O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM...

23
Motrivivência Ano XVIII, Nº 27, P. 49-71 Dez./2006 O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia Resumo É comum o torcedor se emocionar ao testemunhar a premiação de um atleta, elevando seu esforço a ato de heroísmo e bravura. Mas existe uma diferença entre a vida do atleta que é apresentada pelos meios de comunicação e sua vida real. Este artigo discute tais diferenças, com base em pesquisa acadêmica em que foram realizadas entrevistas com atletas e profissionais do voleibol e uma análise da cobertura dos Jogos Olímpi- cos de Atenas feita pela imprensa brasileira. Tendo como foco o indivíduo, discute-se o papel da mídia na constru- Verônica Lima Nogueira da Silva 1 Abstract It’s not unusual for the crowd to get emotional when witnessing the coronation of an athlete, praising its effort as an act of heroism and bravery. But there is a difference between the life of athletes as shown in the media and their reality. This article discusses such differences, based on the findings of an academic research in which interviews were carried out with athletes and professionals of volleyball along with an analysis of the coverage by the Brazilian media of the Athens 2004 Olympic Games. Focused on the individual, it discusses the role the media plays in 1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Transcript of O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM...

Page 1: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 4 9

Motrivivência Ano XVIII, Nº 27, P. 49-71 Dez./2006

O PREÇO DE UM SONHO:a realidade do esporte quenão é mostrada pela mídia

Resumo

É comum o torcedor se emocionar aotestemunhar a premiação de um atleta,

elevando seu esforço a ato de heroísmoe bravura. Mas existe uma diferença

entre a vida do atleta que é apresentadapelos meios de comunicação e sua vidareal. Este artigo discute tais diferenças,

com base em pesquisa acadêmica emque foram realizadas entrevistas com

atletas e profissionais do voleibol e umaanálise da cobertura dos Jogos Olímpi-

cos de Atenas feita pela imprensabrasileira. Tendo como foco o indivíduo,

discute-se o papel da mídia na constru-

Verônica Lima Nogueira da Silva1

Abstract

It’s not unusual for the crowd to getemotional when witnessing the coronationof an athlete, praising its effort as an act ofheroism and bravery. But there is adifference between the life of athletes asshown in the media and their reality. Thisarticle discusses such differences, basedon the findings of an academic research inwhich interviews were carried out withathletes and professionals of volleyballalong with an analysis of the coverage bythe Brazilian media of the Athens 2004Olympic Games. Focused on the individual,it discusses the role the media plays in

1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Page 2: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

5 0

ção de um discurso idealizado sobre oatleta, em que ele é elevado à condição

de herói, ser talentoso e dotado decapacidades sobre-humanas. Com baseem suas experiências, atletas, médicos,

treinadores e outros profissionaisapontam e avaliam os sacrifícios exigidos

pela competição em alto nível – contu-sões, abandono da escola e pressãopsicológica por resultados – como

possíveis fontes de problemas naformação humana dos jovens atletas

brasileiros.Palavras-chave: herói, atleta e imagem

midiática.

the shaping of an idealized image ofathletes, through which they are raisedto the status of a hero, a talented beingequipped with superhuman abilities.Based on their experiences, athletes,doctors, coaches, and others sport-related professionals point out andanalyze the sacrifices that come withhigh-level competition – injuries,dropping out of school, andpsychological pressure for results – aspossible sources of problems on the wayfor a more humanistic upbringing ofyoung Brazilian athletes.Keywords: hero, athlete, media image

As imagens e relatos pro-duzidos pelos meios de comunica-ção de massa são representações dasociedade que os produziu. Rocha(1995) defende a existência de umasociedade “dentro” da Indústria Cul-tural, que seria uma representaçãoda sociedade moderna, criada porela mesma. Ele identifica quatro di-mensões que seriam comuns àsduas sociedades – a real e a da repre-sentação – mas que teriam caracte-rísticas diversas em cada uma de-las: economia, Estado, individualis-mo e temporalidade. O autor to-mou os anúncios publicitários comoobjeto de estudo, mas suas idéiasforam utilizadas, com as devidasadaptações, para caracterizar a so-ciedade de representação do mun-do do esporte.

A sociedade da IndústriaCultural é uma sociedade em que aeconomia está “resolvida”, ou seja,é uma sociedade de abundância, bemsucedida economicamente. No espor-te, o exemplo mais explícito é o dosjogadores de futebol, cujos saláriosmilionários são freqüentemente alar-deados pelos noticiários esportivos.Rocha (1995) defende ainda que, nomundo dentro dos comerciais publi-citários, os resultados econômicosnão dependem de trabalho ou deesforço, como acontece na socieda-de capitalista. Pelo contrário, uma“lógica impecável” garante que de-sejos e necessidades sejam sempresatisfeitos. “Existe alguma instância– a magia do consumo, provavelmen-te – que, na sua gratuidade, ofereceà cultura da Comunicação de Massa

Page 3: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 5 1

a plena satisfação do que lá dentrose define como ‘necessidade’”. (RO-CHA, 1995, p.203).

Entretanto, no esporte,mesmo em sua representação mi-diática, em que salários astronômi-cos são tratados corriqueiramente,existe espaço para a valorização doesforço. Mesmo porque se trata deatividade física em que o atleta exi-ge de seu corpo atuações que vãoalém do que um cidadão comum écapaz de realizar cotidianamente.Ainda assim, o esforço é visto deforma mitificada, como se a “lógicaimpecável” que é responsável pelasolução dos nós econômicos da so-ciedade de dentro dos meios de co-municação também agisse em favordo atleta. Por essa lógica, ficaria vá-lida a fórmula: dedicação é igual asucesso, como se o fracasso não fos-se uma possibilidade.

Ao repetir as histórias dejovens que conseguiram ascensãosocial por meio do esporte, enfa-tizando o passado pobre e as difi-culdades superadas, a mídia colabo-ra na difusão da idéia de que a fór-mula acima é sempre verdadeira.Como na matéria do jornal Folha deS.Paulo, que fala justamente da mu-dança repentina de status social:

Novos ricosNova era põe dinheiro no bolso dosatletas, que vão às comprasTempos austeros. Jades Souza usa-

va o mesmo par de tênis por umano, às vezes até dois anos segui-dos, não importa o quão surradose encardidos estivessem. Era tudoo que sua família no Macapá podiaoferecer. O nadador afirma quenunca reclamou, mas prometeuque mudaria tudo.Cumpriu a profecia. ‘Perdi a contade quantos tênis tenho. Com cer-teza são mais de 15 pares’, diz oatleta de 22 anos, cujo melhor re-sultado nos Jogos foi um 12o lugarno 4x100m livre. (ROSEGUINI, 22ago 2004, p.3).

Na sociedade dos comerci-ais não há espaço para a configura-ção do Estado, não há disputa depoder, não há política. O vácuo depoder dispensa, conseqüentemente,a necessidade de hierarquia. “Numapalavra: naquela representação dacultura projetada pela Comunicaçãode Massa ninguém manda em nin-guém e ninguém obedece a nin-guém. Todos simplesmente aceitamo que deve ser aceitado”. (ROCHA,1995, p. 182). No universo esporti-vo dos meios de comunicação, o sis-tema hierárquico é construído emtorno do atleta. Ele é a estrela prin-cipal. Em relação à estrutura real depoder, o atleta assume, também,posição privilegiada. Em arenas in-ternacionais, ele aparece como umaespécie de diplomata, pois é pormeio de sua atuação que se fará su-

Page 4: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

5 2

bir a bandeira nacional e soar o hinoda pátria. Em seu momento de gló-ria, ele parece ser mais importantedo que o próprio presidente da Re-pública, que dispõe de seu tempopara dar-lhe um telefonema de con-gratulações ou para recebê-lo nasede do Governo com honras de che-fe de Estado. Outra prática comumé o desfile em carro aberto, cobertopela bandeira nacional, evidencian-do a condição do atleta de chancelere herói da nação.

Segundo Rocha, o indiví-duo é figura central e crucial na cul-tura moderna, uma vez que “sofisti-camos as fórmulas, os métodos, asciências e os exercícios que visamalcançar, melhorar, conhecer, enten-der ou equilibrar nossos interiorese profundidades”. (ROCHA, 1995,p.165). Por outro lado, no mundoda Comunicação de Massa, o indiví-duo passa a uma condição secundá-ria, em que seu valor depende desuas relações sociais, de seupertencimento ao todo. No caso doesporte, mesmo enfatizando a ima-gem de uma ou outra estrela, o atletasó tem valor por seu pertencimentoa uma equipe vitoriosa ou por suaparticipação produtiva em um tor-neio importante. Um atleta como otenista Guga só ganha notoriedade,centralidade nos noticiários, em fun-ção de seus resultados, que são, porsua vez, equacionados dentro de umcontexto mais amplo, um torneio

internacional de tênis, por exemplo,do qual participam outros atletas.Sua relação com eles, da qual advéma vitória, é o que lhe confere valor.

Uma diferenciação impor-tante que deve ser feita é entre o“atleta-herói”, ser dotado de “talen-to e habilidades sobre-humanas”, eo “atleta-indivíduo”, ou seja, o serhumano, aquele que tem necessida-des, desejos e dificuldades. Muitofreqüentemente, as necessidades doindivíduo são relegadas a um segun-do plano em prol dos objetivos es-tabelecidos para o atleta. Em suarepresentação midiática, o atleta éum ser emocionalmente resolvidocuja única preocupação ou necessi-dade é a de conquistar resultadospositivos. Muito raramente os pro-blemas que afligem o indivíduo sãopauta para os noticiários esportivos,e, ainda assim, só o são quando in-terferem diretamente no desempe-nho do atleta. Tais problemas envol-vem aspectos cruciais da vida desteser humano que se empenha ematender às expectativas nele depo-sitadas por técnicos, dirigentes etorcedores, tais como saúde, rela-ções familiares e sociais, educaçãoe vida pós-esporte.

Segundo Rocha (1995), apublicidade trabalha com a idéia detemporalidade cíclica. As sociedadesque utilizam esse conceito de tem-po o fazem na observância dos mo-vimentos cíclicos da natureza, em

Page 5: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 5 3

que dois termos – o dia e a noite, aseca e a chuva, o frio e o calor, etc. –se alternam indefinidamente. Já nassociedades modernas capitalistas háa necessidade de se contar os dias,os meses e os anos, de modo a or-ganizar os acontecimentos em umsistema linear. Só assim é possívelhaver conceitos como passado, pre-sente e futuro, que são interligadospelo fio da continuidade. As duasmaneiras de se compreender o tem-po não são excludentes. O que ocor-re é a dominância de uma delas, quese apresenta em uma determinadasociedade de forma mais explícita econsciente. No caso da representa-ção midiática do esporte prevalecea visão cíclica, em que anos de Olim-píadas se alternam com anos semOlimpíadas.

A linearidade existe e podeser percebida na contagem das edi-ções dos Jogos – em 2004 foi reali-zada a 25ª da era moderna – e naevolução das marcas dos atletas e dastecnologias de transmissão dos even-tos. Mas, a cada nova edição, a abor-dagem dos veículos de comunicaçãopara a cobertura jornalística e para aexploração publicitária é praticamen-te a mesma. Alguns padrões são fa-cilmente percebidos: história dos Jo-gos durante os meses que antecedema competição; perguntas sobre temasrelacionados para incitar ainteratividade com o público; cons-tante referência aos deuses gregos,

aos quais está associada a origem doevento, e comparação com os pró-prios atletas; listagem dos grandescampeões de todos os tempos, comdestaque para os brasileiros; repor-tagens especiais com os atletas con-siderados com mais chances de con-quistar medalhas na edição que seaproxima; divulgação diária do qua-dro de medalhas; mesas-redondascom atletas, ex-atletas, técnicos e co-mentaristas antes, durante e após ascompetições; curiosidades sobre opaís e a cidade-sede.

Como esta visão cíclica dotempo não enfatiza a linearidade dosfatos, “viagens no tempo” tornam-se simples e corriqueiras. Como ex-plica Rocha (1995), é possível trans-portar-se tanto ao futuro quanto aopassado e também reuni-los no pre-sente. Tais passeios pelo ontem, hojee amanhã são moeda corrente na re-presentação midiática do esporte,que não perde a oportunidade deachatar a linha do tempo. Os avan-ços tecnológicos dos veículos de co-municação, por exemplo, tornampossível o que seria inimagináveldentro da linearidade da concepçãocontemporânea de tempo.

A aproximação de campe-ões de diversas gerações é muitoexplorada por programas especializa-dos em esporte. Em 2004, por exem-plo, o maior adversário do nadadornorte-americano Michael Phelps nãofoi o australiano Ian Thorpe nem o

Page 6: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

5 4

holandês Pieter Van Den Hoogenband.Tampouco foi o brasileiro Thiago Pe-reira. Todos eram importantes com-petidores nos Jogos Olímpicos de Ate-nas. A impressão deixada pelos prin-cipais jornais brasileiros era a de queo nadador americano, de 19 anos,competia mesmo contra o compatri-ota Mark Spitz, ex-nadador que con-quistou sete medalhas de ouro e que-brou sete recordes mundiais em seteprovas disputadas. Tudo durante amesma edição dos Jogos, a de Muni-que, na Alemanha, em 1972. As ex-pectativas eram de que Phelps conse-guisse, em Atenas, bater o recorde deSpitz e vencer as oito provas das quaisparticiparia. “Num esporte em que amaioria dos atletas ficaria feliz em seclassificar para uma única modalida-de, ele disputa oito medalhas em Ate-nas – o mais fascinante é que seu ob-jetivo é ganhar cada uma delas e, as-sim, bater o recorde de seuconterrâneo Mark Spitz”. (SCHELP, 18ago 2004, p.93).

A aproximação de diferen-tes eras coloca o esporte, em suarepresentação midiática, em um es-tado de eterno “presente”. Assimcomo personagens do passado po-dem ser “ressuscitadas” e trazidaspara atuar diretamente no tempopresente, também “futuros campe-ões” são precocemente idolatrados.O jornal Hoje em Dia, por exemplo,publicou, apenas seis dias após otérmino das Olimpíadas de Atenas,

reportagem sobre os possíveis cam-peões dos Jogos de Pequim, a seremrealizados em 2008:

Mas quem serão esses atletas? Tal-vez o triatleta Thiago Vinhal, de 20anos. Também o corredor Francis-co Souza, de 22 anos, e o judocaMateus Seixa Costa, de 16. Ou atémesmo a nadadora Renata Favilla,de apenas 13 anos, que até lá já teráidade para competir entre os gran-des em Pequim, mas poderá repre-sentar o Brasil melhor nos jogos de2012. (SILVA, 6 set 2004, p.4).

O nivelamento entre passa-do, presente e futuro é indicativo dascaracterísticas apontadas por Rocha(1995) como determinantes da per-cepção cíclica do tempo: a permanên-cia e a eternidade. Esse é também oprincípio que rege o mito do herói,que eventualmente é imortalizado.A diferença é que a intervenção line-ar da concepção capitalista de tem-po faz com que um ídolo seja ma-quinalmente substituído por outro,com prejuízo apenas para o indiví-duo que é abandonado no passado.É assim que a “Isabel do vôlei” é subs-tituída pela “Leila do vôlei” e estapela “Mari do vôlei” ou pela “Fabianado vôlei” – citando duas atletas queno momento se destacam e podemvir a se tornar ícones desta modali-dade –, levando as Isabéis, Leilas eMaris ao esquecimento.

Page 7: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 5 5

Discurso idealizado

Em análise da cobertura dasOlimpíadas de Atenas, percebeu-seque o discurso produzido pelo jorna-lismo esportivo era pontuado por de-terminados termos e expressões que,repetidos à exaustão, conferiam “emo-ção” ao relato. Três desses vocábulosilustram o papel deste discurso dra-matizado na construção midiática daimagem do atleta: sonho, esperançae herói. O atleta jovem sonha em serum grande campeão. O campeão so-nha em conquistar o título que lhefalta. O treinador sonha em levar suaequipe ao lugar mais alto do pódio.Eles são depositários das esperançasde conquista de medalhas para o país.Sendo assim, após a vitória, tornam-se heróis nacionais.

O sonho pode ser o da gi-nasta Daiane dos Santos: “Em uma fi-nal, a exigência das juízas é tão gran-de que Daiane ainda ficou em quintolugar, com sua nota de 9,375. O tãosonhado ouro foi para a estrela da gi-nástica em Atenas, a romena CatalinaPonor”. (DRUMMOND, 24 ago 2004,p.6). Expectativas existem em relaçãoà atuação de atletas jovens, como onadador Thiago Pereira, que, aos 18anos, acabou em quinto lugar na dis-puta dos 200m medley nas Olimpía-das de Atenas: “Principal revelação danatação brasileira, desde o apareci-mento de Gustavo Borges e Fernando

Scherer no início da década de 90,Thiago era o dono da terceira melhormarca da temporada até o início dosJogos e a maior esperança de meda-lha da equipe”. (DRUMMOND, 20 ago2004, p.3).

Vários atletas brasileirosforam honrados com o título de he-rói durante os Jogos Olímpicos deAtenas, em 2004: o iatista TorbenGrael, ao tornar-se o maior meda-lhista olímpico brasileiro (duas deouro, uma de prata e duas de ouro,em seis participações em Olimpía-das, de 1984 a 2004); o tambémiatista Robert Scheidt, ao conquis-tar o primeiro ouro de Atenas e igua-lar o feito do saltador AdhemarFerreira da Silva, até então o únicobrasileiro bicampeão olímpico; aseleção masculina de voleibol, aoconquistar também o bicampeonatoem 2004 (havia vencido em 1992,nos Jogos de Barcelona).

O herói mítico possui duasvirtudes básicas: a honorabilidadepessoal e a superioridade em rela-ção aos outros mortais. No atletamoderno, essa superioridade podeser entendida de duas formas. A pri-meira é o talento. Para Helal (2003),o talento é tão valorizado atualmen-te que chega a suplantar o esforço ea determinação. Caracterizar um jo-gador de futebol como “esforçado”,por exemplo, pode ser uma grandeofensa, pois seria o mesmo que di-zer que ele não é talentoso. A se-

Page 8: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

5 6

gunda é um biótipo adequado à mo-dalidade esportiva escolhida, como odo norte-americano Michael Phelps,que, segundo reportagem especial darevista Veja sobre o atleta, “tem to-dos os atributos de um nadador ide-al”. (SCHELP, 2004, p. 95).

Em geral, o herói descendeda alta nobreza, fruto da relação deum deus com uma mortal ou o con-trário. Nesta dualidade, ele se dife-rencia dos deuses por sua mortalida-de e se afasta dos homens por suaextraordinária capacidade de realizarfeitos impensáveis a um ser huma-no. Grandes guerreiros, os heróiseram guardiões das cidades e prote-tores dos homens. No Brasil, é co-mum a vitória esportiva em compe-tições internacionais ser vista comoa redenção de um povo que sofre comdificuldades de caráter socioeco-nômico. Nesse contexto, os respon-sáveis por ela são içados ao posto deheróis nacionais e o sentimento na-cionalista e patriótico da populaçãose torna mais evidente. Como com-prova o texto do anúncio do super-mercado Pão de Açúcar, publicado nojornal Folha de S.Paulo do dia 30 deagosto de 2004, um dia após a ma-ratona em que o corredor brasileiroVanderlei Cordeiro de Lima perderaa liderança devido à intervenção dofanático religioso irlandês Neil Horan,a menos de seis quilômetros da li-nha de chegada: “Vanderlei, 180 mi-lhões de pessoas acordaram hoje ain-

da mais orgulhosas de ser brasilei-ras”. A fala de Giba, campeão e eleitoo melhor jogador do torneio olímpi-co de vôlei, em 2004, revela que,muitas vezes, os atletas assumem,por si próprios, essa condição. “Mi-nha emoção é que, a cada campeo-nato, vejo a bandeira do Brasil e pen-so que somos um povo sofrido, queenfrenta muitas dificuldades. Rezo,converso com Deus, olho para a ban-deira e prometo fazer 100% para elasubir ao lugar mais alto”. (NOGUEI-RA, 30 ago 2004, p.6).

Depois de cumprir comsuas “obrigações” de guardião e pro-tetor dos mortais, ao herói é geral-mente dada a benção da imortali-dade. Eliade (citado por BRANDÃO,1992) explica que a pós-existênciado herói depende dos restos, traçosou símbolos de seus corpos, que sãoimpregnados de temíveis poderesmágico-religiosos. Na modernidade,também o atleta é imortalizado,como aconteceu, por exemplo, como piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna.O local do acidente que o matou eseu túmulo são ainda visitados porfãs do mundo inteiro. O que não sig-nifica que o atleta precise morrerpara ser heroicizado. Ainda vivo, Peléfoi mitificado como o melhor joga-dor de futebol de todos os tempos.Mesmo longe dos gramados, eleexerce a função heróica de elevar onome de sua nação e de seu povo,uma vez que suas habilidades são

Page 9: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 5 7

reconhecidas em todas as partes domundo. A morte de sua porção hu-mana, entretanto, é a “prova final”do herói e acontece, geralmente, demaneira traumática e violenta ou emabsoluta solidão. A carreira do atle-ta pode ter como causa mortis dife-rentes fatores, como uma contusãograve, a idade ou o surgimento deum novo herói, mais jovem e dis-posto a substituí-lo, e será, via deregra, difícil e tensa.

A representação do atle-ta na mídia

Em face da impossibilida-de de transformar em notícia tudoque acontece no mundo, o jornalis-mo trabalha com o conceito denoticiabilidade, que seria o conjun-to de fatores que guiam a escolhade quais acontecimentos entrarãono noticiário. Além dos critérios derelevância dos próprios jornalistas,a escolha depende de processos epráticas de produção jornalística edos valores-notícia. Os aspectos in-trínsecos do jornalismo não são, en-tretanto, os únicos a influenciar oagendamento midiático. Os interes-ses de atores do universo esporti-vo, midiático e público estruturamsuas respectivas agendas, pressio-nando as agendas uns dos outrosconcomitantemente. Em outras pa-lavras, não são os aspectos culturais

e lúdicos do esporte, tampouco osrelacionados ao bem-estar dos atle-tas, que determinam isoladamenteas escolhas da produção comuni-cacional sobre ele, mas os interes-ses de vários outros grupos, tantopúblicos quanto privados.

Tendo em vista a necessida-de por parte da produção jornalísticade selecionar os acontecimentos queserão noticiados, analisou-se o con-teúdo publicado a respeito do espor-te no Brasil a fim de descobrir quaistêm sido as escolhas feitas pelos veí-culos nacionais a respeito do tema eseu respectivo enquadramento. Emoutras palavras, quais aspectos da re-alidade do esporte foram seleciona-dos para receber maior destaque notexto comunicativo.

De acordo com o assuntoprincipal de cada matéria, ou seja,aquele expresso no título, bigode elead, foi possível organizar as 169matérias e 206 notas publicadasentre os dias 12 e 30 de agosto de2004 no caderno especial “Olimpía-das 2004”, do jornal Estado de Mi-nas, em quatro grupos: Factual –resultados das competições; progra-mação: quem joga, contra quem,quando e onde; chegada e partidade competidores de Atenas. Atua-ção – resultados, positivos ou ne-gativos, e expectativas quanto a re-sultados positivos, com ênfase naatuação de atletas e equipes; maté-rias especiais sobre atletas conside-

Page 10: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

5 8

rados como possíveis vencedoresnos Jogos. Curiosidades/Casuali-dades – fatos e curiosidades sobrea realização e a organização dos Jo-gos; eventos imprevisíveis relacio-nados direta ou indiretamente àscompetições. Crítica – abordagemde problemas que afligem a realida-de do esporte, posicionamento crí-tico-construtivo em relação a eles.

A leitura das matérias e no-tas revelou o direcionamento da co-bertura dos Jogos Olímpicos daque-le ano para a atuação dos atletas.Tanto antes das competições, quan-do as reportagens falavam das expec-tativas em torno de possíveis resul-tados positivos, quanto no momen-to em que elas foram ou não corres-pondidas, a ênfase dos relatos recaiusobre as habilidades e potenciali-dades dos atletas e suas equipes.Pode-se perceber que 58% das maté-rias se encaixaram na categoria Atu-ação. Em segundo lugar, vieram asmatérias factuais (28,5%), designadasa manter o leitor informado a respei-to do andamento das competições.Curiosidades e eventualidades fica-ram em terceiro lugar, representan-do 9,5% das reportagens. Dentre asnotas, as campeãs foram as factuais(53%), o que é natural, dado que esteformato visa, geralmente, a informarde forma rápida e objetiva. As cate-gorias Curiosidades/Causalidades(29%) e Atuação (17%) ficaram em se-

gundo e terceiro lugares respectiva-mente.

Os resultados mostraram-se ainda mais coerentes com a hipó-tese de que os meios de comunica-ção idealizam a imagem do atleta aorevelar que apenas 5% das matériase notas evidenciaram algum aspectocorrespondente à real situação dosatletas que competiam em Atenas, deseus similares no Brasil e do esporte.Pode-se dizer, ainda, que não houveposicionamento crítico em relaçãoaos dilemas que afligem os esportis-tas nacionais. De fato, o mais pertoque se chegou de uma postura críti-ca foi em matéria sobre a equipe defutebol feminino. Ainda assim, mes-mo denunciando a condição de prá-tica do esporte no Brasil, o objetivoreal do texto parece ter sido mais ode exaltar o feito das jogadoras, quedriblaram todas as dificuldades cita-das para chegar a uma final olímpi-ca: “É a modalidade nacional em piorsituação, pois não tem qualquer es-trutura e nem mesmo um campeo-nato regular, e a medalha de ouro,se conquistada, será um grande pas-so para a realização do sonho maior:a sua afirmação no Brasil, podendoassim receber o incentivo necessário”.(DRUMMOND, 26 ago 2004, p.3).

Com base nos dados cole-tados, concluiu-se que o foco da co-bertura jornalística dos Jogos Olím-picos de 2004, em Atenas, na Grécia,realizada pelo jornal Estado de Mi-

Page 11: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 5 9

nas, foi a atuação heróica de atletase equipes que lutaram para alcançaro sonho da vitória e, assim,corresponder às esperanças da nação.

A face humana do atleta-herói

A associação entre práticaesportiva e saúde física e mental ébastante comum e, de modo geral,pode ser tida como verdadeira. Vári-os são os estudos que comprovamos benefícios para o corpo e para amente da atividade física regular emoderada. Todavia, segundo o mé-dico Nelson Biasi2, o esporte compe-titivo de alto nível exige daqueles quese aventuram a praticá-lo esforçosque levam o corpo humano ao extre-mo de suas capacidades. “O atleta dealta performance, hoje em dia, o atle-ta de elite, esse joga no limite. Isso éponto pacífico. Porque o limite é quevai dizer se ele vai ganhar um segun-do, se ele vai ser vencedor ou não”.(BIASI, 28 jun 2004).

A “superação de limites”,tão freqüentemente alardeada comoobra corriqueira do atleta-herói,pode causar fortes impactos na saú-de do atleta-indivíduo. Biasi explica

que atletas de alta performance têmmuito mais lesões degenerativas dosistema locomotor na idade adultado que o não-atleta, o indivíduocomum. A jogadora de vôlei KelyKolasco Fraga3 confirma o prog-nóstico:”Hoje eu tenho 29 anos, te-nho dois parafusos no ombro, trêscirurgias (...) fratura por estresse nascanelas, no halux, no alelo lateral.Rompimento retro femural, cincocentímetros”. (FRAGA, 2 jul 2004).

Contudo, é ainda no mo-mento de formação do atleta queproblemas físicos começam a apa-recer. Segundo Nelson Biasi, lesõespor esforço repetitivo, como tendi-nites (inflamações nos tendões) efraturas por estresse, são comuns emcrianças e adolescentes atletas quesão submetidos a grandes cargas detreinamento. Para evitar este tipo delesão, o ideal seria, de acordo como preparador físico Paulo CésarVieira4, que se respeitasse a fase bi-ológica do atleta em relação à faixaetária em que se encontra e sua in-dividualidade, pois cada um res-ponde ao treinamento em um ritmodiferenciado. Muitos profissionaisquestionam a excessiva valorizaçãodo resultado nas categorias de base,mas “se o clube tem uma estrutura

2 Atleta profissional. Medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000.3 Oito anos de trabalho com equipes de voleibol profissionais e seleções de base.4 Atleta da seleção brasileira juvenil em 2004. Atua profissionalmente.

Page 12: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

6 0

muito boa e perde um jogo ou umcampeonato para uma equipe quetem uma estrutura inferior, isso parao clube, para quem está dirigindo, éum absurdo”. (VIEIRA, 24 jun 2004).

Para jogar “no limite”, oatleta precisa exigir muito de seucorpo. Ele freqüentemente sentedores brandas nas articulações e aca-ba aprendendo a conviver com elas.Porém, submetido a pressões porexcelência e resultado, o atleta aca-ba por estender seu limiar de dor,perdendo os parâmetros do que, paraele, seria insuportável. Um bom exem-plo é o de Mariana Alves Cassemiro5.Em 2004, ainda na categoria infanto-juvenil, mas participando de um tor-neio com a equipe adulta do clubeem que jogava, passou a ser muitoexigida na função de atacante du-rante os treinos, por falta de outrasjogadoras para revezar com ela naposição. “Fiquei na pressão (...) en-tão eu fui agüentando até o meu má-ximo. Daí chegou um ponto que eunão agüentava nem levantar o om-bro mais”. (CASSEMIRO, 9 out 2004).Mariana diz não ter revelado a dorantes de chegar ao ponto crítico pordois motivos: medo de ouvir do téc-nico que ela não deveria reclamarde uma “dorzinha” e o receio de fi-car parada e perder uma oportuni-dade de jogar.

Para vencer a dor, o atletadeve aprender a superar não apenasseus aspectos físicos, mas, principal-mente, os psicológicos. Além dodesejo de permanecer em quadrapara não perder sua posição na equi-pe, entregar-se à dor pode ser umsinal de fracasso. Quando jogava nacategoria juvenil, Lira Bastos MoreiraRibas6 operou o joelho direito e fi-cou dez meses em recuperação, lon-ge dos treinos. Ao reiniciar as ativi-dades, sabia que ainda sentiria, poralgum tempo, as dores do processopós-operatório. Mesmo assim, ela selembra de que o treinador não lhedeu trégua: mandou que ela repe-tisse um exercício várias vezes. Elao avisou que sentia muita dor, masele fez com que treinasse por maismeia hora após o fim da sessão.

Nossa senhora, eu achei que o téc-nico ia me bater. Porque ele come-çou a juntar um tanto de coisa (...)que todo atleta sente dor e que seeu era fresca eu não tinha que jo-gar vôlei e começou a levar para ooutro lado. Falou que eu era muitobaixa para jogar de meio. (...) Queeu não conseguia jogar direito eeu ainda com aquela dor, se eu nãotreinasse mais do que todo mun-do, aí que eu não ia melhorar mes-mo. Aí que eu não ia jogar. (RIBAS,13 jul 2004).

5 Sete vezes em seleções nacionais e estaduais de base. Atua profissionalmente.6 Atleta da seleção brasileira juvenil de 2004. Atua profissionalmente.

Page 13: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 6 1

A partir de então, Lira de-cidiu que continuaria treinando,mesmo sentindo dor, sem reclamar.Desrespeitando o processo de recu-peração, o joelho não apresentavamelhoras. “Cada vez que eu falavaque estava com dor, ele falava queera frescura. Aí eu queria treinarmais. Aí ele puxava mais meia horadepois do treino. Isso num excessoque eu levo até hoje no meu joe-lho”. (RIBAS, 13 jul 2004).

O regime de concentraçãoutilizado nas seleções nacionais debase também é fator que gera ten-são nos atletas jovens. Quando setrata de campeonatos sul-america-nos, que são realizados nos anospares, os atletas ficam de três a qua-tro meses na seleção. Nos anos ím-pares, quando da disputa dos cam-peonatos mundiais, o treinamentodura de quatro a seis meses. A pre-paração acontece no Centro de De-senvolvimento de Voleibol de Saqua-rema, um complexo com as instala-ções e equipamentos necessáriospara o treinamento das seleções bra-sileiras de todas as categorias, inau-gurado em agosto de 2003, pelaConfederação Brasileira de Voleibol(CBV), em Saquarema (RJ). Até entãoos atletas ficavam alojados em gi-násios ou hotéis.

Em 1997, a preparação daequipe da categoria infanto-juvenilpara o campeonato mundial durouoito meses e foi feita no ginásio

Mineirinho, em Belo Horizonte(MG). Tudo era feito ali mesmo: dor-miam no alojamento do ginásio,comiam no restaurante que fica noestacionamento e treinavam em umginásio anexo. “Quando não estavatreinando, a gente estava dentro doalojamento, sem poder fazer nada.Nem televisão não tinha. (...) A gen-te não podia sair porque o nossotécnico era meio ciumento. A gentenão podia sair, não podia ficar comninguém. Namorar, nada disso”.(RIBAS, 13 jul 2004).

Além da “clausura”, a im-posição de certas regras de conduta– não poder sair nem namorar, usarsempre o mesmo uniforme, fazertodas as atividades extraquadraacompanhado do restante da equi-pe –, as restrições alimentares, aintensa rotina de treinamentos –cinco a seis horas diárias, em doisperíodos, intercaladas com sessõesde psicologia e fisioterapia, reuni-ões com o grupo e preleções –, e apressão por resultados são os fato-res mais estressantes da preparaçãodo atleta. A privação de uma vidasocial “normal” na juventude, comtempo livre para sair e se divertir,pode contribuir para um sentimen-to maior de estresse na vida adulta.Lira Ribas começou a jogar aos 12anos de idade e enfrentou esta roti-na de seleções (estaduais e nacio-nais, em uma média de duas porano) dos 14 aos 19 anos. Para a jo-

Page 14: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

6 2

gadora, esta é a razão do estresseque ela diz sentir hoje. “Não é pos-sível que eu tenho estresse tão nova,com 23 anos. Se eu for jogar até os30, faltam sete anos ainda. Eu nãoquero mais sete anos desse sofri-mento. (...) Acho que se eu não ti-vesse pego seleção, eu acho que eunão seria tão estressada assim”.(RIBAS, 13 jul 2004).

Devido à concentração daeconomia brasileira nas regiões Sule Sudeste, a estrutura física e finan-ceira para a prática do voleibol tam-bém converge para esses centros.Dentre as 20 equipes (11 masculi-nas e nove femininas) que disputa-ram a temporada 2004/2005 do prin-cipal torneio profissional do país, aSuperliga, sete eram de São Paulo,quatro do Rio Grande do Sul, trêsdo Rio de Janeiro, três de Minas Ge-rais, duas de Santa Catarina e umade Brasília. Vale notar que todas asequipes gaúchas e catarinenseseram masculinas e todas as cario-cas, femininas, o que leva a um qua-dro ainda mais restritivo. Desta for-ma, é inevitável, para um atleta jo-vem que começa a se destacar novôlei, principalmente por meio deconvocação para uma seleção brasi-leira de base, que ele saia de sua ci-dade natal ainda na adolescência evá para um grande centro.

Abandonar a casa dos paispode ser um passo muito difícil eexige muita maturidade por partedo jovem, um grau de responsabili-dade que nem eles sabem se estãoprontos para assumir. Como mostrao relato da jogadora de vôlei NinaFernanda Afonso7: “Eu acho que nãoexiste uma pessoa que tenha 16, 17anos que faça o que a gente faz. Queé sair de casa, morar sozinha, temque cuidar das contas, tem que cui-dar do quarto, tem que lavar a rou-pa, tem que fazer um monte de coi-sa”. (AFONSO, 9 out 2004). Apren-der a se virar sozinho pode não sertão ruim, mas associada ao desgas-te físico e psicológico do treinamen-to, além da falta do afeto e apoiodos pais, a distância de casa podeser bastante estressante. Como ex-pressam as jogadoras da seleçãobrasileira de voleibol juvenil AnaTiemi Takagui8 e Mariana AlvesCassemiro. “Às vezes nada está dan-do certo, você fala meu Deus, eutenho 16 anos, por que eu tenho quefazer isso aqui”? (TAKAGUI, 9 out2004) “Às vezes dá vontade de pe-gar as coisas todas e ir embora paracasa. Ai, chega, eu quero ir embora,quero desistir disso aqui, muitasvezes dá”. (CASSEMIRO, 9 out 2004).O psicólogo Carlos Eduardo Pires e

7 Atleta da seleção brasileira de voleibol juvenil em 2004. Atua profissionalmente.8 Psicólogo de seleções brasileiras de base em campeonatos mundiais em 1996 e em 2003.

Page 15: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 6 3

Albuquerque9 ressalta que, mesmoresponsáveis e capazes de cuidar desi mesmos em uma cidade distante,esses atletas não deixam de ser ado-lescentes que precisam de supervi-são e orientação dos adultos. Ele ex-plica que, como são pessoas saindode uma fase de meninice para umafase adulta – o atleta que entra emuma equipe muito competitiva e dealto nível, em que há muita cobran-ça, pode pular uma certa fase doamadurecimento, caso o processoseja mal conduzido – eles têm mui-to medo e algumas questões emoci-onais precisam ser bem elaboradascom a ajuda de uma figura paterna.E o treinador é quem acaba assumin-do o papel de pai para muitos deles.

Nesse contexto, o impor-tante é que o treinador não percade vista sua função de educador.Para o técnico Antônio MarcosLerbach10, “o verdadeiro significadodo educar” é a transferência de va-lores, pois, quando o treinadortransmite valores positivos atravésde sua postura, ele conscientiza oatleta e o prepara para contribuirpara a discussão de questões impor-tantes da sociedade em que vive.

Quando a gente fala de valor, nósestamos aqui, num mundo capita-

lista, preocupados em transmitir,por exemplo, o valor de comunida-de, o valor de que nós temos quetrabalhar em conjunto, em socieda-de para poder alcançar determina-dos objetivos que vão atingir o bem-estar de todos. E de repente isso vaide encontro, choca com os valoresque são transmitidos hoje, princi-palmente no Brasil, que é você ga-nhar dinheiro o mais rápido possí-vel. Então, quer dizer, o nosso es-porte tem até contribuído muitopara isso. (LERBACH, 22 jun 2004).

“O segundo lugar é o pri-meiro dos perdedores”. “Ninguém selembra do vice”. “Eu prefiro ficar emterceiro lugar do que em segundo,porque assim termino o campeona-to ganhando.” Essas frases, corriquei-ramente repetidas no mundo do es-porte, são ilustrativas da cultura oci-dental que enfatiza a vitória. A im-prensa também tende a valorizarapenas os melhores. De 1991 a2004, as seleções brasileiras juvenisde voleibol masculino chegaram aopódio de todos os campeonatos mun-diais disputados no período (aconte-cem a cada dois anos), ficando, namaioria das vezes, no primeiro ousegundo lugares. Segundo o técnicoAntônio Marcos Lerbach, que esteveà frente de todas essas equipes, o

9 Treinador da seleção brasileira juvenil de vôlei masculino desde 1991.10 Treinador de seleções brasileiras de base. Dirigiu a equipe adulta nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992.

Page 16: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

6 4

tratamento dispensado pela mídiaaos campeões era extremamente di-ferente do recebido pelos vice-cam-peões. Em 2001, por exemplo, a equi-pe foi campeã mundial juvenil. Naedição seguinte do torneio, em 2003,os brasileiros ficaram com o segun-do lugar, tendo perdido a final porum placar apertado: 3 sets a 2.

Em 2001, tinha um batalhão derepórteres nos esperando no ae-roporto. Em 2003, não tinha ne-nhum. Em 2001, esse pessoal ficouligando para a minha casa duranteuns 15 dias, eu participei de umasérie de programas de televisão,Rio, São Paulo, Belo Horizonte.2003, não fui chamado para ne-nhum deles. Só foi dada uma pe-quena nota, ‘Brasil vice-campeãomundial’. (LERBACH, 22 jun 2004).

Para o psicólogo CarlosEduardo Pires e Albuquerque, a ên-fase no primeiro lugar vem de mui-tos séculos, desde as Olimpíadasgregas, passando pelos conquistado-res romanos. “E isso aí tem aspectospsicológicos muito entranhados,muito fortes. Desde pequeno vocêvai aprendendo: papai e mamãe sóvão gostar de mim se eu for primei-ro lugar. Depois o técnico só vai gos-tar se eu for dos primeiros e aí vai”.(ALBUQUERQUE, 24 jun 2004). O psi-cólogo explica que o grau de exigên-cia chega a tal ponto que, para cer-tos atletas, não há mais necessidade

que ela venha de fora. Ele mesmo seencarrega de se martirizar. Somandoisso ao próprio desejo do jovem departicipar das principais equipes etornar-se um campeão, chega-se auma competição pouco ética, em queo atleta tenta sobreviver e conquis-tar seus objetivos sem se importarcom os meios. “A vitória a qualquercusto, em toda a história do ser hu-mano, foi sempre desastrosa. Então,uma coisa fundamental na formaçãodesses jovens é entender que é im-portante você perseguir os fins, masnão é só o resultado que interessa”.(ALBUQUERQUE, 24 jun 2004) Lon-ge de casa, da influência formata-dora dos pais, e exposto à moral davitória a qualquer preço, a formaçãodo caráter desse jovem atleta ficaseriamente ameaçada.

Ao analisar o quadro queleva o atleta adolescente a abando-nar a casa dos pais, percebe-se quehá outra conseqüência desta mudan-ça: a evasão escolar. A transferênciapara uma equipe maior e melhor ge-ralmente implica no início de umarelação financeira do atleta com oclube, seja por meio de uma simplesajuda de custo, seja pela assinaturade um contrato profissional. Comomuitos desses atletas chegam paraintegrar não apenas a equipe de suacategoria, mas a adulta também, pas-sam a treinar em mais de um perío-do. Equipes profissionais treinam demanhã e à noite. Geralmente, o atle-

Page 17: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 6 5

ta continua estudando, mas em perí-odos de muitas competições e via-gens, ele acaba perdendo dias, sema-nas ou meses de aula. Eventualmen-te, abandona totalmente os estudos.

Uma convocação para aseleção brasileira representa umaestada de três a seis meses no novocentro de treinamento construídopela Confederação Brasileira de Vo-leibol (CBV). O complexo é dotadode toda a estrutura necessária à pre-paração física, técnica e tática dosatletas, mas ainda não oferece apossibilidade de que estudem. Oproblema esbarra em questões le-gais, como explica o técnico WadsonLima11: “Não há compatibilidade decurrículo e não há uma legislaçãohoje que possibilite a elas levar oresultado do período escolar queelas por ventura façam aqui paracontinuar prestando o atendimentoou a conclusão do seu curso ou doseu ano escolar, quando retornar aosclubes”. (LIMA, 13 jul 2004). A leisó garante o direito ao abono de fal-tas. A recuperação do conteúdo per-dido depende do interesse e do es-forço do aluno, da complacência dotécnico e da boa-vontade da escolaem repassar a matéria e flexibilizardatas e métodos de avaliação. Como

no Brasil não há diálogo entre espor-te e educação, geralmente as escolasnão se interessam nem se mobilizamcom a situação dos atletas. Tambémnão são muitos os treinadores queestão dispostos a flexibilizar horári-os de treinamento para que seus jo-gadores estudem. Conseqüentemen-te, o atleta que insistir em continuaros estudos enfrentará muitas dificul-dades. São poucos os que chegam atentar. Fabiana Marcelino Claudino12,por exemplo, preferia não ter paradode estudar, mas não conseguiu adiarsua decisão. Saiu da escola assim queterminou o Ensino Fundamental.“Para falar a verdade, ninguém falounada. Ninguém falou para eu conti-nuar. E parar também, pelo que euestava vendo ali era a única solução.E depois começou a aparecer seleçãoe ficava aquele negócio de oito me-ses treinando por conta de seleção”.(CLAUDINO, 9 out 2004).

No momento de decidirentre continuar a estudar e dedicar-se integralmente ao esporte, a pers-pectiva de independência financei-ra é o fator que mais pesa a favor dasegunda opção. “Porque eles mepagavam, eu lembro que eles mepagavam um salário mínimo. Entãocom um salário mínimo eles calarama minha boca. Que é mais ou me-

11 Atleta da seleção brasileira de voleibol que disputou, aos 19 anos, as Olimpíadas de Atenas em 2004.12 Técnico de voleibol há 15 anos. Formado em Educação Física pela UFMG, pós-graduado em

treinamento esportivo com ênfase em voleibol, técnico nacional nível II.

Page 18: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

6 6

nos assim, você ganha um saláriomínimo e deixa de estudar”. (FRA-GA, 2 jul 2004).

O discurso de que o jovemterá garantias de um futuro melhorno esporte do que seguindo umacarreira acadêmica é corriqueiramen-te repetido para os jovens como for-ma de incentivo a continuar no es-porte. Como mostra a fala do trei-nador Emmanuel Arnot13:

Vou dar o exemplo, não vou citar onome, de um atleta que a gente ti-nha do masculino. Eu me lembroque na época ele ganhava achoque 1500 reais, algo assim. E umdia ele disse: ah, estou cansado. Eufalei com ele, cara, que é isso, vocêtem que valorizar o que você tem.Você não sabe o que é trabalhar nomercado hoje para ganhar 1500reais. Vários profissionais hoje têmum nível de responsabilidade mui-to grande, entram cedo, saem tar-de, têm que cumprir horário. Aquivocê vem, faz o que você gosta. Evocê vem, treina, vai embora, temalimentação, tem casa, tem tudo.Tanto fez que saiu, tentou jogar emoutro lugar, não conseguir, paroude jogar. E um belo dia encontrocom ele. Ele falou, cara, não meesqueço de você me falando isso.Eu entro acho que nove horas, saio

seis, trabalho como representantecomercial, tem mês que eu não tiro500 reais. (ARNOT, 16 jun 2004).

Entretanto, se o esportedesse ao jovem a possibilidade deestudar ao invés de retirar dele estedireito, ele teria chances dobradasde conquistar seu lugar ao sol, sejano esporte, realizando seu sonho deser um campeão, seja em outra pro-fissão. E se isto parece impossíveldevido às intensas rotinas de trei-namento das equipes profissionais,é plenamente factível aos olhos dodirigente Luiz Eymard Zech Coe-lho14. “Se os clubes montassem suasgrades de treinamento de acordocom a possibilidade de os atletasestudarem, não teria problema”.(COELHO, 27 out 2004). Ele defen-de que, com formação acadêmica,esses atletas teriam uma condiçãomuito melhor de iniciar novas car-reiras profissionais após deixarem oesporte. Segundo ele, muitos técni-cos apóiam esse sistema, mas paraos altos dirigentes, é interessanteque o atleta seja um profissionalexclusivo, fique à disposição e trei-ne o dia inteiro, por pensar que as-sim ele vai render mais.

Em sua dissertação de mes-trado, o treinador Antônio Marcos

13 Ex-atleta de vôlei, disputou os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Dirige equipes profissionaisde voleibol desde 1988.

14 Seis vezes em seleções brasileiras e estaduais, de base e adulta.

Page 19: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 6 7

Lerbach buscou verificar as relaçõesentre o nível de escolaridade e odesempenho tático de jogadores devoleibol de alto rendimento. A pes-quisa concluiu que, além de auxili-ar no desempenho dentro de qua-dra, o nível de escolaridade eleva-do, ao promover o autoconheci-mento, ajuda a neutralizar fatoresde ordem emocional que podem in-terferir negativamente no desempe-nho esportivo do atleta. Da mesmaforma, os anos de freqüência esco-lar, em que o indivíduo adquire ex-periências sociais e conhecimentosem diversas áreas, facilitariam, jun-to a outros fatores ligados ao desen-volvimento da personalidade, o exer-cício da liderança.

Ao discutir a evasão esco-lar ligada ao profissionalismo pre-coce de atletas, a falta de um diplo-ma não é o ponto mais contunden-te, mas, sim, a deficiência educacio-nal em todos os seus aspectos. “Elepode até concluir a escola, porqueinfelizmente existem várias formasde se fazer isso no Brasil, mas hárealmente um prejuízo muito gran-de na parte cultural, na parte de co-nhecimentos”. (LIMA, 13 jul 2004).A primazia do resultado impede queele tire bom proveito das oportuni-dades oferecidas pelo próprio espor-te, como a de viajar e conhecer ou-tras culturas. “Conheço todos osaeroportos, hotéis e ginásios domundo”. A frase é muito comum

entre atletas que competem em altonível. De fato, eles viajam muito,mas a chance de conhecer um pou-co mais sobre outras culturas e civi-lizações acaba sendo perdida porfalta de tempo (o calendário de com-petições nacionais e internacionaisprofissionais é muito apertado) oupor falta de interesse, principalmen-te por parte dos treinadores.

Conseqüências para o fu-turo do atleta

Retomando a idéia de que,na representação midiática do es-porte, a fórmula “dedicação = su-cesso” é sempre verdadeira, duasobservações se fazem necessárias,uma vez que se percebeu que elaestá, de certa forma, presente tam-bém no discurso produzido sobre oesporte pelas pessoas que fazem oesporte. A primeira é a diferença naênfase dada ao discurso. Enquantoa mídia enfatiza mais a segundapartícula da equação, ou seja, o su-cesso, e confere ao esforço um lu-gar secundário no discurso, atletas,técnicos e dirigentes não acreditamem uma “lógica impecável” que leveao sucesso. Ele só é conquistadocom muito suor e sacrifício. “O es-porte visa o resultado. E para vocêter o resultado esportivo, o primei-ro passo que você tem que ter, alémdo talento, é ter a determinação. É

Page 20: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

6 8

se colocar o voleibol em primeiro pla-no na sua vida, acima da escola, aci-ma da família, acima de tudo”. (LIMA,13 jul 2004). A lógica do sacrifício étão naturalmente aceita no meio es-portivo que leva o atleta a tomar de-cisões que, independentemente deseu sucesso, podem ser prejudiciais àsua saúde física e psicológica e à suaformação social e de caráter. As atle-tas Mariana Alves Cassemiro, de 17anos, e Luciana Adorno Rodrigues doNascimento15, de 24, não têm dúvidaquanto a ela: “Desde quando vocêescolheu essa carreira, você tem queabrir mão de muita coisa”.(CASSEMIRO, 9 out 2004).

Eu mesma tenho um primo que foijogador profissional e ele até hojeé todo torto. Tem hérnia nas cos-tas, na coluna, por causa de exces-so de salto e até hoje, o joelho émeio duro. Eu sei que muito atletafica com seqüela, sim, para o restoda vida pelo excesso de treinamen-to. Pelo excesso de exigência emcima das articulações, que eu achoque na verdade não são feitas paratamanha exigência. O atleta de altonível precisa tanto do corpo paraconseguir chegar em algum lugare é o preço que se paga. (NASCI-MENTO, 8 out 2004).

A segunda ponderação éque, também no meio esportivo,não se questiona o fato de que es-forço e dedicação não garantem o

sucesso. Para que se tenha um exem-plo, a Superliga feminina de volei-bol 2003/2004 contou com dez equi-pes, cada uma com 15 atletas, emmédia. São 150 atletas, sem contaras que atuam no exterior, disputan-do 12 vagas na equipe nacional, quepode ser considerada o degrau má-ximo do voleibol. É importante per-ceber que essas 150 já fazem partede um grupo de atletas de elite quetêm o privilégio de viver exclusiva-mente do esporte. Outras tantas ini-ciam suas carreiras ainda bem jovens(entre 10 e 12 anos, no caso do vô-lei) e, após alguns anos de luta ededicação, acabam por perceber quenão terão espaço nesse meio.

Conclusão

Ao contrário do atleta-he-rói, que é imortalizado ao ter seunome gravado no hall dos grandescampeões e suas façanhas relembra-das a cada nova edição dos Jogos, oindivíduo está sujeito à seqüen-cialidade de eventos em sua vida.Após um período de glória, ele en-velhece e eventualmente abando-na o esporte. Sua vida segue alinearidade baseada na objetivida-de com a qual a sociedade modernaconta e operacionaliza o tempo.Logo, mesmo bem sucedido e comum bom “pé de meia” ao fim de suacarreira, o atleta sofrerá, em sua vidapós-esporte, com a deficiência em

Page 21: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 6 9

áreas como saúde e educação, queforam sobrepujadas durante sua vidaadolescente e jovem.

O dinheiro costuma serutilizado para justificar todo e qual-quer tipo de exagero a que se ex-põe o atleta. Em uma sociedade ca-pitalista, o argumento é válido ecoerente. Entretanto, do ponto devista de uma formação holística evoltada para a cidadania, ele é defi-citário e superficial. Primeiramenteporque nem todos os atletas que sededicam inteiramente ao esporte,submetendo-se a todas as suas exi-gências, conseguem ter um saláriosuficientemente alto que o permitaaposentar-se aos trinta e poucosanos em uma situação financeiraestável. Em segundo lugar, porque,muitas vezes, o atleta vem de umafamília cuja estrutura socioeco-nômica o permitiria alcançar umaboa qualificação profissional, masdeixa de persegui-la para dedicar-seao esporte.

A conformação dos atletasfrente à “necessidade” de sacrificaraspectos físicos, afetivos e acadêmi-cos de sua vida em nome da buscapela vitória ajuda a compreender aimagem do atleta que é promovidapela mídia, se analisada à luz dospressupostos da teoria do Espiral doSilêncio. Considerando como socie-dade as pessoas direta ou indireta-mente envolvidas com a carreira doatleta – treinadores e outros profissi-

onais, companheiros de equipe, fa-miliares e torcedores –, tem-se umasociedade que ameaça, com o isola-mento, os atletas desviados, queexperimentam, então, um medo con-tínuo de serem isolados. No espor-te, o isolamento pode ser compre-endido como desde uma desconfi-ança por parte de treinadores e co-legas em relação ao comprometi-mento do atleta para com os propó-sitos da equipe até seu completodesligamento desta. O medo fazcom que os indivíduos procuremnão questionar métodos e objetivos,mesmo que sejam sabidamente pre-judiciais a vários aspectos de suavida. A manutenção do clima deopinião acaba por influenciar o com-portamento da mídia, que se pro-põe reflexo da realidade, fazendocom que ela reproduza o discursoprevalecente no meio esportivo.

O processo tem impactosobre a opinião da sociedade, quetende a aceitar a opinião passadapelos meios de comunicação comorepresentativa da opinião da maio-ria. Como membros da sociedadenão envolvidos ou apenas indireta-mente envolvidos com o esporte –torcedores e familiares – não conhe-cem a realidade do meio, acabam porperpetuar a “opinião da maioria”divulgada pelos meios de comuni-cação. Em um processo parecidocom o da serpente que devora o pró-prio rabo, o ciclo se fecha entre o

Page 22: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

7 0

que a mídia divulga e é aceito pelasociedade como verdade e o que asociedade produz, com base em suaignorância dos processos do espor-te, como sendo opinião da maioriae é reproduzido pela mídia.

Não se pretende, com estaponderação, isentar a mídia de suaresponsabilidade para com a socieda-de da qual se diz interlocutora. Resta,então, a tarefa de apontar as razõesdos meios de comunicação ao ocultaraspectos “sombrios” do esporte emfavor de outros mais glamourosos. Oque parece mais coerente é relacioná-las ao processo de espetacularizaçãodo esporte. Em uma analogia com o

Referências

AFONSO, Nina Fernanda. Entrevistarealizada em São Paulo em 9 out2004.

ALBUQUERQUE, Carlos EduardoPires e. Entrevista realizada emBelo Horizonte em 24 jun 2004.

ARNOT, Emmanuel. Entrevistarealizada em Belo Horizonte em16 jun 2004.

BIASI, Nelson. Entrevista realizadaem Belo Horizonte em 28 jun2004.

BRANDÃO Junito de Souza. Mito-logia Grega , volume III.Petrópolis: Vozes, 1992.

mundo da publicidade e do comércio,o esporte se transformaria em um pro-duto vendável de entretenimento eque, portanto, devem ter expostas ape-nas suas características mais dignas.Como as imperfeições só são revela-das ao consumidor após a efetivaçãoda compra, no caso do esporte, o con-sumidor seria o jovem aspirante a atle-ta, que se encanta com as imagens deseus ídolos e sonha em ter uma vidagloriosa como a deles. As imperfeições,ou seja, as dificuldades só lhe são re-veladas depois de seu completoenvolvimento com o mundo da com-petição, quando pode ter sua saúde,educação e futuro comprometidos.

CASSEMIRO, Mariana Alves. Entre-vista realizada em São Paulo em9 out 2004.

CLAUDINO, Fabiana Marcelino. Entre-vista realizada em São Paulo em9 out 2004.

COELHO, Luiz Eymard Zech.Entrevista realizada em BeloHorizonte em 27 out 2004.

DRUMMOND, Ivan; MEIRELES,Leonardo. Abaixo da expectativa.Estado de Minas, Belo Hori-zonte, 20 ago. 2004. Olimpíada2004, p.3.

DRUMMOND, Ivan; MEIRELES,Leonardo. Duplo twist frustrado.Estado de Minas, Belo Horizonte,24 ago. 2004. Olimpíada 2004, p.6.

Page 23: O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é … · 2011. 8. 23. · O PREÇO DE UM SONHO: a realidade do esporte que não é mostrada pela mídia ... rísticas diversas

Ano XVIII, n° 27, Dezembro/2006 7 1

DRUMMOND, Ivan; MEIRELES,Leonardo. Muito mais do queouro. Estado de Minas, BeloHorizonte, 26 ago. 2004. Olim-píada 2004, p.3.

FRAGA, Kely Kolasco. Entrevistarealizada em Belo Horizonte em2 jul 2004.

HELAL, R. Mídia e esporte: A cons-trução de narrativas de idolatriano futebol brasileiro. In: XXVICongresso Brasileiro de Ciên-cias da Comunicação . BeloHorizonte, 2003.

LERBACH, Antônio Marcos. Entre-vista realizada em Belo Horizonteem 22 jun 2004.

LERBACH, Antônio Marcos. O nívelde escolaridade e o desem-penho tático de jogadoresde vole ibol de alto rendi-mento. 2002. 229f. Dissertação(Mestrado em Educação)– Univer-sidade Vale do Rio Verde de TrêsCorações – Unincor.

LIMA, Wadson. Entrevista realizada emBelo Horizonte em 13 jul 2004.

NASCIMENTO, Luciana AdornoRodrigues. Entrevista realizadaem São Paulo em 8 out 2004.

NOGUEIRA, Cláudio; LEON, MauraPonce. Louvação ao sofrido povobrasileiro. O Globo , Rio deJaneiro, 30 ago 2004. Olimpíadas2004, p.6.

RIBAS, Lira Bastos Moreira. Entrevis-ta realizada em Belo Horizonteem 13 jul 2004.

ROCHA, Everardo. A sociedade dosonho: comunicação, cultura econsumo. Rio de Janeiro: MauadEd., 1995.

ROSEGUINI, Guilherme. Novos ricos.Folha de S.Paulo, São Paulo, 22ago 2004. Atenas 2004, p.3.

SCHELP, Diogo. A aposta do homemanfíbio. Veja, São Paulo, ano 37,nº33, 18 ago 2004, p.92-95.

SILVA, Valeska. Jovens atletas sonhamcom Pequim. Hoje em Dia, BeloHorizonte, 6 set 2004. Esportes, p.4.

TAKAGUI, Ana Tiemi. Entrevista reali-zada em São Paulo em 9 out 2004.

VIEIRA, Paulo César. Entrevista reali-zada em Belo Horizonte em 24jun 2004.

Contato:[email protected]

Recebido:set/2005Aprovado:mar/2006