pelos quais se pode pensar a arte, e talvez isso nos per-
mita acessar os modos de perceber contemporâneos.
Walter Benjamin, em seu “A obra de arte na época de sua reproduti-
bilidade técnica”, tratou, já vimos, de modo pioneiro, o impacto dos apa-
relhos na realidade, e localizou transformações nos modos de perceber da
cultura a partir do exame da re-significação da contemplação da obra de
arte na sociedade urbana moderna: destruída a aura, caem, como num cas-
telo de cartas, as categorias estéticas tradicionais - uma noção de belo vi-
gente desde a Renascença e um certo caráter ritual investido na contem-
plação, que fazia da imagem única, autêntica, “distante por mais próxima
que esteja”, objeto de culto e daí sustentáculo de uma ordem de poder:
aquele que detém a posse da obra beneficia-se em alguma medida de sua
autoridade, de seu caráter mágico; aquele que a contempla busca, tanto
quanto possível, acessar essa magia no hic et nunc efêmero da presença.
Crary (1990) nomeou tais modos de constituir a relação espectador-ima-
gem “técnicas do observador”, chamando a atenção não apenas ao fato de
2 Duchamp, com costumeira ironia, chega mesmo a afirmar: “Fomos nós que de-
mos o nome de ‘arte’ às coisas religiosas; entre os primitivos, a palavra arte,
em si, não existia. Nós a criamos pensando em nós mesmos, em nossa própriasatisfação. Nós a criamos única e exclusivamente para nosso próprio uso: é um
pouco uma forma de masturbação.” (Cabanne, 1997:169-70).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 177
que o regime espectatorial é regido por determinações epocais, mas de que
tal regime implica mais do que um modo de observar imagens: implica
observar as convenções e regras que regulam o olhar. Na década de 1930,
Benjamin descreveu a seu modo esse impacto sobre a sensibilidade cau-
sado pelas tecnologias de reprodução de massa então presentes - o rádio,
o fonógrafo, a fotografia e o cinema sobretudo: realizavam uma percepção
que dispunha tudo “mais próximo” e “idêntico”. Havia também o caráter
mais penetrante desse impacto, sua circulação pelas veias do organismo
social: os suportes mais tradicionais reagiam à nova dinâmica que assumia
o cotidiano, e procuravam responder às solicitações de uma sensibilidade
“moderna”.3 É nesse registro que Benjamin encara de maneira ambígua os
ganhos das pesquisas mais formais que constituem as primeiras manifes-
tações das “vanguardas”: a história da arte se dispunha como uma suces-
são de arranjos históricos que lhe determinaram a razão de ser - o ritual
mágico, o ritual sacro, o ritual do belo -, e trata-se, então, num mundo em
que já não cabe o mágico nem o sacro, e em que novas disposições do po-
der, sobretudo então o nazismo, apontam para uma estetização da política
e sua transformação num sinistro espetáculo do belo, de fazer frente à
estetização da política por meio da politização da arte. A constatação de que
o futurismo italiano manifesta cumplicidade declarada para com a ordem
de poder da modernidade - sua tomada de um fragmento de um discurso
de Marinetti fazendo elogio estético da guerra é de uma precisão cirúrgi-
ca4 - alimenta a idéia de que uma “arte pela arte”, a arte como campo
3 McLuhan, aliás, disse que a mensagem dos novos meios se mede pelo seu impacto
sobre os meios anteriores.
4 “No manifesto de Marinetti sobre a guerra da Etiópia, lemos, com efeito: ‘Há vinte esete anos, nós futuristas, insurgimo-nos contra a idéia de que a guerra seria anti-es-
tética... eis porque afirmamos o seguinte: a guerra é bela, pois, em virtude das más-
caras contra gases, do terrificante megafone, dos lança-chamas e dos carros de as-salto, funda a soberania do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela porque
realiza, pela primeira vez, o sonho de um homem com o corpo metálico. A guerra é
bela porque enriquece o prado florido com as orquídeas flamejantes que são as me-tralhadoras. A guerra é bela porque reúne, para compor uma sinfonia, a fuzilaria, o
fogo dos canhões, a pausa entre os tiros, os perfumes e os odores da decomposição.
A guerra é bela porque cria novas arquiteturas, como a dos tanques, das esquadrilhasaéreas em formas geométricas, das espirais de fumo subindo das cidades incendiadas
e muitas outras ainda [...]. Escritores e artistas futuristas, lembrai-vos destes princípi-
os fundamentais de uma estética de guerra, para que assim se esclareça [...] vossocombate por uma nova poesia e por uma nova plástica!’ Este manifesto tem a vanta-
gem de dizer bem o que pretende dizer [...] Fiat ars, pereat mundus: é esta a palavra
de ordem do fascismo que, como Marinetti o reconhece, espera obter na guerra asatisfação de uma percepção sensível modificada pela técnica.” (Benjamin, 1983:239-
40). Não deixa de ser curioso, segundo o modo de tratar a experiência que temos
procurado aqui sustentar, que a descrição de Marinetti se faça com referência a todoo campo sensorial, conforme era próprio ao projeto futurista.
178 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
autônomo, só pode conduzir a uma aderência ao projeto fascista. Sob um
tal modo de pensar o moderno, em que tecnologia e fascismo se impõem
como figuras sobre o fundo das transformações históricas, as estratégias
inauguradas pelo Futurismo, pelo Cubismo e pelo Dadaísmo, malgrado seu
poder de “choque” - no dizer de Benjamin, qualidade determinante da arte
moderna -, não podem ser mais do que “tentativas insuficientes feitas pela
arte para levar em conta, a seu modo, a intrusão dos aparelhos na realida-
de” (Benjamin, 1982:236 n29). Ao passo que o Surrealismo - justamente
um movimento de bases mais literárias, cujas motivações se encontram um
tanto fora da obra, na noção psicanalítica da liberação das forças oníricas
e na subversão programada da razão por meio do escândalo - é o único que
lhe merece o elogio, como um movimento que consegue “mobilizar para a
revolução as energias da embriaguez”, os surrealistas sendo “os únicos que
conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto [Comu-
nista] nos transmite hoje” (Benjamin, 1996:32-5). Porém, parece ser so-
mente o caráter literário do Surrealismo que merece essa adesão
benjaminiana, segundo um pensar “revolucionário” que poucos hoje he-
sitariam em entender datado, malgrado a força e a beleza do texto: quando
se trata dos quadros de De Chirico ou Max Ernst, estes não têm a força
surrealista do “rosto verdadeiro de uma cidade” (Benjamin, 1996:26).
Tudo se passa como se um certo imperativo messiânico em Benjamin vol-
tasse todas as forças de sua própria embriaguez a seu fascínio pelas cida-
des e pela possibilidade de uma redenção revolucionária que não permi-
tem entender o modo mais sutil, e por isso mesmo mais duradouro, de
questionamento de uma certa ordem posto em marcha pela arte moderna.
O fascínio de Benjamin é pela literatura e pela experiência material do real
que traduz tão bem, e desta última emerge uma leitura mais efetiva do
mundo da fotografia, cuja suposta “objetividade” dialoga diretamente com
a esfera cotidiana. Mas a arte moderna não era nada disso, não era esse
projeto insuficiente: era na verdade a funda-
ção de um território novo, problematicamen-
te autônomo, em meio a um mundo sujeito a
intensas transformações. Nas vanguardas das
primeiras décadas do século XX, a arte ex-
pressa como que o apogeu e a superação de
uma crise mais extrema na qual a tecnologia
tem esse papel diagnosticado por Benjamin
(em que o acompanha Bazin5): no meio do
século XIX, a fotografia (e os demais aparatos
5 André Bazin − que era um humanista católico e portanto pensa a partir de umamatriz bastante diversa da de Benjamin −, em seu célebre Ontologia da imagemfotográfica, que funda na objetividade fotográfica todo um modo de pensar o
cinema, parece ecoar Benjamin quando diz que “é no século XIX que se iniciapara valer a crise do realismo, da qual Picasso é hoje o mito, abalando ao mes-
mo tempo tanto as condições de existência formal das artes plásticas quanto os
seus fundamentos sociológicos. Liberado do complexo de semelhança, o pintormoderno o relega à massa, que então passa a identificá-lo, por um lado, com a
fotografia, e por outro com aquela pintura que a tanto se aplica.” (Bazin,
1991:22).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 179
ópticos derivados das pesquisas da ciência sobre a visão) deslocara a pin-
tura do terreno de uma vocação especular que fora seu lugar, em certa
medida, desde o Renascimento, e cada vez mais a partir do século XVIII,
forçando uma radical busca de identidade renovada.6 O crítico brasileiro
Ronaldo Brito parece traduzir num registro mais interessante o significa-
do dos gestos extremos das vanguardas:
“Com a explosão das vanguardas nas primeiras décadas do século
XX, a obra de arte passou a ser tudo e qualquer coisa. Nenhum Ideal
teórico, nenhum princípio formal poderiam mais defini-la e
qualificá-la a priori. Seguindo um movimento paralelo ao da
ciência − e até da própria realidade, com o afluxo das massas − a
arte tornou-se Estranha. A sua aparência mesma mostrava-se
oposta ao mundo das aparências, com o qual sempre esteve
(problematicamente) ligada. A Modernidade [na arte] apresentava
de saída um sentido manifestamente liberatório, caracterizava-se
pela disponibilidade absoluta: parecia possível fazer tudo, com
tudo, em qualquer direção. Bigode e cavanhaque na Mona Lisa,
peças de mictório em museu, assim por diante. Mas o gesto de
liberar implica uma situação de opressão, uma situação
insustentável. A liberdade moderna não era simplesmente a
afirmação de novas possibilidades: era sobretudo uma revolta, um
desejo crítico frente às coisas e valores instituídos. No limite,
expressava o paradoxo de um sujeito que não reconhecia mais o
mundo enquanto tal. E de um objeto − o mundo − que parecia não
se comunicar com a principal figura construída pela civilização
ocidental: o Sujeito.” [Brito, 2001:202]
Este movimento de ruptura, essa recusa da aparência do mundo,
esse deslocamento do qual o gesto duchampiano é paradigmático, fala,
como sugere Brito, de um descentramento do observador, um deslocamen-
6 “Primeiro, os impressionistas simplificaram a paisagem em termos da cor, en-quanto os fauves a simplificaram também, acrescentando a deformação, que
é a característica de nosso século, não se sabe por que. Por que os artistas
estavam tão obstinados em querer deformar? É uma reação contra a fotogra-fia, me parece; não tenho certeza. Com a fotografia produzindo uma coisa muito
correta, do ponto de vista do desenho, o artista que quisesse fazer outra coisa
disse a si próprio: ‘É muito simples, vou deformar o máximo que puder e assimestarei completamente livre de toda representaçào fotográfica’. Isto é muito
claro em todos esses artistas, sejam os fauves, os cubistas e mesmo os dadás
ou os surrealistas.” (Cabanne, 1997:159).
180 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
to do ponto de experiência, um problema novo, enfim, com o qual se ne-
gociam diferentes estratégias:
“[...] a radical negatividade Dadá, o escândalo surrealista e a Vontade
de Ordem Construtiva, com suas diferenças irredutíveis, tinham
porém um ponto em comum: desnaturalizavam o olho, descen-
travam o olhar, abriam um abismo no interior da Contemplação, o
lugar por excelência das Belas-Artes. Sem a segurança desse lugar
- sem o sublime de uma atividade imaterial e desinteressada da
contemplação pura - onde situar a arte? Uma resposta inicial era
evidente e inquietante: em nenhum ponto fixo que organizasse,
em perspectiva, o mundo ao redor.” [Brito, 2001:202]
Dificilmente se poderia ser mais exato. Há uma questão que se co-
loca à arte: seu lugar tradicional já não existe, caíram as categorias estéti-
cas tradicionais (perda da aura), e as técnicas que corresponderam a certa
posição do artista e certa epistemologia do sujeito (a perspectiva, forma
simbólica), e que definiam certo regime espectatorial (um certo ritual), não
dão conta de um mundo maquinal, urbano, de massa, cujo dinamismo não
mais se submete à contemplação, seja no que diz respeito à sua fixação em
imagem (deve ser capturado no instante decisivo7 fotográfico),8 seja no que
tange à posição do espectador, problematicamente atados. Destruída, du-
rante o século XIX, a ordem de experiência que reservara à arte uma razão
de ser - secundária em relação à razão, certamente -, sua própria justifi-
cativa, seu caráter único, específico, na civilização das coisas idênticas,
devem ser repensados, sob o risco de seu desaparecimento, da perda de seu
poder expressivo mesmo, por atividade inútil num mundo regido mais e
mais pela funcionalidade.9 A questão é, enfim, a mesma para as diferentes
vanguardas, que a formalizam de maneiras distintas, segundo uma intui-
ção aguda de seu projeto:
Marcel Duchamp:Marcel Duchamp:Marcel Duchamp:Marcel Duchamp:Marcel Duchamp:L.H.O.O.Q.L.H.O.O.Q.L.H.O.O.Q.L.H.O.O.Q.L.H.O.O.Q. (1919) (1919) (1919) (1919) (1919)
7 A expressão instante decisivo é uma conhecida definição de Cartier-Bresson
para o momento em que o fotógrafo deve apertar o botão e bater a foto.
8 Aumont (2004:33-7) chama a atenção também ao modo como o cinema rou-
ba à pintura realista do século XIX alguns dos temas que lhe permitiram um
exercício de virtuosismo: as nuvens, os ventos, os arco-íris etc. Brissac (1996)também retoma − um pouco a partir de Aumont − as mesmas questões.
9 Ver, por exemplo, Argan (1992:263-506).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 181
“Obrigada a ser Única, convocada a ser Múltipla, a obra de arte virava
um campo de batalha no qual lutavam forças opostas e desiguais.
Cindia-se assim a Bela Aparência e dela emergiam espaços e figuras
sem nome. Aí começa a inevitável pergunta: isto é arte? Não,
senhoras e senhores, a arte é que é isto. Qualquer isto. Um isto
problemático, reflexivo, que é necessário interrogar e decifrar. O
saber da arte, o poder da arte, desenvolvidos mais ou menos à
sombra na civilização do Logos, puseram-se em movimento para
‘compreender’ a nova situação. O Projeto moderno, convém
lembrar, representou um esforço duplo e contraditório: matar a
arte para salvá-la. Questão de sobrevivência − ou pensar a
inteligência negativa de si mesma ou correr o risco de morrer
despercebida do tumulto de um mundo anônimo e feroz.” [Brito,
2001:203]
Essa ferocidade, essa brutalidade implícita no reajuste geral do
terreno levado a cabo durante o século XIX, somente as guerras farão ver
de modo inquestionável, e, embora Marx já tivesse denunciado desde cedo
as contradições sociais implícitas na consolidação do modo de produção
capitalista, o êxito do cinema documental dos Lumière é uma boa testemu-
nha do otimismo com que a Europa via a conquista da técnica e sua pró-
pria destinação. A arte sentira o problema precocemente não por suas “an-
tenas”, mas por seus laços ambíguos com a ordenação Renascentista do
mundo (os mecenas, os príncipes, a Igreja) e sua relação historicamente
problemática com o projeto da razão - desde a República platônica os poe-
tas eram expulsos para o bem de todos e felicidade geral da cidade-estado,
e Sócrates (como lembra Lacoste, 1986) não vê que utilidade possa ter este
modo de produzir mimético, que caminha por aí com um espelho duplican-
do aparências -, de que o século XIX é o apogeu. Nesse sentido, o projeto
iluminista, encarnado no ideal produtivo da máquina - metáfora do uni-
verso -, opera como uma Arca de Noé organizada segundo as demandas do
dilúvio planejado da razão, para a qual a arte busca seu ticket de embarque.
O golpe desferido pela fotografia sobre o papel especular da pintura, en-
tão, não foi o único abalo relacionado à gênese da arte moderna: a câmera
não faz mais do que realizar a autonomia tecnológica de um certo pensar.10
Já no século XVIII, a origem dos museus arranca as imagens do cotidiano e
10 Flusser (1998) examina em detalhes no seu Ensaio sobre fotografia (1986) o
modo como a fotografia realiza a visão segundo certo pensamento sobre o
mundo, como vimos no capítulo anterior.
182 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
as encerra, como diz Flusser (1986:67), em guetos que as mantêm à parte
de um mundo ordenado segundo a primazia da escrita, e pode-se sugerir
que a mesma força reguladora do Iluminismo que levara a cabo a
normatização das línguas (Menezes, 2001:40), e confinara esses seres es-
tranhos que não produzem qualquer coisa de efetivamente útil, os Loucos,
aos manicômios, confinara esses outros seres estranhos que não produ-
zem nada de efetivamente útil, os Gênios, às exposições e museus. Quan-
do Diderot praticamente inaugura a crítica de arte,11 o pensamento que se
funda na experiência das obras, o faz visitando-as reunidas em exposição.
A força da ordenação da cultura pelo texto impõe à pintura que procure
dialogar de um modo ou de outro com suas determinações, o que se vê, por
exemplo, no progressivo materialismo com que se trata a luz (Brissac,
1996), que perde seu papel simbólico; ou nas telas de um Chardin, queordena geometricamente suas naturezas-
mortas; ou no Goya que denuncia os fantas-
mas que espreitam por trás da racionalidade;
no Delacroix que faz a vindicação da força da
imaginação frente à racionalidade; ou no
Courbet, cuja Origem do mundo não faz senão
ilustrar a superação da explicação religiosa do
mundo pela do texto científico. Quando um
Hegel, já em pleno século XIX, declara a su-
perioridade das criações do espírito sobre a
natureza12 (Lacoste, 1986:44-5) - uma cele-
bração do aparente poder da razão científica
de elucidar o cosmos -, a arte, não detendo
mais a prerrogativa da especularidade, e já
diante do desafio de descobrir sua própria
justificativa num mundo “novo” de crescen-
te racionalidade, ciência, produtividade, cir-
culação de mercadorias e especialização do
saber - ordenado por um pensar técnico que
o tecnológico reifica também num parque de
novidades que tornam a imagem passatempo,
como mostra Crary (1990), e que se somam à
fotografia na derrocada da aura -, tem maduras
as condições para disparar sua própria aventu-
ra autônoma, a Modernidade reivindicada por
Baudelaire: num mundo em que a paisagem
11 Hubert Damish (1997:252-3) atribui aos textos que Diderot escreve sobre os
Salões de 1764, 1765, 1766 o início da crítica e da história da arte: “De sorte
que a história, a crítica, a teoria da arte teriam nascido, e nascido simultanea-mente, desse momento, condensado em três anos, e por princípio ‘autodidata’,
em que o pensamento estético, e com ele a literatura artística, terão pretendido
se emancipar de toda forma de maestria que não a da própria arte, a considerarem suas obras, seus meios e seus efeitos, assim como em sua intenção mais pro-
funda.” Também Harrison, Wood e Gaiger (2001:602-3) escrevem, a propósito
das críticas de Diderot: “Taken together, Diderot’s ‘Salons’ constitute a remarkablecontribuition to the modern development of art criticism. They are distinguished
by the variety of his approaches, by the vividness of his descriptions, and by the
forthrightness of his judjements.” (“Tomados em conjunto, os ‘Salons’ de Diderotconstituem uma formidável contribuição ao desenvolvimento moderno da críti-
ca de arte. Eles se destacam pela variedade das suas abordagens, pela vivacida-
de das suas descrições e pela correção dos seus juízos”.)
12 Já no século XVIII, entretanto, em textos que formalizam os ideais da pintura neo-
clássica, por volta de 1760, Mengs já afirmava que a “arte supera a natureza em
beleza”: “Arte can easily surpass Nature; for since no flower produces honey fromevery part, the Bee visits that only from which in can extract the richest sweets;
thus can also the skillfull painter gather from all the creation the best and most
beautiful parts of Nature, and produce by this Artifice the greatest expression andsweetness.” Em seguida, escreve: “Genius is the reason of painters” (“A Arte pode
facilmente superar a Natureza; pois como nenhuma flor produz mel a partir de todas
as suas partes, a Abelha visita somente aquela da qual pode extrair o que há demais doce; da mesma forma, o habilidoso pintor coleta em toda a criação as me-
lhores e mais belas partes da Natureza e produz, por este Artifício a maior expres-
são e doçura .” Em seguida escreve: O Gênio é a razão dos pintores”). (Mengs,1790; appud Harrison, Wood e Gaiger, 2000:549-50).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 183
será mais e mais instalada sobre uma natureza rendida à técnica, a arte poderá
progressivamente inventar por si própria uma paisagem, crescentemente di-
vergente. A arte moderna, divorciada da natureza subjugada, dedica-se a uma
invenção da paisagem simbólica do presente.13
13 Baudelaire captura bem esse espírito de invenção de uma paisagem de sím-bolos (tratava-se afinal de “simbolismo”) em seu famoso Correspondences,
quando escreve que “La nature est un temple où de vivant pilliers/ Laissent
parfois sortir de confuses paroles; / L’homme y passe à travers des forêts desymboles/ Que l’observent avec des regards familiers.” (“A natureza é um tem-
plo onde vivos pilares/ Deixam sair, às vezes, confusas palavras/ O homem por
aí passa através de florestas de símbolos/ que o observam com olhares fami-liares”). Parece ser nesse sentido que Godard menciona esse poema,
comumente associado à questão da sinestesia no simbolismo (ver Basbaum,
S., 2002), numa seqüência de seu recente Notre Musique (2004).
Argan (1992:185) distingue o primeiro “modernismo” das “van-
guardas” que “formar-se-ão em seu interior”. É sensato: as rupturas como
que preparatórias conduzidas pelos impressionistas, e os movimentos daí
derivados, dialogam ainda com a ciência - que é o Impressionismo senão
a investigação pictórica do modelo das impressões da luz na retina? E não
se pode dizer o mesmo de Seurat, que entende simplesmente “aplicar o
método”? Embora realizem já um imperativo moderno de instalação do
presente, não têm ainda a clareza de seu lugar próprio na nova ordem das
coisas. Grossmann (1996:32) lembra que dois aspectos determinantes do
ciclo das vanguardas são definidos aí: Manet e sua consciência histórica,
um impulso auto-referente, de diálogo investigativo que toma o passado
como referência mas dialoga com ele a partir de um espaço progressiva-
mente plano; Cézanne e a sua relação com o mundo objetivo, sua adesão
Gustave Courbet: Gustave Courbet: Gustave Courbet: Gustave Courbet: Gustave Courbet: A origem do mundoA origem do mundoA origem do mundoA origem do mundoA origem do mundo (1866) (1866) (1866) (1866) (1866) Paul Cézanne: Paul Cézanne: Paul Cézanne: Paul Cézanne: Paul Cézanne: Monte San VictoireMonte San VictoireMonte San VictoireMonte San VictoireMonte San Victoire (1906) (1906) (1906) (1906) (1906)
184 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
obsessiva à captura das impressões do mundo, que então procura organi-
zar em obra segundo uma reflexão sobre a superfície da tela - descrita apai-
xonadamente por Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne (1945)14. Ainda
assim, o mundo, o objeto, o referente, enfim, restam por ali, interrogados
segundo diferentes técnicas, mas fazendo crer que a arte ainda se dirige a
algo fora da tela. Gauguin, por exemplo, procura outra luz, outra realidade:
há ainda representação. Após Picasso e Braque, porém, já não se poderá
dizer o mesmo: o espaço da tela reina absoluto e por si só; a recusa do mun-
do, a recusa dos objetos está consumada - Malevitch colocará a pedra final
na representação com seu Quadrado preto sobre fundo branco (1913). O que
parece por vezes passar despercebido é que a súbita simultaneidade e a
variedade das respostas dadas no início do século XX mostram não apenas
a “qualidade do problema”, como sugere Brito, mas como que a sua solu-
ção: é na subversão infatigável da linguagem - território que aliás se mos-
trará cada vez mais locus determinante da ordem de poder, e portanto de-
cisivamente político - que a arte tomará posse de território indisputado;
descobre sua especificidade, seu modo único de intervir no real e produ-
zir conhecimento.15 Não surpreende então uma certa impressão de que
forças por algum tempo acumuladas são como que de um só golpe libe-
radas na sucessão de movimentos que virá a seguir: trata-se do exercício
das possibilidades abertas por esta solução, que se replica a todas as ar-
tes - fala-se na música em especificidade do som, busca-se o específico
cinematográfico, surge o teatro moderno, a dança moderna, e em toda
parte as artes, como um campo geral, dedicam-se a produzir novas so-
luções de linguagem e examinam obsessivamente as possibilidades em
cada um de seus cantos. De tal forma que Greenberg poderá falar em
“bidimensionalidade” - o exame sistemático das possibilidades do es-
14 Poder-se ia dizer que tanto Cézanne como os impressionistas tentam apreen-
der o olhar. Enquanto os últimos, porém , o fazem em acordo com uma expli-
cação da visão fornecida pela ciência − as impressões da luz sobre a retina −, o primeiro busca fazê-lo segundo uma auto-observação de espírito
fenomenológico. Daí o verdadeiro fascínio que sua obra exerce sobre Merleau-
Ponty.
15 Argan (1992:76) também descreve esse processo: “Ele [Cézanne] defende que,
para definir a essência da operação pictórica, é preciso reexaminar sua histó-
ria; mas, como Monet e os outros também aspiram ao mesmo objetivo atravésda investigação das possibilidades técnicas atuais, os dois processos conver-
gem para um mesmo fim: demonstrar que a experiência da realidade que se
realiza com a pintura é uma experiência plena e legítima, que não pode sersubstituída por experiências realizadas de outras maneiras. A técnica pictórica
é, portanto, uma técnica de conhecimento que não pode ser excluída do siste-
ma cultural do mundo moderno, eminentemente científico.”
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 185
paço plano -, “metalinguagem” - os procedimentos autoreferenciais que
instalam um regime centrípeto em que o olhar do espectador é conduzi-
do às questões internas à própria tela -, “busca da pureza”, aquilo que seja
específico e próprio à pintura - esse espaço, essa linguagem, essas cores e
gestos - como objetivos que se tornarão pouco a pouco mais nítidos na
sucessão das vanguardas. Rosalind Krauss descreve esse território
bidimensional, o espaço plano da tela, como uma “grade” [grid] que per-
mite uma espécie de limpeza dos elementos estranhos à “pura pintura”:
“the grid announces, among other things, modern art’s will to si-
lence, its hostility to literature, to narrative, to discourse. As such,
the grid has done its job with striking efficiency. The barrier it has
lowered between the arts of vision and those of language has been
almost totally successfull in walling the visual arts into a real of
exclusive visuality and defending them against the intrusion of
speech.” [Krauss, 1999:9]16
Essa cumplicidade das diferentes ma-
nifestações da arte moderna na sua determi-
nação em fazer valer essa resposta, esse nítido
movimento de especialização, esse fechar-se
determinado sobre si mesma que a pintura
conduz por meio das pesquisas formais da pri-
meira metade do século XX, é então algo que
une os diferentes problemas postos na Itália,
na França, na Holanda, na Rússia em torno de
um objetivo comum, a consumação de uma
Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: GuitarraGuitarraGuitarraGuitarraGuitarra (1913) (1913) (1913) (1913) (1913)
16 “a grade anuncia, entre outras coisas, o desejo de silencio da arte moderna,
sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso. Como tal, a grade cum-
priu sua tarefa com notável eficiência. A barreira que ela estabeleceu entreas artes da visão e as da linguagem foi quase totalmente bem-sucedida em
encerrar as artes visuais num domínio exclusivamente visual e protegê-las
da intrusão do discurso.”
186 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ruptura com os recalques acadêmicos do sé-
culo XIX.17 Como se o corte tivesse sido inici-
ado por Manet, efetivado pelos impressio-
nistas e concluído por Cézanne18, de um tal
modo que não restasse ao cubismo, pratica-
mente em sincronia19 com os demais centros
urbanos que viviam circunstâncias seme-
lhantes - e Gullar (1998:128) nota, ao falar da
explosão das vanguardas russas que “As obras
dos artistas franceses eram quase que ao
mesmo tempo expostas na França e em Mos-
cou” -, senão executar essa sentença que de-
clarava a instalação de nada menos que o
presente:
“In the great chain of reactions by
which modernism was born from the
efforts of the nineteenth century, one
final shift resulted in breaking the
chain. By ‘discovering’ the grid, cub-
ism, de Stijl, Mondrian, Malevich...
landed in a place that was out of reach
before. Which is to say, they landed
in the present, and everything else
was declared to be the past.” [Krauss,
1999:10]20
Importa menos aqui verificar as
especificidades deste ou daquele movimen-
to. Tampouco importam, segundo o que que-
remos fazer notar no gesto modernista, os
alemães e o modo como os expressionistas se
apropriam dos gestos liberatórios operados
na França - um contexto bastante particular
e que não chega a se constituir como uma ten-
dência mais organizada (Lynton, 1991) - ou
ainda as particularidades do Surrealismo, a
Kasimir Malevitch:Kasimir Malevitch:Kasimir Malevitch:Kasimir Malevitch:Kasimir Malevitch:Quadrado preto sobre fundo Quadrado preto sobre fundo Quadrado preto sobre fundo Quadrado preto sobre fundo Quadrado preto sobre fundo brancobrancobrancobrancobranco (1913) (1913) (1913) (1913) (1913)
17 “O valor pictórico quantificável por excelência, e, no século XIX, talvez o único,
é o caráter acabado do detalhe, a precisão, a impecabilidade. Valor burguês, éóbvio, a impecabilidade é igualmente cultivada pelo romântico e pelo pompier,pelo pintor de batalhas e pelo mais frívolo dos pintores mundanos; ela está tan-
to em James Tissot quanto em Gros ou Meissoner. O que causa a admiração doséculo XIX por esses quadros aos quais não falta sequer um botão de polaina?”
(Aumont, 2004:33).
18 “A célebre frase de Cézanne − ‘traiter la nature par le cylindre, la sphère, le cône...’(‘tratar a natureza por meio do cilindro, da esfera, do cone’) − parece ter ganho
nova significação aos ouvidos do jovem Braque.” (Gullar, 1998:14). Essa liga-
ção entre o cubismo e Cézanne é recontada em muitos autores e chega-se mes-mo a sugerir que Cézanne teria entregue uma situação completamente elucidada
para que Picasso, Braque, Gris, Léger etc. executassem o golpe derradeiro sobre
a velha pintura.
19 Gullar atribui à força deflagradora do cubismo a explosão das vanguardas na Rússia,
ao passo que considera o Futurismo uma aventura autônoma, cujos rumos aca-
bam sendo determinados pela potência da ruptura cubista. Argan considera oFuturismo o primeiro movimento que pode ser chamado “vanguarda”. Se atentar-
mos à proximidade das datas, à circulação das novidades na Europa, e levarmos
em conta as condições criadas pelo impressionismo, por Cézanne etc., importa maisa intensidade dos acontecimentos nas primeiras décadas do século XX do que a
questão do pioneirismo − esta aliás, uma neurose tipicamente moderna, que ain-
da hoje se pode perceber na obsessão dos artistas e dos teóricos com “quem fezprimeiro”, uma pergunta cuja resposta nunca chega de fato, pois sempre se des-
cobrirá um nome exótico, um desconhecido, um gesto periférico de um grande
artista, que parecem antecipar isto ou aquilo, e que podem ter mesmo seu valor,embora não sejam creditados pelas mudanças no tecido da cultura.
20 “Na grande cadeia de reações pela qual nasceu o modernismo a partir dos es-
forços do século dezenove, uma mudança final resultou na quebra da cadeia. Ao‘descobrir’ a grade, o cubismo, de Stijl, Mondrian, Malevitch... aterrissaram num
lugar que estivera antes fora de alcance. Isso quer dizer que aterrissaram no
presente e tudo o mais foi declarado passado.”
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 187
que nos referimos no início deste capítulo. Estes movimentos parecem ser
encarados por alguns autores21 como menos representativos do ciclo mo-
dernista, já que operam segundo uma lógica representacional que parece
não se adequar àquilo que revelou-se decisivo no ciclo das vanguardas, seu
ataque obstinado à visão realista herdada do século XIX e reiterada em es-
cala industrial pela fotografia e pelo cinema, a principal norma regulado-
ra do olhar cotidiano ao início do século XX. De fato, deve-se reconhecer
que há menos agressividade em Munch do que em Picasso, mas sobretudo
a questão é de ordem centrífuga: os expressionistas, assim como, mais tar-
de, os surrealistas, dirigem de alguma forma a atenção para fora da tela - o
espírito; o inconsciente - recuperando um espaço de representação que,
conquanto valendo-se do território aberto pelos gestos mais radicais que
lhes são contemporâneos, é muito mais solidário às expectativas do senso
comum do que a determinação em desnaturalizar o olhar e trazê-lo do
mundo vivido para a discussão pictórica - para a experiência da linguagem -
que se percebe articulada em uníssono pelas vanguardas até a eclosão da
II Guerra. É essa a inteligência crítica, certamente, que faz com que Godard,
em sua reflexão sobre as imagens nas Histoire(s) du cinéma (1989-1998),
marque em Manet o momento em que as “formas caminham para a pala-
vra; formas que pensam”.22
Mas, a despeito dessa ruptura decisiva com o passado e com a re-
presentação, essa aterrissagem inquestionável no presente que torna tudo,
de um golpe, mero passado, como descreveu Krauss, deve-se reconhecer
que as vanguardas preservam, estrategicamente, duas posições que podem
ser ditas “românticas”: o estatuto do artista que confronta o mundo, o mito
deste lugar à parte a partir do qual pode-se rejeitar o cotidiano “normal”,
a posição do outsider que lhe permite a crítica mais irônica ou mais severa,
Piet Mondrian:Piet Mondrian:Piet Mondrian:Piet Mondrian:Piet Mondrian:Composição emComposição emComposição emComposição emComposição emlosango com losango com losango com losango com losango com vermelho,vermelho,vermelho,vermelho,vermelho,preto preto preto preto preto azul e amareloazul e amareloazul e amareloazul e amareloazul e amarelo(1925)(1925)(1925)(1925)(1925)
21 Por exemplo: Greenberg (Danto, 1997:107), ou Gullar (1998).
22 “et qu’avec Eduoard Manet commence la peinture moderne, c’est-a-dire le
cinematographe, c’est-a-dire des formes que cheminent vers la parole, trésexactement une forme que pense.” (“e que com Edouard Manet começa a pin-
tura moderna,ou seja, o cinematógrafo, ou seja, as formas que caminham em
direção da palavra, exatamente uma forma que pensa.”). (Godard, 1999c). Claro,poder-se-ia objetar que “caminhar em direção à palavra”, como sugere Godard,
é bastante diverso da recusa de toda a “literatura, narratividade, discurso”, como
sugeriu Krauss, há pouco. O que nos importa nessa citação é essa certeza deque, a partir de Manet, a arte embarca num processo irreversível de pensamen-
to, cujas conseqüências passaremos a aferir em seguida.
188 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
mas de todo modo descomprometida do acordo coletivo - esse lugar mis-
terioso e incompreensível em que vive o gênio;23 e este último, que constitui o
outro termo fundamental da equação da arte moderna, visto que somente
o gênio pode ser investido não apenas da liberdade absoluta, mas sobre-
tudo do poder necessário ao gesto individual que, por meio da subversão
da linguagem, confia desestabilizar toda uma ordem historicamente ins-
talada. De modo que é nessa sua trincheira aparentemente à parte do mun-
do que o gênio, aquele a quem são concedidas todas as liberdades, labora,
reflete, produz o gesto poético poderoso e calculado que ergue a sólida
barreira que separa a arte das demais instituições e saberes e garante a
conquista de um território próprio, capaz de desenvolver uma aguda cons-
ciência crítica de seus próprios recursos, e que responde à demanda que
se colocara no início do século XIX quanto à função da arte na “civilização
do Logos”:
“Esse espaço crítico, essa distância polêmica, as vanguardas criaram
a golpes de lúcida loucura. Pode-se tomá-lo como o seu verdadeiro
trabalho, para além das obras e ideologias específicas. Aí residiu,
rigorosamente falando, o Território da vanguarda, seu valor e
delimitação históricos.” [Brito, 2001:204]
As vanguardas cumprem, então, uma espécie de missão histórica,
que consistiu em sustentar por meio de gestos radicais um espaço que ti-
nha sido destinado por Hegel ao desaparecimento, visto ser capaz de for-
mular apenas verdades clandestinas que seriam historicamente sepulta-
das pela objetividade reveladora da razão científica (Lacoste, 1986). Cum-
prida essa missão, esse seu sentido como vanguarda tende a desaparecer:
“Como o termo Vanguarda implica e explica, ela significou um
momento em que a produção estava radicalmente à frente do local
onde operava a Instituição Arte. Ora, um descompasso radical só
pode sê-lo uma única vez − no momento mesmo em que é
denunciado. A defasagem entre a produção e a instituição segue
em curso no nosso conturbado universo cultural, mas agora sob o
signo da continuidade do descompasso. Nomeá-la vanguarda, a rigor,
23 Lynnot (1997:25) encarna em Rembrandt, portanto antes mesmo do roman-
tismo, esse arquétipo: “Quando sua [de Rembrandt] fama aumentou, por vol-
ta de 1800, o conhecimento de sua carreira habilitou-nos a representá-lo, anossos próprios olhos, como o original outsider moderno, o gênio rejeitado pela
sociedade porque ele conhecia sua verdadeira natureza e trabalhou em gran-
de parte contra ela.”
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 189
é desconhecer a realidade atual ou abusar do termo: não pode haver
a tradição da vanguarda, a não ser como contrafação.” [Brito,
2001:204-5]
Começamos então a responder à pergunta que nos colocávamos ao
início deste capítulo, sobre o paradoxo espaço-temporal implicado na
noção de vanguarda: talvez não caiba mais falar em vanguarda. Talvez se faça
um uso abusivo deste termo, pelas conotações positivas, por um certo
caráter rebelde com que o modernismo o vestiu, na falta de critérios mais
instigantes para experimentar, justificar, pensar, e dar ressonância teó-
rica a obras geradas dentro desse espaço conquistado “a golpes de lúcida
loucura”, um espaço inaugurado pelos modernos que tornou possível, em
princípio, toda e qualquer obra de arte, toda e qualquer estratégia poética,
e cujas fronteiras foram consolidadas através de gestos de grande
negatividade - “Pensar a morte da arte, praticá-la, por assim dizer, era a
rotina das vanguardas”, diz ainda Brito (2001:203) -, uma negatividade que
já não é mais possível, e da qual que toda a poética contemporânea é em
alguma medida devedora.
Podemos, então, tentar um balanço dos ganhos notáveis das van-
guardas. Ao preservar, convenientemente, o estatuto romântico do gênio,
multiplicam ao limite o poder do indivíduo em atingir o estatuto de poder
dominante - a desindividualização do sujeito na massa - e guardam sua
potencialidade em criar desordem, em perturbar o projeto ordenador por
meio da agressão sistemática e incansável à estabilidade da linguagem, ao
olhar dominante, à paisagem instalada pelo regime de poder, por meio da
criação infatigável de outras paisagens francamente desafiadoras,
interrogativas, divergentes. Ao fazê-lo, preservam ainda um lugar à parte:
já que ao gênio tudo se permite, este pode permanecer como que num ter-
ritório aparentemente não regulado pela normatização da sociedade. O
gênio - e Pollock será o último herdeiro dessa linhagem que já passara por
Van Gogh e Cézanne - habita um lugar marginal, de onde olha criticamen-
te a sociedade, suas tendências, hábitos e códigos, e exprime, como que por
uma sensibilidade telepática, a percepção de seu tempo: ao manter viva a
tensão deste território por meio da invenção expressiva - que aponta sem-
pre novas soluções ao problema aberto pelo mergulho suicida (verdadei-
ramente suicida: pretendia-se seguidamente matar a arte!) nas possibili-
dades de linguagem dentro de um suporte específico -, fortalece e justifi-
ca essa posição inusitada, numa sociedade mais e mais regulada pela ordem
produtiva. Quando se esgotarem suas possibilidades, tal local estará, apa-
190 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
rentemente, constituído - a arte inventara não somente uma paisagem:
inventara mesmo esse topos, problemático, instável, demandando que se
mantivesse sempre sua potência inventiva, mas território conquistado. Após
a guerra, quando a Europa contempla o desastre produzido pela mesma
razão que constituíra as luzes, não se poderá mais questionar esse ceticismo
alimentado pela arte quanto ao projeto totalizante do poder e da produção,
e sua demanda por uma ordem funcionalista - é quase como se pudesse
dizer, não risonhamente, dadas as dimensões trágicas da devastação ma-
terial e moral do continente: “avisamos”.Sustentando assim durante quase
meio século um ritmo frenético de invenção
formal - algo, aliás, nunca antes visto -, as van-
guardas levaram a cabo um quase “milagre da
multiplicação dos signos”, ainda hoje surpre-
endente pela sua ampliação dos limites da
semiosfera: multiplicaram enormemente as
possibilidades da linguagem; cumpriu-se
mesmo a máxima flusseriana de que a “poesia
é criadora de língua: arranca língua do nada”
(Flusser, 1963). A arte ampliou, assim, de
modo indiscutível as possibilidades expressi-
vas da cultura; seduziu pela inteligência, e, so-
bretudo - o argumento decisivo na sociedade
capitalista -, produziu: produziu muito. A
efetividade dessa produção, o poder da inter-
venção levada a cabo pelas vanguardas, sua
radicalidade, sua capacidade de choque, a
instabilização realizada de fato pela suas ope-
rações de linguagem não pode ser medida,
porém, pelos escândalos dos surrealistas, pe-
los incômodos da crítica, pelo desconforto do
público: é no esforço feito pelos regimes fas-
cistas - as tentativas de levar ao limite a lógica
instaladora da racionalidade planejadora - na
eliminação da arte moderna que se o percebe.
A Arquitetura da destruição (Peter Cohen, 1992)
mostra bem esse esforço por parte do regime
nazista, sua determinação em criar uma arte
que respondesse às aspirações estéticas do re-
Jackson Pollock: Jackson Pollock: Jackson Pollock: Jackson Pollock: Jackson Pollock: Lavender Mist, número 1Lavender Mist, número 1Lavender Mist, número 1Lavender Mist, número 1Lavender Mist, número 1 (1950) (1950) (1950) (1950) (1950)
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 191
gime, que, cá entre nós, tornaram-se mais um bom índice de seu grau de
estupidez; o mesmo pode ser dito da arte soviética produzida sob a tutela
severa do stalinismo, que reduziu Malevitch, por exemplo, a um mero pro-
fessor de arte em Leningrado (Gullar, 1998:136). A esse respeito pode-se
sugerir um exemplo bastante revelador: em Vent d’est (1969), no apogeu das
discussões formais sobre as possibilidades de um cinema politicamente
eficaz pós-maio de 68, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin acusam
Serguei Eisenstein de ter, no Encouraçado Potemkin (1925), produzido uma
espécie de reiteração do grande “dispositivo”24 de representação nascido
na Renascença e portanto inescapavelmente comprometido, em sua gêne-
se, com o projeto de poder da ordem burguesa. É uma acusação que se faz
tanto mais interessante quando se nota, lembram Godard e Gorin, que
Goebels, ao assistir Potemkin, viu ali o modelo do filme de propaganda fas-
cista, e solicitou aos cineastas alemães que lhe dessem o seu Potemkim -
nessa altura, havia ali talvez somente Leni Reifenstahl capaz de realizar algo
do gênero, como de fato fez alguns anos depois. É este o ponto nevrálgico
que permite melhor demonstrar o poder desestabilizador, provocador,
desordenador e incapturável das vanguardas: pode-se imaginar Stalin ou
Hitler solicitando aos artistas nazistas ou soviéticos que lhe dessem o seu
urinol? Em sua precisão indiferente, em seu humor dadá, a provocação
duchampiana segue signo do vigor inventivo das vanguardas em violar to-
das as normatizações que procuraram delegar à arte essa ou aquela função.
Em síntese, as vanguardas produzem, por uma demonstração po-
derosa de inteligência e intuição formal, um espaço aparentemente des-
regrado numa cultura da regra, um território de espanto e choque na soci-
edade da ordem, um espaço de perpétua invenção na sociedade do homem
sem qualidades. Com isso, não apenas multiplicam o universo simbólico,
mas criam uma consciência crítica aguda do exercício da linguagem que
resulta finalmente em conhecimento formal das fundações da ordem sim-
bólica, conquista extraordinária que torna a arte inquestionável e
insubstituível perante os imperativos do funcionalismo. Em suma, fundam
Glauber Rocha em Glauber Rocha em Glauber Rocha em Glauber Rocha em Glauber Rocha em VentVentVentVentVentd’est d’est d’est d’est d’est (Jean-Luc(Jean-Luc(Jean-Luc(Jean-Luc(Jean-LucGodard e Jean-PierreGodard e Jean-PierreGodard e Jean-PierreGodard e Jean-PierreGodard e Jean-PierreGorin, 1969)Gorin, 1969)Gorin, 1969)Gorin, 1969)Gorin, 1969)
24 Falamos de Baudry e das implicações ideológicas do dispositivo de repre-
sentação do cinema no nosso capítulo anterior.
192 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
um canal ideológico, como diz Brito. Sintoma paradoxal dessa vitória é sua
assimilação pelos museus, sua recuperação pelo espaço institucional: “A
modernidade vencera, a modernidade perdera”. E no entanto, ainda aí a
questão não resulta esgotada: os trabalhos modernos parecem ainda irra-
diar uma inteligência rebelde que a instituição não assimila: ainda vesti-
dos de fraque e cartola, empetacados e levados em presença da rainha,
mantêm seu sorriso irônico e rebelde. (Brito, 2001:205).
Após a guerra, no entanto, os problemas se acumulam. As pesqui-
sas formais parecem esgotadas, e Pollock e Rothko anunciam o canto do
cisne do ciclo das vanguardas. A guerra atingira em cheio, sobretudo, o
estatuto da genialidade: Benjamin já alertara a medida em que o conceito
de gênio se prestava ao projeto fascista - que era Hitler senão a trágica
encarnação negativa dos valores do gênio? As demais categorias estéticas
associadas à aura igualmente haviam lhe parecido apropriáveis pelo
planejamento total da sociedade pelo poder fascista, e pode-se sugerir que,
se já associamos de algum modo as vanguardas aos valores românticos, não
é violentar o pensamento benjaminiano dizer que o “choque” foi, de certo
modo, um extraordinário esforço realizado para sustentar o poder de mis-
tério da imagem - servindo a um culto específico: da arte pela arte, talvez,
mas segundo a certeza de que havia uma guerra simbólica em curso, cujos
termos não eram necessariamente os da política convencional. Re-signi-
ficar a força da presença da imagem no dilúvio informacional da socieda-
de de massa, sustentar o valor do “talento”: recuperar, enfim, uma certa
aura - não a mesma, certamente, mas uma “aura moderna”; pode-se dizer
que por isso as obras modernas cabem tão bem nos museus. Seria demais
sugerir que os valores da arte moderna, ainda que sendo uma contraface
simbólica inapropriável pelos fascismos, estavam relacionados mais do que
se quer crer à circunstância experimentada pela cultura européia? Verifi-
cado o êxito das operações modernas, resta a questão: será que as vanguar-
das estavam mesmo à frente de seu tempo?
Dissemos que o vigor das vanguardas pôde medir-se pela sua es-
pantosa capacidade em responder de diversas maneiras ao desafio imposto
à arte pelo reajuste geral da cultura levado a cabo no século XIX, pelas inú-
meras soluções oferecidas ao problema. Mas é razoável notar que as solu-
ções foram oferecidas sempre a um mesmo problema. É o que Rosalind
Krauss aponta ao sugerir a presença - naquela grade bidimensional explo-
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 193
rada obsessivamente - de um mecanismo neurótico nas vanguardas, que
recusam tudo quanto fosse estranho à pureza greenberguiana da pintura,
por meio de repressão sistemática: “[...] the grid [...] is a structure [...] that
allows a contradiction between the values of science and those of
spiritualism to mantain themselves within the conscioussness of
modernism, or rather its unconsciouss, as something repressed.”25
(Krauss, 1999:13). As respostas são sempre novas; a questão permanece a
mesma. Além disso, se, como fizemos notar, a resposta que dispara o ciclo
das vanguardas é a descoberta das possibilidades abertas pela solução da
linguagem, é razoável também notar que a questão estava sendo inaugura-
da em outras esferas no contexto do fim do século XIX, quando Peirce e
Saussure, por exemplo, de maneiras distintas, se dedicam ao problema dos
sistemas de significação. E Husserl, já dissemos anteriormente, propõe um
“retorno às coisas elas mesmas” para atravessar a verdadeira barreira cri-
ada entre o conhecimento e o mundo vivido, esse adensamento do universo
dos textos que Flusser (1998) chama “textolatria” - não é por acaso que
Merleau-Ponty retorna sempre a Cézanne, a quem mesmo Argan atribui
uma fenomenologia. A descoberta do problema da linguagem na pintura
corresponde, então, à sua problematização em contexto mais amplo.
Ao produzir infatigavelmente, com potência quase frenética, a sua
paisagem divergente, o seu ritual perpétuo de sacrifício do passado - mes-
mo de um passado imediato - em nome de uma celebração incansável do
presente, não se fazia também senão legitimar a própria lógica moderna
de instalação do presente realizada pelas descobertas científicas, pelas
sempre novas máquinas, pela transitoriedade necessária ao sistema da
moda. Enfim, celebrava-se, ao modo da arte, com as desordens aí
implicadas e sua política própria, uma ordem dominante de evolução e de
progresso: uma teleologia positiva oitocentista, a que a arte adere e festeja
de modo talvez mais irrefletido do que tenha acreditado - o futurismo o fez
mais explicitamente, e daí talvez sua rápida decadência. Mesmo tendo em
conta que era já então vista com enorme desconfiança - em virtude de certa
grandeza atribuída às cisões com o dogmatismo católico levadas a cabo pela
25 “[...] a grade [...] é uma estrutura [...] que permite que valores contraditórios daciência e do espiritualismo mantenham-se íntegros no interior da consciência do
modernismo, ou melhor, da sua inconsciência, como algo reprimido”.
194 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ciência burguesa - qualquer posição “conservadora”,26 valor que herdamos
também de modo pouco refletido, não se pode negar que as vanguardas
encarnam, a seu modo, um ideal evolutivo e progressista. Aliás, Greenberg
(1986), num texto célebre,27 fala mesmo numa evolução progressiva em
direção à pura pintura, em que as impurezas do passado, de uma pintura
que “usava a arte para esconder a arte”, seriam sublimadas pela narrativa
histórica da pintura.
Por outro lado, pode-se notar também que, ao multiplicar a potên-
cia do autor, celebrando as virtudes e o mistério insubstituível e incompre-
ensível do gênio romântico28 - essa capacidade do indivíduo, por si e pela
força do espírito, em romper decisivamente a ordem e impor-se por sobre
o passado, mostrando um caminho da liberdade e ao mesmo tempo zomban-
do das castrações impostas ao cidadão comum -, estavam as poéticas da arte
moderna de algum modo operando perigosamente nos limites dos mesmos
valores do fascismo. Há aí um parentesco curioso, mormente mantidas as
diferenças substanciais de compromisso - como aliás já advertira Benjamin:
o poder conferido ao sujeito pela vitória sobre a natureza alimenta um mes-
mo ideal de pureza que inspira simultaneamente, guardadas as devidas pro-
porções, Picasso, Dali, e uma trágica fornada de ditadores fascistas.
Falávamos no segundo capítulo das
fundações da era moderna, e num certo mo-
mento Crosby diz, da passagem da Idade Mé-
dia ao Renascimento, que “nada diagnostica
melhor a interpretação dada à realidade por
uma sociedade do que a percepção que esta
tem do tempo” (Crosby, 1999:155). Implícita
na noção de vanguarda há ainda a presença de
um tempo que se experimenta segundo uma
direção precisa, como uma narrativa linear
rumo à utopia, rumo à redenção do espírito, de
tal modo que se vive segundo uma estrada
evolutiva imanente que permite imaginar este
lugar “adiante”. Não é possível supor estar “à
frente” senão segundo essa percepção do tem-
po linear, a ilusão da grande narrativa, a mes-
26 Num momento extraordinário de Nouvelle Vague (1992), Godard faz um sua-
ve travelling em que acompanha, no momento em que se recolhem para dor-mir, o apagar, uma a uma, das luzes da grande casa dos industriais. A essa
imagem, que traduz com precisão o fim de uma era − o apagar das “luzes”
burguesas − acompanha a voz-over, que diz que, no futuro, saberemos quevivemos um tempo em que havia “ricos, pobres e coisas a conservar”. Nessa
síntese em que todo um ceticismo godardiano se implica, coloca-se o proble-
ma das difíceis posições conservadoras no contexto contemporâneo. Avança-mos hoje numa velocidade extraordinária de modo demasiado irrefletido. Uma
posição como essa não é a da rejeição do futuro, mas a do impensado.
27 A pintura moderna. Neste texto, bastante conhecido, Greenberg propõe que oModernismo seria apenas uma continuidade da arte do passado, com a dife-
rença de que os antigos mestres usavam a arte para chamar atenção ao mun-
do, ao passo que os modernistas usam a arte para chamar a atenção à própriaarte. Afora isso, a história da arte seria uma tendência evolutiva em testar to-
dos os limites da tela − cor, desenho, espaço, representação − em direção a
uma essência da pintura.
28 Clouzot, por exemplo, filmou Le mystére Picasso (1956). Sobre esse documentário,
Bazin (1991:178) escreve: “ver um artista trabalhar não poderia dar a chave não
digo sequer de sua genialidade, o que é óbvio, nem de sua arte.”
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 195
ma que já se apresentava para o Beethoven que, no final da década de 1820,
diante das críticas a seus últimos quartetos, afirmava com segurança: “Gos-
tarão mais tarde”29. Não é fora de propósito dizer que a percepção do tem-
po que anima as vanguardas é a mesma sobre a qual o século XIX se fez, e
daí entende-se porque Godard afirma, em entrevista a Paul Amar, a res-
peito de suas Histoire(s) du cinéma, que “o século XIX foi como uma lança
cujo vôo se prolongou longe demais”.
Por fim, o projeto modernista, segundo essa versão um tanto
greenberguiana como o descrevemos - mas que se reencontra em toda
parte: sua similaridade com o discurso que anima as pesquisas da música
moderna, por exemplo, é evidente: busca-se lá a pura experiência da es-
cuta30 -, é conduzido segundo uma desnaturalização e descentramento do
olhar, uma vindicação da pura visualidade, de uma imagem sem referente,
da experiência especializada da visão - enfim: “isto [esta imagem que vejo
num espaço decididamente plano] não é um cachimbo”, como lembra
Martin Grossmann (1996), apontando o conhecido quadro de Magritte
como o ponto em que a lógica operativa da pintura moderna é posta a nu.
Trata-se, finalmente, somente da oscilação em accelerando, ao limite, das
hastes do objeto indestrutível. Em síntese, uma exploração - radical, subver-
siva, provocadora - do olhar configurado na gestalt experiencial da razão
ocidental, o ponto de experiência da modernidade, que está aí sendo leva-
do às suas (aliás verdadeiramente) últimas conseqüências - como inclu-
sive vimos quando se falou da recepção da Fenomenologia da percepção. Se
dissemos que Merleau-Ponty poderia ser visto como um filósofo moder-
no no ocaso da modernidade - e não é à toa que a pintura que lhe interessa
é a de Cézanne e a das primeiras décadas do século XX -, também as van-
guardas estiveram, tanto quanto qualquer outra manifestação, profunda-
29 apud Massin e Massin (1997: 617).
30 Sobre Webern, considerado o compositor que consuma a consciência modernana música, Boulez escreve: “De fato, é Debussy o único que pode se aproximar
de Webern numa mesma tendência que visa destruir a organização formal pré-
existente à obra, através do mesmo recurso à beleza do som pelo som, atravésda mesma elíptica pulverização da linguagem. [...] Única, mas singularíssima
inovação de Webern no campo de ritmo [o uso do silêncio], essa concepção onde
o som está ligado ao silêncio numa precisa organização para uma eficácia exaus-tiva do poder auditivo. A tensão sonora se enriqueceu com uma real respiração,
somente comparável ao que realizou Mallarmé no poema.” (Boulez, 1998:269-
70). Vê-se, nesse comentário do mais obstinado teórico da música contempo-rânea, atribuídos à música moderna todos os traços que atribuímos à pintura e
à arte moderna de modo geral − inclusive a poesia. Não é demais, também,
notar que tanto a música contemporânea, envolvida em longas discussões so-bre novos modos de escrita musical, bem como a poesia que vem de Mallarmé
são profundamente marcadas pela visualidade.
196 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
mente mergulhadas no sentido de mundo nascido de um certo do modo de
perceber. Não é possível estar além do tempo: malgrado seu poder de cho-
que, a arte moderna operou segundo as possibilidades oferecidas pela per-
cepção operante. Deve-se ousar reconhecer que as antenas da raça de
Pound não podiam captar mais do que as ondas do presente, e a arte mo-
derna pode ser pensada mesmo, pela sua produção febril de linguagem,
como uma máquina entre máquinas, uma extraordinária máquina
semiótica.
A determinação em opor-se à experi-
ência cotidiana não libertou a arte dessa vigên-
cia do olhar: só se pôde gerar estranhamento
negociando habilmente dentro das possibili-
dades disponíveis na cultura. As vanguardas
buscaram preservar lugar que havia sido in-
ventado pelo romantismo31 em oposição à or-
dem produtiva funcional e maquinal posta em
marcha no século XIX. O esgotamento das pos-
sibilidades formais após a II Guerra, a exaustão
européia quanto ao pesadelo em que desem-
boca a narrativa fundada nesse olhar, instau-
ram as condições do encerramento da lógica
das vanguardas. Terá de ser nos Estados Uni-
dos - uma cultura do gigantismo, sem passado
nem proporção (Argan, 1992:507) - que
Pollock e Rothko poderão ser os trágicos e
31 “Na postura romântica, a negação do mundo presente se dá na opção por umisolamento aristocrático que induz, ao mesmo tempo, a um tratamento da obra
como um produto auto-suficiente que prescinde de sua avaliação pelos
parâmetros da mercadoria, protegido por um arcabouço estético que definena forma artística o elemento de evasão da realidade. Com isso, inaugura-se
no romantismo a tradição moderna de lidar com a produção artística como um
objeto autônomo, regido por leis próprias inerentes à escritura e à linguagemde cada setor das artes, formando-se verdadeiros sistemas de valores alheios
às intempéries externas.
“Se é verdade que a concepção da autonomia da arte é fenômeno que se ins-
tala definitivamente na metade do século XIX e se alastra predominantemen-te a partir do simbolismo literário, não resta dúvida de que a postura român-
tica de alheamento do mundo é que prepara, com alicerces na filosofia da
época, as condições para o advento de tal concepção...” (Menezes, 2001:47).
Mark Rothko: Mark Rothko: Mark Rothko: Mark Rothko: Mark Rothko: Sem título Sem título Sem título Sem título Sem título (1960)(1960)(1960)(1960)(1960)
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 197
grandiosos representantes dessa exaustão.32 Não surpreende então que a
geração seguinte, Rauschenberg e Jasper Johns, por exemplo, já se rebele
quanto à condição expressiva do gênio, recuse radicalmente a
interioridade, contamine a tela com todo o tipo de materiais estranhos,
32 Argan descreve, não sem uma certa desconfiança, a passagem que marca a
mudança do centro da cultura artística moderna de Paris para Nova Iorque, após
a II Guerra: “A arte dos Estados Unidos atinge ao mesmo tempo uma posiçãode autonomia e de hegemonia. Conserva as relações com a esfera européia,
faz-se presente (por vezes de maneira prepotente) nas Bienais de Veneza, nas
Documenta de Kassel, na Bienal de São Paulo. Possui, porém, características pró-prias e inconfundíveis: a primeira delas é a ausência de qualquer inibição em
face de todas as tradições. O que na Europa traz o signo de uma dedução final
e constitui o documento desesperador de uma civilização em crise, nos EstadosUnidos é descoberta, invenção, ímpeto criativo. Não que a imagem existencial
apresentada pela arte americana seja mais otimista do que na Europa, mas
justamente por isso ela é, em termos objetivos, mais vital.
“‘A exclusividade com que a visão global do mundo do homem moderno, nasegunda metade do século XIX, aceitou ser determinada pelas ciências posi-
tivas e com que se deixou cegar pela prosperity delas derivada, significou um
afastamento dos problemas que são decisivos para uma humanidade autên-tica. As meras ciências de fatos criam meros homens de fato... Na miséria de
nossa vida − ouve-se dizer − esta ciência não tem nada a dizer. Ela exclui deprincípio exatamente aqueles problemas que são os prementes para o homem,
o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se nas mãos do destino; os
problemas do sentido ou do não sentido da existência humana em sua tota-lidade’. Assim, poucos anos antes da Segunda Guerra, Husserl considerava
inevitável a ‘crise das ciências européias’, isto é, do sistema cultural fundado
na racionalidade e, naturalmente, na consciência de seus limites e nacomplementaridade natural da imaginação ou fantasia (ou seja, a arte) em
relação à lógica (a ciência). A cultura americana, pelo contrário, ignora essa
proporcionalidade de base: a ciência não é uma atividade em contraste comuma cultura fundamentalmente humanista e não tem limites a seu progres-
so, da mesma forma como o arquiteto pode erguer um arranha-céu com mais
de cem metros de altura sem violar qualquer medida proporcional, ou o pin-tor lançar as tintas ao acaso ou cobrir uma enorme superfície de uma cor uni-
forme sem ofender a memória de Rafael ou Rembrandt. O problema, se tan-
to, não nasce antes e sim depois − apenas depois é que se pode perguntar, sese quiser, para o que serve ou o que significa a ‘criação’ do artista.” (Argan,
1992:507). Argan é um humanista, e a própria noção de uma “humanidade
autêntica”, que toma, aliás, em Husserl, é hoje, na era da clonagem, quaseuma noção que escapa à experiência. O diagnóstico que faz, porém, do modo
como o triunfalismo norte-americano se apropria da tradição de modo
“prepotente” − e Argan não tem problemas em reconhecer algumapositividade aí: sua “vitalidade” − ecoa no Jean-Luc Godard de Eloge del’amour (2002), em que o diretor franco-suíço faz críticas duras ao modo como
o cinema americano se apropria da memória dos povos e a submete a essaprópria lógica arrogante fundada na força econômica e na liberdade adoles-
cente da ausência de passado.
recuse a herança crítica de Greenberg. No
momento seguinte, Wharol põe a última pedra
sobre a utopia romântica do lugar à parte, da
rejeição à ordem produtiva, e declara: “Gosta-
ria de ser uma máquina”. Ao aderir decisiva-
mente à ordem do sistema - adesão que leva
consigo clandestina uma boa dosagem de ci-
nismo e ironia -, a pop-art implode a distân-
cia que permitia ao artista fazer um discurso
crítico de seu tempo a partir de fora da ordem
social instituída; deixa de colocar-se à frente
e dialoga com o presente, no presente: é a
crônica do mundo imediato e volátil, do con-
sumo efêmero, que dá a ver com eficiência pu-
blicitária. Nem por isso atinge, porém, o ter-
ritório que fora conquistado. Tampouco as
agressões formais subsequentes, que terão em
vista a condição de mercadoria da arte, que se
torna idéia, conceito, e recusam definitiva-
mente sua apropriação como objeto decorati-
vo, por meio de performances, instalações e
obras específicas para determinados locais,
por exemplo, poderão fazê-lo: “a arte não pode
matar a arte”, conclui Brito (2001). Pode-se,
sim, habitar, segundo estratégias poéticas que
persigam a manutenção das tensões que ani-
mam sua vitalidade, um território legitima-
mente autônomo na cultura, de que as demais
forças culturais, econômicas políticas que ne-
gociam o presente por meio de diversas insti-
tuições, procurarão de muitos modos tirar
198 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
proveito, absorver, cooptar ou desarmar tanto quanto possível. A produ-
ção não se faz de morta nesse novo cenário: basta ver as obras de Hans
Haacke, nas décadas de 1980 e 1990, denunciando sistematicamente as
corporações que procuravam manter uma imagem institucional positiva
por meio do financiamento da arte, com a riqueza adquirida por meio de
negócios de caráter eticamente duvidoso nos continentes do Terceiro
Mundo (Bourdieu e Haacke, 1995). Em Haacke, aliás, vê-se bem o quanto
a criação já se exerce manobrando as forças do presente.33
Jasper Johns: Jasper Johns: Jasper Johns: Jasper Johns: Jasper Johns: Trois drapeauxTrois drapeauxTrois drapeauxTrois drapeauxTrois drapeaux (1958) (1958) (1958) (1958) (1958)
Enfim, a “ausência de coupure” entre
as categorias estéticas e a experiência comum,
que Benjamin descrevera com tanta clareza no
pensamento estético do século XVIII,34 como
diz Costa-Lima (1983:207), estende-se em
todas as direções - passado, presente, futuro.
Se tomamos essa constatação no registro da
tese sobre a percepção que temos proposto, as
diversas camadas de elaboração da cultura, das
mais “populares” às mais “eruditas” - para
usar operacionalmente uma distinção já em si
bastante problemática - podem ser pensadas
33 Eduardo Kac parece fazê-lo bastante bem, joga habilmente com as forças en-volvidas no mundo da arte. O mérito de sua produção e as direções para onde
sua obra aponta são no entanto bastante discutíveis, já que nos parece ser um
artista realmente engajado nos valores do sistema. Demandaria um espaço mui-to além dos objetivos deste trabalho elencar os argumentos que nos parecem
sustentar essa posição. A título de comparação, porém, pode ser razoável no-
tar o êxito experimentado por Kac com sua coelhinha Alba e o destino de SteveKurtz, do Critical Art Ensemble, preso sob a acusação de bio-terrorismo (ver
http://www.ctheory.net/text_file.asp?pick=425). As obras do CAE, e outras −como na mostra CleanRooms (Londres, 2003) −, problematizam de modo muitomais interessante o universo da biotecnologia. Por exemplo, a extrema assepsia
envolvida nos ambientes em que é produzida. Ver: http://www.nhm.ac.uk/
cleanrooms/crhome.htm
34 Brito o coloca de modo bastante similar: “De fato, ao colocar-se em cheque, aarte visava também ao que se pensava e ao que se dizia dela. Eis um ponto
em que, surpreendentemente, filosofia e senso comum andaram muitas vezes
juntos.” (Brito, 2001:204).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 199
como explicitações da percepção, segundo um modo de perceber dominan-
te na cultura, o ponto-de-experiência sobre o qual assenta se essa espécie de
alucinação coletiva que é o real, e cujo modo de ser é dissimular-se. A per-
cepção se abriga impensada em cada gesto, se exerce no hábito, se oculta,
já dissemos tantas vezes, para fazer surgir o mundo - abriga o “cotidiano
como impenetrável e o impenetrável como cotidiano”, nas palavras de
Benjamin (1996:33). McLuhan (2001:83-4), sempre sinteticamente, de-
fine esse cotidiano como o “ambiente” [environment] que habitamos:
“Environments are invisible. Their groundrules, pervasive structure, and
overall patterns ilude easy perception.”35
Finalmente descobre-se que a era das vanguardas esteve tão de
mãos dadas com seu tempo como toda a arte sempre esteve. “O ser”, di-
zem Bairon e Petry, “se define pelo entorno”: a obra de arte só se define na
circunstância cultural de que emerge, sendo re-significada em suas dife-
rentes presentações. Esta constatação pode parecer ferir um mito do
“novo” que sustenta até hoje certa valoração da obra de arte, mas veremos
que esse temor não procede. Aceitar que as vanguardas nunca estiveram
além do presente não significa que não tenham cumprido de modo extra-
ordinário a tarefa decisiva imposta por seu tempo: conquistaram à arte um
território inquestionável, fizeram da arte um território de saber, mostra-
ram seu poder de construir conhecimento, legitimaram sua permanência
como “canal ideológico” inapropriável por esta ou aquela ordem de poder,
mas problematicamente atado ao presente. É neste território conquista-
do “a golpes de lúcida loucura”, como diz Brito, que as poéticas contem-
porâneas vão se desenvolver. O problema, então, não é mais romper com
as regras rígidas do academicismo do século XIX, mas manter o poder ex-
pressivo de um território historicamente saturado, marcado pelo brilho
desafiador e provocador da inteligência moderna, em que todas as ruptu-
ras possíveis talvez já tenham sido feitas, conjugando sensibilidade e pen-
samento.
Mas se a arte não pode ser vanguarda, está atada de todos os modos
ao seu tempo - modos que sabemos e modos que certamente escapam ao
nosso instrumental de saber -, se não se pode justificá-la em seus gestos
de beleza ou estranhamento pelo argumento da prospecção do futuro, pelo
35 “Ambientes são invisíveis. Suas regras fundamentais, sua estrutura pervasiva
e seus padrões gerais iludem a percepção imediata”.
200 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
“estar adiante”, como se pode pensá-la como conhecimento? Pode-se
propor conceitos que, ao invés de figurarem critérios de valoração,
categorização ou classificação, constituam antes modos de legitimá-la
como instância de conhecimento? Que proponham modos de intensificar
a potência das aberturas inauguradas pelas disposições sensório-
conceituais da obra, pela experiência vivida em sua presença e a rede
comportamental, simbólica e discursiva disparada por seu impacto esté-
tico? Também aqui as dificuldades são grandes: uma das conquistas cer-
tamente modernas foi tornar inquestionável que a definição mesma da arte
só pode ser dada pelas obras. Qualquer definição é insuficiente; faz parte
do modo de ser da arte recusar essas tentativas de antecipá-la - que se apro-
ximam perigosamente do objetificante ocidental e recusam interrogá-la,
de início que seja, a partir da arte, interrogá-la em seu registro próprio,
enfim; ou ainda, faz parte desse rigor crítico legado pela arte moderna fa-
zer-se a produção à revelia, na contramão mesmo, das categorias estéti-
cas, aliás sabidamente epocais, denunciando incessantemente seus limi-
tes; finalmente, a produção artística opera por si própria, o gesto emerge
das tensões e das forças dinâmicas em jogo no tecido social e, para inau-
gurar possibilidades e materiais, dialogar ou ocupar espaços, problematizar
situações, não espera que sejam definidos, a priori, seus modos de ser. Por
que razão dever-se-ia, em princípio, descartar a legitimidade das produ-
ções contemporâneas que emergem à margem das grandes instituições -
DJs, VJs, web-art etc.? Ou os grafitti e as manifestações de uma chamada
“arte popular”? Certamente, os critérios que servem aos trabalhos que as-
piram à legitimação num certo circuito necessitam ser distintos, mas não
podem ser definidos nesses termos, com tal
antecipação com relação à realidade, aos for-
matos, as estratégias e as linguagens que sur-
gem num eixo sincrônico contemporâneo. Nas
várias tendências e articulações que se multi-
plicam no circuito de arte a partir do fim da
década de 1950, e cada vez mais polifoni-
camente a partir dos anos 1960, se tem claro -
não é exatamente isto que propõe Kosuth?36 -
que uma grande questão é a própria arte, pa-
lavra cujos significados as obras não se cansam
36 “In this period of man, after philosophy and religion, art may possibly be one
endeavour that fulfills what another age might have called ‘man´s spiritual
needs’. Or, another way of putting it might be that art deals with the state ofthings ‘beyond phisycs’ where philosophy had to make assertions. And art´s
strength is that even the preceding sentence is an assertion, and cannot be
verified by art. Art´s only claim is for art. Art is the definition of art.” (“Nesseperíodo da humanidade, depois da filosofia e da religião, a arte possivemente
vem a ser um empreendimento que preenche aquilo que em outra época foi
chamado ‘necessidades espirituais do homem’ . Ou, encarando de outro modo,pode se dar que a arte lide com o estado de coisas ‘além das propriedades
físicas’ onde a filosofia tinha a fazer asserções. E a força da arte está em que
mesmo a sentença precedente é uma asserção, e não pode ser verificada pelaarte. A arte reivindica apenas a própria arte. A arte é a definição da arte.”).
(Kosuth, in Harrison, Wood e Gaiger, 2002).
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 201
de expandir. Mas tal resposta é ainda insuficiente, já que, ao erguer de ma-
neira tão obstinada37 os limites de seu território e concluir sua missão his-
tórica, por assim dizer, as vanguardas haviam se afastado por demais do
cotidiano, e a pureza absoluta da linguagem resultou em certa tautologia
Joseph Kosuth: Joseph Kosuth: Joseph Kosuth: Joseph Kosuth: Joseph Kosuth: Uma, três cadeirasUma, três cadeirasUma, três cadeirasUma, três cadeirasUma, três cadeiras (1968) (1968) (1968) (1968) (1968)
37 O pintor americano Ad Reinhardt (1986) chega mesmo a propor, num texto
um tanto panfletário, a separação absoluta entre a arte e qualquer outra ins-
tância do tecido sócio-cultural. Não surpreende, e está bem de acordo com oque temos sugerido aqui, que Lucy Lippard (1986:181) mencione alguns pa-
rágrafos de Reinhardt, entre diversas citações de artistas americanos do início
dos anos 60, para fazer menção a um certo espírito “semelhante ao fascis-mo” que pretende impor ao espectador as razões corretas para se gostar de
uma obra. Um belíssimo exemplo da distância do cotidiano em que as artes
visuais colocaram-se num certo momento é a descrição que Pasolini faz, emTeorema (1968), do jovem burguês que decide tornar-se artista. Ele diz: “É
necessário inventar novas técnicas − que sejam irreconhecíveis − que não se
pareçam com nenhuma operação precedente. Para com isso evitar a puerilida-de e o ridículo. Construir um mundo próprio, em relação ao qual não sejam
possíveis comparações. Para o qual não existam medidas estabelecidas de
julgamento. As medidas devem ser novas como a técnica. Ninguém deve per-ceber que o autor não vale nada, que é um ser anormal, inferior, − que, como
um verme, se contorce para sobreviver. Ninguém deve surpreendê-lo num
momento de ingenuidade. Tudo deve apresentar-se como perfeito, baseado emregras desconhecidas e, portanto, não-susceptíveis de julgamento.” (Pasolini,
1984:124). Trata-se de um julgamento bastante rigoroso, e, conquanto equi-
vocado, diz um bocado a respeito dessa posição em que as poéticas plásticasse puseram em certo momento.
38 Na música, sobretudo, o afastamento é claro, e já nos anos 1960 há um nítido
movimento de retorno ao intérprete, às escalas, a certa inteligibilidade e certapresença cênica, perdidos no radicalismo extremo das experiências concretas
e eletrônicas. Ao fazer notar essa distância, não estamos, por certo, valorando
negativamente a pesquisa e a experimentação como aberturas para o presen-te, como espero tornar claro no que se segue.
hermética - contra a qual, já dissemos, o pop
desfecha golpe mortal.38 Brito resume elegan-
temente os termos, instáveis certamente, que
regem o problema contemporâneo:
“A afirmação de uma inteligência
atópica, sem recuperação possível pelo
Espaço da Dominação onde se exerce,
confere à arte um poder negativo
específico - pensar o impensável,
fabricar o infabricável, ainda que os
faça nos limites regulados pela própria
realidade, no terreno espiritualizado
da ‘criação’. Assim, a arte contempo-
rânea perfaz-se enquanto arte,
constrói ilusões de verdade e destrói
as ilusões da Verdade.” [Brito,
2001:215]
Há então um espaço ideológico,
saturadamente mapeado pelas rupturas histó-
ricas, onde, a rigor, não se pode mais “romper
com o passado” do modo como as vanguardas
o fizeram - nesse espaço, onde as poéticas de-
vem se lançar para medirem mesmo a própria
potência, já não há, em termos formais, qual-
quer “academicismo” a agredir, e há mesmo
tantas possibilidades formais que não é possí-
vel ao artista deter o cálculo total do impacto da
obra. À multiplicidade dessas alternativas,
responde a demanda por certo diálogo inevi-
tável com a história que não abriga conforta-
velmente nem a ingenuidade nem o simples
202 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
gesto expressivo. Deve-se, então, correr o risco, lançar-se em ação - em
processo -, exercer ao limite o rigor em colocar-se as questões possíveis ou
necessárias e, sobretudo, encontrar estratégias poéticas adequadas. Qual-
quer decisão é tomada, porém, na ciência de que não se pode conter aspec-
tos clandestinos que pertencem à própria (não) lógica da criação e às
complexidades imanentes aos processos de exposição - cálculo de espaço,
condições de fruição, capazes de realizar a potência de presença da obra -
e, sobretudo aos processos de recepção: já se tem, precocemente desde os
readymades, e formalmente desde ao menos O ato criador (que Duchamp
escreveu em 1957), reconhecida a participação do espectador na definição
do significado da experiência inaugurada pela obra. Martin Grossmann
(1996:36-7), nesse sentido, lembra a posição paradigmática dos Parangolés
de Oiticica na constatação de que não há mais exatamente a obra - o bom e
velho objeto ideal - a ser contemplado, mas um momento-arte, o contexto
espaço-temporal, a circunstância em que se integram artista, obra, espec-
tador. No entanto, desse exaustivo levantamento das forças que atraves-
sam o trabalho de arte, e seu ultrapassamento
no ato criativo, a obra se torna, finalmente,
uma realização de pensamento sensível que
instala seu próprio espaço-tempo, seu regime
espectatorial, seu registro perceptivo: num
jogo deflagrado pela presença da obra e pelas
relações aí estabelecidas, consciência
perceptiva do participante e o campo sensó-
rio-conceitual inaugurado pelo artista se im-
plicam mutuamente, se entretecem, se re-de-
finem, autenticam suas próprias existências
na experiência-arte.
Em síntese, a obra de arte contempo-
rânea não se acessa segundo categorizações
simplificadoras - land-art, site especific, insta-
Hélio Oiticica: Nildo da Mangueira com Hélio Oiticica: Nildo da Mangueira com Hélio Oiticica: Nildo da Mangueira com Hélio Oiticica: Nildo da Mangueira com Hélio Oiticica: Nildo da Mangueira com ParangoléParangoléParangoléParangoléParangoléP4 - P4 - P4 - P4 - P4 - capa 1 capa 1 capa 1 capa 1 capa 1 (1964)(1964)(1964)(1964)(1964)
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 203
lação, performance, tanto quanto sciarts, arte transgênica, soft-cinema, web-
art, obra interativa etc... são certamente termos operacionais que têm lá sua
utilidade, esclarecem por vezes um campo ou outro que se traz à baila, mas
dizem pouco da natureza da experiência implicada pela presença do espec-
tador diante da obra e a experiência singular de conhecimento posta aí em
marcha. Se Beatriz Milhazes pinta telas e Giselle Bieguelman - para falar-
mos em nomes brasileiros - cria trabalhos empregando sistemas e
interfaces digitais; se Amélia Toledo reúne objetos recolhidos à natureza
combinados ao emprego de imagens digitais, ou Fernanda Gomes cria ins-
talações fazendo intervenções milimétricas no vazio, deve-se partir de um
critério qualquer de valoração a priori pelas escolhas de materiais e estra-
tégias estéticas empregadas? Segundo que critérios? Alguns diriam, jus-
tificando a escolha de meios tecnológicos, que “o artista emprega os mei-
os mais avançados de seu tempo”, mas isto implica um certo julgamento
de valor: “telas, bem... trata-se de um meio relativamente pouco avança-
do”, poder-se-ia concluir. Sobretudo em comparação a um trabalho digi-
tal, uma imponente instalação interativa tridimensional de Jeffrey Shaw,
por exemplo. “Avançado” traz consigo todos os valores que examinamos
há pouco: “novo”, “estar à frente”... “vanguarda” - e chega-se aí ao ponto.
Como pensar essa presença em que a obra contemporânea, segun-
do seus vários modos de ser, instala um regime perceptivo no qual
intencionalidades da poética e do espectador se fundem numa ordem de
experiência sensório-conceitual? Sobretudo, como tomá-la como expe-
riência de conhecimento? Tentemos partir de duas definições que se co-
implicam. Jean-Luc Godard, em JLG par JLG -- Autoportrait de décembre
(1994) tem a primeira: “cultura é a regra; a arte, a excessão”, e vê-se aqui
não apenas toda a disposição crítica que atribuímos à herança modernista
(Godard sendo mesmo o momento em que a autocrítica da linguagem chega
ao cinema narrativo, como se sabe), como também o modo pelo qual as
poéticas estão presas a seu tempo - são a excessão que confirma, e desse
modo também faz perceber, a regra: torna-a figura ali onde era fundo;
204 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
McLuhan tem também uma definição provocadora, cujas conseqüências
vale investigar.39 Define a cultura como um “ambiente invisível” (já dis-
semos há pouco), em que habitamos tal qual um peixe na água (“Fish don’t
know water exists till beached”), e a arte desempenha em tal ambiente um
papel singular: “Whithout an anti-environment, all environments are
invisible. The role of the artist is to create anti-environments as a means
of perception and adjustment.” (McLuhan, 1996:36)40. Assim, para
McLuhan, o lugar divergente, o espaço-tempo instalado pela obra, cum-
pre fundamentalmente esse mesmo papel de subverter as relações figura-
fundo da cultura, reverter as disposições
perceptivas de tal modo a que se possa acessar
o ambiente, a percepção do mundo dissimu-
lada, oculta no hábito: trazer o peixe à praia,
para que saiba finalmente o que é a água.
Parece razoável afirmar que nem
Godard nem McLuhan divergem do cenário
que construímos acima. Mas falamos há pou-
co em categorias que permitissem, ao invés
de classificar e nomear, amplificar a potên-
cia das aberturas inauguradas pelas disposi-
ções sensório-conceituais da obra, e trata-se
então de arriscar propor alguns modos de
acesso que não antecipem além da medida
explicações, que não se sobreponham dema-
siadamente à sua presença ansiosa - como
sugeriria Rosenberg - arsenal conceitual,
mas antes sustentem a abertura ao mistério
de sua potência poética.41 Então poderemos,
nesse registro em que nos lançamos à aven-
tura da experiência da obra de arte, segundo
esse encontro sensível em que suas estraté-
gias nos constituem e nós a elas, buscar os
termos adequados para iniciar o diálogo em
que esta nos interroga e a ela lançamos nos-
sas perguntas, para ver de que modo nos res-
39 Os insights de McLuhan sobre a questão da arte, sobretudo no que diz respei-
to à literatura e à poesia, campo de sua formação, estão longe de serem trivi-
ais. Suas interpretações da obra de Joyce são notáveis − leia-se, por exemplo,War and peace in the global village, seu texto integrado ao design de Zingrone,
lançado originalmente em 1968 (McLuhan e Fiore, 1997): toda a discussão é
construída através da sua original integração de texto e design, comentada,numa estrutura que antecipa o hipertexto, por citações do Finnegans Wake.
Em 1951, escreve em carta a Harold Adams Innis: “But it was most of all the
esthetic discoveries of the symbolists since Rimbaud and Mallarmé (developedin English by Joyce, Eliot, Pound, Lewis and Yeats) which have served to recreate
in contemporary consciousness an awareness of the potencies of language such
as the Western world has not experienced in 1800 years”, e, mais adiante:“From the point-of-view of the artist however the business of art is no longer
the communication of thoughts and feelings, but a direct participation in an
experience.” (“Mas, foram sobretudo as descobertas estéticas dos simbolis-tas, desde Rimbaud e Mallarmé (desenvolvidas em Inglês por Joyce, Elliot,
Pound, Lewis e Yeats) que serviram para recriar na consciência contemporâ-
nea uma ciência das potencialidades da linguagem que o mundo ocidental nãoexperienciara ao longo de 1800 anos” [...]”Do ponto de vista do artista, toda-
via, a tarefa da arte não é mais a comunicação de pensamentos e sentimentos
mas a participação direta numa experiência.”) (McLuhan, 1987:220-1). Con-siderando que estas observações são de 1951, antes mesmo dos primeiros tra-
balhos do grupo Fluxus e ainda em plena vigência do impressionismo abstrato,
a percepção das mudanças de sensibilidade que se gestavam − e que atribui,naturalmente, às tecnologias de comunicação − é notável.
40 “Sem um anti-ambiente, qualquer ambiente é invisível. O papel do artista é
criar anti-ambientes como recurso de percepção e ajuste.”
41 Essa medida a que nos referimos é certamente problemática. Acessar inicial-
mente a obra por meio da mediação de textos pode não ser diferente de acessá-
la sem texto algum, visto que não há exatamente “olhar espontâneo”. Brito,numa das passagens que consideramos mais agressivas do texto (O modernoe o contemporâneo: o novo e o outro novo) bem conhecido a que temos nos
referido, faz menção à impossibilidade da espontaneidade: “ao contrário doque se crê, esta [a sensibilidade empírica] é a mais determinada pelos códigos
vigentes” (Brito, 2001). Não há, enfim, percepção sem intecionalidade, como
aliás já vimos. De todo modo, o que nos importa é fazer da experiência da obrauma aventura que não se esgote nas aberturas inauguradas por este ou aque-
le discurso, mas que seja vivida em seu inesgotável.
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 205
ponde. Sobretudo, trata-se de formalizar posições já discutidas acima so-
bre a relação entre espectador e obra, sobre sua relação inescapável com
o presente e, dado que não cremos no mito da prospecção do futuro, so-
bre o modo como abrigar o exercício da experimentação - vital à manu-
tenção da tensão necessária no jogo de forças de que emergem os univer-
sos poéticos.
Benjamin dissera que a estética clássica se fundara na aura, e dis-
semos em seguida que os trabalhos modernos estabeleceram, através do
choque, uma espécie de “aura moderna” - mantiveram com isso a distân-
cia necessária ao poder da obra de intervir no campo simbólico; em segui-
da, lembramos que as poéticas contemporâneas incorporam em seu cál-
culo a participação do espectador, sem cujo engajamento a obra não vive,
não se deflagra o momento-arte - e fala-se um bocado, no território das
chamadas novas mídias, em interatividade e imersão. Mas trabalhos como
os de Lygia Clark, suas experiências coletivas ou seus objetos relacionais,
ou ainda os objetos de Amélia Toledo, menos informais que os da fase fi-
nal de Clark, não são, cada qual a seu modo, profundamente interativos,
imersivos e mesmo multisensoriais? Clark decididamente desidealiza os
materiais: emprega sucata, isopor, sacos vazios, conchas, carreteis de li-
nha; agride todas as convenções que regulam as posições de autor e espec-
tador, de modo que a obra não mais traduz ou conduz à interioridade do
artista, mas o espectador ou participante é que é remetido a seu próprio
corpo e experimenta a si mesmo: toda a hierarquia sobre a qual historica-
mente se funda a arte é subvertida, sem qualquer uso de dispositivos
tecnológicos - de tal modo que Guy Brett, citando artigo de Ricardo
Basbaum, se pergunta sobre os diferentes níveis mesmo de interação sen-
sorial criados pelas Máscaras sensoriais ou Máscaras-abismo de Lygia Clark
e as obras realizadas com recursos digitais.42
Compare-se, quanto à interatividade, esses objetos de Clark com
o gigantismo tecnológico de uma obra como Place Ruhr (2000), do celebra-
do Jeffrey Shaw. O espectador posiciona-se a bordo de uma pesada plata-
forma, ao centro de uma espécie de panorama interativo, para daí coman-
42 “Basbaum enfatiza a ‘pobre interação sensorial’ oferecida pelo computador,
em comparação ao trabalho dos dois artistas brasileiros [Clark e Oiticica]: ‘Há
uma falta de ressonância orgânica nos bytes de informação [do computador],enquanto os quanta sensoriais [de Clark e Oiticica] proliferam através do cor-
po’. Basbaum conclui que os computadores têm de mover-se além do proces-
so cognitivo formal para conquistar uma compreensão ampliada das realida-des sensoriais-conceituais.” (Brett, 2001:43).
206 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
dar, por meio de controles manuais, o campo visual a seu redor e percor-
rer essa representação virtual do Ruhr, impregnando-o com os “vestígios
de sua passagem” - palavras ou frases que o espectador emite e que são
capturadas pelo sistema, permanecendo no ambiente por um tempo cal-
culado. Enfim, poder-se-ia perguntar, por exemplo, como essas duas es-
tratégias voltadas a incorporar o espectador relacionam-se aos problemas
que levantamos a partir do objeto indestrutível de Man Ray, e as respostas
quase que pululam no discurso, por força dos contrastes violentos aí dis-
postos: Clark, em sua economia, em sua desidealização de artista e obra,
na informalidade de seus materiais, celebra o corpo vivo, os conflitos en-
tre o dentro e o fora do espectador; inaugura espaços existenciais defini-
tivos naqueles que experimentam as situações disparadas por uma poéti-
ca que é também reflexão extrema sobre os limites do modernismo - seu
ultrapassamento paradigmático, aliás. Não deixa porém de guardar, em seu
despojamento, uma inteligência provocadora, uma ironia transgressiva,
que dialoga e expande de modo solidário os deslocamentos propostos por
Ray: este também mantém forte ironia e o faz deslocando ao centro do
espetáculo o objeto que normalmente rege, oculto, a sua lógica mecânica,
a mesma lógica do olhar imposta ao corpo cotidiano, e que Lygia ultrapas-
sa decisivamente ao propor uma ordem experiencial que, precisamente,
descondiciona e liberta o corpo vivido. A espetaculosa maquinaria de Shaw,
porém, parece instalar de um só golpe o corpo e o olhar denunciados por
Ray, ao mesmo tempo em que, por meio do cálculo da interação, parece
querer dissimular a presença - se é que se pode fazê-lo, dado seu
gigantismo - do enorme aparato que regula a experiência. Os gestos e o
corpo que nos devolve estão muito mais pró-
ximos daqueles denunciados em 1932 por
Giacometti em A mão capturada: esse corpo
determinado pela mediação maquínica que
normatiza o cotidiano.
Por seu turno, Amélia Toledo opera,
em termos de materiais, numa espécie de
meio-termo entre o despojamento de Clark e
Jeffrey Shaw: Jeffrey Shaw: Jeffrey Shaw: Jeffrey Shaw: Jeffrey Shaw: Place Ruhr Place Ruhr Place Ruhr Place Ruhr Place Ruhr (2000)(2000)(2000)(2000)(2000)
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 207
o circo tecnológico de Shaw. Põe nas mãos do
espectador peças de vidro que já são fruto de
um sofisticado processo técnico (que a artista
projeta mas não executa), e suas Bolas-Bolhas
cheias de espuma, idênticas, são afinal objetos
que têm a marca dos processos industriais,
mas que se oferecem delicadamente lúdicos.
Convidando à longa exploração de suas possi-
bilidades tácteis, de suas superfícies macias e
aos jogos visuais com a luz que atravessa as lâ-
minas de espuma formadas em seu interior
Amélia Toledo: Amélia Toledo: Amélia Toledo: Amélia Toledo: Amélia Toledo: Pedra LuzPedra LuzPedra LuzPedra LuzPedra Luz (2004) (2004) (2004) (2004) (2004)
pela manipulação, Toledo abre um tempo próprio no interior do tempo
urgente cotidiano; repõe um tempo que pertencera à contemplação, mas
de forma a integrar o espectador numa delicadeza que denuncia a brutali-
dade do cotidiano na fragilidade das lâminas de espuma, que se formam
quando se balança as bolas de plástico translúcido; em Pedra Luz, juntam-
se materiais de origem mineral - um pouco mais estéticos, idealizados em
sua beleza natural, talvez - à presença mais tecnológica das imagens digi-
tais que se projetam sobre o corpo do espectador, coberto com um lençol
que o faz tornar-se tela, e levando-o a contemplar sua própria imagem
desmaterializada num espelho. Contemplação, especularidade, tecnologia,
tela, corpo, contribuem solidariamente a uma experiência que, de modo
mais sutil, em sua determinação em chamar à fragilidade, à volatilidade do
orgânico - um pouco mais estetizante e por certo menos decididamente
transgressivo que o gesto clarkiano -, desloca o corpo da agressividade
ostensiva do cotidiano a uma dimensão sensível onde pode mesmo se des-
fazer para libertar uma presença do espírito: encontra-se uma metafísica
sutil que lhe é própria. Vê-se, aí, que o problema inaugurado pela obra não
se coloca em termos do suporte tecnológico: De Clark a Toledo, passando
por Shaw, a tecnologia se integra ou não a uma disposição poética que liga,
de diferentes modos, espectador e obra numa forma de jogo que regula os
termos da experiência que se quer inaugurar.
208 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Há aí um aspecto decisivo: a estética clássica sustentava-se, sabe-
mos, num regime espectatorial em que obra e espectador tinham lugares
determinados - este buscava na contemplação da imagem sua força mági-
ca, distante, configurada na aura. A arte moderna manteve, em seu poder
de choque, também a sua distância, e quis mesmo crer que o artista,
potencializado pelo estatuto do gênio, seria o único responsável pelos sen-
tidos deflagrados na obra, de que deteria a posse incontestável. As poéti-
cas contemporâneas, na sua teia polifônica de estratégias formais, apon-
tando para as miríades de possibilidades da arte em fundar essas dilações
(Grossmann, 1996:37) - esses esticamentos do tempo diacrônico
(lembremo-nos de que Merleau-Ponty falava em “estender os fios que nos
ligam ao mundo”) que re-instalam espaço e tempo, e em que percepção e
conceito não aspiram senão a integração que lhes é própria - têm isso de
singular: não existem segundo uma normatização impensada das posições
do artista do espectador e da obra, mas definem cada qual seu próprio registro:
cada poética funda seu espectador.
Vê-se aí as dificuldades experimentadas pela chamada web-art, que
não somente opera segundo uma posição que poderíamos chamar de an-
cestral, a do espectador em frente a uma tela - essa obsessão do ocidente -
, mas depende de um regime interativo ainda bastante limitado pelas
tecnologias de interfaceamento disponíveis. A baixo custo, basicamente o
mouse, embora softwares como Pure Data e Max tenham como propósito
disponibilizar recursos poderosos de interação entre corpo e sistema,43
mas já não estaríamos lidando com a web. Mas tais limitações importam
pouco: se essa posição que temos tentado tecer tem consistência, o que
importa é a capacidade das obras, pela consciência crítica das questões que
lhe atravessam, de fazer da experiência que deflagram instância de conhe-
cimento, por meio dos deslocamentos que opera em relação ao impensa-
do cotidiano. Claro, há este desafio de provocar, com recursos restritos, um
gozo estético, este êxtase de percepção e conceito que se experimenta em
presença dos trabalhos mais bem resolvidos em sua identidade poética, em
seu percurso, em seu processo. Mas, mesmo a tela, talvez a primeira
tecnologia de imagem específica do Ocidente, pode, sob o olhar e o gesto
expressionistas de um Iberê Camargo, por exemplo, instalar uma experi-
ência de enorme impacto; ou ainda, parecer lançar sobre o espectador um
43 Em Toronto, em 2003, vimos uma interessante coreografia do grupo Palindromeque empregava interação em tempo real entre os bailarinos e os fragmentossonoros. Foi sintomático, porém, que no debate que se seguiu à apresentação,
houvesse interesse muito maior pelas soluções tecnológicas empregadas do que
pela poética do trabalho mesmo.
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 209
olhar decisivamente irônico, parecer mesmo observar-nos como os sis-
temas de vigilância onipresentes, como nas imagens de Beatriz Milhazes.
Essa vitalidade radical, essa difícil identidade num campo por um
lado aberto ao infinito, e por outro observado pelo rigor da história da arte
- ao mesmo tempo em que constrangido pelas limitações institucionais de
um circuito atravessado por um mundo de interesses -; a força e impacto
de presença da obra, sua capacidade de instalar as condições de sua fruição
- e, não nos enganemos nesse ponto: mesmo as obras que melhor acolhem
os conteúdos afetivos e os gestos participativos do espectador instalam
regras em seu jogo, pois não se pode, por exemplo, rasgar uma Obra Mole
de Lygia Clark, ou riscar um Parangolé, assim como obras digitais
interativas oferecem interações calculadas -, constituem uma potência
específica que os processos mais vigorosos parecem mesmo acumular pelo
seu caminho. Estratégias são tentadas, testadas; sua eficiência, seu êxito,
seus impensados clandestinos são descobertos; seu sentidos mais decisi-
vos se apresentam, impõem mudanças de rumo, tomam posse até mesmo
do processo e definem suas direções. Quem sabe que histórias e embates
que se escondem por trás da presença da obra? E no entanto, as obras pa-
recem derivar uma força particular de suas trajetórias, recolhem em seu
caminho essa densidade que constitui uma poética. Em seu percurso e no
corpo-a-corpo com seu trabalho, o artista descobre-se a si mesmo, à sua
obra; nas marcas que esta acumula, funda uma posição própria no presente.
Não foi isso mesmo que fez Marcel Duchamp, “aquele que surpreenden-
temente viu antes de todos as brechas pelas quais deslizava a arte moder-
na, entrevendo como funcionava e por onde circulava a obra em seu cami-
nho junto e para além do artista”? (Basbaum, R., 2001:24). Na obstinação
em não deixar-se capturar por este ou aquele movimento, e mantendo um
surpreendente rigor próprio que dá aos seus gestos uma potência única -
em que cada um deles parece alimentar a presença dos demais, “tecendo
uma imensa rede textual de obra e discurso que entrelaçaria quase que a
totalidade de sua obra” (Basbaum, R., 2001:24) - Duchamp estabeleceu
uma teia de obra de arte e pensamento sobre a arte que lhe conferiu ainda
em vida uma posição quase mítica - a ponto de Beuys, este outro artífice
radical da presença reflexiva, considerar que “o silêncio de Marcel
Duchamp é sobrevalorizado” (1964); ou, por seu turno, Jean-Luc Godard,
cujo empenho quase suicida em não repetir, por mais de quarenta anos,
uma única solução formal, ao mesmo tempo que levando a cabo uma dis-
posição crítica cuja extensão não tem paralelo na articulação cinema-vídeo,
logrou inventar para si um lugar próprio, único, na cultura contemporâ-
210 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
nea - um lugar até romântico mesmo,44 de onde faz seu Eloge de l’Amour
(2002) -, cuja potência se mede nos títulos em que se multiplicam as aná-
lises apaixonadas de sua obra.45 Essa densidade que funda, numa história,
uma poética, um universo singular instalado pela sucessão de um conjunto
de gestos, define-se a partir das feridas, dos êxitos e das marcas acumula-
das por artista e obra em seu embate com as forças do presente. Na ausên-
cia das utopias, no imperativo de uma experiência do tempo que já não pode
ser vivido nos termos de uma grande narrativa coletiva rumo à redenção,
em que as demandas do presente imediato parecem se impor de modo mais
urgente do que quaisquer cenários de futuro, o projeto estético de um ar-
tista já não se define em termos de futuro: articula-se segundo uma com-
plexa rede de forças presentes, a partir das quais se define o gesto em que
se investe uma vida.
Tomemos, novamente por meio de estratégia comparativa, duas
poéticas distintas que negociam com o presente mais imediato por meio
da categoria instalação: o canadense Steve Heimbecker46 e a brasileira
Fernanda Gomes. Em 2003, em Toronto, Heimbecker fez uma espécie de
balanço de sua carreira durante o Subtle Technologies Festival,47 um evento
que reúne anualmente artistas, teóricos, cientistas e pesquisadores num
dinâmico debate sobre a contemporaneidade tecnológica. Descreveu, en-
tão, a trajetória complexa que lhe conduzira, em duas décadas de pesquisa
formal com tecnologias sonoras e visuais, ao projeto Wind Array Cascade
Machine (2003). A instalação POD, apresentada em Toronto maio de 2003,é uma espécie de retrato quadridimensional
do vento, e foi a primeira realizada com os re-
cursos desenvolvidos com a WACM. Através de
um bem resolvido sistema de processamento
em ambiente MAX, 64 hastes, dispostas em
linhas de oito, num quadrado de cerca de 4m
x 4m, recebiam em tempo real, na penumbra
da sala do InterAccess Electronic Media Arts
Centre, informações enviadas por 64 sensores
similares colocados no alto de um prédio na ci-
dade de Quebec, numa área bem mais ampla -
o espaço da galeria tornando-se como uma
espécie de compressão do espaço capturado.
44 Aumont declara mesmo: “Sobre a modernidade de Godard, nada a dizer. Ela é
seu desejo constante: Godard não tem nada a fazer com o ‘pós-moderno’, queele havia inventado, por conta própria, e praticado antes de todo mundo.”
(Aumont, 2004:237). Em nota anterior (n20 deste capítulo), já comentamos
um ceticismo conservador na obra dos anos 1990 de Godard, e que se notamesmo no recente Notre Musique (2004), considerado por muitos um filme
otimista. Basta verificar o close sombrio que faz dele mesmo quando lhe per-
guntam pelas possibilidades abertas pelas câmeras digitais.
45 Ver por exemplo Aumont (2004), Dubois (2004), Sterrit (ed.) (1998), Bergala
(2003), entre muitos outros.
46 Heimbecker tem uma sólida carreira internacional feita a partir do Canadá. Seu
trabalho foi recentemente alvo de pesquisa na Daniel Langlois Foundation, quetem financiado a reflexão sobre produção de arte tecnológica.
47 http://www.subtletechnologies.com.
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 211
Cada haste, de cerca de um metro e oitenta de altura, concebida como uma
“vagem” [pod] de sementes de trigo, “acting as a metaphor of the growing
seed pod: from cool to hot”48 (Heimbecker, 2003:7), apresenta, na terça
parte superior, de baixo para cima, uma escala de 15 luzes, segundo a tríade
de cores empregada em equipamentos de estúdio de áudio para medir a
intensidade do sinal, representando a maturação das vagens das semen-
tes: quatro luzes verde-escuro (“infância”), cinco de um verde mais claro
(“adolescência”), quatro luzes amarelas (“maturação”), e duas vermelhas
(“colheita”). A referência aos campos de trigo parte da experiência da pre-
sença do vento nas pradarias e campos da região de Saskatchevan, no Ca-
nadá, da constatação de que o vento só é perceptível a partir de seus efei-
tos: dos sons que provoca em nossos ouvidos, nas folhas das árvores, nos
trigais. As dobras e efeitos da presença imediata do vento nos ambientes
remotos onde é capturada se traduzem, na penumbra da galeria, numa fas-
cinante dança de luzes que oscilam entre o verde, o amarelo e o vermelho,
e envolvem em sua dinâmica sutil os participantes presentes. Estes exa-
minam os inúmeros pontos-de-vista inaugurados pela disposição a um só
tempo coesa mas cheia de interespaços das hastes, e se percebem banha-
dos pelo jogo das luzes - há também um suave erotismo nestas hastes que
se iluminam e relaxam mais ou menos intensamente à medida que trans-
corre o tempo. Ao mesmo tempo, num monitor, na sala ao lado, pode-se
ver as imagens do prédio em Quebec onde os sensores capturam o vento.
Por meio de recursos tecnológicos sofisticados, muitos dos quais desen-
volvidos por ele mesmo, Heimbecker consegue uma presença poética de
algo tão etéreo e aleatório quanto o vento, colhe uma manifestação do ar,
tema perseguido obsessivamente pela pintura realista do século XIX, an-
tes que o cinema fizesse ver que estes eram seus próprios temas. Sem dú-
vida, pode-se dizer - o próprio artista o declara -, há aqui, antes de tudo,
um sistema de representação: fenômenos naturais são simplesmente cap-
turados em sinais eletrônicos, e reintegrados por meio do processamento
de 64 canais em paralelo, criando uma surpreendente presença visual de
processos invisíveis. Na dinâmica suave das luzes, o aparato desaparece, o
espectador integra-se ao jogo poético instalado; examina diversas posi-
ções, interroga o espaço e o tempo que tecem a circunstância: a experiên-
cia da representação quadrimensional do vento se consuma.
48 “agindo como uma metáfora de uma vagem de sementes quando cresce: de
frio para quente.”
212 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
McLuhan disse que vivemos no ambiente de nossa cultura como um
peixe na água - não o podemos notar, tão natural e espontâneo é o modo
como este se apresenta, como o experimentamos. Os peixes respiram a
partir da água, e se mantivermos, num
registro um tanto óbvio, a metáfora
mcluhaniana, poderemos sugerir que a pri-
meira condição de nosso ambiente é estar-
mos em meio ao ar da mesma forma como o
peixe em seu meio: “nadamos no ar”, por as-
sim dizer; certamente, a cosmologia Ongee,
que vimos no capítulo II, tem algo a nos re-
velar a respeito dessa dinâmica. Poucos tra-
balhos contemporâneos parecem fazer essa
presença do ar tão densa, tão ostensiva, tão
material, quanto as instalações da artista ca-
rioca Fernanda Gomes. A instalação que, em
2001, ocupou o extinto espaço AGORA/CA-
PACETE na Lapa, no Rio de Janeiro, por
exemplo, não captura, por meio de sofistica-
do aparato tecnológico (e um gordo orça-
mento, já que o projeto de Heimbecker foi
desenvolvido com apoios de instituições pú-
blicas da ordem de cem mil dólares canaden-
ses), a presença do ar à distância criando um
dispositivo que é mesmo uma máquina
representacional, cuja operação de
presentificação de um fenômeno tão etéreo
como o vento resulta num estatuto poético
invulgar. Ao contrário, Gomes faz, por meio
de uma sensibilidade minimalista, de uma
atenção radical quanto à espacialidade vivi-
da, com que o instante e o espaço respirados
se transformem qualitativamente, numa es-
pécie de alquimia levada a cabo com a explo-
ração dos signos mais sutis: o desgaste de
paredes caiadas, a disposição de objetos de
Steve Heimbecker: Steve Heimbecker: Steve Heimbecker: Steve Heimbecker: Steve Heimbecker: PODPODPODPODPOD (2003) (2003) (2003) (2003) (2003)
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 213
dimensões muito reduzidas - uma agulha aqui, uma linha ali, uma caixa de
fósforos, uma mochila, sapatos... fazem sentir não uma presença ostensi-
vamente instalada no cubo branco, mas o próprio espaço em que intervêm,
que subitamente ganha autonomia e nos devora: a obra é quase canibal,
apodera-se de nosso corpo e o conduz ao seu registro; o ar, esse elemento
mais essencial do ambiente vivido, aquele com que mais espontaneamente
nos relacionamos, do parto ao último suspiro, e que menos percebemos,
emerge como figura sobre o fundo de um espaço como que repleto de pre-
senças imateriais. Não se trata da ironia um pouco sinistra, aquela atmos-
fera marginal e sem dúvida irônica, que o inglês Mike Nelson criou quase
como um outro mundo dentro da Bienal de São Paulo, em 2004 - com a
qual, porém, poder-se-ia dizer que a instalação de Gomes tem parentes-
co. Parece haver nesse ar que a artista faz perceber algo de transgressivo,
uma sensibilidade muito diversa do registro cotidiano, que nos convoca,
por meio de recursos escandalosamente mínimos - intervenções
milimétricas -, a um regime de consciência de corpo, ar, espírito e maté-
ria, e invoca uma classe de presenças que não é artifício retórico chamar
de indizíveis - o que certamente agradaria a Vilém Flusser.
Como recusar esse contraste entre duas poéticas do ar: um
tecnológico que instala a presença do ausente, e uma presença que se faz
declarar por meio da ausência das coisas? Se a obra de arte deve inaugurar
experiência de conhecimento, deve produzir aberturas que nos permitam
Fernanda Gomes: instalação no Espaço AGORA/CAPACETE (2001)Fernanda Gomes: instalação no Espaço AGORA/CAPACETE (2001)Fernanda Gomes: instalação no Espaço AGORA/CAPACETE (2001)Fernanda Gomes: instalação no Espaço AGORA/CAPACETE (2001)Fernanda Gomes: instalação no Espaço AGORA/CAPACETE (2001)
214 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
deslocamentos nos modos de acesso ao real, e deve forçosamente fazê-lo
num diálogo com o contemporâneo, a partir de uma infinitude de possi-
bilidades formais e forças que tensionam o presente, deve-se reconhecer
que estes processos se constituem a partir das condições e dos espaços reais
oferecidos ao artista: é dos termos do problema que se estabelecem as so-
luções. É a partir daí que o artista pode estabelecer o equilíbrio (ou
desequilíbrio) do sistema “eu-outro-as coisas”, de que falava Merleau-
Ponty, e trata-se menos de segregar poéticas em categorias, e mais de ver
como brotam de circunstância, negociam a circunstância, inventam a cir-
cunstância, acumulam história e memória, promovem aberturas distintas.
Sobrepõem ao fundo do cotidiano essas presenças condensadas de proces-
sos sensório-conceituais, que dão acesso a recantos impensados do vivi-
do, e inauguram redes discursivas em direções inéditas, as quais, em seus
contrastes extremos como os que temos proposto, fazem experimentar e
pensar a arte, a subjetividade, a cultura, a vida. Os trabalhos de Heimbecker
não devem ser minimizados ou maximizados por seu dispendioso apara-
to, nem os de Gomes em função de sua economia. É à medida que se os
interroga que apresentam suas soluções no que se refere à arte, à vida, à
tecnologia, à estética - e, porque não, às alternativas e opções
institucionais: não nos esqueçamos que o AGORA/CAPACETE foi precisa-
mente um projeto que pretendeu criar território autônomo às grandes ins-
tituições, com mostras curadas por artistas agentes de reflexão teórica e
crítica quanto às circunstâncias específicas de um circuito local. Ao nos
colocarem em seu universo, os trabalhos nos lançam também questões, nos
fazem a pensar as experiências ali vividas, e é esse diálogo - que demanda
disponibilidade - que faz a obra ultrapassar a mera presença do instante e
nos põe a colher no fundo da consciência, numa temporalidade sutil, os
sentidos ali deflagrados.
Cada obra funda seu espectador; uma poética deve ser definida num
cálculo de circunstância. Como abrigar, segundo esse modo de pensar a
arte, que a instala definitivamente no presente, seja lá quais forem os ma-
teriais escolhidos, o elogio da experimentação mais radical de linguagem?
O argumento geral que sustenta as práticas experimentais costumava ser o
de uma prospecção do futuro da qual fizemos uma crítica severa. Como
negar que uma obra possa inaugurar um caminho exploratório que lance
um artista numa linha de tempo que lhe é própria? Mas temos aí já a res-
Da invenção da paisagem ao labirinto de espelhos 215
posta: uma obra não pode fazer prospecção visionária senão a partir das
condições presentes; não pode inaugurar o futuro, mas pode lançar o ar-
tista em direções que se vão reconfigurar conforme os inúmeros futuros
que se desprendem do campo instável de forças do presente. Num quadro
como esse, a experimentação não é aquela prospecção: é a problematização
de aspectos novos desse campo de forças - é procurar pensar o impensa-
do, perceber o que calara silencioso, fazer conhecer algo do real que pas-
sara irrefletido, instalar a presença daquela intersubjetividade singular
capaz de fazer, no vivido, uma experiência única. Não como simples expres-
são - como muitos ainda hoje acreditam -, mas como problematização de
novas figuras sobre o fundo da cultura e da história da arte. Antigo reduto
do visionário, do alucinatório, a arte torna-se, então, exploração do presen-
te. Inaugurar questões passa a ser menos uma prática exercida segundo uma
paisagem utópica do que a urgente abertura de modos de experimentar e
compreender o atual. E a multiplicidade caleidoscópica da produção con-
temporânea apresenta-se como um complexo inventário das subjetivida-
des, das forças que constituem a dinâmica do real, dos modos de pensa-
mento e formalização do conhecimento que explicitam possibilidades de
uma percepção contemporânea. “Resta a pergunta como a última forma
lógica”, dizem Bairon e Petry (2000) - exponenciada pela experiência vi-
vida na presença da obra, e pela rede comportamental, simbólica e
discursiva disparada por seu impacto estético. Presença do presente, as
poéticas contemporâneas, em seus rituais que há muito não são mimeses
de aparências, multiplicam reflexos que rebatem ao interior da cultura
múltiplas figuras antes invisíveis, silenciosas, impensáveis - infinitas re-
flexões que se atravessam num sonoro labirinto de espelhos.
Assim, se dissemos que não há mais possibilidade de pensar-se em
termos de vanguarda - isso implica narrativa histórica e tudo aquilo em que
não se pode mais crer ingenuamente, conforme os parágrafos anteriores
pretenderam demonstrar -, é para postular que, seja qual for o material ou
a estratégia estética escolhida, a obra de arte responde em igualdade de
condições por uma reflexão e pela percepção do presente. São questões
distintas que implicam soluções poéticas específicas, e este encontro da
infinitude das possibilidades formais com a demanda pelo rigor crítico e
a maturação do processo, sob o risco da diluição da experiência, aprende-
mos na herança do modernismo. E o mistério que define o inesgotável da
216 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
arte - como o inesgotável do vivido - é essa força renovada da sua presen-
ça. A arte, ao divergir da norma corrente da cultura, faz ver não o futuro,
mas o próprio presente. É o que McLuhan dirá, em outro momento: os
artistas não são antenas do futuro, são aqueles que estão rigorosamente no
presente - o que não é pouco. Ao subverter a experiência cotidiana, ao tor-
nar figura o fundo sobre o qual exercemos nossos gestos mais impensados
- aquilo que damos por certo sem que nos demos conta disso, a doxa a que
nos referimos bem ao início deste trabalho -, a arte cumpre, segundo seu
modo singular de operação, função de conhecimento do presente: talvez
possa mesmo dar não apenas testemunho, mas criar uma posição tal faça
de algum modo perceber a percepção que funda a sensibilidade e o pensamen-
to contemporâneos.
Resumimos aqui os argumentos que o presente capítulo pretendeu
apresentar: a obra de arte contemporânea é uma trama sensório-conceitual
experienciável como presença, e parece ser território privilegiado para que
se discuta a percepção de uma época; para acessarmos, através das obras,
uma percepção contemporânea, achamos necessário sacrificar de uma vez
por todas a idéia de que a arte possa estar além de seu tempo, o mito da
vanguarda; foi preciso, então, demonstrar que tal sacrifício não faz perder
em nada a potência conquistada pela obra de arte em seus embates histó-
ricos, sua forma particular de produzir experiência de conhecimento: é pela
presentificação de uma reflexão radical que as estratégias estéticas criam
seu próprio regime espectatorial; estabelecem sua poética, levando em con-
ta seu percurso e um difícil cálculo de circunstância; e praticam experimen-
tação que inaugura novas questões, permitindo figurar aspectos impensa-
dos do cotidiano, da cultura, da linguagem. De tal forma que julgamos
embaraçoso definir quaisquer valores por meio de simples classificações
(mídia-arte, web-art, instalação, performance, site-specific etc), ou por
meio da escolha dos materiais (tecnológico - não tecnológico): diferentes
processos inauguram aberturas que possuem, em princípio, potencial
idêntico em fazer conhecer o presente. Em conseqüência, podem mesmo
explicitar igualmente um ponto-de-experiência contemporâneo. Esta hi-
pótese é objeto de exame em nosso capítulo final.
O primado da percepção digital 217
Capítulo V
O primado dapercepção digital
Sem ir além da nossa portaPodemos conhecer o mundoSem assomarmos à nossa janelaPodemos conhecer os caminhos do céuQuanto mais longe vamosTanto menos avançamosPor isso, o sábioSem caminhar, alcança sua metaSem ver, tudo observaSem agir, tudo realizaLao-Tsé, Tao-te-king
Michael Craig-Martins:Michael Craig-Martins:Michael Craig-Martins:Michael Craig-Martins:Michael Craig-Martins:An oak-treeAn oak-treeAn oak-treeAn oak-treeAn oak-tree (1973) (1973) (1973) (1973) (1973)
218 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Do urinol (Fonte, 1917) de Marcel Duchamp à An oak-tree1 (1973) de
Michael Craig-Martin, a visão teleológica de uma grande narrativa oci-
dental foi sepultada. O presente tornou-se absoluto, o mundo, uma aldeia
conectada pelo instante, e a arte instaurou um tão vasto campo de possí-
call it anything one wished but that would not alter the fact that it is an
oak tree.Q. Isn’t this just a case of the emperor’s new clothes?
A. No. With the emperor’s new clothes people claimed to see something
that wasn’t there because they felt they should. I would be very surprisedif anyone told me they saw an oak tree.
Q. Was it difficult to effect the change?
A. No effort at all. But it took me years of work before I realised I coulddo it.
Q. When precisely did the glass of water become an oak tree?
A. When I put the water in the glass.Q. Does this happen every time you fill a glass with water?
A. No, of course not. Only when I intend to change it into an oak tree.
Q. Then intention causes the change?A. I would say it precipitates the change.
Q. You don’t know how you do it?
A. It contradicts what I feel I know about cause and effect.Q. It seems to me that you are claiming to have worked a miracle. Isn’t
that the case?
A. I’m flattered that you think so.Q. But aren’t you the only person who can do something like this?
A. How could I know?
Q. Could you teach others to do it?A. No, it’s not something one can teach.
Q. Do you consider that changing the glass of water into an oak tree
constitutes an art ork?A. Yes.
Q. What precisely is the art work? The glass of water?
A. There is no glass of water anymore.Q. The process of change?
A. There is no process involved in the change.
Q. The oak tree?A. Yes. The oak tree.
Q. But the oak tree only exists in the mind.
A. No. The actual oak tree is physically present but in the form of the glassof water. As he glass of water was a particular glass of water, the oak
tree is also a particular oak tree. To conceive the category ‘oak tree’ or to
picture a particular oak tree is not to understand and experience whatappears to be a glass of water as an oak tree. Just as it is imperceivable
it also inconceivable.
Q. Did the particular oak tree exist somewhere else before it took the formof a glass of water?
A. No. This particular oak tree did not exist previously. I should also point
out that it does not and will not ever have any other form than that of aglass of water.
veis que já não há mais como agredir qual-
quer noção do passado em nome de uma for-
ça expressiva. Pode-se, sim, habitar um ter-
ritório conquistado, que traz em si marcas da
1 Este é o texto que acompanha An oak tree:
Q. To begin with, could you describe this work?
A. Yes, of course. What I’ve done is change a glass of water into a full-grownoak tree without altering the accidents of the glass of water.
Q. The accidents?
A. Yes. The colour, feel, weight, size ...Q. Do you mean that the glass of water is a symbol of an oak tree?
A. No. It’s not a symbol. I’ve changed the physical substance of the glass of
water into that of an oak tree.Q. It looks like a glass of water.
A. Of course it does. I didn’t change its appearance. But it’s not a glass of water,
it’s an oak tree.Q. Can you prove what you’ve claimed to have done?
A. Well, yes and no. I claim to have maintained the physical form of the glass
of water and, as you can see, I have. However, as one normally looks for evidenceof physical change in terms of altered form, no such proof exists.
Q. Haven’t you simply called this glass of water an oak tree?
A. Absolutely not. It is not a glass of water anymore. I have changed its actualsubstance. It would no longer be accurate to call it a glass of water. One could
Marcel Duchamp: Marcel Duchamp: Marcel Duchamp: Marcel Duchamp: Marcel Duchamp: FonteFonteFonteFonteFonte (1917) (1917) (1917) (1917) (1917)
O primado da percepção digital 219
história que o constituiu. Muito da produção artística contemporânea re-
alizada em suportes tecnológicos sustenta-se na velha idéia do novo - idéia
fundada numa teleologia narrativa e numa lógica das vanguardas2 que dis-
cutimos há pouco. Habita, no entanto, um mundo de possibilidades já de
muito inauguradas: pode-se imaginar como seria possível a arte
tecnológica de hoje sem o território conquistado pela produção moder-
na? É próprio da tecnologia, porém, apagar as marcas históricas - trata-
se da liquidação geral benjaminiana, da qual falamos no capítulo III.
Q. How long will it continue to be an oak tree?
A. Until I change it.(Q. Para começar, você poderia descrever este trabalho?
R. Sim, claro. O que eu fiz foi transformar um copo d’água em um carva-
lho já adulto sem alterar os acidentes do copo d’água.Q. os acidentes?
A. Sim. Cor, cheiro, peso, tamanho...
Q. Você está querendo dizer que o copo d’água é um símbolo do carva-lho?
A. Não. Não é um símbolo. Eu mudei a substância física do copo d’água
na de um carvalho.Q. Mas tem a aparência de um copo d’água.
A. Mas é claro. Eu não mudei sua aparência. Mas não é mais um copo
d’água, é um carvalhoQ. Voce pode provar essa sua afirmação?
A. Bem, sim e não. Eu afirmei ter mantido a forma física do copo d’água
e, conforme se pode ver, foi o que fiz. Entretanto, como normalmente bus-cam-se evidências de mudança física em termos de alteração da forma,
essa prova não existe.
Q. Mas o que você fez não foi simplesmente chamar o copo d’água decarvalho?
A. Absolutamente. Isso não é mais um copo d’água. Eu alterei sua ver-
dadeira substãncia e não seria mais correto chamá-lo de copo d’água.Quem quer que seja pode chamar isso da forma que bem quiser, mas
isso não altera o fato de que é um carvalho.
Q. Isso não parece um caso de As Novas Roupas do Imperador?A. Não. No caso das novas roupas do imperador, as pessoas afirmam te-
rem visto algo que não estava ali, porque elas achavam que deveriam.
Eu me surpreenderia muito se alguém dissesse ter visto um carvalho.Q. Foi difícil fazer essa mudança?
A. Nenhum esforço, na verdade. Mas custou-me vários anos de trabalho
perceber que poderia fazer isso.Q. Quando exatamente o copo d’água virou um carvalho?
A. Quando eu pus a água no copo.
P. Isso acontece sempre que você enche um copo com água?R. Não, é claro. Apenas quando tenho a intenção de transformá-lo em
um carvalho.
P. Então a intenção provoca a mudança?R. Eu diria que ela precipita a mudança.
P. Você não sabe como você faz isso?
R. Isso contradiz o que sinto que sei sobre causa e efeito.P. Está me parecendo que você está declarando ter operado um milagre.
Estou certo?
R. Fico lisongeado que você pense assim.P. Mas você não é a única pessoa que pode fazer isso?
R. Como posso saber?
P. Você pode ensinar outros a fazer o mesmo?R. Não. isso não é algo que se possa ensinar.
P. Você considera que a transformação de um copo d’água em um carvalho é
uma obra de arte?R. Sim
P. O que precisamente é a obra de arte? O copo d’água?
R. Não há mais copo d’água.P. O processo de mudança?
R. Não há nenhum processo envolvido na mudança.
P. O carvalho?R. Sim. O carvalho.
P. Mas o carvalho só existe na mente.
R. Não. O carvalho real está fisicamente presente, mas na forma de um copod’água. Uma vez que o copo d´água era um copo d’água em particular, o car-
valho também é um carvalho em particular. Conceber a categoria ‘carvalho’
ou retratar um carvalho em particular não é compreender e experienciar o queparece ser um copo d’água como um carvalho. Assim como é imperceptível,
isso é igualmente inconcebível.
P. Esse carvalho em particular existia em algum outro lugar antes de tomar aforma de copo d’água?
R. Não. Este carvalho em particular não existia previamente. Devo também
lembrar que este carvalho não tem e nem deverá ter nenhuma outra forma quenão a de um copo d’água.
P. Por quanto tempo ele continuará a ser um carvalho?
R. Até que eu o transforme.)
2 Isto não é novidade: Kac, por exemplo, lançou seu projeto transgênico com
intenções de grande gesto modernista: uma verdadeira “nova arte”, que lan-
çaria de súbito todo o resto da produção artística num passado remoto. Umbom exemplo desse tipo de discurso pode ser lido em Fraga e Barja (2004).
Neste texto, para o catálogo da introdução da mostra 4D, apresentada em
Brasília em 2004, combina-se uma certa dose de queixa quanto às dificulda-des da produção de arte tecnológica a afirmações do tipo “a arte finalmente
[na era tecnológica] se torna conhecimento”, e “se amplia a consciência de a
arte engajada, dos anos 60 e 70, ter perdido sua força transformadora” (Fra-ga e Barja, 2004; 16-8). Pelo que se viu no capítulo anterior, não podemos estar
em acordo com essas afirmações. Sobretudo, em relação a este último texto,
cabe o comentário preciso de Brito (2001: 212): “Mais do que nunca, apareceagora o caráter regressivo e reacionário da arte pretensamente a-histórica: um
trabalho atual que tenta passar por cima de sua história enquanto objeto de
arte perpetra uma delicada violência fascista − se oferece candidamente aoimaginário dominante e para tanto procura apagar as marcas que expõe, con-
tra a própria vontade, como produto de uma acirrada luta histórica”.
220 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
O paralelo entre esses dois trabalhos, o de Duchamp e o de Craig-Martin,
que sorriem, ironicamente e em termos radicalmente reflexivos, em re-
lação não somente à arte como técnica mas à técnica como arte, aponta tam-
bém a mudança paradigmática no conceito de arte levado a cabo pela
criticidade agressiva da obra moderna, conforme vimos no capítulo an-
terior. Se o ready-made genial de Duchamp fez perceber, pela primeira
vez, toda uma articulação institucional e toda uma ordem de valores que
sustentavam uma certa idéia de arte herdada do século XIX, o achado pre-
ciso de Craig-Martin, empregando recursos mínimos, além de um cho-
que entre objeto e texto que é quase uma retomada do cachimbo de
Magritte, já reflete uma consciência aguda do significado da obra contem-
porânea; e faz constatar um contrato que regula a efetividade da experi-
ência artística: da parte do artista, há que se acreditar na importância do
próprio gesto - em que se investe uma vida; da parte do espectador, ou par-
ticipante, há também que se acreditar na diferença positiva acrescida pela
vivência da obra de arte. Nesse acordo, uma certa fé mesmo, no valor da
arte e no campo de conhecimento singular que o momento-arte realiza,
o primeiro movimento cabe ao artista - a “proposição”, diria Lygia Clark
-, mas a disponibilidade e o investimento afetivo do participante são im-
prescindíveis: há, enfim, uma demanda de interesse e entrega de ambas
as partes. Mas Oak-Tree também faz uso desse acordo para zombar do
caráter manipulável da linguagem: instala um paradoxo limite das rela-
ções entre signo e referente. Não se trata mais de negar a representação,
como fizera a arte moderna, nem tampouco de ultrapassar um “biombo”
de linguagem que constrange o acesso às coisas, como Flusser (1986) des-
creve o apogeu dos textos no século XIX; trata-se de reconhecer a lingua-
gem como uma realidade à parte, um mundo simbólico autônomo em re-
lação à experiência cotidiana, francamente manipulável, que se presta a
quaisquer deslocamentos e operações segundo se queira, e cujos víncu-
los com o vivido são mera arbitrariedade. Oak-tree denuncia um tipo dis-
tinto de consciência da linguagem - a autonomia do signo característica
de uma pós-modernidade, em que “os signos são libertos por inteiro de
sua função de referir-se ao mundo” (Connor, 2000: 45). Se a potência do
urinol deriva do deslocamento de um objeto através de diferentes campos
discursivos, revelando a lógica que regula uma cultura marcadamente es-
pecializada e disciplinar, Oak-tree fala de um mundo paralelo, reinventado
e manipulável, que não é sequer espelho de um suposto real: é, enfim, vir-
tual. Um sentido de mundo vivido distinto daquele da experiência moder-
na parece estar, já na década de 1970, em curso consumado, e, no nosso
O primado da percepção digital 221
modo de ver, essa sensibilidade está fortemente relacionada à emergên-
cia de um novo suporte tecnológico, que modifica radicalmente o modo
de perceber e, em conseqüência, significar e pensar o mundo - cujas
marcas, como nota Gere (2002), já se manifestam décadas antes que o bug
do milênio proclame enfaticamente a extensão de nossa dependência co-
tidiana aos dispositivos digitais onipresentes. Tanto Flusser (1986; 1998)
quanto McLuhan (1994, 1996, 1997), que colocam, como vimos, grande
ênfase no modo como os suportes tecnológicos incidem sobre nosso modo
de experimentar e significar o vivido, localizam já no século XIX o início
do desmonte da Galáxia de Gutenberg. McLuhan atribui à eletricidade, a
partir do telégrafo, a origem de transformações na percepção do espaço e
do tempo, que a partir de então já não correspondem à sua ordenação pela
visualidade e pela sintaxe da escrita impressa:
“Euclidian space is the prerrogative of visual and literate man. With
the advent of electric circuitry and the instant movement of infor-
mation, Euclidean space recedes and non-Euclidean geometries
emerge. Lewis Carrol, the Oxford mathematician, was perfectly
aware of this change in our world when he took Alice through the
looking glass into the world where each object creates its own space
and time conditions.” [McLuhan, 1995:347]3
3 “O espaço euclidiano é a prerrogativa do homem visual e letrado. Com o ad-
vento do circuito elétrico e com o movimento instantâneo de informação, oespaço euclidiano reflui e as geometrias não-euclidianas emergem. Lewis
Carrol, o matemático de Oxford, estava perfeitamente consciente dessa mu-
dança em nosso mundo quando fez Alice atravessar o espelho para um mun-do onde cada objeto criava seu próprio espaço e condições de tempo”.
4 Erik Davis (1998: 39) chama a atenção, de forma bem humorada, ao aspecto
peculiar e contra-intuitivo da eletricidade: “Most of the dynamic nonbiologicalphenomena we encounter on a regular basis − paper airplanes, rush-our fen-
der benders, speeding tennis balls − can be dissected with the tools of classical
physics, and classical physics does not make too many outrageous claims oncontemporary imagination. But electricity is an altogether different kettle of fish
− to say nothing of the conterintuitive shenanigans that go down in the invisible
world of electromagnetic fields and frequencies, which even now are saturatingyour body with traffic reports, poor songs, and other incorporeal communiqués.”
(“A maior parte dos fenômenos dinâmicos não-biológicos que nós encontra-
mos regularmente ... podem ser dissecados com as ferramentas da física clás-sica e a física clássica não faz muitas afirmações que afrontem a imaginação
contemporânea. Mas a eletricidade é algo totalmemente diferente - para não
falar das brincadeirinhas contraintuitivas que se dão no mundo invisível doscampos eletromagnéticos, que vêm o tempo todo saturando nosso corpo com
noticiários, canções sem interesse e outros comunicados incorpóreos...”).
São as novas “extensões” - automóveis,
aviões, rádio, televisão etc. - que farão emer-
gir de modo nítido as limitações do “ambien-
te” anterior, criando as condições para as vio-
lentas transformações na ciência e na filosofia
ao cabo das últimas décadas do século XIX e a
primeira metade do século XX4. Ao tornar-se o
“conteúdo” de um novo ambiente, o sentido de
mundo experimentado segundo os hábitos do
“velho” ambiente torna-se figura sobre o fun-
do, torna-se perceptível, ao passo que a nova
tecnologia de mediação ocupa essa posição pri-
meira, dissimulada, a partir de onde se cons-
titui nosso modo de perceber o mundo.
Para Flusser, é a fotografia a responsá-
vel pela grande ruptura com a hegemonia dos
textos, iniciando aquilo que chama de “dilú-
222 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
vio das imagens técnicas”5. Constituídas segundo o modo de pensar a
visão que é fruto de uma ciência fundada nos textos, as imagens técni-
cas, multiplicáveis, vão “imaginar”6 os textos baratos (literatura de con-
sumo: novelas, romances, jornais) e “magicizar” os textos herméticos da
ciência e da filosofia, criando uma nova “imaginação” que Flusser cha-
ma “pós-histórica”:
“A consciência histórica, linear, calculadora, deve ceder lugar a
consciência bidimensional, imaginativa, computadora. Destarte,
vai surgir zona imaginária nova entre o homem e seus conceitos (o
‘universo das imagens técnicas’), através da qual o homem vai
poder imaginar os seus conceitos. Dado o feedback entre gesto e
consciência, o universo das imagens técnicas (fotos, filmes, vídeos,
imagens sintetizadas por computador), vai se densificando, e nova
capacidade de imaginar vai surgindo. O que acaba de ser dito é a
descrição da consciência pós-histórica emergente.” [Flusser,
1986: 67]
Ou seja: a escrita tornara possível a
consciência histórica e o pensamento
conceitual; a emergência da imagem
multiplicável, tecnologia fundada numa lógi-
ca conceitual que fica ali dissimulada, torna
o conceito “imaginável”, imagina textos e
torna-os, progressivamente, obsoletos pelo
fascínio mágico que exercem. O exemplo, um
tanto trivial, que se pode empregar para com-
preender o alcance do processo de “imagina-
ção dos textos” descrito por Flusser, é a vo-
racidade com que o cinema se apropriará, nas
primeiras décadas do século XX, da literatu-
ra do século XIX, de tal modo que McLuhan
dirá que “o conteúdo do filme é o livro”7 -
bem como os numerosos documentários
audiovisuais de divulgação científica que
ocupam a programação televisiva. No outro
extremo, em que as imagens técnicas tornam
imagináveis conceitos puros, estão as ima-
gens fractais, surgidas em meados da década
de 1970 e multiplicadas na década seguinte8.
5 Lúcia Santaella considera a fotografia em termos próximos aos de Flusser: “O
primeiro grande golpe na hegemonia do livro e da cultura das letras foi dadopela invenção da fotografia. Daí para a frente, a perda de exclusividade do livro
como meio de produção e transmissão da cultura seria irreversível” (Santaella,
2001: 391).
6 Flusser define “imagem” como “superfície significativa na qual as idéias relaci-
onam-se magicamente” − visto não obedecerem à sintaxe causal e linear da
escrita, mas instalarem um tempo próprio, “circular”: “tempo de magia” −, e“imaginação” como “capacidade para compor e decifrar imagens”. (Flusser ,
1998: 24; 27-31). Essa relação entre imagem e magia é reiterada seguidamente
em textos que se referem à origem das imagens. Por exemplo: Gombrich (1979:20); Benjamin (1983: 218-219); Bazin (1991:19).
7 “The content of the press is literary statement, as the content of the book is
speech, and the content of the movie is the novel”. (“O conteúdo da imprensaé a afirmação por escrito, da mesma forma que o conteúdo do livro é a fala e o
do cinema , o romance”). (McLuhan, 1994: 305)
8 Quanto à dinâmica entre texto e imagem proposta por Flusser, e o diagnóstico
do apogeu da hegemonia dos textos no século XIX, não deixa de ser curiosa aafirmação de Benoit Mandelbrot (o inventor dos fractais) de que “Houve um longo
hiato de 100 anos no qual desenho não teve nenhum papel na matemática,
porque a mão, o lápis e a régua estavam esgotados. Eram bem compreendidose já não ocupavam a linha de frente. E o computador não existia” (appud Gleick,
1990: 97). A mão, como diz Benjamin, é colocada de lado pelas técnicas de re-
produção, e a imagem que reaparece, já na era digital, é já imaginação de con-ceito, como bem formula Flusser.
O primado da percepção digital 223
Em 1935, Benjamin - inaugurando caminhos para pensar os efei-
tos da tecnologia na cultura que, como dissemos, antecipam aspectos das
teses de McLuhan e Flusser - extraiu da problematização precoce do im-
pacto da reprodução técnica uma série de conclusões sintéticas e vigoro-
sas, e chamamos a atenção no capítulo III especialmente à liquidação da ex-
periência: a intervenção tecnológica devora o passado e cria um tipo de ilu-
são em que o mundo e a cultura parecem ter sido como que re-inaugurados
- subitamente, o sentido de mundo tal qual vivido por uma ou algumas ge-
rações parece não dialogar com o sentido que assume o cotidiano. Confor-
me o pensamento que estamos tentando reunir, essa ilusão decorre de um
deslocamento do ponto-de-experiência da cultura, que pode ser atribuí-
do em maior ou menor medida - segundo a posição que temos sustentado,
em grande medida - à intervenção tecnológica na mediação das formas de
comunicação, produção e ordenação de conhecimento, sempre
entrelaçadas, como explicitação de uma percepção epocal. Essa noção de
liquidação é bastante importante, visto que estamos atribuindo aqui à per-
cepção e seu caráter fundante dos modos de experiência um papel central
na constituição do sentido explicitado na cultura. E, se tomamos a experi-
ência contemporânea, vivida sob o signo do incessante aperfeiçoamento
dos aparelhos - Flusser falaria mesmo no aperfeiçoamento de um grande
aparelho, já que as tratam de processos globais em todos os níveis do vivi-
do que para aí convergem -, não parece fora de propósito sugerir que a cir-
cunstância contemporânea é algo da ordem da liquidação. Tal liquidação,
porém, não significa tão somente destruição de um campo de forças, de um
acordo ou transe coletivo, de um campo de sentidos, mas também sua subs-
tituição por uma nova ordem de experiência: implica uma instalação. A
prosseguirmos no caminho que viemos traçando desde o começo deste
trabalho, pode-se afirmar que, em nosso tempo, tal instalação é da natu-
reza da tecnologia digital. Nas páginas que se seguem, procuraremos exa-
minar alguns aspectos do processo de liquidação/instalação em curso, para
sugerirmos, finalmente, algumas propriedades que permitem definir um
conceito de percepção digital.
Vimos, no capítulo III, que a tecnologia não constitui mera
instrumentação do homem, cujos usos determinem o acesso à significa-
ção de seus produtos - pelo contrário, o meio é a mensagem, como sinteti-
zou McLuhan. Os ecos desse conhecido achado mcluhaniano estão aqui e
224 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ali9, e surpreende que nem sempre se compreenda seu alcance: seu sen-
tido se multiplica na medida em que verificamos a extensão da interven-
ção dos aparelhos em nosso dia-a-dia - na percepção do tempo e do es-
paço, no corpo. Na própria linguagem, mesmo, a tecnologia se insere como
metáfora do presente: para Dante, Satanás é comparado a um moinho, e
as almas bem aventuradas podem ser descritas a partir do relógio10; este
serve também para que Kepler11 descreva o universo; Galileu, dissemos
anteriormente, pensa a natureza como um livro, e nos séculos XVII e XVIII,
a metáfora da câmera-escura reaparece
como modelo do conhecimento em quase to-
dos os textos filosóficos, sejam empiristas ou
racionalistas (Crary, 1990: 25-66); todo o
século XIX, mecanicista, empregará a metá-
fora da máquina para corpos, sociedade, uni-
verso; finalmente, já nos anos 1960, Flusser
(1963: 21) constata sermos “uma geração de
contadores que está em vias de transformar-
se em uma linha de computadores”, e mais
adiante falará, como já dissemos, numa
cosmologia “programática” (Flusser, 1983);
Weibel (1996), há poucos anos, tentou pen-
sar o mundo como “interface”. Não surpre-
ende que a mente venha, mais recentemen-
te, sendo pensada como um computador -
mesmo sendo um computador complexo -
pelas ciências cognitivas: o que surpreende
é a ingenuidade com que se emprega, uma
vez mais, a metáfora tecnológica para pensar,
de modo reducionista, o inesgotável da expe-
riência vivida. Um filme popular como
Matrix (1999), dos irmãos Wachowsky, teste-
munha essa compulsão com que aplicamos
os modelos tecnológicos por sobre o real, e,
sobretudo, o modo como progressivamente
percebemos o vivido segundo o regime
tecnológico vigente.
9 Por exemplo, Lúcia Santaella (2001: 392), sobre a linguagem hipermidiática que
emerge com as tecnologias digitais: “Toda nova linguagem traz consigo novos
modos de pensar, agir, sentir.”
10 “Os moinhos de poste eram uma visão comum na Alta Idade Média e, no come-ço do século XIV, Dante pôde descrever um Satanás gigantesco e alado, seme-
lhante a ‘um moinho que o vento faz girar’” (Crosby, 1999: 60); “Dante, no vi-
gésimo quarto canto do Paradiso, escrito por volta de 1320, utilizou as engrena-gens de transmissão [do relógio] como metáfora das almas bem-aventuradas,
girando em êxtase:
‘Tal qual as rodas em sincronia de um mecanismo de relógio
Fazem a mais interna, se olhada de perto,
Parecer imóvel, enquanto a mais externa voa.’ “ (idem: 85).
11 "O relógio proporcionou aos ocidentais um novo meio de imaginar − ou meta-imaginar. Lucrécio, o poeta romano, havia criado a imagem da machina mundi,‘a máquina do mundo’, já no século I d.C., e, desde então, outros a haviam usa-
do numa ou noutra oportunidade, mas o ‘universo com a regularidade de umrelógio’, com sua clara especificidade, que muitos diriam ter sido a metáfora do-
minante da civilização ocidental, só apareceu no século XIV. Nicole Oresme, em
suas teorias e técnicas, antecipou-se aos grandes astrônomos dos séculos XVI eXVII, especialmente em sua referência ao fato de Deus haver criado o firmamento
de modo que ele funcionasse ‘tão temperado e harmonizado, que... a situação é
mui semelhante à de um homem que construísse um relógio e o deixasse funci-onar e continuar sozinho seu movimento’.
Quando Johannes Kepler, três séculos depois de Oresme, tentou explicar a idéia
que norteava suas assombrosas especulações, ele escreveu:
‘Meu objetivo é mostrar que a máquina celeste não é uma espécie de ser vivo edivino, mas um tipo de macanismo de relógio (e quem acredita que os relógios
têm alma está atribuindo à obra os atributos do criador), na medida em que quase
todos os movimentos múltiplos são causados por uma força magnética e mate-rial sumamente simples, assim como todos os movimentos do relógio são acu-
sados por um simples peso.’” (Crosby, 1999: 88-9).
O primado da percepção digital 225
A época em que vivemos tem sido batizada com diversos nomes:
Lyotard, já nos anos 1960, falava em pós-modernidade12; Daniel Bell, pou-
co depois, afirmou que vivíamos na era pós-industrial13; Vilém Flusser, nos
anos 80, adotou o termo pós-história14; o poeta Augusto de Campos falou
mesmo em pós-tudo; mais recentemente, em virtude da desmaterialização
do corpo em ambientes virtuais, da robótica, da inteligência artificial e das
conquistas da pesquisa em biotecnologia, fala-se em pós-humano15 - cha-
mando a atenção ao fim de um certo humanismo, conforme Michel
12 La condition postmoderne (1979). Uma boa descrição da tese de Lyotard − o
fim das “metanarrativas” da modernidade − se encontra em Connor (2000:29-42).
13 ¨The coming of post-industrial society (1973). Ver Gere (2002: 112-113).
14 Pós-história (1983)
15 How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature andinformatics (Hayles, 1999); Culturas e artes do pós-humano − da cultura dasmídias à cibercultura (Santaella, 2003).
16 “é um reconforto e um profundo alívio pensar que o homem não passa de uma
invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra do
nosso saber, e que desaparecerá, assim que se encontre uma nova forma”(Foucault, apud Beiguelman, 2003: 73)
17 Curiosamente, Eric Alliez (1999) sugere, recentemente, que Gilles Deleuze te-
ria, num certo sentido, dado continuidade à obra merleau-pontyana: “Perhaps
the most important pages of What is philosophy? [G. Deleuze e F. Guatari] arethe ones which adress the question, what is a concept? It´s an extraordinary
move which takes place there because all the potentialities of a philosophy of
intuition are used to rethink in the most rigorous way the nature of a concept.It is from this Bergson beyond Bergson [a interpretação de Deleuze da obra
bergsoniana] that Deleuze can begin where the late Merleau-Ponty stopped...”
(“talvez a parte mais importante de O Que é a Filosofia? [G.Deleuze e F.Guatari]seja aquela que coloca a questão do que é um conceito. O gesto que lugar aí
tem lugar é extraordinário, porque todas as potencialidades de uma filosofia
da intuição são usadas para repensar da forma mais rigorosa a natureza deum conceito. E é a partir desse Bergson para além de Bergson que Deleuze
pode começar onde o último Merleau-Ponty parou...”). O que nos surpreende
nesse comentário é que Deleuze nunca manifestou grande empatia com a tra-dição fenomenológica e, de maneira geral, permitiu-se produzir uma filosofia
que pretendeu-se liberta dos constrangimentos da história da filosofia. Ver, por
exemplo, sua Carta a um crítico severo (Deleuze, 1996: 11-22). Ao chegarmosà cultura contemporânea, parece difícil deixar de esbarrar na obra de Deleuze,
com a qual, porém, temos pouca empatia.
18 Entre outros, nota-o também Mario Costa (1997: 308-309).
Foucault já falara nos anos 6016; Gilles
Lipovestky (2004), por seu turno, tem falado
em hipermoderno. De comum em todas essas
tentativas de tornar o presente mais compre-
ensível, há a certeza de que vivemos em algo
substancialmente diferente do tipo de experi-
ência que se viveu até o fim da II Guerra Mun-
dial, e que se desfez ao longo das décadas se-
guintes - deste passado, restam documentos,
monumentos e memórias que, regra geral, só
podemos interpretar a partir do presente. Já se
disse aqui que um certo desgaste precoce da
obra de Merleau-Ponty se deve a essa mudan-
ça súbita dos temas da discussão filosófica após
a guerra, essa repentina mudança nos termos
da conversa17. Heidegger18 certamente perce-
beu bastante bem como se constituía rapida-
mente esse novo campo de forças - ou ainda,
como se realizava progressivamente um cam-
po de forças incubado na herança legada pela
metafísica grega objetificante, cujo passo ter-
minal seria a cibernética, ciência do controle de
todas as mediações. De forma que empregará
boa parte de seu esforço filosófico, a partir já
dos anos 1930 - antes mesmo da guerra, por-
tanto -, à desconstrução dessa linguagem
metafísica que tornara possível a emergência
de um tal modo de lide com as coisas do mun-
do, e à busca de fundar uma fala não
objetificante, com vistas a manter abertos ho-
rizontes de pensamento e reflexão a partir dos
226 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
quais fosse possível um ultrapassamento da técnica (Loparic, 1996). O
presente que vivemos parece ser essa estranha ressaca em que as catego-
rias que permitiam pensar o real na chamada modernidade já não se apli-
cam facilmente, e em que tampouco somos capazes de divisar um projeto
qualquer de futuro, um “pré” qualquer coisa que acene a uma paisagem
utópica em razão da qual o gesto presente possa ser pensado. Enquanto
procuramos, porém - em meio a demandas em que o “urgente” se sobre-
põe ao “importante”, como diz Lipovetsky (2004: 77) -, estratégias para
pensar esse presente imperativo em relação ao qual já não é mais possível
manter um distanciamento - e se impõe mais que nunca a constatação
fenomenológica de que somos em circunstância -, um parque digital regu-
la progressiva e inexoravelmente todas as instâncias do cotidiano: a comu-
nidades transferem-se para o espaço virtual, os afetos se realizam segun-
do as possibilidades abertas pela mediação digital, o comércio, as
transações financeiras, a regulação dos processos produtivos, as possibi-
lidades administrativas, o pagamento de contas, o entretenimento... cada
um dos gestos, enfim, que constituem as atividades produtivas, o lazer, a
ordenação do poder, os relacionamentos sociais.
Se se quisesse negar ao legado de McLuhan os seus achados e acer-
tos, em virtude de certa imprecisão e certa indisciplinaridade com que tra-
balha as relações entre cultura e tecnologia, por meio de suas abordagens
“em mosaico” - como ele mesmo define, e que representam em certa me-
dida, e em especial nos trabalhos com Quentin Fiore19, uma tentativa de
evidenciar a estrutura “invisível” do livro -, haveria que se guardar ao me-
nos uma contribuição notável: ao inaugurar uma atenção que busca a expres-
são do “ambiente invisível” em todas as manifestações da cultura,
conectando num eixo sincrônico cultura de massa, publicidade, arte e ci-
19 The medium is the massage (1967) e War and peace in the global village (1968).
O primado da percepção digital 227
20 Em carta a Marshall Fishwick, em 1974, McLuhan (1987: 506) escreve “The
reason that I´m admired in Paris and in some of the Latin countries is that mywork is rightly regarded as ‘structuralist’”. (“A razão pela qual eu sou admira-
do em Paris e em alguns países latinos e que meu trabalho é visto corretamente
como ‘estruturalista’ “). Resta saber em que medida os próprios estruturalis-tas apreciariam a companhia de McLuhan. Em termos de autores franceses, a
influência do canadense sobre Baudrillard é bem conhecida. Howes (2003: 237
n4) escreve: “some of the most influential and seemingly original contributionsto contemporary social theory, such as Benedict Anderson´s ImaginedCommunities or Jean Baudrillard’s ‘society of the simulacrum’ (1983) are little
more than footnotes to McLuhan´s philosophy. The reception of McLuhan´s ideaswas admittedly hampered by his elliptical style of writing and ‘mosaic’ approach
to cultural analisys. In retrospect, it is tempting to see these traits as expressions
of a certain postmodernisme avant la lettre. However, they are better understoodas expressions of McLuhan´s distinctly Canadian constitution.” (“algumas das
mais influentes e aparentemente originais contribuições para a teoria social
contemporânea, como as Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson oua “sociedade do simulacro” de Jean Baudrillard (1983), não são muito mais
do que notas de rodapé à filosofia de McLuhan. A recepção às idéias de
McLuhan foi um pouco prejudicada pelo seu estilo elíptico de escrever e porseu modo de abordar a análise cultural em forma de mosaico. Em retrospecto,
é tentador ver esse tratamento como expressão de um certo postmodernismeavant la lettre. Entretanto, são melhor compreendidas como expressão da for-mação tipicamente canadense de McLuhan.”). Cruz (1999), em interessante
artigo sobre a sensibilidade digital aproxima certos aspectos do pensamento
de Gilles Deleuze a McLuhan, e afirma que, nas relações entre corpo etecnologia, “Deleuze é ainda McLuhaniano”. Surpreende, porém − e o leitor
destas notas de tê-lo notado − que se encontre o nome de Deleuze, recente-
mente, associado a dois autores que são chave neste trabalho, McLuhan eMerleau-Ponty.
ência (de tal modo que se identifica com o es-
truturalismo20), McLuhan faz ver os sinais do
presente que procura descrever nos aspectos
mais triviais do cotidiano: piadas infantis, gíri-
as, cartuns e manchetes de jornais, histórias em
quadrinhos, anúncios de revistas, programas de
TV, música pop - vivemos, dirá, numa “sala de
aula sem paredes”. Nesse acordamento em re-
lação a quaisquer detalhes da paisagem vivida,
em seu esforço em correr riscos intelectuais na
produção de hipóteses (“probes”) para o (en-
tão) presente, percebe figuras onde outros ve-
riam apenas o fundo. Não surpreende que seu
estilo resultasse, então, desconcertante. No en-
tanto, seu método é bastante indicado se que-
remos rapidamente descrever a liquidação que
hoje vivemos. Façamos então, à maneira de
McLuhan, um rápido inventário dos efeitos da
mediação digital no environment contemporâ-
neo.
Tomemos o cotidiano mais imediato:
trabalho, lazer, afetos. Não é preciso que se faça
grande esforço para perceber, já que se mani-
festa por toda parte, a onipresença dos apara-
tos digitais. Emprega-se o computador para
toda e qualquer atividade profissional - o
designer, o professor, o preparador físico, o ad-
ministrador, o estudante, o filósofo... empre-
gam seus personal-computers ou ainda, e cada
vez mais, notebooks e palm-tops; comunicam-se
via email, voice-mail ou mesmo por via de
aplicativos de comunicação instantânea, como
ICQ, Messenger ou Skype, cujos servidores ope-
ram um tráfego de mensagens que ultrapassa
em muito a casa dos milhões de comunicações
diárias. Médicos, de modo geral, têm grande
dificuldade hoje em fazer diagnósticos sem
ajuda de complicados exames sustentados pe-
las novas tecnologias da imagem: “Patients
228 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
have been reduced to objects, and physicians to dispassionate feeders of
the machines”, lembra o neurologista Cytowic (2000: 38). Celebridades,
ONGs, empresas de todo porte, profissionais autônomos, instituições de
pesquisa, lojas de todos os tipos, possuem seus web-sites, interfaces de lon-
go alcance que se acessa a qualquer hora do dia ou da noite nas telas dessa
rede planetária e multilíngue. Jornalistas, palpiteiros, fofoqueiros, adoles-
centes, homens, mulheres, comunidades, operam blogs, fotoblogs e
videoblogs. Pagamos nossas contas por homebanking, pagamos nossos im-
postos e fazemos nossas compras on-line, adquirimos ingressos para even-
tos, teatro, cinema, pela World Wide Web - ou ainda, utilizamos cartões de
crédito que são nossa ligação a uma enorme rede de dados. Nos momen-
tos de lazer, milhões de internautas visitam sites de seu interesse, partici-
pam de comunidades do tipo Orkut, fazem downloads de música, filmes,
aplicativos e livros - numa prática que vem confundindo estruturas cen-
tenárias de produção e distribuição da indústria cultural21; freqüentam
avidamente salas de diversão que virtualizaram algoritmos de jogos tradi-
cionais de cartas, xadrez, damas, sinuca, ou games de realidade virtual, em
ambientes de sofisticada programação 3D, “rodados” a partir servidores
de grande capacidade de processamento - como Quake, Counterstrike ou
Doom, por exemplo. Ou ainda jogam em casa, individualmente ou não, jo-
gos de batalhas aéreas, Sims, Simcity, Myst, FIFA e toda uma série infindável
de produtos que hoje são lançados de modo articulado com outras formas
de entretenimento, em especial a indústria cinematográfica, cujos filmes
- basta tomar como exemplo os lançamentos mais recentes da série Star
Wars, os já citados filmes da série Matrix ou as animações da Pixar -
alavancam as vendas de jogos que desenvolvem as possibilidades dos mun-
dos diegéticos ali engendrados. Assim, se em Pós-história Flusser (1983:
65-71) descrevia nosso ritmo de vida como uma alternância entre ir - como
se ia à basílica - ao supermercado e deste ao cinema (no primeiro, as por-
tas são largas, e as saídas, onde se deposita o óbulo, estreitas; no segundo,
as entradas, onde se deposita o óbulo, são estreitas, e as saídas, largas),
evidência de uma sincronização que regula os aparelhos administrativos
aos de divertimento, quem poderia negar que, pouco mais de duas déca-
das depois, supermercado e cinema são experimentados através da tela do
computador? Fazemos nossas compras pela Internet; assistimos a DVDs
21 Uma boa − e radical − abordagem dos problemas envolvidos na questão do
direito autoral pode ser lida em Critical Art Ensemble (2001).
O primado da percepção digital 229
em notebooks - o que não é nem mesmo neces-
sário, já que o DVD-player já é um dispositivo
digital22.
Também os afetos se realizam mais e
mais através das interfaces digitais. Comuni-
dades virtuais, como já dissemos, reúnem pes-
soas de diferentes idades, ligadas por interes-
ses comuns, e Thornton (2002) repara, de
modo bastante interessante, que não é nessas
comunidades que se poderia querer verificar a
“aldeia global” de McLuhan, já que uma aldeia
pressupõe a convivência heterogênea de pesso-
as com interesses distintos partilhando um
mundo em comum - falamos, a partir de
Merleau-Ponty, na importância da subjetivi-
dade do outro na constituição de um mundo
plural e inesgotável. Essas comunidades virtu-
ais pressupõem, porém, um verdadeiro exérci-
to narcísico de iguais entre iguais, e seriam
melhor descritas a partir da idéia, também
mcluhaniana, de “retribalização”23 - a busca de
identidade tribal num mundo cujas institui-
ções modernas já não correspondem à experi-
ência vivida, e não parecem capazes de regulá-
la. Mas mais do que esses afetos informais da
convivência social, também a sexualidade tem
22 Gere (2002: 9-10) dá seu relato sobre essa onipresença da mediação digital
no cotidiano: “It´s hard to grasp the full extension of this transformation, which,in the developed world at least, can be observed in almost every aspect of
modern living. Most forms of mass media, television, recorded music, film, are
produced and, increasingly, distributed digitally. These media are beginning toconverge with digital forms, such as the Internet, the World Wide Web, and video
games, to produce a seamless digital mediascape. When at work, we are
surrounded by such technology, wheter in offices, where computers havebecome indispensable tools for word processing and data management, or in,
for example, supermarkets or factories, where every aspect of marketing and
production is monitored and controlled digitally. Much of the means by whichgovernments and other organizations pursue their ends rely on digital
technology. Physical money, coins and notes, is no more than digital data
congealed into matter. By extension, information of every kind and for everypurpose is now mostly in digital form, including that relating to insurance, social
services, utilities, real estate, leisure and travel, credit arrangements,
employment, education, law, as well as personal information for identificationand qualification, such as birth certificates, drivers licences, passports and
marriage certificates.” (“é difícil avaliar a plena extensão dessa transforma-
ção, que, pelo menos no mundo desenvolvido, pode ser observada em quasetodos os aspectos da vida moderna. A maior parte das formas da mídia de
massa, televisão, gravações musicais, cinema, são produzidas e cada vez mais
distribuídas em forma digiital. Toda essa mídia está começando a convergir paraformas digitais, tais como a internet, a WWW e os video-games, produzindo
uma paisagem digital aparentemente contínua. No trabalho, somos envolvi-
dos por toda essa tecnologia, seja em nossos escritórios, onde os computado-res se tornaram ferramentas indispensáveis para o pleno gerenciamento do
processamento de palavras e dados, seja, por exemplo, nos supermercados e
nas fábricas, onde qualquer aspecto do marketing e da produção é controladodigitalmente. Muitos dos meios pelos quais governos e outras organizações
perseguem seus objetivos baseiam-se em tecnologia digital. Dinheiro corren-
te, moedas e notas, não são mais do que dados materializados. Por extensão,informações de todo tipo existem hoje agora basicamente em forma digital,
como aquelas relacionadas com seguros, bens em geral, imóveis, lazer e via-
gens, sistemas de crédito, emprego, educação, questões legais, bem como in-formações pessoais para identificação e qualificação, tais como certidões de
nascimento, licença de motorista, passaportes e certidão de casamento.”). Esse
tipo de descrição − nem sempre feita de modo tão abrangente − se encontraem quase todo livro que busque de algum modo contemplar a paisagem que
se instala. O que fazemos nos parágrafos acima e abaixo é, assim, apenas nosso
próprio inventário dessa cena ao redor.
23 A noção de “tribalismo” reaparece em diversos textos de McLuhan (por exem-
plo, 1996: 48), e pode ser trabalhada de modo interessante em conjunto com
sua noção de “perda da individualidade” nos ambientes eletrônicos. Ambasparecem descrever muito bem aspectos da condição cultural contemporânea.
Por exemplo: “When everything comes at you very fast, naturally you lose touch
with yourself. Anybody moving into a new world loses identity. If you go to China,and you´ve never been there before, you´re a nobody. So loss of identity is
something that happens in rapid change. But everybody in the speed of light
tends to become a nobody.” (“Quando tudo chega a você muito rapidamente,naturalmente você perde contato com você mesmo. Qualquer um que se des-
loque para um mundo novo perde sua identidade. Se você vai para a China, e
nunca esteve lá antes, você não é ninguém. Assim, a perda de identidade éalgo que acontece numa mudança rápida. Mas qualquer um na velocidade da
luz tende a tornar-se ninguém.”). Esse e vários outros fragmentos tendem a
evocar muito bem noções contemporâneas importantes como a do fim daautoria. Sobre a relação entre modernidade e autoria, ver também McLuhan
(1996: 122)
230 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sido experimentada em ambiente virtual. Não se trata das milhares de
milhares de páginas de pornografia hospedadas em servidores pelo mun-
do inteiro24. Adolescentes, jovens e adultos em todos os países
“conectados” praticam mais do que acessar esse hábito já secular de con-
sumir fotos ou filmes eróticos (o cinema porno-erótico, por exemplo, data
das primeiras décadas do século XX25), e experimentam encontros virtu-
ais em que o desejo é vivido segundo as normas do interfaceamento - sa-
las virtuais coletivas ou privadas, textos digitados, ou mesmo imagens e
sons dos corpos, para os usuários de webcams26. Numa era de crescente
insegurança, de DSTs, camisinhas e “grupos de risco”, a Internet torna-
se até mesmo uma forma segura de experimentar a sexualidade. Essa for-
ma de amor virtual, certamente favorecida pela ligação narcísica, hipnóti-
ca - sobre a qual falamos no capítulo III -, estabelecida através da exten-
são tecnológica (no caso, como McLuhan definira, uma extensão do sistema
nervoso), já em 1998 justificara um livro, The Joy of cybersex: a guide for
creative lovers, de Deborah Levine, “an indication of the vitality of digital
culture”, como nota Gere (2002: 13).
Também, sabe-se, a economia estabeleceu uma nova ordem no flu-
xo global de riquezas por meio das redes digitais. No Brasil, conhecemos
imediatamente os efeitos da “crise da Rússia” (1998), ou da “crise asiáti-
ca” (1997) sobre as bolsas e movimento volátil dos capitais que, 24 horas
por dia, vigiam os mercados mundiais em busca das melhores oportuni-
dades, das taxas de juros mais atraentes, dos mercados financeiros de “me-
nor risco” - indicadores econômicos produzidos segundo um certo número
de “parâmetros”, dados inseridos em
aplicativos, e publicados em meios impres-
sos e digitais. Segundo as possibilidades
abertas pela comunicação digital, empresas
trans-nacionais administram seus negócios
segundo informações disponíveis em tempo
real de suas subsidiárias em todo o globo27.
Teleconferências, vídeoconferências, pro-
gramas de treinamento via e-learning, o uso
de processadores de texto, planilhas de da-
dos, comunicação por email, transformaram
o computador no elemento central do cotidi-
ano das empresas, numa economia global
experimentada segundo a lógica do instante,
mais do que a do planejamento. A economia
24 Manovich (2001: 225) comenta mesmo o modo curioso como, no início da
Internet, as mesmas imagens pornográficas reapareciam simultaneamente emdezenas de endereços virtuais, mostrando um mundo em que, ultrapassando
o famoso mapa de Jorge Luis Borges (que corresponderia ponto a ponto ao
real), havia mais endereços do que informações, num fantástico mapa em queo mesmo ponto seria indexado de múltiplas maneiras.
25 Ver, por exemplo, DiLauro e Rabkin (1976).
26 No limite, Steve Mann falará em “wearable computers”. (“computadores adap-tados ao corpo”). Ver Mann e Niedzevecki, Digital destiny and human possibilityin the age of the wearable computer (2002).
27 Em 1996, tivemos a oportunidade de acompanhar de perto a instalação de um
sistema de gerenciamento global desse tipo, ao sermos contratados para escre-ver um roteiro do vídeo de divulgação interna do novo sistema de administração
de todas as operações globais da Dow Chemicals no Brasil, o sistema então cha-
mado Diamond. O trabalho foi produzido pela Companhia de Vídeo, produtorapaulistana. Já fazem quase dez anos, e a Dow certamente não foi a pioneira.
O primado da percepção digital 231
“globalizada” pode ser facilmente percebida como a liberação das forças
econômicas dominantes, por meio das tecnologias digitais, dos constran-
gimentos espaço-temporais das fronteiras nacionais criadas na era do li-
vro. Diz Gere (2002: 10):
“The last 30 years have seen both the rise of globalization and the
domination of free-market capitalism, the increasing ubiquity of
information and communications technology, and the burgeoning
power and influence of techno-science. Digital technology is an
important and constitutive part of these developments, and has, to
some extent, determined their form.”28
Se a ordem econômica contemporânea, que não obedece frontei-
ras, não tem dia ou noite nem tampouco materialidade - trata-se, afinal,
somente de uma manipulação de números que, apenas em seu final, resulta
em algum lastro distante no mundo material -, se organiza segundo as
possibilidades espaço-temporais inauguradas pela rede informacional
digital, o mesmo se dá com o poder político - se é que se pode separar o
poder político do econômico. O Critical Art Ensemble (CAE) lembra, em
seu tom tipicamente veemente, que o sintoma mais evidente da transfe-
rência dos núcleos de poder para a segurança de uma posição nômade em
espaços digitais é o abandono crescente dos espaços públicos, que eleva os
shopping-centers à condição de último espaço de convivência:
“A teia que liga as casamatas [sedes do poder político econômico] −a rua − tem tão pouco valor para o poder nômade que foi deixada
para a ralé. [...] Deixar a rua para a mais alienada das classes
assegura que a única coisa que poderá ocorrer lá é uma alienação
profunda.
“Não apenas a polícia, mas criminosos, viciados e mesmo sem-teto
estão sendo usados como destruidores do espaço público. A
aparência da plebe, junto com o espetáculo da mídia, permitiu que
as forças da ordem construíssem a percepção histérica de que as
ruas são perigosas, insalubres e inúteis. A promessa de segurança
e familiaridade atrai hordas de ingênuos para espaços públicos
28 “Os últimos 30 anos assistiram à ascenção da globalização e a dominação do
mercado livre capitalista, a crescente ubiquidade da tecnologia da informação
e das comunicações e o renovado poder e influência da tecno-ciência. Atecnologia digital é uma parte importante e constitutiva desses desenvolvimen-
tos e, até certo ponto, determinou a sua forma.”
232 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
privatizados como os shopping-centers. O preço dessa proteção é
a renúncia à soberania individual. Ninguém, além da mercadoria,
tem direitos no shopping-center.” [Critical Art Ensemble,
2001:32]
Essa constatação, a partir de elementos cotidianos, da ordenação
do poder segundo as possibilidades abertas pelo aparato digital, tão somen-
te reitera essa migração de toda a experiência vivida ao âmbito dos siste-
mas digitais e à órbita das interfaces. Se fosse o caso de se duvidar de certo
tom panfletário com que o CAE procura denunciar as novas, sutis e
onipresentes formas do poder, e descaso deste último para com os espa-
ços públicos - por inúteis à sua manutenção29 -, Lewis Lapham (2001: xvi-
xvii), em sua introdução à re-edição do clássico Understanding Media de
McLuhan, comenta o mesmo fenômeno :
“Let technology be understood ... and McLuhan´s point ... explains
... also the state of disrepair in which the United States has let fall
its highways, its railroads, and its cities. If the media are nothing
more than the means of storing and transporting information, and
if by assuming the character of information comodities can be
moved by fiber optics, fax machines, and ATM cards, then why
bother to maintain an infrastructure geared to the purposes of
medieval Europe or ancient Rome.”30
Mas não somente o cotidiano informal do cidadão e a ordenação
político-econômica das sociedades contemporâneas vão se fazendo a partir
da lógica do suporte tecnológico digital. Também a ciência contemporâ-
nea seria impensável sem o emprego das possibilidades de
armazenamento, manipulação, simulação e cálculo abertas pelo disposi-
tivo computacional. Praticamente todas as inovações e achados da ciência
do último terço do século XX descritos por James Gleick em Caos, a criação
29 Para verificar essa noção de um poder distribuído e sem localidade, bastaria
notar que o atentado terrorista de 11/09/2001, que explodiu o então maisimportante centro financeiro da economia global, o World Trade Center, em
Nova Iorque, não causou maior abalo à ordem de poder. Sua eficácia foi so-
mente simbólica.
30 “Uma vez compreendida a tecnologia ... o ponto de vista de McLuhan explica
... também o estado de abandono no qual os EUA deixaram suas auto-estra-
das, suas ferrovias e suas cidades. Se a mídia nada mais é do que as maneirasde estocar e transportar informação, e se ao assumir o caráter de informação,
as mercadorias podem ser movidas por fibras óticas, maquinas de fax e car-
tões ATM, então por que vamos nos preocupar em manter uma infraestruturagerada pelos propósitos da Europa medieval ou da velha Roma?”
O primado da percepção digital 233
de uma nova ciência (1990) - “efeito borboleta”, “fractais”, “atratores” etc.
- são derivados de paisagens simuladas ou da manipulação de quantidade
exorbitante de dados em computador. Como conta Wheeler31, as pesqui-
sas em robótica e vida artificial são também baseadas em ambientes simu-
lados. Um projeto como o do seqüenciamento do genoma humano deman-
da capacidade de processamento além da casa dos trilhões de bytes32, e re-
gra geral todas as ciências, humanas, exatas ou biológicas, convergem na
alimentação de gigantescos bancos de dados. “All science”, escreveu
George Johnson, “is computer science”:
“Except for the fact that everything, including DNA and proteins, is
made from quarks, particle physics and biology don´t seem to have
a lot in commom. One science uses mamoth particle acelerators to
explore subatomic world; the other uses petri dishes, centrifugues
and other laboratory paraphernalia to study the chemistry of life.
But there´s one tool both have come to find indispensable:
supercomputers powerful enough to sift through piles of data that
would crush the unaided mind.” [Johnson, 2001]33
31 “Animats are artificial animals, or, to give an alternative definition, artificial
autonomous agents. The class of such systems includes autonomous robots withactual sensory-motor mechanisms, and simulated autonomous agents,
embedded in simulated environments” (“Animats são animais artificiais ou, para
dar uma definição alternativa, são agentes artificiais autônomos. Essa classede sistemas inclui robôs autônomos com efetivos mecanismos sensores e
motores e agentes autônomos simulados, imersos em ambientes também si-
mulados.”) (Wheeler, 1996: 210).
32 “A trillion bytes is the equivalent of a thousand one-gigabyte hard-drives −hundred of thousand of Napster downloads [o Napster, um servidor através
do qual usuários mundo inteiro trocavam arquivos digitais de música, vídeo,aplicativos etc., ainda não havia sido derrubado pela indústria fonográfica].
But that was just a fraction of the information needed to produce the competing
computer models of the human genome revealed the following week by CeleraGenomics and the publicly financed International Human Genome Sequencing.”
(“Um trilhão de bytes é equivalente a mil discos duros de um gigabyte − cen-
tenas de milhares de downloads do Napster. Mas isso era apenas uma fraçãoda informação de que se necessitava para produzir os modelos computacionais
rivais do genoma humano revelados na semana seguinte pela Celera Genomics
e pelo publicamente financiado International Human Genome Sequencing.”).(Johnson, 2001).
33 “Com exceção do fato de que tudo, incluindo o DNA e proteínas, é feito de
quarks, a física de partículas e a biologia não parecem ter muito em comum.Uma ciência usa gigantescos aceleradores de partículas para explorar o mun-
do subatômico, outra vale-se de lâminas de Petri, centrífugas e outras
parafernálias de laboratório para estudar a química da vida. Mas existe umaferramenta que para ambas tornou-se indispensável: supercomputadores su-
ficientemente poderosos para separar e examinar pilhas de dados que uma
mente jamais poderia manipular sozinha.”
234 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Cotidiano, economia, política, ciência - e já falamos um pouco da
arte, embora superficialmente. Resta o poderio militar, que, naturalmente,
não passa ao largo, e foi mesmo a motivação primeira do desenvolvimento
dos sistemas digitais desde as soluções de Turing para deciframentro dos
códigos nazistas até o decisivo apoio do governo dos EUA às pesquisas na
órbita da cibernética durante a Guerra Fria, que deram origem aos
supercomputadores contemporâneos. Mas não se trata apenas de maqui-
naria de guerra: bombas, aviões, mísseis, tanques etc., produzidos com
apoio decisivo da mesma ciência que desvenda, por exemplo, as funções
neuronais, e que trabalha hoje com o suporte indispensável do computa-
dor34. Mesmo o treinamento dos soldados americanos enviados a missões
como a recente (2003) invasão do Iraque pelos EUA, por exemplo, é reali-
zado com o uso das mais sofisticadas soluções de realidade virtual, produ-
zidas para uso militar por uma “coalizão de forças” que reúne os esforços
da indústria de guerra comandada pelo Pentágono, da indústria de entre-
tenimento de Hollywood e da indústria de tecnologia do Silicon Valley
(Silberman, 2004) - de tal modo que, em palestra na PUC-SP (setembro
de 2003), o artista, teórico e curador argentino Jorge La Ferla ironizou a
ambição vanguardista sustentada sobre a novidade tecnológica sugerindo
que deveríamos então procurar as vanguardas
nos laboratórios do Pentágono.
O computador, enfim, tem permeado
todas as instâncias do vivido nas sociedades
que participam, de algum modo, da economia
e dos jogos de poder em nível planetário.
Pode-se duvidar de que os aparatos digitais
com os quais operamos nosso dia-a-dia defi-
nam hoje, e cada vez mais, o cenário de nossa
experiência? O privilégio ambíguo do contem-
porâneo parece ser este de experimentarmos
em velocidade espantosa a liquidação de uma
ordem de experiência e um sentido de mundo,
e a instalação de uma ordem e de um sentido
de mundo absolutamente distintos35. Certa-
mente, em duas décadas, não haverá mais
lembrança ou referência do século XX, a expe-
riência do mundo dos aparelhos estará consu-
mada e falar dessa tensão ambígua em que ha-
bitamos estará tão distante do cotidiano quan-
34 Em Vent d’est (1969), Godard e Gorin fazem acusações diretas às pesquisascientíficas que sustentaram, no século XX, os horrores do poder, em especial o
desenvolvimento do gás napalm e o treinamento das tropas para seu empre-
go no Vietnam.
35 Convidamos o leitor a procurar relembrar a sua paisagem de mundo há cercade 15 anos atrás, em termos da experiência do espaço e do tempo, do empre-
go de tecnologia digital, da administração do cotidiano: verifica-se facilmente
a transformação radical da paisagem urbana − por exemplo, não empregáva-mos, obsessivamente, os telefones celulares, que hoje já operam um universo
vasto de informações e são verdadeiros terminais de comunicação
multimidiática wireless.
O primado da percepção digital 235
to deve ter sido, para as gerações pós-guerra, que experimentaram o apo-
geu do cinema norte-americano como principal entretenimento de mas-
sa, conceber a importância da pintura no século XIX; ou para as gerações
pós-TV conceberem o significado que teve, para as gerações anteriores,
esse cinema a que nos referimos; da mesma forma, o mundo sem a
Internet, o email, os celulares e os palm-tops será, para a as novas gerações,
verdadeiramente inconcebível. Nesse admirável mundo novo, onde vivemos
tecnologicamente expandidos e tecnologicamente sitiados - isto é: em rede
-, tem-se então a medida surpreendente do modo como a técnica ociden-
tal objetificou e re-significou todas as coisas “vivas ou mortas, sobre ou sob
a terra”36 quando relemos, no contexto da cibercultura, uma das mais sutis
e poéticas criações da aventura humana, o Tao-te-king de Lao-Tsé:
acoplados à interface, no ócio dos apartamentos altamente conectados,
temos acesso a todos os caminhos do mundo, todas as coisas do céu; na era
da informação sem lastro na experiência vivida (Bondía, 2002), quanto
mais longe [da rede digital] vamos, tanto menos avançamos.
A questão das redes emerge simultaneamente em diversos traba-
lhos da arte contemporânea, e poder-se-ia mesmo, mantendo essa popu-
lar metáfora rizomática, tecer uma teia ligando diversas poéticas contem-
porâneas umas às outras, pelas temáticas que se interfaceiam em um ou ou-
tro aspecto. Trebor Scholz, a partir de Nova Iorque, tem conduzido projetos
de mapeamento de espaços urbanos pelas coletividades que os habitam.
Trata-se de criar representação e memória destes espaços que
correspondam menos à sua apropriação simbólica - ou seu abandono -
pelas instâncias de poder (um tipo de significação que acaba se replicando
midiaticamente através dos guias turísticos das cidades e demais canais de
circulação de sua imagem institucional), e acolha o significado que estes
locais possuem segundo a experiência vivida das coletividades - eventos
privados ou coletivos que não são necessariamente convergentes com a
imagem oficial cultivada pelas instituições do poder público ou privado.
36 A expressão é empregada por Jorge Furtado em seu genial curta-metragemIlha das Flores (1989) e refere-se, na verdade, à economia das trocas, em que
“todas as coisas vivas ou mortas sobre ou sob a terra” podem ser trocadas
por dinheiro.
37 Scholz desenvolve atualmente [2005] um de seus mapas colaborativos em
conjunto com um grupo de artistas e pesquisadores brasileiros, entre eles
Ricardo Rosas, Lúcia Leão, Artur Matuck, Lucas Bambozzi e Sérgio Basbaum.O projeto tem sido batizado SubmaP.
Aqui, há um esforço em manter as conexões
em rede como espaços de circulação, reflexão,
legitimação e expansão de experiências vividas
no espaço “sedentário” (como diria o CAE) das
cidades - e caberia apenas indagar em que me-
dida essa conexão em rede não faz com que se
institua um afastamento ensaiado das
vivências no espaço urbano, e a migração da
experiência coletiva para os espaços digitais37.
236 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Em A web of life (2002), Michael Gleich tenta produzir, por meio da cone-
xão em tempo real, uma espécie de síntese das linhas das mãos de usuári-
os conectados em diferentes partes do planeta, onde interfaces táteis es-
tão disponibilizadas; numa instalação de grande escala no ZKM de
Karlsruhe, e em quatro unidades móveis que viajam pelo mundo, são apre-
sentados eventos audiovisuais abstraídos da imagem síntese das palmas das
mão de todos os participantes. Essa modelização em tempo real, a partir
de localidades dispersas no globo, lembra um pouco a maneira como a
psicologia estabelece, pela coleta experimental de um número suficiente
de amostras, os padrões de uma incrível abstração nascida no século XIX,
chamada “pessoa normal” - normatizada em termos perceptivos,
cognitivos e emocionais, e limiares de atenção, audição, visão, padrões de
produtividade e comportamento etc38. Ora, segundo uma prática de origem
cigana largamente difundida na cultura popular, a leitura das linhas mãos
- as mesmas linhas rigorosamente individuais das quais emerge essa
dactiloscopia, que, desde o início do século XX, cataloga identidades para o
poder do estado - daria informações precisas dos destinos individuais39.
A mão que governa o espetáculo de Gleich emerge, então, dessa síntese de
uma amostragem multi-étnica, multi-gênero, pluri-cultural - viabilizada,
segundo os termos da parametrização programada; seria, de certo modo,
uma imagem eletrônica do destino coletivo (que poderia mesmo ser sub-
metida a uma espécie de vidente virtual), imagem cujo principal atributo
seria dar, de algum modo, uma dimensão da
importância de cada indivíduo na constituição do
sentido da experiência planetária - e novamen-
te temos explícita uma ambição totalizadora
subjacente a certa noção de rede, quando esta
opera como uma forma curiosa de reunir, por
amostragem, uma subjetividade de dimensões
planetárias filtrada pelas determinações dos
códigos de programação. Não deixa de ser pe-
culiar, assim, que os quatro módulos em pe-
quena escala que viajam pelo mundo convir-
jam a uma grande instalação na Alemanha,
com o que se configura uma espécie sonho ro-
mântico e eurocêntrico da fusão de toda a cul-
tura do mundo nos centros do Velho
Continente40.
38 Johnathan Crary (1999: 67-96) descreve bem história dessa normatização.
39 Pode-se mesmo indagar em que medida exatamente essa crença, segundo a
qual seria possível ler nessas superfícies únicas e individuais das palmas das
mãos os destinos dos indivíduos, difere das ambições de uma genética quetambém crê deter, pelo código individual, a chave dos mesmos destinos.
40 Deveríamos sugerir que, abrindo mão do espetacular da instalação de Karlsruhe,
o trabalho de Gleich seria mais interessante? Ou, no caso dessa instalação si-
tuar-se num país periférico, isto mudaria de algum modo o significado da obra?Parece haver aqui um leque interessante de questões a serem levantadas. Pode-
se dizer, por exemplo, em qualquer caso, que o fato dos dados convergirem a
uma instalação principal contraria um pouco um descentramento que é valorimportante na noção de rede.
O primado da percepção digital 237
Talvez, porém, poucos trabalhos contemporâneos consigam ope-
rar o conceito de rede da forma imersiva, lúdica e integrativa - tão ambi-
cionada pelas poéticas tecnológicas - como o faz REDE, de João Modé. Tra-
ta-se de um “projeto itinerante e interativo” (Modé, 2004:4), em que, a
partir de embriões - pequenos trechos de rede tecidos fios variados - trazi-
dos pelo artista, ou mesmo a partir da rede já iniciada em eventos anteri-
ores, um grande número de participantes tece uma complexa rede mate-
rial em espaços comunitários. Com o emprego de cordas, cordões, barban-
tes, cadarços, fios, elásticos etc., disponibilizados pelo artista ou mesmo
trazidos pelos participantes - de modo que “a participação fica mais pes-
soal, o que, para algumas pessoas é de grande importância”, como escreve
o artista (Modé, 2004:6) -, a REDE é feita coletivamente, ao longo de perí-
odos que variam de um dia a duas semanas, por exemplo, obtendo enorme
envolvimento de comunidades as mais diversas - do parque do MAM-RJ
aos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro; do interior dos estados do Rio
de Janeiro e São Paulo41 até centros europeus como Stuttgart e Londres.
Conquanto um projeto cujas dimensões e complexidade visual possuem
enorme impacto plástico - como também o tinham os trabalhos coletivos
de Lygia Clark, com os quais guarda parentesco -, o trabalho de Modé visa
permanecer apenas em sua duração efêmera, e o processo deflagrado pelo
artista importa apenas na medida em que propicia uma vivência intensa,
trocas coletivas entre pessoas de idade, sexo, etnia e classe social de gran-
Michael Gleich: Michael Gleich: Michael Gleich: Michael Gleich: Michael Gleich: A web of life A web of life A web of life A web of life A web of life (2002)(2002)(2002)(2002)(2002)
41 Sobretudo com o apoio do SESC, que tem sido sensível ao êxito da rede deModé.
238 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
de heterogeneidade. Faz assim não apenas ex-
perimentar vínculos coletivos muitas vezes
fragilizados pelo esgarçamento do tecido soci-
al - sobretudo no Brasil -, mas, reunindo, num
mesmo instante lúdico e numa mesma teia
colorida, um executivo, um diretor de museu
e uma criança de rua, faz acontecer celebração
democrática, cujo impacto existencial perma-
nece em cada participante42. Assim, também o
conceito tão cibernético das “redes” ultrapassa
as fronteiras das poéticas tecnológicas e rea-
liza-se com materiais triviais e nenhum co-
nhecimento técnico.
João Modé: João Modé: João Modé: João Modé: João Modé: REDEREDEREDEREDEREDE (2004) (2004) (2004) (2004) (2004)Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Lygia Clark: Nostalgia do corpo coletivoNostalgia do corpo coletivoNostalgia do corpo coletivoNostalgia do corpo coletivoNostalgia do corpo coletivo(((((Rede de elásticosRede de elásticosRede de elásticosRede de elásticosRede de elásticos) (1974)) (1974)) (1974)) (1974)) (1974)
42 João Modé descreve assim a vivência deflagrada por REDE: “O ‘fazer’ da redeé bastante simples; não exige nenhuma habilidade técnica. Talvez o fato de
que, enquanto participante, a pessoa está se conectando àquela malha de
relações faça com que elas se comuniquem entre si, ou de forma verbal, oucom a troca de olhares, sorrisos, enfim, troquem experiências e vivências. [...]
Esta característica da rede de juntar diferentes tipos de pessoas − como, por
exemplo, uma criaça de rua e um diretor de uma grande instituição que estávisitando o museu − me interessou muito e é comum no processo construtivo
do trabalho”. (Modé, 1994: 6-7)
O primado da percepção digital 239
Mas pode parecer que fazemos aqui um juízo de valor, que a paisa-
gem que hora se instala agenciaria uma experiência para com a qual guar-
damos reservas. Mas não se trata disso. Trata-se, antes, de procurar um
registro para inquirir o presente, e nos parece mesmo que a referência que
ainda possuímos de uma ordem de experiência anterior à instalação em
curso permite uma ciência sutil da paisagem do presente que em breve será
simples arqueologia - se Baudelaire pôde, no século XIX, definir com tan-
ta clareza a modernidade, foi porque Paris se reconstruia diante de seus
olhos; o mesmo se pode dizer de Benjamin: se foi capaz de descrever com
tal precisão um certo cenário da cultura de massas, e a liquidação então em
curso, talvez, poder-se-ia especular, tenha sido pela sua condição de ju-
deu alemão na Paris dos anos 30; mesmo McLuhan, pode-se sugerir, pôde
vislumbrar o environment da cultura eletrônica pelo choque entre sua for-
mação literária num Canadá quase bucólico das décadas de 1940 e 1950 e a
pulsante arrogância da cultura da televisão nos Estados Unidos do pós-
guerra43. Assim, se parecemos pintar um retrato algo opressivo da presença
43 O contexto canadense é tão diverso do contexto dos Estados Unidos, que ain-da em 2003, quando de nossa visita a Toronto, o artista Marc Tuters nos disse,
a respeito da epidemia da gripe Sars que preocupava naquele momento a ci-
dade: “Bem, finalmente Toronto é perigosa por alguma coisa”. O leitor podefacilmente conceber o que seria Toronto na década de 1940.
44 Um excelente caso a se retomar é o do match enxadrístico entre Garry Kasparov
e computador Deep Blue, em 1997. Anunciado como um confronto “homem x
máquina”, o desafio acabou, como se sabe, com uma vitória de Deep Blue,posta sob dúvida por Kasparov, por ter envolvido ao menos um movimento que
o enxadrista considerou “não maquínico”, e que supostamente teria sido
efetivado pela equipe da IBM − a empresa, aliás, havia investido milhões dedólares na máquina e não considerava a hipótese de derrota, visto prejuízo
publicitário aí implicado. O que mais chama a nossa atenção é que a vitória de
Deep Blue na sexta partida deveu-se em larga medida à completa exaustãode Kasparov − que havia solicitado um descanso que a IBM recusou conceder.O lance a que nos referimos foi alvo da obra de Eduardo Kac na 26a Bienal de
São Paulo. Uma boa descrição da exaustão de Kasparov − que não puderaestudar jogos da máquina antes do match − está em http://
www.chesscorner.com/games/deepblue/deepblu.htm . Note-se que a IBM,
como se sabe, desmontou a máquina pouco depois do encontro. Em 2003,Vikram Jayanti lançou um documentário sobre o match: Game Over: Kasparovand the Machine. O filme sustenta a tese de que o evento teria sido manipu-
lado pela IBM, mas no nosso entender o fato mais importante é essa questãoda exaustão da mente humana frente à indiferença incansável da máquina.
da mediação digital, é pela sensibilidade
aguçada das mudanças em curso, e na tentati-
va de que não embarquemos na nova arca da
cultura digital sem uma criticidade que nos
permita fazer escolhas. Do contrário, resta
atualizarmos pemanentemente um sentido de
mundo que tem sido deflagrado sobretudo
pela intervenção, na conversa cotidiana, de um
parque tecnológico que repete perpetuamen-
te um sempre-o-mesmo, sua mensagem sendo
uma certa reordenação perceptiva dissimulada
nos conteúdos que deciframos - os velhos mei-
os com os quais temos familiaridade: a escri-
ta, a imagem estática e em movimento, a mú-
sica, diria McLuhan. Ao contrário de nossos
corpos obsoletos - diria Stelarc -, esses apare-
lhos não experimentam o cansaço, não dor-
mem, e, se se pode desligá-los, ao modo do
Hall de Clarke e Kubrick, não apenas não o fa-
zemos como dependemos de que permaneçam
ligadas, em turnos perpétuos, 24/744. Natural-
mente, às vezes “travam”, e é preciso substi-
tuí-los, mas sempre por máquinas melhores,
240 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
que realizam melhor o projeto nelas inscrito, a utopia digital. De modo que
se pode sugerir, parodiando Benjamin, que quando Eduardo Kac dizia, a
respeito de Genesis (1999), que o participante, ao ligar a máquina, “está
mudando a estrutura genética de um organismo com a mesma facilidade
com que você manda um e-mail para alguém que você ama ou com a mes-
ma facilidade com que você compra um livro na Amazon” (apud
Allmendinger, 2003:86), também nos convidava alegremente à liquidação
geral em curso.
Tanto mais radical e ostensiva é essa presença nas wired societies,
hiper-tecnologicamente mediadas, dos Estados Unidos, da Ásia e da Eu-
ropa, e a produção artística tem procurado reagir a este cenário. Em 2003,
durante o Subtle Technologies Festival, em Toronto, alguns dos mais inte-
ressantes trabalhos apresentados - envolvendo poéticas tecnológicas -,
referiam-se de um modo ou de outro a diferentes aspectos daquilo que se
chama hoje, de modo geral, sociedades “de controle” ou “de vigilância” a
partir da famosa tese de Foucault (2001) sobre o panóptico de Bentham.
Beatriz da Costa e Brooke Singer, por exemplo, descreveram, como parte
do projeto Swipe, uma performance em que operaram o bar no vernissage
de uma mostra de arte contemporânea. Para adquirirem bebidas, os con-
vidados eram solicitados a lhes passarem suas carteiras de motorista, re-
cebendo de volta não apenas a desejada cerveja e o documento, mas uma
lista dos seus dados pessoais (data-self), acessíveis em bancos de dados
do poder público – e vê-se uma vez mais o poder da intervenção artística
em problematizar e fazer experienciar aspectos do real. Nancy Nisbett,
por seu turno, implantou em si não um microchip, como fizera Kac em
1997, mas dois, examinando a alternativa de desenvolver múltiplas iden-
tidades como forma de iludir os sistemas de controle; em 2001/2002, o
ZKM de Karlsruhe dedicou toda uma mostra - CTRL[SPACE] Rhetorics of
Surveillance from Bentham to Big Brother - e um livro aos problemas da so-
ciedade de vigilância. Estes e outros eventos denunciam uma percepção
que traduz um mundo onde o poder é onipresente, e a privacidade - típi-
ca do indivíduo moderno - torna-se mais e mais um valor incompatível
com a vivência cotidiana.
Experiências importantes, que problematizam forças significati-
vas na determinação dos modos do poder contemporâneo, esses trabalhos
ainda não fazem notar certas mudanças perceptivas mais intensas em cur-
so. Pensemos no tradicional problema da visualidade: o olhar do autor
deste trabalho, e o da maior parte de sua geração, foi formado principal-
mente dentro de um regime espectatorial determinado pelo cinema e pela
O primado da percepção digital 241
televisão; o da geração de seus pais, certamente pelo do cinema, sobretu-
do - já nos referimos há pouco a essa conhecida potência que o cinema
norte-americano teve, e ainda tem, num modo hoje bem distinto, de criar
toda uma mitologia moderna; o olhar das gerações que surgem forma-se
atrás de câmeras digitais e diante das telas maiores ou menores (mas sem-
pre telas: marca do Ocidente) em que circulam as imagens aí produzidas,
ou se acessam ambientes interativos e games digitais. O conhecido caso do
jovem taiwanês que faleceu após mais de 30 horas jogando numa LAN
house45, bem como a semelhança entre os enredos dos games e os trágicos
massacres perpetrados por jovens armados nos Estados Unidos, ou ainda
a impressionante cena do soldado americano preparando-se para massa-
crar alguns iraquianos ao som de rock’n’roll em seu walkman em Farenheit
9/11 (Michael Moore, 2003) são sintomas da medida em que as novas for-
mas de entretenimento tomam posse do dia-a-dia e são projetadas sobre
o real46. Há, diria Flusser, na inundação de imagens técnicas, uma força
programadora, que nos impõe o regime do pensamento técnico dissimu-
lado nas superfícies. Trabalhos contemporâneos vêm discutindo esse modo
com que projetamos sobre a cena vivida imagens plantadas em nós.
Em maio de 2004, no espaço EXO, em São Paulo, Ricardo Basbaum
conduziu um de seus workshops que são parte da poética do projeto NBP
(Novas Bases para a Personalidade), que integra instalações, workshops,
textos, vídeos, e ainda um objeto que circula pelo mundo desde de 1994, ao
qual os participantes conferem o uso que lhes agradar, enviando depois ao
artista documentação a respeito da experiência, e repassando o objeto adi-
ante. Na EXO, Basbaum realizou uma experiência coletiva, como parte do
trabalho do artista Jorge Menna Barreto, que criara, em Projeto Matéria, uma
espécie de sala-de-aula no Centro Cultural São
Paulo47, ocupada com apresentações de artis-
tas convidados. A oficina de Basbaum, realiza-
da dentro do projeto mas fora do espaço do
Centro Cultural, reuniu um grupo de pouco
mais de uma dezena de pessoas. Consistiu em
propor uma série de questões sobre o lugar
problemático da arte e do artista na cultura,
exercitando a seguir um experimento que exa-
minava o impacto das estratégias de comuni-
cação que se vê correntemente no contexto
contemporâneo, o fluxo vertiginoso de ima-
gens técnicas que imprime marcas inevitáveis
45 http://www.link.estadao.com.br/index.cfm?id_conteudo=1488
46 Para um inventário veemente − talvez um pouco panfletário, pela sua inter-
pretação dos efeitos subliminares dos signos ocultos nos ambientes virtuais −dos efeitos subliminares dos games digitais, ver:http://www.mensagemsubliminar.com.br/conteudo.php?id=LTg1NTQuNw==
47 O projeto foi realizado entre 29/01/2004 e 01/07/2004. Documentação sobre
o projeto pode ser acessada em http://geocities.yahoo.com.br/materiaccsp/ .
242 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
em nossos corpos, em nossos olhares. Diante de um diagrama desenhado
sobre o chão, os participantes foram divididos em dois grupos, vestindo ca-
misetas com estampas “eu” ou “você”, sendo convidados a executar, no
espaço do diagrama no chão, “mapas coreográficos” com percursos pro-
postos pelo artista. Estas sugestões de caminhos guardavam, entretanto,
grande liberdade aos participantes de mudarem rotas, velocidades ou
direções, dentro dos percursos e dos agrupamentos de “eus” e “vocês”.
Após muitas confusões, risos e interações inusitadas a partir de uma grande
concentração motivada pelo empenho coletivo em pôr em prática as
instruções do artista (a experiência da arte envolve, dissemos há pouco, o
contrato de uma disposição conjunta), os participantes foram chamados a
deixar os espaço da galeria e realizar as coreografias no espaço aberto da
Rua Bela Cintra - uma movimentada rua no bairro da Consolação, centro
da cidade. Ali, em meio a um fim de rush - por volta da 20:30 hs. -, o grupo
viu-se intervindo no espaço público, realizando os movimentos ensaiados
sobre o diagrama NBP nos intervalos do tráfego dos carros. Projetavam
sobre a rua, então, a programação que lhes havia sido inserida por meio de
imagens no interior da galeria. De nenhum modo teria sido possível tor-
nar mais clara a noção flusseriana segundo a qual estamos correntemente
sendo programados por imagens técnicas, e certamente a própria palavra
programação e o modo como esta intervém em seus corpos e gestos, adqui-
riu, para os participantes do workshop, um sentido completamente reno-
vado.
Os trabalhos de Beatriz da Costa e Brooke Singer, Nancy Nisbett e
Ricardo Basbaum apresentam, novamente, diferentes estratégias que
empregam mais ou menos tecnologia para
discutir questões do presente, no caso, as-
pectos da sociedade de vigilância e controle.
Se temos colocado, então, interrogações a
certos postulados de uma produção artística
que se propõe a explorar - mais do que inqui-
rir - estes meios é porque, afinal, trata-se de
sustentar uma potência da arte em fazer
experienciar o presente, e de algum modo fa-
zer emergirem mais nitidamente as forças
dissimuladas que progressivamente gover-
nam todos os aspectos do real - e se dizemos
heideggerianamente, governam, é numa alu-
são ao fato sabido de que esta onipresença doRicardo Basbaum: Ricardo Basbaum: Ricardo Basbaum: Ricardo Basbaum: Ricardo Basbaum: NBPNBPNBPNBPNBP ( ( ( ( (workshopworkshopworkshopworkshopworkshop, EXO-SP, 2004), EXO-SP, 2004), EXO-SP, 2004), EXO-SP, 2004), EXO-SP, 2004)
O primado da percepção digital 243
maquínico na mediação da conversa implica, queira-se ou não, que esta
conversa se dê em seus termos. Não é a toa que o conhecido aforisma de
McLuhan foi atualizado por Kim Cascone, por exemplo, para “o aplicativo
é a mensagem” (Turner, 2001), ou por Giselle Beiguelman para “a interface
é a mensagem”48: percebe-se, nas superfícies sonoras, visuais ou
audiovisuais, as marcas dos aplicativos populares como Flash, Photoshop,
Acrobat, Director, Premiere, Final-Cut, Pro-tools etc., e a questão das
interfaces é inescapável. Vê-se aí a importância não apenas econômica que
assume o movimento pelo software livre, a possibilidade de fuga dos
aplicativos hegemônicos que em alguma medida determinam as possibi-
lidades dos trabalhos digitais49. Contra esse argumento, pode-se sugerir
que algumas ferramentas como o ambiente de programação MAX, produ-
zido pelo IRCAM de Paris, ou seu similar free-ware, o Pure-Data, são
maleáveis e poderosos, e dificilmente alguém poderia “esgotar as possi-
bilidades do programa”, para usar termos flusserianos. Mas trata-se de ir
além e reconhecer que, mesmo na chamada programação de “baixo-nível”,
na elaboração dos software, no domínio dos códigos, já se impõe toda a ló-
gica de um pensamento binário e matematizante, que demanda a fragmen-
48 Admirável mundo cíbrido. http://www.pucsp.br/~gb/texts/cibridismo.pdf
(sem data).
49 Desde nossa iniciação científica já denunciávamos a questão das determina-
ções dos aplicativos de mercado.
tação de objetos e processos em dados e
algoritmos - como se “nomes” se tornassem
conjuntos de dados e “verbos”, algoritmos, se-
gundo a sintaxe determinada pelos códigos de
programação. Só se pode, enfim, programar
aquilo que se nomeia e que se pode quebrar em
parâmetros matematizáveis; e se aceitamos,
por exemplo, a proposição de Vilém Flusser
(1963) de que “língua é realidade”, e que vive-
mos no “cosmos da língua”, podemos dizer
que o computador é uma espécie de dispositivo
cosmofágico que engole o cosmos através de estra-
tégia algorítmica e atomista, vomitando um dilú-
vio de signos sem referente, que instalam o real
segundo as determinações de sua própria sintaxe.
Um exemplo banal, entre muitos, é o modo
como nos deparamos, cotidianamente, nas
instituições bancárias e na burocracia
informatizada, de modo geral, com as impossi-
bilidades determinadas pelo fato de que “o sis-
tema não permite”.
244 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Na extraordinária dimensão de uma convergência de toda a medi-
ação planetária aos suportes digitais, a aventura humana acaba emergindo
como se fosse um rio que caminhasse, aceleradamente, rumo à totalização
da paisagem midiática planetária nos termos da tecnologia digital: a me-
diação digital é, surpreendentemente, esse lugar-limite misterioso para
onde deságua hoje a totalidade da experiência. Se devemos tomar as pro-
posições dos capítulos anteriores - em que procuramos mostrar os laços
entre a percepção e o sentido da experiência vivida, e o modo como as
tecnologias de mediação intervém aí mesmo, na gênese de um “mundo” -
como hipótese para pensar o contemporâneo, devemos aceitar que os apa-
ratos digitais onipresentes passaram a constituir o elemento determinante
do ambiente midiático planetário. E, assim, a nossa morada perceptiva, em
que se deposita a fé perceptiva descrita por Merleau-Ponty: as coisas a que
me reúno, que determinam meu campo perceptivo, que me permitem fa-
zer mundo - que na presentidade da percepção me constituem, e eu a elas.
Se aceitamos que toda a experiência vivida hoje, todas as mediações, toda
a produção, toda organização de conhecimento, cada vez mais, se efetiva e
se efetivará segundo as determinações dos suportes digitais - e vimos
mesmo que as questões que emergem são comuns ao imaginário low-tech
(para não dizer no-tech) e high-tech -, trata-se de procurar alguns padrões
que nos pareçam corresponder ao tipo de percepção, a uma gestalt
experiencial ou a um ponto de experiência que seja determinado pelas carac-
terísticas dessa mediação. Só podemos precisar, porém, de maneira
incipiente um objeto que já mostramos tantas vezes tão esquivo como é a
percepção, e numa escala tão vasta como a do parque digital em instalação.
O propósito deste trabalho é muito mais abrir esta abordagem, mostrar
suas fundações e suas possibilidades do que encerrá-la em algumas pou-
cas páginas. No que se segue, porém, tentar-se-á sugerir alguns aspectos
que nos parecem estar ligados a este primado da percepção digital: o primeiro
diz respeito a uma espécie deslocamento radical da primazia do olhar, em
que outros modos perceptivos parecem estar assumindo um papel mais
relevante na constituição da gestalt experiencial, configurando como que
um ponto de experiência sinestésico, uma espécie primazia de uma sen-
sação auto-referente que reaparece em inúmeras manifestações na cultu-
ra contemporânea; um segundo diz respeito, nos termos mesmo em que
mostrávamos no capítulo III os vínculos entre a fotografia e um certo pen-
sar técnico - a objetificação das coisas do mundo pela imagem, em meio
ao apogeu de uma epistemologia baseada na distinção sujeito-objeto -, ao
modo como o digital parece dispor a experiência perceptiva segundo os
O primado da percepção digital 245
termos de uma proposição técnica bastante mais sofisticada em seu modo
de objetificação, a cibernética. Talvez essa articulação entre a sinestesia e
essa ciência do mundo sem ruído nos permita entender algo da paisagem
- para adotarmos a definição de Lipovetsky - hipermoderna.
A palavra “sinestesia” é de origem grega: “syn” (simultâneas) mais
“aesthesis” (sensação), significando “muitas sensações simultâneas” - ao
contrário de “anestesia”, ou “nenhuma sensação”. Ao longo dos últimos
dez anos, temos partido do conceito de sinestesia para pensar essas rela-
ções complexas entre percepção, arte e tecnologia que este trabalho tenta
aprofundar. É a partir, portanto, de trabalho anterior - cujas idéias cen-
trais serão reapresentadas nos próximos parágrafos - que emergiram
muitas das idéias desenvolvidas no presente trabalho, inclusive o empe-
nho, feito nos primeiros capítulos, em formular de uma maneira mais con-
sistente o papel desempenhado pela percepção na produção do sentido de
nossa experiência. Tornava-se evidente que só assim seria possível pos-
tular mais firmemente as curiosas relações entre a cultura digital e a ex-
periência sinestésica que nosso texto anterior já pôde sugerir (Basbaum,
S., 2002).
A primeira referência à sinestesia é normalmente atribuída a
Pitágoras e sua Harmonia das esferas, que, entre outras coisas, implicava
fusão sensorial. Seu uso mais comum nas artes remonta à poesia simbo-
lista do século XIX - Baudelaire, Rimbaud etc., mas há uma verdadeira li-
nhagem de trabalhos artísticos, cuja origem remonta ao século XVIII, que
partilham algumas aspirações sinestésicas em comum, apesar de situados
em contextos sócio-culturais e tecnológicos de épocas bastante diversas
(vários deles descritos em Basbaum, S., 2002). No domínio das ciências -
psicologia, fisiologia e neurologia -, a sinestesia tem também uma curiosa
e até fascinante história, já que desde o século XVIII há relatos descreven-
do pessoas que, expostas a um estímulo relacionado a uma determinada
modalidade sensorial, experimentam sensação
em uma modalidade diversa; o mais comum
parece serem casos de audição colorida, a tra-
dução de um estímulo sonoro em imagens
abstratas50, mas há inúmeras manifestações
distintas. O famoso paciente de Richard
Cytowic, Michael Watson, que o conduziu às
50 Uma excelente introdução a essa neurologia da sinestesia, com diferentesabordagens, inclusive um texto pioneiro (1883) de Francis Galton, pode ser lida
em Baron-Cohen e Harrison (1997). Nosso próprio trabalho apresenta uma sín-
tese e algumas reflexões originais − retomadas e expandidas aqui − das idéi-as desse livro, reunidas a alguns outros achados de pesquisa e uma proposi-
ção pessoal de caráter artístico, a Cromossonia.
246 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
pesquisas que, em 198951, deflagaram as discussões recentes sobre o tema,
era um artista que sentia sabores como formas (The man who tasted shapes),
e qualquer pesquisa hoje em bancos de publicações científicas como Nature
ou Journal of consciousness studies revela um variado espectro de fusões sen-
sórias - sons e sabores, gestos e sons, por exemplo. No século XIX, do nas-
cimento da psicologia experimental, esses sinestetas haviam sido objeto de
um grande número de trabalhos, sobretudo após 1870, mas a ascensão do
paradigma behaviourista, após a década de 1930, determinou significati-
va redução nesse interesse, já que a experiência subjetiva não era consi-
derada mais passível de análise científica52. Nas últimas décadas, no en-
tanto, o avanço das ciências neurocognitivas e das pesquisas sobre o cére-
bro e a consciência, amparadas em poderosos recursos tecnológicos - digitais,
naturalmente -, tornou possível observar processos cerebrais antes ina-
cessíveis, gerando uma nova onda de interesse pela sinestesia e por aquilo
ela pode revelar sobre a cognição.
Ao mesmo tempo em que voltou a ser objeto de pesquisa neuro-
cognitiva53, o termo tem surgido com crescente frequência na literatu-
ra voltada à cultura contemporânea54, às artes visuais55, cor56, antropo-
logia57, linguística58, música59, literatura60
ou, finalmente, à multimídia61. Em 2001, a
revista Leonardo, publicada pelo MIT, dedi-
cou a ela todo um número. Mais recente-
mente (2002), dedicamos um pequeno livro
às relações entre a sinestesia, a arte e a
tecnologia, mencionado há pouco. A
sinestesia também tem aparecido em revis-
tas, jornais, rádio e TV. Na web, além de inú-
meros sites que abordam de um modo ou
outro a questão, apresentando links, biblio-
grafias e processos artísticos, pelo menos
duas listas internacionais de discussão reú-
nem comunidades dedicadas ao tema. Anu-
almente, pesquisadores vindos de diversas
disciplinas, sinestetas e curiosos reunem-se
no encontro da ASA, a American Synesthesia
Association. Esse crescente interesse pelo
tema não pode ser visto como simples aca-
so, se consideramos que diferentes faces da
cultura manifestam algo de uma mesma per-
51 Synesthesia − a union of senses.
52 Ramachandran (2004: 289) faz uma ironia que revela bastante bem as limita-
ções do behaviourismo: “Lembro-me da velha história sarcástica sobre umbehaviourista que, tendo acabado de fazer amor apaixonadamente, olha para
a amante e diz: ‘obviamente, foi bom para você, querida, mas foi bom para
mim?’”. Nunca é demais lembrar, porém, que a neurociência contemporâneaparece, na maior parte dos casos, defender seus pontos de vista com a mesma
obstinação totalizante com que o behaviourismo, a seu tempo, defendeu seus
próprios pressupostos. Mudam os paradigmas, mas a filosofia que os sustentapermanece a mesma.
53 Através dos trabalhos de Marks (1974; 1987), Cytowic (1989; 1993), Harrison
e Baron-Cohen (1997) Harrison (2001), Grossenbacher (1997) e Ramachandrane Hubbard (2003), e outros.
54 Marshall McLuhan (1995), por exemplo; Eric McLuhan (1998)
55 Moritz, (1985).
56 Riley II, (1995); Gage, (1999).
57 Ackerman (1995), Classen (1993).
58 Day (1997; 2001).
59 Kahn (1999); Bosseur (1999).
60 Nabokov (1966); Dann (1998).
61 Cook(2000); Santaella (2001).
O primado da percepção digital 247
cepção. Sob diversos aspectos a sinestesia nos parece corresponder à
experiência perceptiva contemporânea.
Vamos iniciar, então, por relatos da experiência sinestésica. Ten-
do dedicado certo tempo às diferentes teorias científicas que procuravam
explicar a sinestesia (Basbaum, S., 2002), nossa atenção está hoje voltada
sobretudo à experiência sinestésica em seu modo singular de significação
do vivido. Até porque, sendo objeto de trabalhos bastante recentes, tanto
mais incide aqui o aspecto transitório da verdade científica: as conclusões
que Cytowic publicou em 1989, dando ênfase ao papel da emoções na de-
terminação da experiência consciente - antecipando questões levantadas
mais tarde por Damásio, por exemplo, como lembra Cole (2000: xv) - di-
ferem imensamente dos modelos propostos por Ramachandran e Hubbard
(2003) ou por Harrison (2001), por exemplo. Por outro lado, a descrição
da experiência desses chamados sinestetas é o ponto de partida de todas
estas pesquisas, e o ponto onde se encontram. Em The mind of a mnemonist
(1968), por exemplo, Alexander Luria descreve como seu paciente S., do-
tado de uma memória excepcional, experiencia também várias formas de
sinestesia:
“Presented with a tone pitched at 50 cycles per second and an am-
plitude of 100 decibels, S. saw a brown strip against a dark back-
ground that had red, tongue like edges. The sense of taste he expe-
rienced was like that of sweet and sour borscht, a sensation that
gripped his entire tongue.” [Luria, 1987:23]62
Mas estas e outras ricas descrições similares apresentadas por Luria
são experimentos de laboratório, e talvez tenhamos algo mais rico num
ambiente menos ideal e mais cotidiano. Num trecho bastante conhecido,
S. descreve a experiência de ouvir a voz do cineasta Serguei Eisenstein:
62 “Apresentado a uma tonalidade de 50 ciclos por segundo e uma amplitude de100 decibéis, S. viu uma tarja marrom contra um fundo escuro que tinha bor-
das vermelhas, em forma de língua. O sabor ele experimentou era como aque-
le agri-doce do borscht, uma sensação que arranhava toda a sua língua.”
248 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
“You know there are people who seem to have many voices, whose
voices seem to be an entire composition, a bouquet. The late S. M.
Eisenstein had just such a voice: listening to him, it was as though
a flame with fibers protruding from it was advancing right toward
me. I got so interested in his voice, I couldn´t follow what he was
saying...” [Luria, 1987: 24]63
Curiosamente, nas experiências de Benjamin com o haxixe, encon-
tra-se depoimento bastante similar:
“[vivi ali] minha experiência com a audition colorée. Eu não estava
acompanhando atentamente o sentido do que E. me dizia, pois o
eco em mim de suas palavras se convertia imediatamente na
contemplação de coloridas lantejoulas metálicas, as quais se
reuniam até formaram padrões. Tentei explicar-lhe o fenômeno
pela comparação com moldes de trabalhos manuais, aquelas lindas
cartelas coloridas que encantaram nossa infância.” [Benjamin,
1984: 88]
Tais depoimentos, fascinantes - há diversos, mais ou menos simi-
lares, em Cytowic (1989)64 -, colocam em questão uma espécie de percep-
ção auto-referente, em que, além de algo no mundo, também percebo algo
que remete ao próprio fenômeno, levando os psicólogos e neurologistas a
interrogar sobre a natureza de nossa percepção. Em termos evolutivos, as
diferentes modalidades perceptivas do ser
humano estão inter-relacionadas por uma
série de fatores. Do diálogo entre estas mo-
dalidades depende, por exemplo, a constru-
ção de uma representação consciente e coe-
rente da realidade, indispensável à sobrevi-
vência (Grossenbacher, 1997). Os sentidos
confirmam-se uns aos outros, e cremos no
mundo - assim como agimos nele de forma
eficaz: a percepção do real é sempre integra-
da, e, como diz Merleau-Ponty (1994: 308),
“Os sentidos comunicam-se entre si abrem-
se à estrutura da coisa” .
Pensemos esse diálogo inter-moda-
lidades em algumas direções. A primeira de-
las é uma unidade fisiológica de natureza
quase computacional - mas os computadores
63 “Você sabe que existem pessoas que parecem ter muitas vozes, cujas vozes
parecem uma inteira composição, um buquê. O falecido S.M. Eisenstein tinhaesse tipo de voz: ouvi-lo era como se uma chama com labaredas avançasse
diretamente em minha direção. Eu ficava tão interessado na voz que não pres-
tava atenção no que ele dizia...”
64 No correr destes últimos anos, trabalhando a questão da sinestesia em sala de
aula, tivemos a oportunidade de encontrar alguns alunos que manifestaram
viver experiências sinestésicas. Ainda que sejam sempre subjetivas e individu-ais, de modo geral concordaram com as descrições que aqui aparecem. Em
nosso livro de 2002, há algumas descrições de Messiaen que são bastante
detalhadas, e também bastante semelhantes às citadas (Basbaum, 2002: 156).Ramachandran e Hubbard (2003:30) mencionam uma mulher com “orgasm-
colour synesthesia” (sinestesia em orgasmos coloridos).
O primado da percepção digital 249
são extensões de nosso corpo, estão em nós, já dissemos, apenas não nos
esgotamos neles. Lawrence Marks (1997), demonstra, assim, que nossas
modalidades perceptivas partilham algumas dimensões estruturais co-
muns: por exemplo, estímulos descontínuos em freqüências acima de
20Hz aplicados ao campo visual, auditivo ou tátil nos dão uma ilusão de
continuidade - a ilusão de movimento no cinema, a sensação de som ou de
uma pressão contínua. Sons graves nos parecem mais amplos e mais escu-
ros; sons agudos, menores e mais brilhantes. Tais dimensões permitem às
sensações próprias a uma modalidade serem descritas nos termos de ou-
tra. Espontaneamente, nos referimos a um som brilhante ou uma cor berran-
te; descrevemos uma voz agradável como uma voz doce65. Essas dimensões
parecem ser, sobretudo, propriedades biológicas do aparato perceptivo,
fazem parte da experiência de modo bastante geral, e ainda uma vez, po-
demos tomar a Fenomenologia da percepção: “Os sentidos traduzem-se uns
nos outros sem precisar de um intérprete, compreendem-se uns aos ou-
tros sem precisar passar pela idéia” (Merleau-Ponty, 1994: 315).
Em segundo lugar, tais associações podem também refletir supos-
tos aspectos estruturais da experiência. Merleau-Ponty (1994: 306) afir-
ma que “Assim como no interior de cada sentido, é preciso reencontrar
uma unidade natural, faremos aparecer uma ‘camada originária’ do sentir
que é anterior à divisão dos sentidos”, apontando àquela união primordi-
al, pré-linguística, que, dissemos, é sua resposta encarnada à unidade do
ser pleiteada por Heidegger. Cytowic (1997: 29-30) parece ir na direção de
Merleau-Ponty, quando sugere que o prazer proporcionado por
espetáculos de fogos de artifício estaria na forma como (re)presentam es-
truturas essenciais, fundamentos de nossa percepção, que chama constan-
tes de forma - como fossem “arquétipos” perceptivos - e esse curioso êxta-
se experimentado em meio às explosões de sons e cores seria como uma
espécie de identificação. Para Cytowic, os sinestetas são de certo modo
“fósseis cognitivos” (2000:175-6), e ainda aqui Merlau-Ponty já dissera,
65 Sobre sinestesia e metáforas sinestésicas, ver o excelente texto de Day (1996)ou Basbaum, S. (2002). Um bom exemplo de metáfora sinestésica, em
Leminsky (1984: 53): “E ouvi sua voz adocicada, coentro, pimenta, canela,
cravo, salsa, creme de leite com queijo parmesão por cima, uma voz com todosos temperos”.
66 A citação de Merleau-Ponty vem do trabalho de Mayer-Gross e Stein, Übereinige Abhänderungen der Sinnestätigkeit in Meskalinenraush (1926).
em 1945, citando psicólogos alemães, que,
nessa síntese sinestésica, “tudo se passa como
se víssemos ‘caírem algumas vezes as barrei-
ras estabelecidas entre os sentidos no curso da
evolução’66" (Merleau-Ponty, 1994:307). Mas
se há algo de originário nessa unidade
sinestésica, também ela está sujeita às deter-
minações da cultura e seus hábitos
perceptivos, e as associações entre os sentidos
250 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
também respondem à gestalt dominante - por exemplo, na forma como es-
peramos que um refrigerante sabor laranja tenha a cor da laranja, ou quan-
do pensamos sentir o aroma de um vinho tinto somente numa substância
líquida, somente por que esta tem a cor que lhe corresponderia (Morot,
Brochet e Dubordieu, 2001).67
A descrição de experiências como as de S. e de Benjamin, porém -
em que os intercruzamentos modais emergem de maneira tão intensa, com
qualidades comuns e idiossincrasias individuais -, permite perceber algu-
mas qualidades peculiares a essas gestalts multisensoriais e auto-referen-
tes. Os neurologistas afirmam que o estado de percepção sinestésico, ou ao
menos um estado mais intenso de intercruzamento modal, é característico
da infância. A sinestesia é uma propriedade natural do sistema perceptivo
dos recém-nascidos (Maurer, 1997) e é mais facilmente encontrada nas cri-
anças (Marks, 1997). Esse estado de entrega ou abandono à sensação, em que
se constata a medida em que “a experiência visual e a experiência auditiva,
por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a
unidade antepredicativa do mundo percebido” (Merleau-Ponty, 1994: 315),
pode ser relacionado a um modo cognitivo da infância, onde o aqui-agora da
sensação predomina sobre o universo simbólico, duradouro, característico da
cognição verbal. Nossa “conversão” crescente ao universo mais “flexível”,
prático, racional e eficiente do simbólico coloca as palavras entre nós e o
mundo - a percepção torna-se, já vimos, inacessível senão nos termos da
sintaxe própria da linguagem, e a sinestesia é
geralmente caracterizada como “inefável”.
Não importa, porém, o quanto nos afastemos
da experiência direta, entretanto, as associa-
ções intermodais permanecem na linguagem
ordinária - metáforas já apresentadas o de-
monstram. Embora a linguagem seja, ao mes-
mo tempo, representacional e criativa, permi-
tindo jogos e paradoxos, gerando novos tipos
de significado que ultrapassam os cruzamen-
tos modais biológicos, estes estão, parece, na
base de nossa cognição e, tem sido sugerido,
até mesmo na origem da linguagem.68
Em síntese, estamos associando cer-
tas propriedades à experiência sinestésica:
ela nos aparece como uma experiência direta,
pré-verbal do mundo; uma imersão na sensa-
67 Esse paper curioso reitera a questão da primazia do olhar em nossa cultura, jáque a sensação visual se apresenta − de modo até surpreendente, pois os su-
jeitos dos testes são provadores profissionais franceses! − dominante e
determinante da experiência olfativa.
68 Já falamos nos primeiros capítulos das relações entre a experiência perceptiva
e a linguagem. Classen (1993: 50-76) dedica um capítulo a um glossário que
descreve as origens sensoriais de um bom número de palavras e expressõesem língua inglesa. Eric McLuhan (1998: 160-72) retoma Cytowic para argu-
mentar a favor dos realistas na contenda lingüística mediaval entre nominalismo
e realismo; Marks, com Hammeal e Bornstein publicaram em 1987 um ensaio(Perceiving similarity and comprehending metaphor) tratando das relações pré-
lingüísticas entre os sentidos para o pensamento por metáforas; por fim,
Ramanchandran e Hubbard (2003: 28-9) também se posicionam sobre o tema:“Our speculations on the neural basis of metaphor also lead us to propose a
novel synaesthetic theory of the origin of language. We postulate that at least
four earlier mechanisms were already in place before language evolved.” (“Nos-sas especulações sobre a base neural da metáfora também nos levaram a pro-
por uma nova teoria sinestética da origem da linguagem. Postulamos que pelo
menos quatro mecanismos primários já estavam instalados antes da lingua-gem ser desenvolvida “). Trata-se de uma questão fascinante, aberta e inter-
minável, da qual já nos esquivamos no primeiro capítulo já que, como disse-
mos, ultrapassa largamente as ambições do presente trabalho.
O primado da percepção digital 251
ção, uma presença de um modo de ser que nos mergulha intensamente na
experiência perceptiva, antes de sua análise racional; assim, vivida em sua
imediaticidade, provê experiência específica do tempo, um tempo agórico,
uma presença aqui-agora - quase como uma dilação, um tempo deslocado
do tempo linear, diacrônico, da experiência ordinária. Assim, opondo-se
a aspectos determinantes de nossa consciência analítica, a sinestesia se
oferece como um tipo consciência particular, uma gestalt, uma estruturação
do mundo que provê uma cognição distinta - que o sinesteta experimenta,
aprecia, mas não consegue exprimir. Tais características levam Cytowic
(2000:78)69 - num insight surpreendente - a comparar a experiência
69 Cytowic sintetiza esse seu achado − que nos parece mais interessante em
seu sentido existencial do que nos termos de uma neurologialocalizacionista − assim: “The limbic brain, a structure much older than
the cortex, deals with emotion and memory and provides the sense of
conviction that individuals attach to their ideas and beliefs. The emotionand sense of certitude that accompany synesthetic experience made me
think of that transitory change in self awereness that is known as ecstasy.
Ecstasy is any passion by which the thoughts are absorbed and in whichthe mind is for a time lost. In discussing mystical experience in The Varietiesof Religious Experience, William James spoke of ecstasy´s four qualities of
innefability, passivity, noëtic quality and transience. There are exactly thesame qualities of synesthesia [...] ‘Although so similar to states of feeling,
mystical states seem to those who experience them to be also states of
knowledge. They are states of insight into depths of thruth unplumbed bythe discursive intellect. They are illuminations, revelations, full of significance
and importance, all innarticulate though they remain; and as a rule, they
carry with them a curious sense of authority for after-time’” “O sistemalímbico, uma estrutura muito mais antiga do que o córtex, lida com a
emoção e a memória, e provê o senso de convicção que os indivíduos as-
sociam às suas idéias e crenças. A emoção e a sensação de certeza queacompanham a experiência sinestésica me fizeram pensar naquela mu-
dança transitória na autoconsciência conhecida como êxtase. O êxtase é
uma paixão pela qual os pensamentos são absorvidos e na qual a mentese perde durante algum tempo. Ao discutir a experiência mística em As
variedades da experiência religiosa, William James falou sobre as quatro
qualidades do êxtase: inefabilidade, passividade, qualidade noética e transitori-
edade. São exatamente as mesmas qualidades da sinestesia. [...] ‘Embora tão
similares aos estados de sentimento, os estados místicos parecem, a quem osexperimenta, ser também estados de conhecimento. São estados de penetração
nas profundezas da verdade inacessíveis por meio do intelecto discursivo. São
iluminações, revelações cheias de significado e importância, não obstante per-manecerem inarticuladas; e, via de regra, carregam consigo uma curiosa sensa-
ção de autoridade para os tempos vindouros’”) (James, 1901, apud Cytowic, 2000:
78). Em Sinestesia, arte e tecnologia (2002:42, n16), comparamos essa interes-sante definição de Cytowic a esta descrição do êxtase místico dada pelo místico
judeu Levi Itzhak, o Rabi de Berdistchev, citada por Scholem (1995:7): “Aquele
que participa de tal experiência suprema perde a realidade de seu intelecto, mas,quando retorna de tal contemplação para o intelecto, encontra-o cheio de es-
plendor, divino e afluente”. A essas pode-se juntar, por fim, Merleau-Ponty (1994:
306): “Nessa atitude, em que o mundo se pulveriza em qualidades sensíveis, aunidade natural do sujeito perceptivo é rompida e chego a ignorar-me enquanto
sujeito de um campo visual”. Merleau-Ponty, porém, não sente-se confortável
nessa renúncia ao sujeito, que vê, conforme seu compromisso com a filosofiamoderna − a que fizemos menção ao início deste trabalho − com reservas. Vê-se
aí, que, conquanto a imediaticidade da percepção e a fusão entre sujeito e objeto
− no limite, fusão entre sujeito e cosmos − possa dar lugar a uma leitura místicada Fenomenologia da percepção, na direção da tradição visionária de um Ekhardt,
como o fizeram alguns intérpretes (Jay, 1993: 166), esta não parece ter sido a
intenção de Merleau-Ponty, que recusa essa alternativa da dissolução do sujeitono cosmos.
Thomas Wilfred: compondo Thomas Wilfred: compondo Thomas Wilfred: compondo Thomas Wilfred: compondo Thomas Wilfred: compondo LumiaLumiaLumiaLumiaLumia(cerca de 1923)(cerca de 1923)(cerca de 1923)(cerca de 1923)(cerca de 1923)
Oskar Fischinger: Oskar Fischinger: Oskar Fischinger: Oskar Fischinger: Oskar Fischinger: Radio Dynamics Radio Dynamics Radio Dynamics Radio Dynamics Radio Dynamics (1942)(1942)(1942)(1942)(1942)
252 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sinestésica ao êxtase espiritual, tal qual descrito por William James em
Varieties of religious experience.
Quando se examina então poéticas que, num recorte histórico,
envolveram aspirações sinestésicas, estas parecem reiterar esse sentido da
experiência sinestésica que descrevemos70. A maioria dos trabalhos encon-
tra-se na fusão entre sons e cores, e situa-se aí o primeiro teclado de co-
res, concebido pelo padre francês Louis Bertrand Castell, no século XVIII.
Ao buscar uma música de cores inspirada em textos do inquieto jesuíta
Athanasius Kircher, Castell está pondo em marcha o longo casamento en-
tre espiritualidade e as poéticas sinestésicas, que os séculos seguintes irão
reiterar.71 Ao fazermos um apanhado de obras normalmente associadas à
sinestesia - e que passaram, sob seu aspecto sinestésico, ao largo das dis-
cussões estéticas dominantes no último século72 -, encontraremos, nos
trabalhos de Castell, Scriabin, Kandinsky, Thomas Wilfred, Oskar
Fischinger, Olivier Messiaen, John e James Whitney, Jordan Belson, Ron
Pellegrino, Jorge Antunes (e há muitos outros), todo o tipo de discursos e
práticas espirituais como forças motrizes de suas poéticas. Cristianismo,
teosofia, antroposofia, budismo, zen-budismo, Rosae Crucis, sufismo...
não importa qual a doutrina escolhida pelo artista, parece estar sempre ali
essa ligação entre experiência sinestésica e êxtase místico, sugerida por
Cytowic, reiterada nas obras e pelo discurso de tais artistas. Imersão na
sensação, abandono ao instante, a-racionalidade igualmente marcam a
fruição construída pela maioria destes trabalhos, de um modo bastante
próximo à definição dada por Kandinsky:
70 Todos os trabalhos que aqui mencionamos estão descritos em maiores deta-
lhes em Basbaum, S. (2002).
71 A partir de tudo o que já discutimos, valeria também considerar a hipótese da
teoria de Kirchner, adotada por Castell, manifestar um esforço em transferir à
primazia da visão a experiência sonora que fora determinante na religiosida-de medieval, que a Contra-Reforma procurava salvar.
72 Se, por um lado, não se pode dizer que a discussão travada em torno de obras
como as de Schoenberg, Kandinsky ou Messiaen teve como tema o aspectosinestésico de suas poéticas, por outro, pode-se perfeitamente sugerir que o
modo como as Lumia de Wilfred ou os filmes de Fischinger ficaram ao largo do
debate estético da primeira metade do século XX deve-se ao fato destas obrasacomodarem-se mal nos cânones modernistas de especialização da linguagem
e dos sentidos, então dominantes.
73 “Entregue seus ouvidos à música, abra seus olhos para a pintura e... pare de
pensar! Apenas pergunte a você mesmo se a obra lhe permitiu caminhar sobreum mundo até então desconhecido. Se a resposta for sim, o que mais você quer?”
“lend your ears to music, open your eyes
to painting and... stop thinking! Just
ask yourself whether the work allowed
you to ‘walk about’ into a hitherto un-
known world. If the answer is ‘yes’,
what more do you want?” [Kandinsky,
1910, apud Cytowic, 2000: 56]73
O primado da percepção digital 253
Pouco importa que qualquer destes artistas tenha sido ou não um
sinesteta. Ao aspirar de diferentes formas à fusão sensória, criaram pode-
rosas representações de tal unidade, signos sinestésicos extraordinaria-
mente coerentes com os relatos da experiência sinestésica. Ao fazerem
evocação de um sentido nos termos de outro, como Kandinsky ou Messiaen,
ou através da deliberada fusão de sons e imagens abstratas, como
Fischinger, Whitney, Belson ou Pellegrino, sinestetas e não sinestetas pa-
recem ter como referente a mesma experiência cognitiva. Descrevem uma
espécie de caleidoscópio dinâmico de sons e imagens abstratas - fogos,
fotismos, cores, formas angulares, névoas sensuais - superpondo-se em
movimentos diversos, formando como que uma interface de sensações que
pode remeter tanto aos sinestetas quanto aos artistas.
Pode-se encontrar antecedentes dessa experiência sensorial inte-
grada naquela experiência “cósmica” que, dissemos, Benjamin conside-
rara sepultada pela dominância da visão estabelecida através da astrono-
mia moderna e seus aparatos ópticos. No mundo medieval, em que a filo-
sofia grega tem enorme influência, não apenas o pensamento aristotélico,
mas também a Harmonia das esferas - através de Boécio - marcam o pen-
samento escolástico, e toda a produção simbólica da cultura cristã busca a
expressão desta unidade matemática entre os sentidos: música, pinturas,
vitrais ou arquitetura emanam de uma mesma harmonia superior, uma
unidade divina (Bosseur, 1999). Mas é possível traçar mais claramente as
relações entre sinestesia e a percepção medieval do mundo a partir de
Wassily Kandinsky: Wassily Kandinsky: Wassily Kandinsky: Wassily Kandinsky: Wassily Kandinsky: Composição 9Composição 9Composição 9Composição 9Composição 9 (1939) (1939) (1939) (1939) (1939)
254 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
McLuhan e do entendimento da cultura medieval como uma cultura pre-
dominantemente oral - em que o conhecimento é patrimônio coletivo, não
há noção de individualidade claramente delineada, unidade e sentido são
determinação divina. McLuhan associa às culturas orais qualidades de
mundos tribais, opondo estas à cultura que se forma na Europa após a ti-
pografia de Gutenberg:
“Before the invention of the phonetic alphabet, man lived in a world
where all the senses were balanced and simultaneous, a closed
world of tribal depth and resonance, an oral culture structured by
a dominant auditory sense of life” [Mc Luhan, 1995: 239]74
Um bias perceptivo pensado nos termos de seu conceito de espaço
acústico:
“space that has no centre and no margin, unlike strictly visual space,
which is an extension of the eye. Acoustic space is organic and in-
tegral, perceived through the simultaneous interplay of all the
senses. [...] The man of the tribal world led a complex, kaleido-
scopic life, precisely because the ear, unlike the eye, cannot be fo-
cused and is synaesthetic rather than analytical and linear. Speech
is an utterance, or more precisely, an outering, of all our senses at
once.” [McLuhan, 1995: 240]75
Ao espaço acústico corresponde também uma experiência do tempo
específica: ao contrário do tempo narrativo, diacrônico, mensurável segundo
as determinações matemáticas do relógio, que será construído durante a
modernidade, o tempo medieval é medido nos termos do calendário divi-
no, das estações, das colheitas, da aurora e do
poente. Também Vilém Flusser (1998: 27-31),
vimos, atribui à escrita a linearização do pen-
samento e a historicidade, de tal forma que a
experiência do tempo neste mundo oral é
aquela que atribui ao pensamento imagético -
a do tempo de magia. É um engano ver aqui
oposição entre o imagético de Flusser e o oral de
McLuhan: trata-se, sobretudo, de opor o
mundo que será posto em marcha a partir do
discurso verbal impresso, linear, racional,
organizador, àquele que experimenta uma
temporalidade essencialmente circular. O
74 “Antes da invenção do alfabeto fonético, o homem vivia num mundo onde to-
dos os sentidos eram balanceados e simultâneos, um mundo fechado de pro-fundidade e ressonância tribal, uma cultura oral estruturada por um sentido au-
ditivo dominante da vida”
75 “... espaço que não possui centro e nem margens, ao contrário do espaço estri-
tamente visual, que é uma extensão do olho. O espaço acústico é orgânico eintegral, percebido através do jogo simultâneo de todos os sentidos [...] O ho-
mem do mundo tribal levava uma vida complexa, caleidoscópica, precisamente
porque o ouvido, ao contrário do olho, não pode ser focado e é mais sinestéticodo que analítico e linear. Discursar é proferir, ou mais precisamente, externar todos
os nossos sentidos de uma só vez.”
O primado da percepção digital 255
tempo das culturas orais é a-histórico; seu espaço é acústico; seu mundo má-
gico, teocêntrico; a relação homem-mundo, não mediada pelos textos. São
qualidades que há pouco atribuímos à experiência sinestésica. Riley II, num
belo livro sobre as cores, toma meditações de Henry Adams para descrever
a experiência imersiva propiciada por uma das mais conhecidas catedrais
medievais, falando dos “synesthetic charms of Chartres”:
“Anyone can feel it who will only consent to feel like a child. Sitting
here any Sunday afternoon, while the voices of the children of the
maitrise are chanting in the choir - your mind held in the grasp of
the strong lines and shadows of the architectur, your eyes flooded
wuth the autumn tones of the glass; your ears drowned with the
purity of the voices - one sense reacting upon another until sensa-
tion reaches the limit of its range - you, or any other lost soul, could,
if you cared to look and listen, feel a sense beyond the human ready
to reveal a sense divine that would make that world once more in-
telligible, and would bring the Virgin to life again, in all the depths
of of feeling which she shows there - in lines, vault, chapels, col-
ors, legends, chants - more eloquent than the prayer-book, and
more beautiful than the autumn sunlight; and anyone willing to
try would feel it like the child, reading new thought without end
into the art he has studied a hundred times.” [Riley II: 1995:19]76
76 “Qualquer um pode sentir isso, desde que se permita sentir como uma crian-ça. Sentando aqui em qualquer tarde de domingo , enquanto as vozes das
crianças da matriz estão cantando no coro - sua mente prende-se às fortes
linhas e sombras da arquitetura, seus olhos são banhados pelos tons outonaisdo vidro; seus ouvidos inebriados com a pureza das vozes - um sentido rea-
gindo sobre outro até a sensação chegar no limite de seu alcance - você, ou
qualquer outra alma perdida, se se importasse em olhar e ver, poderia perce-ber um sentido além do humano, preparado para revelar um sentido divino que
faria com que o mundo se tornasse mais inteligível e traria a Virgem de volta
à vida, em toda a profundidade de sentimentos que ela mostra lá - em linhas,abóbada, capelas, cores, lendas, cantos - mais eloquente do que o livro de rezas,
e mais bonito que a luz solar do outono e qualquer um que quisesse tentar,
sentiria isso como a criança, lendo sempre novos pensamentos na arte que eleestudara centenas de vezes.”
Vista interior da Catedral de ChartresVista interior da Catedral de ChartresVista interior da Catedral de ChartresVista interior da Catedral de ChartresVista interior da Catedral de Chartres
256 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
Esta sinestesia que McLuhan e Riley II associam à cultura medie-
val será desmontada por um conjunto de forças que culminam no chama-
do Renascimento. Mas, à medida que a modernidade se instala - e com ela
a primazia da razão sobre a fé, a gênese da ciência clássica, a crescente au-
tonomia da obra de arte e, sobretudo, a constituição do sujeito - a unidade
dos sentidos será preservada ainda ao longo de radicais transformações na
cultura. Para McLuhan, como se sabe, a gênese destas transformações es-
tará na invenção, por Gutenberg, da prensa de tipos móveis que possibili-
ta a reprodução em escala até então inimaginável do pensamento
linearizado na linguagem verbal impressa. O resultado será, vimos, a pri-
mazia da visão sobre os demais sentidos e o fim do equilíbrio perceptivo
do mundo oral:
“translating its organic harmony and complex synaesthesia into the
uniform connected and visual mode that we still consider the norm
of ‘rational’ existence.” [McLuhan, 1995: 240-1]77
Tal dissociação entre os sentidos, porém, levará algum tempo para
se constituir como um modo operativo da cultura, e pode-se notá-lo no
testemunho da percepção oferecido pelas artes. As artes visuais, por exem-
plo, efetuam uma das mais notáveis rupturas que constituem o mundo
renascentista, com o desenvolvimento da perspectiva central no século XV.
Esta, ao transferir o ponto de vista organizador ao sujeito, transfere a do-
ação do sentido do mundo, que antes pertencia à ordem divina, à consci-
ência humana. No dizer de Panofsky (1999:67), a perspectiva, forma sim-
bólica, assinala “a queda da teocracia da Antiguidade” e o começo “da
‘antropocracia’ moderna”. Ou seja: uma estrutura que sustenta a transição
entre dois mundos. Não se deveria supor que
toda a herança do mundo medieval pudesse
ser apagada de um só golpe, pela mediação da
palavra impressa e pela determinação de um
ponto de vista e de um eixo de fuga que con-
ferissem uma unidade humana a um espaço
anteriormente desconexo. O mundo
renascentista administra a herança medieval,
e não postula ainda nem uma visão autônoma
dos demais sentidos, nem tampouco um ob-
servador dissociado do cosmos: conhecer é
um processo de identificação com um mun-
do ainda mágico, orgânico e carregado de
77 “traduzindo sua harmonia orgânica e sua sinestesia complexa no modo pa-
dronizado e visual que continuamos a considerar como a norma da ‘existênciaracional’”.
O primado da percepção digital 257
sentido divino78. Assim, no entender de McLuhan, o que a perspectiva leva
a cabo, ao conferir uma ilusão tridimensional ao espaço é precisamente a
transferência, à representação visual, das qualidades do espaço acústico que
configurou a cultura européia medieval.
Este espaço perspectivista, ao mesmo tempo visual e acústico, será
dominante por cerca de quatrocentos anos, como se sabe. Ao longo dos
séculos XVII e XVIII, veremos a consolidação da Galáxia de Gutenberg, e
78 Crary (1990: 36-8) retoma a Natural Magick (1658) de Giovanni Della Porta,
para mostrar esse modelo de conhecimento anterior à constituição do sujeito,
que permanece vivo ainda no século XVII. Para fazê-lo, retoma Cassirer: “ErnstCassirer places Della Porta in the Reinaissance tradition of magic, in which to
contemplate an object ‘means to become one with it. But this unity is only
possible if the subject and the object, the knower and the known, are of thesame nature; they must be members and parts of one and the same vital
complex. Every sensory perception is an act of fusion and reunification’.” (“Ernst
Cassirer situa Della Porta na tradição mágica da Renascença, na qualcontermplar um objeto significa ‘tornar-se uno’ com ele. Mas essa unidade é
somente possível se o sujeito e o objeto, o conhecedor e o conhecido, forem
da mesma natureza; eles devem ser membros e partes de um mesmo comple-xo vital. Toda percepção sensorial é um ato de fusão e reunificação.”). (Cassirer,
apud Crary, 1999: 38).
79 “Isaac Newton played a pivotal role in establishing the mechanistic view ofthe cosmos that overthrew Neoplatonism, dominated physics until the twentieth
century and continues to to influence science´s basic orientation toward the
natural world. But even as Newton publicly participated in Britain´s newlyestablished Royal Society, which had elected reason as the sole arbiter of na-
tural philosophy, he remained privately commited to the magical wonders of
hermetic science and burnt plenty of midnight oil pouring over alchemical to-mes.” (“Isaac Newton desempenhou um papel decisivo no estabelecimento
da visão mecânica do cosmos que derrubou o neoplatonismo, dominou a físi-
ca até o século XX e continua a influenciar a orientação básica da ciência comrelação ao mundo natural. Mas embora publicamente participasse da recém
criada Sociedade Real Britânica, que tinha eleito a razão como único árbitro
da filosofia natural, Newton permaneceu, em sua vida privada, compromentidocom as mágicas maravilhas da ciência hermética e costumava ficar até altas
horas debruçado sobre grossos livros de alquimia”) (Davis, 1998: 37).
aqueles que McLuhan considera seus efeitos
colaterais - primazia da visão, estado nacional,
individualismo, racionalismo, ciência clássica
etc. Deste processo emerge um novo e singular
tipo relação de homem-mundo, o sujeito mo-
derno. Jonathan Crary o descreve como o sujei-
to da camera obscura - uma tecnologia de obser-
vação que é, já vimos, ao mesmo tempo, um
instrumento de que se faz uso e uma metáfora
do conhecimento. Delineia-se aí um observa-
dor idealizado, transcendente, separado de seu
próprio corpo e fundamentalmente distinto da
natureza e do universo que observa e mapeia
sistematica e fragmentariamente, que emerge
nas imagens do seculo XVII e XVIII, no
Astrônomo (1668) e no Geógrafo (1668-69) de
Vermeer, por exemplo, ou no Filósofo (1633) de
Rembrandt (ver capítulo III). Mas se o que an-
tes era identificação torna-se uma ciência fun-
dada na eficiência da des-identificação e da
objetivação dos dados empíricos, a partir dos
êxitos de Descartes e Newton, este último guar-
da ainda fortes laços com a tradição alquímica
medieval79. A unidade dos sentidos, “a
common surface of order”, como coloca Crary,
constitui o lastro de realidade de tal sujeito ide-
alizado, quase-divino, em sua relação com um
mundo ainda ligado por laços antigos ao mági-
co, e os sentidos constituem um tecido único.
Daí o interesse de Locke no cego que descreve
a cor vermelha como o som de um trompete, ou
de Condillac pela descrição de uma estátua que
258 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
recebe os sentidos um a um, para constituir uma consciência do mundo
apenas quando o processo se completa. Ao longo de todo este trajeto, a
perspectiva permanece intocada, como espaço de representação estável
que confere unidade e homogeneidade ao mundo.
Algumas imagens oferecem extraordinário testemunho das rela-
ções entre os sentidos durante o período, em especial tato e visão. Na edi-
ção de 1724 da Dióptrica de Descartes, a visão é apresentada através da ima-
gem de um homem vendado que tateia o mundo com dois bastões - em O
Olho e o espírito, Merleau-Ponty (2004: 24) lembra que, para Descartes, “o
melhor é pensar a luz como uma ação por contato, tal como a das coisas
sobre a bengala do cego. Os cegos, diz Descartes, ‘vêem com as mãos’. O
modelo cartesiano da visão é o tato”. É precisamente nesses termos que
Svetlana Alpers descreve as imagens de cegos feitas por Rembrandt - como
O cego Tobias (1651), ou A volta do filho pródigo (1669) - como um modo de
“chamar a atenção sobre a atividade do tato [...] como incorporação da vi-
são” (apud Ackerman, 1996: 124). Na mesma direção, Jonathan Crary faz
uma notável análise de O garoto soprando bolhas (1739) de Jean-Baptiste
Chardin:
Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: O astrônomo O astrônomo O astrônomo O astrônomo O astrônomo (1668-69) (1668-69) (1668-69) (1668-69) (1668-69)Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: Johannes Vermeer: O geógrafoO geógrafoO geógrafoO geógrafoO geógrafo (1668-69) (1668-69) (1668-69) (1668-69) (1668-69)
O primado da percepção digital 259
“In Chardin´s Boy Blowing Bubbles, from
around 1739, a glass filled with dull
soapy liquid stands at one side of a shal-
low ledge, while a youth with a straw
transforms that formless liquid opac-
ity into the transparent sphere of a soap
bubble situated symetrically over the
rectilinear ledge. This depicted act of
effortless mastery, in which vision and
touch work cooperatively (and this oc-
curs in many of his images) is paradig-
matic of Chardin´s own activity as an
artist. His aprehension of the co-iden-
tity of idea and matter and their finally
set positions within a unified field dis-
closes a thought for which haptic and
optic are not autonomous terms but to-
gether constitute an indivisible mode
of knowledge.” [Crary, 1990:64]80
No limiar do século XIX, Goya, em seu
Capricho 50 % As chinchillas (1797), apresenta
dois homens com camisas-de-força e cadeados
nas orelhas. Para o crítico inglês Guy Brett
(2001:44), tal imagem evidencia a negação do
Jean-Baptiste Chardin: Jean-Baptiste Chardin: Jean-Baptiste Chardin: Jean-Baptiste Chardin: Jean-Baptiste Chardin: O garoto soprandoO garoto soprandoO garoto soprandoO garoto soprandoO garoto soprandobolhasbolhasbolhasbolhasbolhas (1739) (1739) (1739) (1739) (1739)
80 “No trabalho de Chardin, Garoto Soprando Bolhas, de mais ou menos 1739, umcopo cheio de um simples sabão liquido permanece do lado de um balcão, en-
quanto um jovem com um canudinho transforma aquele líquido disforme e opa-
co numa esfera transparente de uma bolha de sabão situada simetricamente so-bre a superfície retilínea. Este ato retratado de habilidade sem esforço, no qual
visão e toque agem cooperativamente, (e isso ocorre em muitas de suas imagens)
é paradigmatico da atividade de Chardin como artista. Sua apreensão da co-iden-tidade entre idéia e matéria e seu posicionamento final dentro de um campo uni-
ficado desvela um pensamento no qual haptico and óptico não são termos
autônomos, mas juntos constituem um indivisível modo de conhecimento.”
Rembrandt Harmenszoon van Rijn:Rembrandt Harmenszoon van Rijn:Rembrandt Harmenszoon van Rijn:Rembrandt Harmenszoon van Rijn:Rembrandt Harmenszoon van Rijn:O cego Tobias O cego Tobias O cego Tobias O cego Tobias O cego Tobias (1651)(1651)(1651)(1651)(1651)
Rembrandt: Rembrandt: Rembrandt: Rembrandt: Rembrandt: A volta do filhoA volta do filhoA volta do filhoA volta do filhoA volta do filhopródigopródigopródigopródigopródigo (1669) (1669) (1669) (1669) (1669)
260 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
corpo construída pelo sujeito da câmara escu-
ra. Poderíamos falar, na mesma direção, da
perda da experiência direta dos sentidos, resul-
tado do domínio assumido pelo livro na medi-
ação da relação homem mundo - de fato, Goya
pintará, mais tarde, Leitores de livro; queremos
sugerir, no entanto, algo mais preciso. O que
Goya parece sinalizar, ao colocar tais cadeados
precisamente nos ouvidos, é o fim definitivo da
cultura oral - o espaço imersivo medieval que
resistira por três séculos imanente ao espaço da
perspectiva central.
Por um número grande de razões, por
diferentes ângulos e diferentes autores, a pa-
lavra-chave para o século XIX pode ser “frag-
mentação”81. Tome-se, como o faz Coli (2002),
o exemplo dos corpos da pintura neo-clássica,
de Gericault e Ingres, feitos sob a inspiração da
parábola de Zeuxis: a beleza é criada a partir
dos mais belos fragmentos da natureza. Esses
fragmentos, porém, também geram monstros,
como o Frankenstein de Mary Shelley. Para
pensadores tão distintos como Sigmund Freud
e sua teoria do inconsciente ou Karl Marx e sua
teoria da alienação do homem no trabalho
mecanizado, o século XIX produz um homem
e uma cultura fragmentados - sabe-se bem, e
já o comentamos quando falávamos da deman-
da reflexiva que se impõe então à arte, que o
oitocento é o século em que se deflagra a cres-
cente especialização dos saberes82. Crary
(1990:66-8) toma como exemplo sintomático
da ruptura epistemológica em curso a súbita
inversão do modo como é posta em operação a
câmera-escura no ínício da Teoria da Cores
(1810): ao contrário de todas as descrições do
aparato visual e do modelo de conhecimento
que empregaram nos séculos XVII e XVIII a
câmera-escura como metáfora da visão,
Francisco de Goya: Francisco de Goya: Francisco de Goya: Francisco de Goya: Francisco de Goya: Capriccio 50 -Capriccio 50 -Capriccio 50 -Capriccio 50 -Capriccio 50 - As chinchillasAs chinchillasAs chinchillasAs chinchillasAs chinchillas(1797)(1797)(1797)(1797)(1797)
81 A exceção seria talvez a doutrina totalizante de Hegel.
82 Gumbrecht (1998: 14) sugere que somente a percepção narrativa do tempofoi capaz de sustentar a unidade da cultura ao longo das incessantes rupturas
que se processam a partir do início do século XIX. Um outro relato interessan-
te sobre o problema da fragmentação dos saberes, que se multiplicaráexponencialmente no século XX − que aliás, já dissemos, com Godard, foi em
muitos sentidos somente um prolongamento do século anterior − pode ser en-
contrado em Nicolescu (1999).
O primado da percepção digital 261
Goethe sugere que se feche a abertura que liga à câmera ao mundo exterior,
para que se possa apreciar não mais as imagens do mundo que o século
XVIII inventariara, mas uma imagem que “doravante pertence ao olho”83:
observador e mundo iniciam as negociações de um novo contrato.
Por trás de tal fragmentação estão, por um lado, a reificação da ló-
gica operativa da ciência clássica, através da integração da máquina à pai-
sagem cotidiana, e, por outro, a aplicação de seu singular método - “divi-
de e conquista” - ao corpo humano: colocado num corpo biológico, com
pulsões, reflexos e desejos, o sujeito transcendental torna-se pela primeira
83 Transcrevemos aqui o trecho citado por Crary (1999: 67-9), na tradução brasi-leira de Marco Giannotti (Goethe, 1993: 59; 62): “40 − Num quarto o mais escuro
possível, deixe que o sol brilhe, por uma fresta de três polegadas de diâmetro
na janela, sobre um papel branco e olhe de certa distância fixamente para ocírculo iluminado [até aqui, tem-se uma típica descrição do mecanismo da
câmera-escura]. Quando se fecha a abertura e se olha para a parte mais escura
do quarto, vê-se diante de nós uma imagem circular. O meio do círculo parece-rá claro, incolor, tendendo moderadamente ao amarelo; a borda, entretanto, logo
parecerá púrpura.
Demora certo tempo para que essa cor púrpura possa encobrir, da borda parao centro, o círculo inteiro, eliminando finalmente por completo o centro claro.
Assim que o púrpura aparece no círculo inteiro, a borda começa a se tornar
azul, encobrindo por sua vez gradualmente a cor púrpura. Quando a imagemestá completamente azul, a borda se torna escura e incolor, demorando mui-
to para que a borda incolor expulse o azul e todo o espaço se torne incolor.
(...) Mesmo que o papel colorido permaneça no lugar, ao se olhar para outraparte do plano branco fenômenos cromáticos também poderão ser vistos, pois
surgem de uma imagem que doravante pertence ao olho.” (grifos nossos).
Pedro Américo: Pedro Américo: Pedro Américo: Pedro Américo: Pedro Américo: Tiradentes esquartejadoTiradentes esquartejadoTiradentes esquartejadoTiradentes esquartejadoTiradentes esquartejado(1893)(1893)(1893)(1893)(1893)
262 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
vez seu próprio objeto (Crary, 1990: 67-96)84. Tal corpo é um organismo
ativo, produtor de suas próprias sensações, e é aí que se encontra a origem
da fisiologia e da neurologia modernas, com Xavier Bichat, Francis Gall,
Spurzheim, Bell, Magendie, Müller, Flourens,
Hall e outros. Num empreendimento coletivo
de grande alcance, que tornará o poder sobre
o corpo a própria sede do poder (Crary, 1990:
79-81): as redes neurais são desveladas; atri-
bui-se a cada sentido um aparato neural dis-
tinto; principia a busca por associar determi-
nadas funções cognitivas e motoras a regiões
específicas do cérebro. Em termos de filoso-
fia, tal processo está bem representado na
obra de Schopenhauer85, cujo esforço filosó-
fico consiste, em larga medida, em partir de
um conhecimento bastante aprofundado da
fisiologia então corrente para propor uma for-
ma de percepção que supere a faceta animal do
ser humano, no registro da transcendência,
concebendo, como diz Crary (1990: 81) “the
embeddedness of aesthetic perception in the
empirical edifice of the body”.86
Tal nascente pesquisa neuro-fisiológi-
ca apresenta um duplo caráter. Por um lado,
dará à percepção uma base biológica na qual o
corpo aparece cada vez mais como produtor de
ilusões - e funda-se aqui a possibilidade de uma
realidade de sensações especializadas e
autônomas, sem referente no mundo real, da
qual nascem tanto o caleidoscópio como propo-
sições comumente associadas às origens da arte
moderna, como o “olhar inocente” de John
Ruskin87. Por outro, num cenário agora molda-
do pela lógica produtiva da máquina, as mesmas
pesquisas permitem a progressiva matema-
tização e quantificação da experiência subjetiva,
que dará suporte a mecanismos de controle,
eficiência e produtividade - as sementes de
Pavlov, Skinner e a cibernética. A contrapartida
84 Gumbrecht (1998) fala também no nascimento de um “observador de segun-
da ordem”, um sujeito que se auto-observa.
85 Mario Costa (1997: 303-4), ressalta também essa importância de Schopenhauerna introdução do corpo e sua biologia no texto filosófico, e sugere que Nietzsche
inicia seu discurso do corpo a partir de Schopenhauer.
86 “A inserção da percepção estética no edifício empírico do corpo.” Crary (1990:
83) faz uma longa citação de Schopenhauer: “‘Now in the ascending series ofanimals, the nervous and muscular systems are separate ever more distinctly
from each other, till in the vertebrates, and most completely in man, the nervous
system is divided into an organic and a cerebral nervous system, again, isdeveloped to the extremely complicated apparatus of the cerebrum and
cerebellum, the spinal cord, cerebral and spinal nerves, sensory and motor nerve
fascicles. Of these only the cerebrum, together with the sensory nerves attachedto it, and the posterior spinal nerves fascicles are intended to take up the mo-
tives from the external world. All other parts, on the other hand, are intended
to transmit the motives to the muscles in which the will directly manifests itself.Bearing the above separation in mind, we see motive separated to the same
extent more and more distinctly in consciousness from the act of will. Now, in
this way the objectivity of consciousness is constantly increasing, since in itrepresentations exhibit themselves more and more distinctly and purely. . . .
This is the point where the present consideration, starting from physiologicalfoundations, is connected with the subject of our third book, the metaphysics
of the beautiful.’ “ Crary então comenta: “Within a single paragraph, we are
swept from sensory nerve fascicles to the beautiful; or, more broadly, from thesheer reflex functioning of the body to the will-less perception of the ‘pure eye
of genius”. (“Ora, nas mais evoluídas series de animais, os sitemas nervosos e
musculares são cada vez mais distintamente separados um do outro, até quenos vertebrados, e mais completamente no homem, o sistema nervoso é divi-
dido em um sistema nervoso orgânico e um cerebral, e novamente é desenvol-
vido até o extremamente complexo aparato do cérebro e do cerebelo, a espi-nha, nervos da espinha e do cérebro, feixes nervosos sensoriais e motores.
Desses, somente ao cérebro, juntamente com os nervos sensoriais ligados a
ele, e aos feixes nervosos posteriores da espinha cabe acolher os motivos domundo externo. Todas as outras partes têm o papel de transmitir os motivos
aos músculos, nos quais a vontade se manifesta diretamente. Tendo em mente
a separação acima, vemos os motivos separados na mesma medida cada vezmais distintamente na consciência do ato da vontade. Ora, dessa forma a
objetividade da consciência cresce constantemente, uma vez que nela são
exibidas representações de maneira cada vez mais distinta e pura... Esse é oponto onde a presente consideração, partindo de fundamentos fisiológicos,
conecta-se com o assunto do nosso terceiro livro, a metafísica do belo.’ ... Num
único parágrafo, somos levados dos feixes nervosos sensoriais até o belo; ou,mais amplamente, do puro funcionamento reflexo do corpo até a percepção
despida de vontade do ‘puro olhar do gênio’”).
87 Sobre o “olhar inocente” de que se fala desde Ruskin, ver, por exemplo, Riley
II (1995: 16-19).
O primado da percepção digital 263
de uma percepção que se torna autônoma com relação ao referente é o refe-
rente, ele próprio, que se rebela: à reboque do trem, da máquina a vapor, do
fluxo incessante de mercadorias, da consolidação de uma lógica capitalista
que transforma tudo em processos de troca e negociação - impondo veloci-
dade até então impensada às mudanças no cenário da sociedade européia -,
a realidade se torna volátil, efêmera, inapreensível pela contemplação, in-
tangível. A fotografia, primeira das técnicas mecânicas de produção de ima-
gem em larga escala, assinala essa necessidade de apreender o instante que
escapa por entre os dedos, separando háptico e óptico em experiências de
temporalidades e espacialidades distintas.
Ao tornar-se contingente à materialidade biológica do corpo, o
sujeito, antes ideal, vai experimentar ao longo do século XIX uma crise inu-
sitada. Se, por um lado, o triunfo do mecanicismo, encarnado na revolu-
ção industrial, faz da máquina a metáfora de todo o universo, por outro lado,
ao tornar o sujeito seu locus de pesquisa, tal ciência vê a clareza da razão ser
submetida a toda a espécie de embaraços88: a crescente afirmação da sen-
sação; sua autonomia em relação ao referente; a opacidade a que a contin-
gência biológica relega o observador; e, por fim, sua fragmentação por essa
mesma ciência − o triunfo desta sobre a fé, a teoria darwinista e a destrui-
ção da tradição num mundo re-inaugurado e tornado volátil pelo aparato
tecnológico. Todos esses fatores conduzem uma crise do sujeito, em cujas
pontas estão, nas ruas, Jack o estripador, nos livros, Dr. Jekyll e, na ciên-
cia, Freud e a psicanálise.
Enquanto a ciência fragmenta o corpo, autonomiza e especializa os
sentidos, a arte procura, como descrevemos no capítulo anterior, seu novo
lugar numa sociedade reinventada. Flerta com todo o tipo de espaços su-
geridos pela visão subjetiva − como se vê desde Turner −; concebidos se-
88 Gumbrecht (1998) sugere que foi o sentido narrativo do tempo, a noção
teleológica da narrativa moderna, sobre a qual falamos em capítulo anterior,
que permitiu à cultura européia atravessar os solavancos provocados por essegênero de descobertas, em que se percebia, por exemplo, que era possível pro-
vocar uma experiência de luminosidade simplesmente pelo efeito de um cho-
que no nervo óptico. Crary (1990) o comenta de modo interessante.
89 Desnecessário aqui descrever em detalhes a questão da bidimensionalidade na
pitura moderna, que aparece num grande número de autores. De todo modo,
uma síntese influente desta discussão encontra-se em Greenberg (1986).
gundo as possibilidades visão binocular − uma
espécie de colagem de planos “chapados”,
como os que se vê no estereoscópio, em alguns
quadros de Courbet, Manet ou Seurat (Crary
1990:126); ou ainda pela luz projetada na re-
tina, como fazem os impressionistas. Final-
mente, ao voltar-se unicamente para seu pró-
prio e indisputado território, à experiência
que lhe é única, torna-se arte moderna. Ao
optar por um caráter puramente visual, torna-
se plana: o espaço acústico desaparece89.
264 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
do romantismo - teimam em representar algo
lá fora no mundo: a alma. O traço essencial da
música e da pintura modernas é sua autorefe-
rencialidade, sua autonomia em relação ao
mundo, sua vocação para a experiência espe-
cializada de um único sentido: a pintura, para
os olhos; a música, para os ouvidos. A arte mo-
derna constitui, dissemos, uma espécie de
máquina semiótica que expande enormemen-
te o universo sígnico, mas exclui, na força de
sua lógica operativa, corpo, narrativa, repre-
sentação, mundo: por fim, torna-se vazia.
Quando tal processo se esgota, tudo aquilo que
fora sistematicamente abandonado desde
Goya, em nome da especialização, da funcio-
nalidade, da pureza, da reordenação racional
e fragmentária do mundo, retorna. O mundo
com o qual as imagens voltam a relacionar-se,
Pouco importa que Kandinsky e Schoenberg tragam em suas obras
um caráter que hoje pode ser pensado como sinestésico. Teóricos chave do
modernismo, como Greenberg (1996: 124-6) ou Boulez (1998) irão, por
isso mesmo, considerá-los presos ao passado, contaminados por valores
Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: Pablo Picasso: Ma jolieMa jolieMa jolieMa jolieMa jolie(1911)(1911)(1911)(1911)(1911)
William Turner: William Turner: William Turner: William Turner: William Turner: Luz e cor Luz e cor Luz e cor Luz e cor Luz e cor (a -teoria de Goethe):(a -teoria de Goethe):(a -teoria de Goethe):(a -teoria de Goethe):(a -teoria de Goethe):A manhã após o dilúvio A manhã após o dilúvio A manhã após o dilúvio A manhã após o dilúvio A manhã após o dilúvio (1843)(1843)(1843)(1843)(1843)
Gustave Courbet:Gustave Courbet:Gustave Courbet:Gustave Courbet:Gustave Courbet:Bom dia Bom dia Bom dia Bom dia Bom dia senhorsenhorsenhorsenhorsenhorCourbetCourbetCourbetCourbetCourbet (1854) (1854) (1854) (1854) (1854)
Georges Seurat: Georges Seurat: Georges Seurat: Georges Seurat: Georges Seurat: Um domingo à tarde Um domingo à tarde Um domingo à tarde Um domingo à tarde Um domingo à tarde na ilhana ilhana ilhana ilhana ilhade La Grande Jattede La Grande Jattede La Grande Jattede La Grande Jattede La Grande Jatte (1884) (1884) (1884) (1884) (1884)
O primado da percepção digital 265
no entanto, não é mais aquele da natureza: é o do espetáculo da cultura
midiática e de massas, o mundo da não-individualidade, do consumo, do
qual a pop-art faz a crônica - não sem certo cinismo. Ouviremos, a partir
de então, e cada vez mais, palavras como “intermedia”, “mixed-media” e
hibridismos de todas as formas; veremos o retorno do corpo, que reivin-
dica sua integridade, sua temporalidade, e a experiência direta dos senti-
dos. Mas teremos também uma nova tecnologia - digital.
Percorremos um enorme trajeto - para tanto, fomos forçados a
deixar muitas questões de lado. Há pouco, atribuímos determinadas qua-
lidades à experiência sinestésica. Ao lado de associarmos a sinestesia a uma
experiência direta, a-racional, não mediada pela linguagem, que parece par-
tilhar certa semelhança com estados de consciência que nossa cultura clas-
sificou como espirituais ou místicos, também lhe atribuímos
temporalidade e espacialidade específicas: tempo agórico; espaço acústi-
co. Falamos um bocado de McLuhan, e não é demais lembrar que, no cen-
tro de seu pensamento, está a idéia de que as tecnologias, ao imporem uma
reorganização de nossos sentidos, moldam a maneira como organizamos
pensamento e conhecimento. Não parece ser coincidência que a tecnologia
digital esteja implicada diretamente em processos sinestésicos de
(re)presentação inaugurados com o fim do modernismo - já em 1951
McLuhan escrevia, em carta a Harold Innis: “da perspectiva do artista, o
propósito não é mais a comunicação de idéias ou sentimentos, mas a par-
ticipação direta numa experiência” (McLuhan, 1987: 220-1). Tal propósi-
to não espera, para manifestar-se, que se resolvam, a partir da década de
Claude Monet: Claude Monet: Claude Monet: Claude Monet: Claude Monet: Impressões do nascer Impressões do nascer Impressões do nascer Impressões do nascer Impressões do nascer do soldo soldo soldo soldo sol(1873)(1873)(1873)(1873)(1873)
266 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
198090, as dificuldades dos meios digitais: o trabalho dos artistas brasilei-
ros Lygia Clark e Helio Oiticica, que subvertem, desde o início da década
de 1960, noções de autoria, obra e fruição modernas através de diversos
experimentos interativos e pluri-sensoriais,
já apontam nessa direção. Poder-se-ia argu-
mentar, porém, que as poéticas de Clark e
Oiticica são favorecidas por um contexto bra-
sileiro, que jamais foi consumadamente
gutenberguiano - unificado pelo rádio e pela
música popular, o Brasil foi e permanece
marcado por fortes traços de cultura oral91. Ao
mesmo tempo, não é possível ignorar o ad-
vento da televisão quando se pensa no
descentramento do circuito artístico repre-
sentado no diálogo protagonizado por Clark
e Oiticica a partir de um país periférico, ou no
retorno das imagens do mundo na Pop-art,
ou mesmo nos trabalhos com vídeo e nas ins-
talações de Nam June Paik. Sobretudo, po-
rém, a cibernética, é, nos anos 1960 uma pre-
sença estabelecida: falamos dos textos de
Flusser (“somos uma geração de contado-
res”), e Gere (2002: 47-74) descreve bastante
bem as afinidades entre a filosofia do pós-
guerra, em especial o estruturalismo, e as
idéias então emergentes nos discursos da Ci-
bernética, da Teoria da Informação, da Teo-
ria Geral de Sistemas, e da Inteligência Arti-
ficial. Sintoma decisivo dessa presença, po-
90 Gere aponta um momento decisivo da ruptura entre os artistas contemporâ-
neos e os artistas interessados nos meios tecnológicos na exposição Software,Information technology: Its New Meaning for Art (1970), no Jewish Museumde Nova Iorque: na mostra, havia trabalhos tanto de nomes importantes da
arte conceitual dos anos 1960, como Joseph Kosuth e Hans Haacke como outros
posteriormente consagrados no território da tecnologia, como Ted Nelson eNicholas Negroponte − um dos principais articuladores do discurso futurista
que sustenta diversas poéticas tecnológicas e um dos pioneiros do celebrado
Media Lab do Massachussets Institute of Technology (MIT). De acordo com gere,os trabalhos de Haacke e Kosuth já então eram bastante críticos em relação à
tecnologia. Gere sugere que o fato de muitas das obras simplesmente não fun-
cionarem, inclusive Visitor´s profile de Haacke, foi decisivo, por exemplo, paraque este último abandonasse o uso de tecnologia em seu trabalho. O cisão,
porém, parece dever-se mais às divergências ideológicas, pela postura radical-
mente crítica dos conceituais quanto à face já então clara dos vínculos entreetcnologia, poder, controle, etc.: “Be that as it may, the ‘Software’ exhibition
represented the point of departure between Cybernetics and Conceptual Art.
Later in the same year the Museum of Modern Art in New York put on a largeshow of Conceptual Art, curated by Kynaston McShine, featuring 70 artists. The
works of Kosuth and Haacke were all featured. Work by Nelson and negroponte
or that of other cybernetic or technologically oriented artists was not. (...) theabsence of cybernetic or systems work suggested that, for the mainstream art
world at least, the cybernetic era [um certo namoro entre as poéticas mais
radicais e a tecnologia] was over”. (“Seja como for, a exposição ‘Software’ re-presentou o ponto de ruptura entre a Cibernética e a Arte Conceitual. Posteri-
ormente, no mesmo ano, o Museu de Arte Moderna de Nova York apresentou
uma exposição de Arte Conceitual, com Kynaston McShine como curador, en-volvendo 70 artistas. Os trabalhos de Kosuth e Haacke foram apresentados. As
obras de Nelson e Negroponte ou as de outros artistas de orientação ciberné-
tica ou técnica, não. (...) a ausência de trabalhos orientação cibernética ousistêmica sugeriu que, pelo menos para a corrente principal da arte mundial
hoje, a era cibernética [um certo namoro entre as poéticas mais radicais e a
tecnologia] tinha acabado.”). (Gere, 2002:108-9). Este trecho mostra, por umlado, que as demandas do presente fazem com que os artistas que buscam
poéticas com maior poder de fogo crítico perante o presente procuram empre-
gar meios que funcionem − e, aliás, ainda hoje, as exposições tecnológicasenfrentam problemas, e a polêmica envolvendo a mostra Emoção Art.Ficial (Itaú
Cultural, São Paulo, 2004) evidenciou essa precariedade, para desconforto de
artistas, público e curador: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/000236.html . De modo que a cisão que ocorre entre esse chamado,
por Gere “mainstream art world”, e as poéticas tecnológicas − que demons-
tram aí certo ressentimento, como se vê no catálogo da mostra 4D citado emnota anterior (Fraga e Barja, 2004) − é muitas vezes uma polêmica entre po-
éticas radicalmente reflexivas e críticas frente ao contemporâneo, e poéticas
que experimentam certa euforia, fundada numa utopia impensada, e sobretu-do um frescor e um descompromisso com a história que é típico dessa ilusão
de uma reinauguração do mundo associada à liquidação da experiência, à qual
nos referimos.
91 Esse argumento, nada trivial e que aponta na direção da percepção da cultu-
ra, como falávamos alguns capítulos atrás, é de Guy Brett (2001).
O primado da percepção digital 267
rém, é, num contexto aparentemente tão dis-
tante do mainstream da cultura tecnológica
como o é a música popular brasileira, Gilber-
to Gil compor em 1969 uma canção com o
nome Cérebro eletrônico92; do mesmo modo, os
nomes das obras de Oiticica - Parangolé P5,
capa 2; capa 3 etc...93 - já expõem uma lógica de
catalogação em banco de dados; os trabalhos
dos grupos concretistas de São Paulo, desde a
década de 1950, fortemente influenciados pela
teoria da informação e pela cibernética94, tam-
bém não deixam dúvida quanto a essa presen-
ça. Em todo um universo poético que emerge
em sincronia com as teorias e a pesquisa asso-
ciadas à computação desde o fim dos anos 1940
(as primeiras performances coletivas coorde-
nadas por John Cage, com participações do co-
reógrafo e bailarino Merce Cunningham e
imagens de Robert Rauschenberg são de
1948), e mais decisivamente a partir do fim
dos 50 e início dos 60 do século XX - no traba-
lho posterior de Cage95, nos happenings do
Fluxus, ou em grandes instalações precoce-
mente multimidiáticas como o Pavilhão
Phillips de Bruxelas (projetado por Le
Corbusier e Iannis Xenakis para execução do
Electronic Poem de Varése, em 1958), nas ins-
talações reunindo projeções, espelhos, sons e
outros recursos plásticos de artistas como
Robert Whitman e outros -, a paisagem que se
92 “O cérebro eletrônico faz tudo/ Faz quase tudo/ Quase tudo/ Mas ele é mudo/
/ O cérebro eletrônico comanda/ Manda e desmanda/ Ele é quem manda/ Mas
ele não anda// Só eu posso pensar se Deus existe/ Só eu/ Só eu posso chorarquando estou triste/ Só eu/ Eu cá com meus botões de carne e osso/ Hum, hum/
Eu falo e ouço/ Hum, hum/ Eu penso e posso// Eu posso decidir se vivo ou morro/
Porque/ Porque sou vivo, vivo pra cachorro/ E sei/ Que cérebro eletrônico ne-nhum me dá socorro/ Em meu caminho inevitável para a morte// Porque sou
vivo, ah, sou muito vivo/ E sei/ Que a morte é nosso impulso primitivo/ E sei/
Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/ Com seus botões de ferro eseus olhos de vidro” (Gilberto Gil, 1969)
93 ver Hélio Oiticica (catálogo do Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro)
94 Ver, por exemplo, os manifestos da poesia concreta, em Teoria da Poesia Con-creta.
95 “Like the work of the minimalist composers he influenced, Cage´s work often
engaged with the relation between the visual and the audial” (“Assim como
os trabalhos dos compositores minimalistas que ele influenciou, a obra de Cagefrequentemente lidava com a relação entre arte visual e auditiva”) (Gere, 2002:
79). Sabe-se bem que os processos criativos de Cage progressivamente migra-
rão em direção à elaboração de partituras de caráter cada vez mais plástico.Ver, por exemplo, Bosseur (1993).
Hélio Oiticica: Hélio Oiticica: Hélio Oiticica: Hélio Oiticica: Hélio Oiticica: CosmococasCosmococasCosmococasCosmococasCosmococas (1973) (1973) (1973) (1973) (1973)
268 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
desenha já traz as marcas do mundo que será
progressivamente modelado pelo digital.
Diretamente implicado nesse campo
de forças está o sonho da fusão sensória por
meio das possibilidades tecnológicas, que vem
desde Castell. Os inventores dos aparatos de
color-music dos séculos XVIII e XIX, e mesmo
Scriabin, já no século XX, esbarraram, é fácil
imaginar, em tecnologias incipientes para a
implementação de suas aspirações
sinestésicas; ao aderir explicitamente à dinâ-
mica e à logica do mundo moderno, o futuris-
mo sustentara também o sonho da experiên-
cia sinestésica a partir das possibilidades a
serem criadas pela tecnologia96. Em 1931,
Aldous Huxley descrevera um “cinema sensí-
vel”, baseado em intensa fusão sensória, como
o entretenimento popular do Admirável Mun-
do Novo97. Já em 1953, nos EUA, um
“ciberneticista”98 como George Pask criara um
Musicolor, e todo um grupo de cineastas e ar-
tistas experimentais testava, na Califórina,
possibilidades de poéticas tecnológicas
sinestésicas (Basbaum, S.: 2002)99. De tal
modo que artistas como John Whitney (1980)
ou Ron Pellegrino (1983)100, que, por diferen-
tes caminhos chegam ao conceito de visual-
music, viam, nos anos 1960, o surgimento da
tecnologia digital como liberatória dessas po-
éticas até então irrealizadas - e também o pro-
jeto dos poetas concretos paulistanos, que rei-
vindica a materialidade sonora e visual da pa-
lavra, aponta para essa fusão sensória e celebra
o digital. O processamento digital, sabe-se,
tem sido desde seu início um instrumento de
cálculo, duplicação e simulação - podemos
mesmo dizer: clonagem - da realidade, como
forma de prever, antecipar, compreender e
96 Ver Menezes (2001:119)
97 “O órgão de perfumes tocava um Capricho das Ervas, deliciosamente refres-
cante − arpejos saltitantes de tomilho e lavanda, alecrim, manjericão, murta, eartemísia; uma série de ousadas modulações, através de todos os tons das es-
peciarias, até o âmbar cinzento; e um lento retôrno passando pelo sândalo,
cânfora, cedro e feno recém-ceifado (com ocasionais toques sutis dediscordância − um bafo de torta de rins, uma levíssima suspeita de estêrco de
porco), de volta aos aromas simples com os quais iniciava a peça. O último
acorde de tomilho desapareceu; houve um ruído de aplausos; acenderam-seas luzes. No aparelho de música sintética, o rôlo sonoro começou a girar. Era
um trio de hiperviolino, supercelo e pseudoboé que agora enchia o ar com seu
agradável langor. Trinta a quarenta compassos − depois, com aquêle fundoinstrumental, uma voz sôbre-humana começou a vibrar; ora parecia vir da
garganta, ora da cabeça, ora abafada como uma flauta, ora carregada de har-monias impregnadas de desejos, passava sem esfôrço do recorde de baixo de
Gaspard Foster aos extremos limites do tom musical, até o gorjeio agudo como
o som emitido pelo morcêgo, muito acima do dó mais alto registrado uma vezpor Lucrezia Ajugari, pela única vez na história (em 1770, na Ópera Ducal de
Parmam, e para o espanto de Mozart). Mergulhados em suas poltronas pneu-
máticas, Lenina e o Selvagem aspiravam e ouviam. Chegou então a vez dosolhos e da pele. As luzes da sala apagaram-se; letras faiscantes surgiram em
destaque, como se pairassem sozinhas na escuridão. TRÊS SEMANAS NUM HELICÓP-
TERO. UM FILME SENSÍVEL ESTEREOSCÓPICO, COLORIDO, FALADO, INTEIRAMENTE SUPERCANTADO.COM ACOMPANHAMENTO SINCRONIZADO DE ÓRGÃO DE PERFUMES.” (Huxley, 1969: 207-8)
98 O termo “cyberneticist” é de Gere (2002:94)
99 Ver também o conhecido artigo de William Moritz (1986).
100 Whitney é um conhecido pioneiro da vídeo-arte digital, trabalhando as possi-bilidades do processamento de imagens desde o fim da década de 1950, e
artista residente na IBM já em 1966 − perseguindo sempre um conceito de
visual-music que derivara dos filmes sinestésicos de Oskar Fischinger nos anos1940 (Basbaum, S., 2002); Pellegrino vem desde os anos 1960 trabalhando
também o conceito de visual music, com sistemas de lasers e o que chama com-posição em tempo real, por meio de performances individuais ou coletivas. Asdatas indicadas no texto acima referem-se a livros publicados por ambos − num
espaço de três anos, portanto quase simultâneos −, em que descrevem, em
termos técnicos, teóricos e marcadamente espirituais, as suas proposições.
O primado da percepção digital 269
John Whitney: John Whitney: John Whitney: John Whitney: John Whitney: Matrix Matrix Matrix Matrix Matrix IIIIIIIIIIIIIII(1972)(1972)(1972)(1972)(1972)
controlar os mais variados processos. Torna-
se também um meio de expandir tal realidade,
mas essa expansão corresponde a um modo
específico de percepção e representação.
Ao tomarmos, por exemplo, os proce-
dimentos de automação da visão desenvolvi-
dos para uso militar após II Grande Guerra,
podemos notar que a análise tridimensional da
imagem será implementada através das infor-
mações de uma imagem plana gerada segundo
os códigos da perspectiva, acrescida dos dados
fornecidos por um sinal de radar que toca o
objeto e retorna ao aparelho, permitindo as-
sim um cálculo de distância (Manovich, 2001).
Ao reunir visão e tato num espaço
perspectivista, estamos retomando uma con-
cepção da visão praticada no século XVIII - e,
aliás, a instalação POD de Heimbecker, que
descrevemos no capítulo III, reivindica, nas
próprias palavras do artista, uma
“espacialidade visual, sonora e táctil”101. Esse
retorno do espaço tridimensional, do espaço
101 De fato, em nossa estada em Toronto, em 2003, Heimbecker manifestou gran-
de identificação com nossa fala − que era então um embrião das idéias aqui
desenvolvidas, de tal modo que nos presenteou com um CD que reúne umretrospecto do projeto Wind Cascade Array Machine.
Ron Pellegrino: Ron Pellegrino: Ron Pellegrino: Ron Pellegrino: Ron Pellegrino: Laser light forms Laser light forms Laser light forms Laser light forms Laser light forms (1983)(1983)(1983)(1983)(1983)
270 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sinestésico que McLuhan batizara “acústico” pelo seu caráter imersivo,
consuma-se de modo decisivo na inundação de imagens e ambientes di-
gitais nas últimas décadas, e marca, também, um inesgotável número de
trabalhos102 que envolvem realidade virtual e ambientes imersivos
tridimensionais – freqüentemente preenchidos por sons que reiteram a
ilusão espacial. Entretanto, as ligações entre a sinestesia e a cultura digital
vão ainda além. Ao codificar todos os sentidos a partir de uma base mate-
mática comum, estamos de certo modo, realizando o pitagorismo. Assim,
não é de surpreender que a complementaridade da harmonia digital de
John Whitney vá reunir cores e sons a partir das relações matemáticas da
harmonia musical, cuja origem remonta a Pitágoras, ou que Ron Pellegrino
tenha realizado, em 2003, um conjunto de animações com laser e sons num
diálogo explícito com a tradição pitagórica103.
A tradução dos dados de um sentido em termos
de outros pela via matemática de um algoritmo
pode ser encontrada num vasto número de
softwares, interfaces, sensores corporais ou
ambientes imersivos, que aspiram diferentes
registros sinestésicos. Como resultado, apon-
tam para o tipo de experiência agórica que há
pouco definimos. Seu caráter não linear passa
ao largo das qualidades ordenadoras do pen-
samento verbal, sua temporalidade é circular.
Mesmo em games de realidade virtual, que
possuem aspectos narrativos, o caráter
imersivo da experiência é ainda o mais deci-
sivo, e o emprego dos recursos tecnológicos
para intensificar os estímulos sensoriais con-
vergentes é explícito na indústria de entrete-
nimento: na criação de Star Tours, uma insta-
lação high-tech que oferecia ao público um pas-
seio pelos ambientes de Star Wars, no início
dos anos 1980, já se tinha claro o objetivo de
“criar um ambiente de experiência sensorial
plena, que lance você direto para a tela e para
dentro do filme” (Murray, 2003: 60)104.
A cultura digital imprimiu notável ace-
leração ao mundo. Estes ambientes que cha-
mamos imersivos são apenas espaços distintos
102 Trata-se de um número tão vasto que talvez se pudesse falar mesmo na insta-lação imersiva com imagens e sons como forma simbólica. De certo modo, é oque fazemos.
103 Pythagoras & Pellegrino in Petaluma − Visual Music Studies (vol 1 & 2). Tra-
tam-se de dois DVDs com performances de Pellegrino em seu estúdio emPetaluma, peças que empregam seu sistema que articula lasers e sons sinteti-
zados a partir de equações matemáticas comuns, baseadas nas proporções
pitagóricas.
104 De fato, Janet Murray relaciona estas requintadas formas de entretenimento
tecnológico baseadas na sensação ao cinema sensível de Huxley: “Os temores
de Huxley concretizam-se mais plenamente nas atrações dos parques temáticosdirigidas às sensações que prometem ao público ‘um passeio pelos filmes’. Nes-
sa nova forma de entretenimento, cada vez mais popular, o espectador é colo-
cado numa plataforma móvel controlada hidraulicamente ou num assento quese inclina para os lados, para frente e para trás, gira e vibra em sincronia com
grandes imagens que se movem e com o som ambiente; um aparato que lem-
bra muito as poltronas pneumáticas com sensores táteis de Huxley. A idéia de‘passear’ num filme faz parte da estratégia geral da indústria do entretenimento
para criar múltiplas ‘janelas de mercado’ para um mesmo produto de ficção.
Se as platéias adoraram ver o DeLorean em De volta para o futuro, ou as per-seguições de motocicleta em Robocop, elas também estão dispostas a gastar
seu dinheiro em aventuras de simulação baseadas nesses filmes. A primeira
atração desse tipo foi Star Tours, um passeio com 4 minutos de duração de-senvolvido, no início da década de 1980, por dois mestres do marketing cru-
zado, a Walt Disney Company e a LucasFilm. Star Tours foi um sucesso imedi-
ato. O ‘passeio no filme’ foi planejado para produzir fortes efeitos viscerais. Eleassocia as surpresas da ‘casa maluca’ de um parque de diversões com os ter-
rores de uma montanha-russa. De acordo com Douglas Trumbull, que trocou
os efeitos especiais dos filmes de ficção científica pela criação desses simula-dores, o objetivo é ‘criar um ambiente de experiência sensorial plena que lan-
ce você direto para a tela e direto para dentro do filme.” (Murray, 2003: 60).
O primado da percepção digital 271
dentro do ambiente maior de uma cultura planetária em que estamos mais
e mais imersos no instante: a noção de historicidade dissolve-se na
circularidade do instante sinestésico; as experiências do tempo narrativo
e do espaço contemplativo visual se dissolvem em sensação. Estamos, no-
vamente, num mundo mágico, onde emergem todo o tipo de metáforas e
discursos espirituais e míticos de nossa experiência - o xamanismo e a
ciberpercepção zen com que Roy Ascott veste um discurso da arte tecnológica
que se desenvolve já ao longo de quatro décadas, ou a techgnosis, como Erik
Davis batiza sua reflexão sobre as utopias espirituais que emergem,
notadamente desde a Califórnia dos anos 1960 - a bordo do Whole Earth
Catalogue, por exemplo -, a reboque de uma mística da tecnologia, são ape-
nas dois entre muitos exemplos. Trata-se de um mesmo tipo de experiên-
cia que emerge nos rituais de música e imagem pilotados por esse novo
gênero que emerge por si só no tecido da cultura contemporânea, a bordo
dos notebooks e dos projetores digitais, os chamados VJs; ou quando liga-
mos, em nosso PCs, midiaplayers que produzem, automaticamente, ima-
gens abstratas que parecem fluir junto à música; ou ainda quando navega-
mos na web em ambientes que cada vez mais buscam reunir sons, imagens,
imagens em movimento e, eventualmente, textos. Estes aspectos, larga-
mente sinestésicos, de nossa experiência contemporânea, constituem uma
marca decisiva da percepção digital percepção digital que ora se instala, e
não surpreende que a questão da sensação imersiva reapareça nos recortes
de saber mais variados105. Lê-se, nos anos
1980, numa palestra do poeta Paulo Leminsky,
que vivemos num tempo em “a sensação é mais
importante do que a paixão”; um crítico lite-
rário como Hans-Ulrich Gumbrecht
(1998:27)106 fala que o presente dialoga mal
com o livro, já que se articula segundo essa
busca de intensidade e sensação; finalmente,
Lúcia Santaella, descreve a experiência da na-
vegação nos ambientes tridimensionais
saturados de informações sonoras, visuais e
verbais da hipermídia Labirinto - psicanálise e
história da cultura, de Sérgio Bairon e Luis
Carlos Petry (2000) em termos de “êxtase
sinestésico”107. Talvez, porém, nenhum exem-
plo dê de modo mais decisivo - e de certo modo
assombroso - a medida pela qual ingressamos
105 Não surpreende, também, que Gilles Deleuze tenha escrito em 1996 uma
Logique de la sensation, baseado na obra de Francis Bacon.
106 “A música contemporânea, as imagens em rápido movimento produzidas pela
mídia eletrônica que capturam cada vez mais nossos olhos e nossas mentes, e
o entusiasmo sem precedentes por assistir e praticar esportes, parecm apontarpara desejos que poderiam vir a ser associados à presença, à intensidade e,
certamente, à percepção, mais do que à representação (...)”. (tradução de
Lawrence Flores Pereira).
107 “Assim como a hipermídia como técnica permite a integração sem suturas de
diferentes mídias e linguagens, isomorficamente nesta hipermídia integram-se,
em cruzamentos e sobreposições, em vizinhanças e coabitações, o conceitual eo criador, o intectual e o estético, as superfícies e palimpsestos de textos, ima-
gens, falas e sons, estradas e sinalizações, ícones e pistas de navegação que
intermitentemente lançam ao leitor piscadelas secretas para fisgá-lo nessaaventura intelectual em que pensamento e êxtase sinestésico se enlaçam”
(Santaella, 2001: 408).
272 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
nessa ordem de conhecimento ordenado como ambiente imersivo e
multisensorial que o desenho animado Polly Pocket, que acompanha a po-
pular boneca infantil de mesmo nome. Num episódio de suas aventuras,
essa adolescente extremamente confortável em sua vida multimilionária
é solicitada a realizar, junto às suas colegas de escola que partilham com ela
seu mundo de celulares, notebooks, limusines, um seminário sobre um
eclipse lunar. Após algumas peripécias - que incluem avião e ilha particu-
lares -, as garotas apresentam seu seminário: uma verdadeira instalação
multimídia, com luzes estroboscópicas, música eletrônica e um show de
imagens. Esse espetáculo de ostentação de consumo midiático e sensação
- modelo para crianças do mundo inteiro -, onde não cabe qualquer diá-
logo ou reflexão, somente imersão sinestésica (um colega, aliás, afirma que
“nunca imaginava que um seminário pudesse ser tão legal”), recebe, da
professora, naturalmente, a nota máxima: nada poderia declarar, mais
enfaticamente, o fim da ordenação de conhecimento fundada no livro e na
primazia da visão, e a emergência de uma nova forma de ordenação dos
sentidos, e em consequência, do sentido que se dá ao mundo e do conhe-
cimento que daí emerge.
Um fenômeno que atravessa todas as instâncias da cultura: de de-
senhos animados infantis à literatura e à experiência do conhecimento
científico; das manifestações culturais mais ou menos espontâneas como
a prática pop dos rituais coletivos comandados por DJs e VJs às mais sofis-
ticadas instalações tecnológicas; que regula diversas formas de informa-
ção cotidiana e de entretenimento coletivo, não pode ser negligenciado. É
fácil notar a medida em que o ambiente
tecnológico digital onipresente é fundação
dessa experiência contemporânea marcada
por uma saturação do campo sensorial. Satu-
ração essa que, se não nos libertou ainda da
tela, trouxe ao primeiro plano os demais sen-
tidos - aliás, fala-se, hoje, por toda parte,
também em experiências olfativas108; retirou
da visão a primazia moderna e estabeleceu
um ponto de experiência marcadamente
sinestésico, que desmontou a concepção de
espaço moderna. E, se bastaria talvez a noção
de rede para fazê-lo, este novo espaço acús-
tico solicita seu preenchimento, assim como
108 Recentemente (março de 2005), evento multimidiático de grandes proporçõesem São Paulo exibiu Polyester (John Waters, 1981), em que o público tem todos
os odores do filme numa cartela odorama, podendo raspá-la, à medida que a
história transcorre e surgem na tela, as cenas com os odores.
http://www.terra.com.br/cinema/vivoopenair2005/são_paulo/fi lmes/
polyester.htm . No circuito das artes plásticas, a exposição A interpretação deum cheiro (Alumni Santo Amaro, São Paulo, de 19/03 a 16/04, 2005). reúne tra-balhos de artistas conhecidos do circuito nacional que expandem sus poéticas
visuais ao territórios dos aromas.
O primado da percepção digital 273
o 4´33 de Cage era, para as platéias modernas, uma experiência interminá-
vel -, e fundou uma noção do tempo em que o instante se impõe de modo
decisivo sobre qualquer memória ou historicidade: vive-se sob uma espé-
cie de síndrome de Dory, a simpática peixinha de Finding Nemo (Andrew
Stanton e Lee Unkrich, 2003), incapaz de lembrar-se daquilo lhe disse-
ram segundos atrás.
Entretanto, não é somente esse deslocamento em direção a um pon-
to de experiência sinestésico que caracteriza a experiência perceptiva ins-
talada pelos aparatos digitais. A descrição da experiência contemporânea
nos termos de uma gestalt sinestésica, que se explicita em tantos aspectos
da cultura, sugeriria, por exemplo, que estaríamos indo, de algum modo,
na direção do tipo de cosmologia do índios Desana, da Amazônia, que sig-
nificam seu mundo a partir das correspondências multisensoriais vividas
num transe místico experimentado através da ingestão de um poderoso alu-
cinógeno, banisteriopsis caapi, em rituais coletivos (Classen, 1993:133). En-
tretanto, ainda que - de forma certamente menos ritualizada, ou pelo me-
nos em rituais bastante distintos -, também o Ocidente venha, há décadas,
abrigando êxtases sensoriais obtidos por meio de drogas de variados tipos,
devemos ter em conta que a hipersensação que caracteriza o ambiente di-
gital contemporâneo tem a marca singular da técnica: trata-se de uma
sinestesia mediada por aparelhos. Quando falávamos do cinema, alguns ca-
pítulos atrás, fizemos notar que um certo discurso filosófico subjacente à
ciência que fundara a tecnologia cinematográfica - a distinção sujeito-
objeto - dava-se ali como experiência perceptiva: Baudry definiu, na dé-
cada de 1970, o “efeito-sujeito”, a experiência instalada pelo regime
espectatorial posto em operação pelo “dispositivo” câmera-projetor-tela-
sala escura; Benjamin, dissemos, já notara que o regime da câmera reduzia
o ator a um objeto como quaisquer outras coisas. Que o cinema instale como
campo-perceptivo, na superfície sintagmática mesmo, o pensamento téc-
nico que anima a sua caixa-preta, nos autoriza a sugerir um segundo aspec-
to decisivo da percepção digital: a possibilidade de que, dissimulado em
meio a esse campo denso de sensação - poderíamos ultrapassar Flusser e
falar, após a idolatria das imagens e a textolatria da escrita impressa, numa
“sensoriolatria”, outro “biombo” entre nós e o mundo -, resida um regime
que ordena essas superfícies sinestésicas hipnóticas conforme um certo
274 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
pensar técnico que anima esta outra caixa-preta, talvez caixa-de-pandora,
que guarda, em seu interior, o ambíguo sonho cibernético.
Descrevemos anteriormente a utopia digital como a de um mundo
sem ruído: um mundo de perfeita e calculada ordenação, em que todas as
coisas são objetificadas e reguladas segundo o regime da precisão extrema
de todos os valores essenciais do mundo moderno - matematização, raci-
onalização, manipulação por via da representação, reprodutibilidade, pro-
dutividade, eficiência, controle. Pode-se negar que os aparatos digitais, em
sua ambição - já que Rogério da Costa falava mesmo numa proto-subjetivi-
dade das máquinas -, perseguem estes valores? Quando Norbert Wiener
fazia o elogio um tanto irrefletido da cibernética, falava em uma ciência da
comunicação e do controle de homens e máquinas - e vemos, tranqüila-
mente expostas em documentários televisivos, as conquistas da robótica
no adestramento e controle de animais, de modo que não há nada nem de
surpreendente nem de improvável no cenário que desenhamos. Para concluir
nosso esforço em acessar a percepção que hoje constitui o sentido de nos-
sa experiência vivida nas sociedades contemporâneas altamente mediadas
pela tecnologia digital, gostaríamos de sugerir, por fim, que é este o fundo
perceptivo de onde brota a experiência que Gilles Lipovetsky (2004) cha-
ma hipermoderna.
Por hipermodernidade, Lipovetsky define um movimento de
reordenação dos valores, do imaginário e dos hábitos das sociedades con-
temporâneas desenvolvidas, que parecem já não corresponder àqueles do
que se chamou, nas últimas décadas, pós-modernidade. Se esta última fora
caracterizada por um certo espírito de liberação frente à rigidez dos papéis
sociais, das ideologias e dos valores da modernidade, resultando numa
espécie de experiência hedonista do presente, não mais submetido à certa
tirania do futuro encarnado nas narrativas utópicas, a experiência contem-
porânea já vem vestida em trajes bem distintos. As marcas da
contemporaneidade parecem ser uma espécie de versão decantada e mul-
tiplicada dos valores modernos, libertos agora das travas que prendiam a
modernidade às tradições contra as quais se batia, e Lipovetsky faz um ra-
zoável inventário das práticas contemporâneas que são como superlativos
de suas antecessoras modernas: “hipercapitalismo, hiperclasse,
hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado,
hipertexto - o que mais não é hiper?”, pergunta (Lipovetsky, 2004: 53).
Nessa súbita “modernização da modernidade”, há mais do que a
instantaneidade do tempo, que deve conviver com uma sombria incerteza
quanto ao futuro - dado o desmanche global das instituições de seguridade
O primado da percepção digital 275
social. De tal modo que, num mundo de enorme velocidade, há que se vi-
ver num regime de alta eficiência, em que somente hábitos hipersaudáveis,
administração rigorosa do tempo pessoal, educação hiperplanejada dos
filhos, alta produtividade profissional - uma precisão absoluta em todos
os aspectos do cotidiano, enfim -, permitem acessar os prazeres da
hiperoferta de consumo, do hiperturismo, do hipersexo, e, ao mesmo tem-
po, construir alguma solidez para um futuro - em que, afinal,
hiperexpectativas de vida nos prometem uma velhice talvez até mais longa
do que seria razoável. A contraface dessa hiperperformance individual é a
multiplicação de síndromes de depressão, hipersconsumo de drogas,
hipercompulsões, assassinatos em série (ou em massa), exageros de todos
os tipos. Sob tamanha pressão produtiva, o indivíduo, mesmo num mun-
do em que as manifestações individuais já não sofrem o mesmo tipo de
constrangimentos por parte do coletivo que a ordem moderna, aquela do
“homem sem qualidades”, exercera, sente-se obsolescido, já que as ins-
tituições que sustentavam a estabilidade e a segurança de seu mundo, bem
como os valores que sustentavam sua potência - vimos isso na arte moderna
mesmo - já não constituem o modo de vigência do real.
É possível ler essa descrição do hipermoderno, toda ela, sob o pris-
ma de um primado da percepção digital. Tome-se o salto, tão bem descri-
to por Lipovetsky, do afrouxamento das utopias, das normas sociais e das
tensões ideológicas modernas - com a conseqüente instalação de uma ex-
periência do tempo aqui-agora, hedonista mesmo, que caracterizaria a
pós-modernidade - à reordenação do mundo tendo por base o
hipercapitalismo global, a pressão pela hipereficiência pessoal e adminis-
trativa, a demanda por performance, a hipervigilância e a hiperaceleração
que constituem a hipermodernidade. Este hiato, de cerca de 20 anos, do
final da década de 1970 ao final da década de 1990, constitui praticamente
o período pelo qual o parque digital se instala em todo o Ocidente. O rela-
xamento das normatizações e tensões modernas corresponde à emergên-
cia do pensamento cibernético e o desmonte de uma ordem de mundo; a
nova ordenação, superprodutiva, imperativa, sustentada à base de
anabolizantes, estimulantes, viagras, prozacs e soníferos - essa ordem
hiperacelerada, que tensiona ao limite as capacidades biológicas humanas
(já falamos, mesmo, nos embates de Kasparov com as máquinas de xadrez),
corresponde, em todos os seus aspectos, à ordenação do mundo segundo
o novo regime governado pelo aparelho digital planetário: eficaz, veloz,
robótico, produtivo, incansável. Trata-se, mesmo, do mundo descrito por
Flusser, o mundo dos funcionários, cuja única tarefa parece ser a de servir
276 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
ao aperfeiçoamento do aparelho que governa os aparelhos, por meio do
aperfeiçoamento dos pequenos aparelhos que nos cercam, e cuja funcio-
nalidade tão impecável quanto possível desejamos avidamente, sob o ris-
co de vermos emperrar, junto aos bugs, nossos projetos e processos
rizomáticos, hiperindividuais.
Os valores inscritos no programa, aqueles que há pouco chamáva-
mos utopia digital, vão instaurando a outra faceta, o caráter técnico do re-
gime pelo qual percebemos o mundo. Um sentido de precisão, de verda-
deira eficácia maquínica facilmente perceptível na valoração que se dá às
jovens modelos e seus corpos hiperperfeitos - matematicamente
anoréxicos, como convém a uma sensibilidade que guarda, da
materialidade do corpo, nada mais que o necessário a uma experiência do
mundo totalmente virtualizada -, ou aos desportistas, com seus corpos
hiperpreparados - segundo os requintes dos cálculos mais detalhados, das
vitaminas mais específicas, dos aparelhos tecnologicamente mais moder-
nos - capazes de atingir hiperperformances. No caso das primeiras, as jo-
vens estrelas das passarelas submetem-se a regimes alimentares agressi-
vos, freqüentemente descritos como extenuantes, para manterem suas
formas similares a de modelos virtuais de corpos perfeitamente limpos de
toda gordura inútil; no caso dos atletas, e suas remunerações milionárias
por grandes empresas que exploram a imagem das performances dos cor-
pos supereficientes, as contusões são freqüentes, sobretudo no apogeu do
desempenho mais que humano, dadas as demandas calculadas no limite
que se faz ao corpo.
O primado de uma percepção da precisão absoluta, que demanda
do real uma adequação matematicamente perfeita, afeita à natureza das
informações precisas, despidas, cada vez mais, de instabilidades e ruídos,
aparece decisivamente nos sentidos que vêm sendo, historicamente, mais
solicitados pelas tecnologias, a visão e a audição. Jogos virtuais demandam
uma hiperatenção - e talvez não seja coincidência que se fale hoje em cri-
anças hiperativas - absoluta, uma concentração no campo audiovisual pre-
ciso, superfície matematicamente calculada, espaço abstraído segundo a
lógica da programação e livre das ambigüidades do vivido, que só pode
constituir uma experiência perceptiva que informa a consciência vivida
segundo os valores inscritos no aparelho - cuja presença, aliás, as soluções
sensoriais tratam de dissimular através de suas prerrogativas imersivas.
Nos cinemas, erros de continuidade que outrora passavam despercebidos
de enormes platéias por todo o globo, agora são denunciados em questão
O primado da percepção digital 277
de dias, uma vez que as cópias digitais estejam disponíveis aos olhares
adestrados segundo a hiperprecisão digital; na música não é diferente: as
demandas por precisão rítmica nas performances de música pop- com o
uso compulsivo de metrônomos em gravações - se asseveram desde os
anos 1980, mas, sobretudo, o ouvido formado pela escuta límpida e lite-
ralmente sem ruído das gravações digitais criou demandas delirantes de
precisão nas mixagens e masterizações que freqüentemente esvaziam, em
nome da precisão técnica, a presença de qualquer expressão senão a da
perfeição digital da produção; e, ainda, os métodos de estudo com CDs
de acompanhamento e, sobretudo, a multiplicação dos aplicativos de es-
tudo, das facilidades de transcrição e dos recursos tecnológicos, criou por
fim já algumas gerações de instrumentistas, na música popular como na
erudita, cujo único propósito parece ser o de atingir o paroxismo da per-
Bogomir Ecker: Bogomir Ecker: Bogomir Ecker: Bogomir Ecker: Bogomir Ecker: Hohlweg Hohlweg Hohlweg Hohlweg Hohlweg (Jenisch Park,(Jenisch Park,(Jenisch Park,(Jenisch Park,(Jenisch Park,Hamburgo, 1986)Hamburgo, 1986)Hamburgo, 1986)Hamburgo, 1986)Hamburgo, 1986)
feição técnica. Há, sempre, é claro, artistas que
recusam o regime dominante, dançam à mar-
gem da compulsão produtiva, da obsesão pela
performance. Serão, porém, produzidos e es-
cutados segundo as determinações da sensibi-
lidade instalada, com a qual devem negociar,
segundo queiram dialogar com este ou aquele
público. Por toda parte, a hipermodernidade
de Lipovetsky é, na verdade, o mundo instala-
do segundo o regime perceptivo do parque di-
gital, senhor de toda mediação.
A hipermediação digital, segundo a lei-
tura de Lipovetsky - que de fato reconhece essa
presença ostensiva da mediação tecnológica, e
o lugar intocável da ciência no imaginário con-
temporâneo, ainda aqui um valor
hipermoderno e abrigado no coração de cada
placa-mãe por todo planeta -, não recusa, po-
rém, aquela dimensão sinestésica, a
hipersensorialidade, que descrevíamos com
tanta ênfase há pouco. Na verdade, a
hipermodernidade é uma fusão de sensualismo
e desempenho. “Coabitam duas tendências”,
diz: “a que acelera os ritmos tende à
desencarnação dos prazeres; a outra, ao con-
trário, leva à estetização dos gozos, à felicida-
278 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
de dos sentidos, à busca da qualidade no agora”. O hipermoderno emerge
assim, bem conforme a visão de Erik Davis, que comentava as experiênci-
as de expansão da consciência - similares, aliás, às que têm sido propostas
por tantas hiperpoéticas tecnológicas - que, numa Califórnia tecno-utó-
pica dos anos 1960, eram prometidas por empresas as mais diversas, a
partir das novidades tecnológicas:
“regardless of whatever psychospiritual phenomena they help trig-
ger, consciousness gear like MindsEye Synergizers, neurosonic
tapes, and polysynch MindLab light-and-sound machines amplify
two questionable trends that already dominate the information age:
an escapist desire for vivid and entertaining trances, and an utili-
tarian desire to reorganize the self according to the productive and
efficient logic of the machine”. [Davis, 1998:154]109
Naturalmente, os demais valores que pertenciam à modernidade
são todos igualmente multiplicados, nessa morada perceptiva digital em
que agora vivemos. O dispositivo digital engoliu, na forma de parâmetros
matematizáveis e algoritmos, todo o mundo moderno - reprodutibilidade,
matematização, racionalização, representação, permutabiliadde, produti-
vidade, eficiência, velocidade etc. -, vomitando um caos de sensações, que
são, no entanto, absolutamente precisas e livres de ruído informacional.
Não admira que, na discussão enciclopédica dos variados aspectos das so-
ciedades de vigilância, na mostra CTRL[SPACE], em 2001, a sociedade do
Big Brother tenha sido pensada não apenas do ponto de vista do panóptico,
mas dos sistemas de vigilância baseados na... audição. O mundo em que
vivemos, cujo sentido e cujo modo de experiência emergem do primado da
percepção digital é o mundo da sinestesia tecnificada.
109 “independentemente de quaisquer fenômenos psicoespirituais que possam aju-
dar a deflagrar, a aparelhos de ampliação da consciência como os Minds EyeSynergizers, as fitas neurossônicas e as máquinas de luz-e-som polysinch
MindLab, amplificam duas tendências questionáveis que então já dominam a
era da informação: um desejo escapista de transes vívidos de entretenimentoe um desejo utilitário de auto-reorganização de acordo com a lógica produti-
va e eficiente da máquina.”
Conclusão
Deus não joga dados
“Un coup de dés jamais n’abolira le hasard...”(Stephane Mallarmé)
Talvez seja pelo fato de que, como sugeriu McLuhan, as tecnologias
derivadas do domínio invisível da eletricidade não se fundam mais na pri-
mazia da visão; ou pelo fato de que uma situação de tal preponderância do
olhar e de seu modo de significar o mundo, levada ao limite do paroxismo
pela potência das máquinas de visão, tenha resultado numa espécie de
negação do corpo todavia insustentável, de modo que não poderia mesmo
fazer-se eterna - e então talvez haja quem, nessa paisagem contemporâ-
nea de sensação, creia que é o corpo que contra-ataca; mas esse também
se volatiliza nos pulsos elétricos; ou ainda, pode ser mesmo que toda essa
camada de sensação que se ergue em meio aos nossos corpos, ou até mes-
mo dentro de nossos corpos, seja como um último recurso para sustentar
nossa atenção às imagens que inundam o cotidiano, por meio da muito
falada imersão, já que olhamos ainda, e obsessivamente, para telas - mas
“último recurso” implica num final iminente, o que, enfim, dá no mesmo.
Ao nosso ver, não há quaisquer justificativas para celebração ingênua da
instalação em curso: tipicamente, a percepção, que agencia nossos laços
existenciais com os outros e com a ciberpaisagem, se oculta para nos dar a
experimentar um mundo pleno de significação impensada e dissimulada,
e o primado da percepção digital impõe, esperamos tê-lo demonstrado de
modo convincente, seu próprio regime, essa espécie de sinestesia
tecnificada. Tradicionalmente pouco afeita à sensação, a própria lógica da
razão e da luz, que inventou o Ocidente, vai absorvendo e devorando, por
fim, sua própria sombra, por meio de um dispositivo que é o estágio ter-
minal de uma ambição de totalização técnica, essa nossa pulsão mais fun-
da. E é lícito pensar que, talvez, na ausência da sombra, a luz já não tenha
280 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
sequer do que distinguir-se por sua luminosidade: sensação e precisão
matemática agenciando um campo perceptivo onipresente, que aparece
através de telas de pixels e terminais de variados estímulos sensoriais -
fones, vibrações, ambientes aromatizados, climatizados, imersivos etc. -,
de resolução variada, mas regulados pelas mesmas equações de fundo. Uma
planetarização uniforme da base tecnológica digital instalada, que anun-
cia uma espécie de entropia geral dos sentidos e das diferenças, numa
mesma experiência ditada por certa axiologia informacional, a do mundo
sem ruído. Mas será necessário assumir nosso ponto de experiência de
modo a dar a perceber caminhos - de outra forma estaríamos tão somente
tingindo, com argumentos menos ou mais interessantes e menos ou mais
convincentes, toda a paisagem possível com uma única tonalidade, e pen-
sar assim não somente é desinteressante como improdutivo: deságua em
resignação vazia. Diremos então, para usar mesmo uma expressão limite,
que é legítimo que se entenda algo de apocalíptico no cenário conforme nós
o apresentamos: essa uniformidade geral dos sentidos que se anuncia, pela
qual, segundo uma facilidade absoluta de produção e circulação
exponencial de signos e sensações, talvez nenhum signo e nenhuma sen-
sação consiga agenciar multiplicidade de sentido - caos informacional,
saturação de estímulos calculados, imersão em camadas cada vez mais den-
sas de bits carregados de intencionalidade técnica. Não há estratégia de
avestruz que possa resolver um tal impasse. O que se deve procurar é
experienciar algo que, posto assim num dizer, seria mais ou menos como
a lembrança singela de que um apocalipse pode, sim, ser apocalipse do
mundo; mas pode, também, e é o que nos parece inaugurar mais aberturas
para pensar o presente, ser o apocalipse de um mundo. De fato, podemos
sugerir, já aqui, que John Cage, quando entrou na câmera anecóica, deu-
se conta da impossibilidade do silêncio. Esse ruído do corpo, sua presen-
ça incontornável, a carne que abriga esse mistério, um sentido que
reinventa sem cessar o tempo e o espaço multidimensionais, tão densos
como inesgotáveis, da experiência vivida.
Retomemos nosso percurso. Afirmamos, a partir da tese de
Merleau-Ponty, que toda a nossa experiência do mundo é fundada na ex-
periência perceptiva, que inaugura, em mim, a própria noção de verdade:
os sentidos (corpo) nos dão sentido (nos lançam em direção ao mundo) e
sentido (nos dão um mundo pleno de significação). Minha presença num
campo perceptivo me entrega coisas, que ainda não são objetos; permite à
consciência constituir-se, e no ato perceptivo não me defino sujeito - essa
figura engendrada pelo Ocidente e que já explicita um modo de perceber o
Deus não joga dados 281
mundo -, mas me encontro com a paisagem de um modo tal que esta me
define e eu a ela; e, sobretudo, o mistério da percepção parece ser o modo
como se esconde para me dar o mundo. Toda significação que posso atri-
buir ao vivido, e aos textos e linguagens que constituem camadas simbóli-
cas que se sobrepõem polifonicamente na teia da cultura, regulando as
mediações entre eu, o outro e as coisas, tem sua gênese nessa experiência
vivida - “só encontramos nos textos aquilo que nós colocamos ali”, dizia
Merleau-Ponty. Ao colocar a percepção na gênese da razão, e ao afirmar que
somente a visão pode nos dar um mundo - o que é, de certo modo, o mes-
mo -, o grande fenomenólogo francês não soube distinguir, porém, os li-
mites tipicamente ocidentais da percepção que descreve, aquela que me dá
o mundo a partir de meu ponto de vista. A experiência perceptiva é efetiva,
porém, segundo uma multiplicidade de modos; se dá segundo uma gestalt
experiencial, que funda um ponto de experiência - em contraposição a esse
ponto de vista, característico da cultura ocidental. Sob a vigência deste ou
daquele ponto de experiência - de uma gestalt experiencial fundada na
primazia deste ou daquele sentido e seu modo de dispor, por exemplo, o
tempo e o espaço vividos -, os sentidos se integram em diferentes arran-
jos hierárquicos - essa primazia ocidental da visão, uma cosmologia ter-
mal ou olfativa etc. - e o mundo que fazemos manifesta incessantemente a
infinitude da significação que pode assumir.
Conquanto tenhamos notado esses limites, que entendemos tipi-
camente modernos, no pensamento de Merleau-Ponty, toda a nossa tese
se sustenta num vínculo existencial com o mundo estabelecido pela per-
cepção, que a Fenomenologia da percepção descreve extraordinariamente.
Nesse sentido, a filosofia merleau-pontyana permanece sem paralelo na
riqueza com que nos permite pensar, sob o viés perceptivo, a experiência
que vivemos sob a presente instalação de um ambiente saturadamente
hipermidiático. Trazê-lo à discussão é fundamental para que se coloque a
discussão contemporânea, em alguma medida, nos termos fundantes de
toda a conversa, de toda a retomada e produção de sentido, que são os da
experiência vivida. Ainda que a variedade das gestalts experienciais das
culturas, nessa expansão da discussão do campo perceptivo realizada pela
antropologia, se choque com a ambição de universalidade da tese merleu-
pontyana, não contraria, porém, o lugar decisivo guardado à percepção em
sua fenomenologia; antes, o confirma: pensamos como percebemos. Apenas,
percebemos e pensamos de modos mais diversos do que Merleau-Ponty
foi capaz de conceber - e isso, no entanto, somente reitera o inesgotável
campo de significações abrigado nas possibilidades da experiência, e sua
282 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
incompatibilidade com o caráter das formas ideais e exatas da represen-
tação.
Assim, minha cultura, minha história, vimos, fundam esse lugar
familiar da minha experiência, minha morada perceptiva - em sabores,
aromas, toques, gestos, imagens e visões, linguagem - e, como resultado,
as diferentes culturas reiteram e explicitam esses pontos de experiência
distintos, nos quais se sustenta essa multiplicidade de sentidos da experi-
ência coletiva, que abriga e informa minha experiência singular. Entretan-
to, autores distintos e relevantes na discussão contemporânea, como
Marshall McLuhan, Vilém Flusser ou, pioneiramente, Walter Benjamin,
dão descrições convergentes dos modos como a inserção dos aparelhos na
mediação cotidiana incide no campo da experiência perceptiva da cultura
como um todo, e faz nascer sentidos de experiência que lhes são específi-
cos. Também aqui, em nada se contraria a tese de Merleau-Ponty: apenas,
constatamos, este não foi capaz de problematizar essa intervenção
tecnológica; talvez por não ter, como Benjamin, por exemplo, experimen-
tado em seu corpo o impacto das tecnologias na percepção. Foi para pen-
sar esta ponte - que liga questões deixadas em aberto por Merleau-Ponty
e Benjamin, pode-se dizer -, que nos pusemos a inquirir um pouco sobre
a natureza dos aparelhos, buscando ultrapassar esse fascínio curioso que
possui a tecnologia, potencializado por certo espírito novidadeiro banha-
do em utopias de progresso e de evolução, muito afeitas à natureza de nos-
so modo de ser no Ocidente. Mas saberes se fundam, saberes se perdem, e
a idéia teleologicamente sustentada de uma evolução rumo à utopia não é
mais algo em que se possa, exceto em termos religiosos, crer sem crítica.
Pensada em tal chave, notamos que é peculiar à tecnologia não ape-
nas esse seu fascínio próprio, mas esse modo como se acomoda facilmen-
te no dia-a-dia. Visto que os aparatos tecnológicos não são simplesmente
instrumentos neutros, para compreender aquilo que lhes é próprio, asso-
ciamos seus efeitos a seu modo de operação - o “programa” da “caixa-pre-
ta”. Procurando “branquear” a caixa, pudemos distinguir técnica de
tecnologia: a técnica é um modo de lide com as coisas do mundo que ca-
racteriza a cultura Ocidental, é o sentido com que o mundo se apresenta aos
nossos olhos; é mesmo a percepção de onde emerge nosso modo de pen-
sar - tornamo-nos todos olhos da Medusa, segundo uma “armação” ou o
“programa”, que determina nosso lugar e o de todas as coisas; por meio do
exercício neuroticamente repetitivo de um “método” - essa Medusa de
bolso -, a realidade vai se tornando, progressivamente, mera “instalação”,
desdobramento dessa incessante objetificação de todas as coisas, através
Deus não joga dados 283
da qual, como diria Flusser, o “saber” vai varrendo progressivamente, para
as margens mais distantes de um cotidiano regulado pela técnica, a “sabe-
doria”. Por outro lado, as tecnologias são materializações de certo saber
técnico, não isento de intenções - o complexo de caleidoscópio! -, que os
aparatos escondem, automatizam, e reificam no cotidiano, por meio do
hábito. E examinamos algumas tecnologias da imagem para verificar ali a
instalação de uma ordem de experiência que reifica no campo perceptivo
os valores que as informam. Por fim, definimos, a partir dos argumentos
sugeridos, um projeto de mundo inscrito na caixa-preta dos dispositivos
digitais, os valores que animam esse ponto culminante da explicitação da
percepção técnica: agenciando o mundo como calculabilidade, como
matematização do real e sua manipulação por meio da representação -
poderíamos falar numa lógica do Photoshop, o popular aplicativo de edição
de imagens que permite juntar tudo com qualquer coisa -, velocidade, pre-
cisão, permutabilidade, circulação universal de signos, reprodutibilidade,
racionalidade, eficiência, produtividade, controle, a tecnologia digital
postula, enfim, a utopia de um mundo sem ruído. Tendo definido esse le-
que de valores postos em marcha autopoiética pelo parque digital, nos
pusemos a interrogar o problema da arte.
A obra de arte contemporânea é uma trama sensório-conceitual
experienciável como presença, e parece ser território privilegiado para que
se discuta a percepção de uma época. Curiosamente, porém, tem sido
muitas vezes pensada como algo fora do presente, um singular paradoxo.
Para acessarmos, por meio da experiência das obras, uma percepção con-
temporânea, achamos necessário sacrificar de uma vez por todas a idéia de
que a arte possa estar além de seu tempo. Produto de uma época regida por
uma percepção do tempo segundo uma narrativa evolutiva, o mito da van-
guarda sustentou-se sobre essa visão coletiva e projetou-se num ponto à
frente no caminho. Sem o transe coletivo de uma utopia em comum, po-
rém, e tendo em mente que a idéia de “tradição da vanguarda” é um con-
tra-senso - a noção de vanguarda implica precisamente um descompasso
que a idéia de tradição recusa -, foi preciso demonstrar que tal sacrifício
não faz perder em nada a potência conquistada pela obra de arte em seus
embates históricos, sua forma particular de produzir experiência de conhe-
cimento: é pela presentificação de uma reflexão radical que as estratégias
estéticas criam seu próprio regime espectatorial; estabelecem sua poéti-
ca, levando em conta uma trajetória e um difícil cálculo de circunstância;
e praticam experimentação que inaugura novas questões, permitindo fi-
gurar aspectos impensados do cotidiano, da cultura, da linguagem. O pro-
284 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
blema se desloca então da obviedade das simples classificações operativas
- mídia-arte, web-art, instalação, performance, site-specific etc -, ou do
estabelecimento de guetos em virtude da escolha dos materiais -
tecnológico ou não-tecnológico -, e verifica-se que diferentes processos
inauguram aberturas que possuem, em princípio, potencial idêntico em
problematizar e fazer conhecer a experiência do presente. Aí sim, pode-
se pensar que permitam figurar um ponto de experiência contemporâneo.
Esse ponto de experiência contemporâneo, nós o associamos, em
grande medida e por tudo o que se disse, à mediação tecnológica digital
onipresente. Após fazermos uma intensa descrição da paisagem contem-
porânea e das formas como as cibertecnologias hoje agenciam praticamen-
te todas as instâncias do vivido, consideramos forçoso reconhecer que ins-
talam, mais do que um mundo de máquinas, um modo de experimentar o
mundo. Esse modo traz consigo os valores que informam os aparelhos, que
são reificados no cotidiano através do campo perceptivo - instala-se uma
nova morada perceptiva, aquela paisagem da familiaridade, que tem cons-
tituído a quase totalidade da experiência e informado modos de sentir e,
consequentemente, pensar e significar o mundo. Dado o caráter escorre-
gadio da percepção, consideramos que simplesmente termos organizado
os argumentos pelos quais se pode sustentar de modo consistente a possi-
bilidade e a importância de se pensar a cultura contemporânea sob tal viés
- e as conseqüências radicais que se colhe, a partir daí, na gênese dos sen-
tidos da experiência vivida nas sociedades contemporâneas - já teria feito
desse trabalho um esforço bem sucedido em inaugurar uma posição espe-
cífica - resultado de nossa própria trajetória multidisciplinar -, a partir da
qual se pode dialogar com a produção de conhecimento contemporânea.
Acreditamos ter mesmo legitimado esse lugar, colocando em conversação
diversos autores que produziram reflexões radicais e não se furtaram ao
desafio de colher as conseqüências mais decisivas dos caminhos de pen-
samento que procuraram trilhar. Destes, nos parece valioso ter trazido a
fenomenologia merleau-pontyana da percepção à conversação contempo-
rânea, ao mesmo tempo em que pudemos sugerir seus vínculos impensa-
dos com uma percepção visual ocidental; trata-se do mesmo impensado de
grande parte da cultura e do pensamento que, como o próprio Merleau-
Ponty denuncia, ergue-se sobre a percepção sem perceber aí sua gênese -
e, sendo assim, não pode compreender de fato seu próprio sentido como
modo de significar e exprimir nossos laços com o outro e com o mundo
vivido. Dessa retomada de Merleau-Ponty, nos parece, beneficia-se sobre-
tudo o pensamento de McLuhan; instigante, como sua presença por todo
Deus não joga dados 285
este trabalho dá testemunho, a obra do professor canadense carece por
vezes de certa sistematização dos argumentos que sustentam sua
radicalidade, fundada sobretudo no estudo da poesia e estendida a uma
arguta e original observação das circunstâncias da cultura de modo geral.
Inaugurada, porém, essa posição, essa possibilidade de se pensar
a experiência contemporânea a partir da percepção que lhe é peculiar, não
nos furtamos a atribuir-lhe algumas qualidades determinantes: a emer-
gência de um ponto de experiência marcadamente sinestésico - pela quan-
tidade exponencial de processos sinestésicos em curso, seja no circuito
institucional das artes seja nas formas que surgem nos espaços coletivos
de uma cultura, como os VJs, por exemplo, nas telas dos midia players dos
PCs ou mesmo no universo do consumo de mercadorias variadas -, em que
a experiência visual vem sendo integrada a campos intensos de sensações
acústicas, olfativas, tácteis etc; de tal modo que constrói-se uma cultura de
sensação, imersão, instante, não-verbalidade, sob a ilusão de uma
reinauguração da história que pertence ao poder caleidoscópico da
tecnologia de liquidar uma ordem de experiência - como Benjamin o no-
meou de forma pioneira. Essa aspiração pelo transe sinestésico, que me-
receria talvez um número de exemplos ainda mais vasto, dada a sua
onipresença, nos parece ser um aspecto inegável do ambiente midiático
contemporâneo.
Adotamos, porém, uma descrição original do presente, a noção de
hipermodernidade, de Lipovetsky, para colher as conseqüências mais ra-
dicais desse mundo de sensação tecnificada em que vivemos. Pois, de fato,
se tudo aquilo que acima descrevemos deve ser tomado em conta, o digital
é como que o ápice de um projeto moderno, que os aparelhos instalam
como a base operativa técnica do real, e reificam como campo perceptivo,
segundo os valores que listamos há pouco. A pós-modernidade, esse hia-
to de relaxamento das tensões modernas, corresponde bem ao período de
instalação do parque digital presente; e o mundo sem ruído se configura,
então, como universo de precisão, eficiência e produtividade maquínica
que informa hoje a sensibilidade planetária, impondo-nos pressão pelo re-
ordenamento da nossa existência de modo alinhado às demandas do apa-
relho, sob o risco de sermos atropelados pela burocracia digital e pelo re-
gime vivencial - mais do que espectatorial - imposto pela mediação que
regula a percepção do espaço, do tempo e as redes simbólicas do contem-
porâneo hipermoderno.
Mas, dizíamos, é necessário que se possa perceber caminhos pe-
los quais ultrapassar as armadilhas de um cotidiano cujos valores e modos
286 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
de pensar emergem de uma base tecnológica instalada. Dos autores com
os quais dialogamos neste trabalho, os mais radicais na denúncia do caráter
limite da ordenação técnica do Ocidente são Flusser e Heidegger. Este úl-
timo, sabe-se, reserva especial lugar à poesia, à qual atribui um dizer não
objetificante, capaz de manter vivas as aberturas do real, permitindo di-
zer um mundo que abrigue “o céu, a terra, os deuses e os mortais”. Flusser,
por seu lado, ao procurar mostrar as singularidades do universo das dife-
rentes línguas, propõe que se reflita sobre o significado que o conhecido
aforisma einsteiniano, “Deus não joga dados”, assume na língua portugue-
sa: a contradição entre a submissão de todo universo à parametrização
numérica versus um universo que abrigue o mistério, o transcendente, o
“nada” além das fronteiras da língua - acessível pela poesia, que “arranca
língua do nada”. E, levando a ambigüidade flusseriana, finalmente, ao
domínio mesmo da poesia, encontramos finalmente os famosos versos de
Mallarmé, onde, diz-se, está já prenunciada uma escrita digital, e que afir-
mam: “um lance de dados jamais abolirá o acaso” - tal qual o silêncio
cageano, que era, afinal, impossível. Há um lugar e um campo de sentidos
a serem guardados por uma vivência poética, que estes pensadores pare-
cem reservar à arte. Mas não uma arte tão alinhada com o presente que
permita tão somente à tecnologia reiterar seu próprio discurso inscrito em
seus algoritmos e programas e seu modelo perceptivo, mas uma produção
problematizante capaz de implodir os sentidos dominantes e instalar bu-
racos poéticos na camada de tecno-ozônio da semiosfera.
Por fim, essa pesquisa, além de inaugurar esta posição, por meio
da qual nos dispomos a dialogar com a cultura contemporânea a partir da
experiência perceptiva, abre uma série de questões a serem perseguidas.
A própria questão perceptiva abre um mundo inesgotável, de onde afinal
brota toda a experiência, e as possibilidades abertas para uma pesquisa que
procura trazer de volta ao vivido a gênese do sentido da experiência con-
temporânea, num diálogo que articula fenomenologia, antropologia e
cibercultura, são imensas. O conceito de percepção digital, aqui proposto,
abriga ainda muitos caminhos que pedem para ser percorridos,
vivenciados, formalizados, pensados e repensados, segundo um método
radicalmente interdisciplinar que, de há muito, temos praticado. Isso
implica um aprofundamento posterior, possivelmente num diálogo
coletivo, nesses diversos campos que esta pesquisa põe a dialogar. Muito
desse trabalho nasceu, de fato, da experiência mesmo das várias possibi-
lidades abertas pela vivência da arte e pelo pensar, no corpo, os sentidos,
realizada ao longo de alguns anos em sala de aula. Conquanto esse espaço
Deus não joga dados 287
deva, no nosso entender, ser guardado zelosamente para uma vivência
sempre reinaugurada do campo perceptivo, sem a qual seu sentido se es-
vazia surpreendentemente, essa pesquisa coloca nossa reflexão em novo
patamar, e ela deve ser perseguida sempre de maneira renovada. Daí emer-
ge, também, a fascinante e tão difícil questão das relações entre a lingua-
gem falada e a percepção, que Merleau-Ponty cortejou um bocado, produ-
zindo reflexões que, no contexto aberto por este trabalho, mereceriam ser
retomadas mais adiante. Há conseqüências significativas a serem colhidas,
aí, no que diz respeito a essa síntese hipermidiática das linguagens nas
mídias digitais, para a qual boa parte da produção de conhecimento migra
em ritmo acelerado. Mas a obra de Merleau-Ponty, como a dos demais
pensadores que orientaram este trabalho, guarda mergulhos profundos
que sequer cortejamos, e que podem ainda alimentar esta reflexão em vá-
rias direções.
Por fim, nos parece que este trabalho deixa uma série de questões
relativas a uma prática de crítica de arte, à possibilidade de dar ressonân-
cia à produção poética contemporânea, pondo-a a dialogar com o presen-
te, com a diversidade herdada das lutas estéticas modernas, com as dife-
rentes possibilidades e estratégias poéticas, com a institucionalidade da
arte etc. Uma certa estratégia comparativa que praticamos, a aproximação
de obras e percursos que trabalhem, de formas distintas, questões próxi-
mas ou afins - permitindo ao mesmo tempo figurar padrões da percepção
contemporânea, e pensar a potência poética e a produção de sentido
deflagradas pelo campo experiencial da obra, bem como as aberturas aí
inauguradas para conhecer o presente cotidiano, com as teias simbólicas
e os campos de força que o atravessam - parece também abrir um grande
território de aventura de pensamento e exercício da linguagem, relativos
a um campo, que, como dissemos, assume um papel tão mais importante
quanto se torna incerta sua forma de ser na cultura contemporânea. Aliás,
é preciso lembrar que a ficção científica, de Verne a William Gibson, pas-
sando por Asimov e Huxley, não reserva qualquer lugar, num futuro ima-
ginário, à obra de arte, e este mesmo é um tema de estudo que valeria a pena
ser investigado sob o prisma da técnica e dos mundos que daí emergem.
Sobretudo, porém, acreditamos que aqui se consegue fundar a posição a
partir da qual podemos manter esse diálogo largamente interdisciplinar
com o presente e com os autores nossos contemporâneos, reunindo recur-
sos para problematizar figuras aqui e ali, na arte como na cultura e na pro-
dução de sentido de modo geral, e contribuir com a conversação em curso.
Esta tem implicações num jogo bastante específico, o jogo do vivido,
288 O primado da percepção e suas conseqüências no ambiente midiático
atualmente experimentado com a presença de vasto arsenal protético. Não
trata de um game programado, e, embora se possa pensá-lo como tal - de
modo talvez um tanto patológico, pela inversão dos vetores de significa-
ção -, tem a materialidade plena de sentido, ruído e incerteza do real:
desvendá-lo é abrir possibilidades de futuro e resguardar o espaço atópico
da liberdade na sociedade da cibertécnica.
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