O PODER JUDICIÁRIO COMO LEGISLADOR POSITIVO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
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O PODER JUDICIÁRIO COMO LEGISLADOR POSITIVO NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
Carine Zeni1
UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul - RS
RESUMO O artigo analisa a possibilidade do Poder Judiciário atuar como legislador positivo para a efetivação dos Direitos Fundamentais Sociais, discutindo suas limitações nesta atuação, bem como as críticas da doutrina neste aspecto. Estuda-se as razões pelas quais pode ser admitida a atuação do Poder Judiciário como Legislador Positivo em face da omissão do Poder Legislativo ou mesmo do Poder Executivo em concretizar os Direitos Fundamentais Sociais, analisando se quando atua desta forma o Judiciário estaria subvertendo o sistema jurídico brasileiro e violando a doutrina da tripartição dos poderes. Analisar-se-á, igualmente, se a reserva do possível e a reserva de consistência funcionam como limitadores dessa atuação do Poder Judiciário. Por fim, afirmam-se que é necessário o estabelecimento de um juízo de ponderação entre os bens, valores e interesses em jogo, para se chegar a alguma conclusão a respeito das condições e possibilidades de intervenção da jurisdição constitucional e infraconstitucional nas relações sociais, abrindo as portas do Poder Judiciário para uma participação maior da Sociedade Civil nas decisões que versam sobre os Direitos Fundamentais Sociais. PALAVRAS-CHAVE: direitos fundamentais sociais; separação de poderes; legislador positivo; reserva do possível; reserva de consistência.
IL POTERE GIUDIZIARIO COME LEGISLATORE POSITIVO NELL’ EFFETTIVACIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI SOCIALI
RIASSUNTO
L'articolo analizza la possibilità del Potere Giudiciário agire come legislatore positivo per l’ effetivacione dei Diritti Fondamentali Sociali, discutendo le suo limitazioni in quest’ attuazione, così come le critiche della dottrina in questo aspetto. Si studia le ragioni per le quali può essere ammessa l’ atuacione del Potere Giudiziario come Legislatore Positivo viso l’omissione del Potere Legislativo o del stesso Potere Esecutivo in concretizzare i Diritti Fondamentalli Sociali, analizzando se quando agisce in questo modo il Giudiziario stia sovvertendo il sistema giuridico brasiliano e infrangendo la dottrina della tripartizione dei potteri. Sarà analizzato, ugualmente, se la riserva del possibile e la riserva della consistenza funzionano come restringitori di quest’ attuazione del Potere Giudiziario. Allá fine, si afferma che sia necessario lo stabilimento di un giudizio di ponderazione fra i beni, i valori e gli interessi nel gioco, per raggiungere qualche conclusione rispetto alle condizioni e possibilitá di intervento della giurisdizione costituzionale e infraconstitutionale nelle relazioni della societá, aprendo le porte del Potere Giudiziario per una maggiore partecipazione della Società Civile nelle decisioni che riguardano i Diritti Fondamentali Sociali. PAROLE-CHIAVE: diritti fondamentali sociali; separazione dei potteri; legislatore positivo; riserva del possibile; riserva della consistenza.
1 Graduada em Direito pela Universidade do Rio dos Sinos - UNISINOS. Especialista pela Universidade de São Paulo – USP/LACRI na área de “Violência Doméstica contra Crianças e
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INTRODUÇÃO
Os Direitos Fundamentais Sociais refletem direitos com uma tradição histórica
ligada às lutas sociais, pelo reconhecimento de melhores condições de vida, fazendo
referência a uma luta por igualdade e liberdade reais, no sentido de que todos
deveriam desfrutar de igual oportunidade de ser livre2. São prestações positivas que
devem ser proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, para possibilitar
melhores condições de vida aos mais fracos, buscando realizar a igualização de
situações sociais desiguais.
Todavia, os Direitos Fundamentais Sociais encontram grandes dificuldades
quanto a sua efetivação. Nesse sentido, o presente artigo abordará a possibilidade da
atuação do Poder Judiciário como legislador positivo nos casos em que os Poderes
Legislativo e/ou Executivo se mantiverem inertes, não efetivando os Direitos
Fundamentais Sociais. Abordar-se-á, também, os problemas acerca da legitimidade
dessa atuação e os limites em relação à reserva de consistência e da reserva do
possível.
A questão é saber de que maneira a efetividade dos Direitos Fundamentais
Sociais poderá ser alcançada. Qual é o papel do Poder Judiciário nesse ponto? Qual é
a importância da participação popular nesse sentido? Quais as conseqüências e
críticas que advém desta atuação? Em suma, pretende-se identificar e/ou estimular
uma participação mais democrática da Sociedade Civil, em relação às decisões que
versem sobre a concretização destes direitos meta-individuais.
Adolescentes”. Mestranda em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Escrivã Judicial na Comarca de Encantado/RS. E-mail de contato: [email protected] 2 CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 28 abr. 2007.
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2 DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Conforme Rogério Gesta Leal3 a Constituição Brasileira de 1988 estabelece, de
forma induvidosa, as dimensões objetivas à efetividade do princípio da
independência e da harmonia dos Poderes da República entre si (art. 2°, da CF/88).
Contudo, segundo o autor, na realidade, temos nos deparado com uma verdadeira
usurpação de tais previsões normativas, inclusive princípios, com comportamentos
estatais violares da independência e da harmonia dos Poderes, eis que se verifica:
(a) a excessiva atividade Legiferante do Poder executivo, no uso de Medidas Provisórias e outras matérias; (b) a progressiva inércia do Poder Legislativo em face de suas competências legiferantes próprias; (c) a criticada intervenção do Poder Judiciário em temas que, por vezes, se confundem com competências dos demais poderes.4
Como se sabe, a tripartição concebida por Aristóteles (A Política) e aprimorada
por Montesquieu (O Espírito das Leis) visava à contenção do Poder (o poder contém
o poder) e evitava a concentração do Poder estatal em único órgão5. Com efeito,
lembra João Paulo Bachur que o fundamento da divisão era a proteção do cidadão,
em diametral oposição à monarquia, constituindo a pedra de toque do
constitucionalismo dos séculos XVIII e XIX. Assim, o modelo tripartite deve ser
conformado, em tempos atuais, à forma de Estado a que se encontra vinculada: no
Estado Social, diferentemente do ocorrido no Estado Liberal, impõe-se o controle de
um Poder sobre o outro como forma de concretização dos objetivos buscados pela
ordem constitucional, mormente diante da nova feição prestacional do Estado6.
3 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea: uma perspectiva procedimentalista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, ed. 2007. p. 38. 4 Segundo Gesta Leal, a usurpação das atribuições dos poderes estatais tem ocorrido em razão do alto grau de complexidade das demandas e mesmo da exclusão social gerada pelo atual modelo de crescimento econômico nacional, divorciados de um programa de desenvolvimento social consentâneo. 5 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à Divisão dos Poderes: um princípio em decadência? Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n.9, 1995, p. 40-48. Nesse sentido, o autor refere que a teoria clássica da divisão dos poderes “não se trata de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real (...). Nesse sentido, o princípio não era de separação de poderes, mas de inibição de um pelo outro de forma recíproca.” 6 BACHUR, João Paulo. O controle jurídico de políticas públicas. Revista da Faculdade de Direito, ano I, vol. 97, p. 647-682. São Paulo, 2002.
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Mais adequado, portanto, falar-se atualmente em “tripartição de funções
estatais”, sob o entendimento que o Poder Estatal é uno, atuando cada uma das
funções administrativa, legislativa e judiciária como forma de controle e contenção
da outra, no concebido projeto de checks and balances, o qual autoriza que os demais
Poderes realizem auto-correções ou correções externas nos atos violadores das
normas que os vinculam7. Nessa esteira, Gesta Leal refere que:
A medida e a intensidade desta falha capaz de chamar o controle externo corretivo vai ser dada pelo caso concreto, observando a real necessidade da intervenção perquirida de um no outro, de sua intensidade em face do caso, e da proporcionalidade empírica de seu resultado atinente ao todo envolvido, visando sempre a garantir o mínimo existencial consubstanciador da dignidade da pessoa humana, atingindo o menos possível as estruturas republicanas democráticas e representativas, eis que veiculadoras de institutos igualmente constitucionais.8
Ainda, neste aspecto, não menos importante a citação de Derly Barreto e Silva
Filho que afirma que o valor atual da tese de Montesquieu está, essencialmente, nos
princípios de integração e de equilíbrio, referindo que a teoria clássica da tripartição
funcional do Poder teve que “se ajustar aos imperativos da vida social moderna”, de
forma a conferir aos órgãos estatais competência em função das exigências de
colaboração e de controle, os quais “caracterizam o equilíbrio que persegue o chamado
sistema de freios e contrapesos”9.
O artigo 2º da Constituição Federal opta pela independência dos Poderes, que
ainda devem ser harmônicos entre si, mas não há que se falar em separação estrita
destes, pois diante da realidade brasileira se fazem necessárias interferências para
evitar abusos ou sobreposições dos Poderes, de forma a alcançar os fins do Estado
constitucionalmente previstos. Nesse sentido, ainda, a lição de Rogério Gesta Leal,
afirmando que:
[...] o Poder Judiciário (ou qualquer outro Poder Estatal) não tem o condão de make public choices, mas pode e deve assegurar aquelas escolhas públicas já tomadas por estes veículos, notadamente as insertas no Texto Político,
7 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 94. 8 Ibidem. 9 SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle jurisdicional dos atos políticos do Poder Executivo. Revista Trimestral de Direito Público, n. 8, p. 123.
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demarcadoras dos objetivos e finalidades da República Federativa. São tais indicadores que estão a reivindicar medidas efetivas para serem concretizados. Quando não efetivadas, dão ensejo à legitima persecução republicana para atendê-las, administrativa, legislativa ou jurisdicionalmente10.
Portanto, não pode a separação de poderes, ou melhor, a repartição do Poder
Estatal em funções atribuídas a distintos órgãos, obrar como empecilho à realização
dos objetivos firmados no Texto Político. Necessário se faz, pois, o reconhecimento
da possibilidade de interferência de um Poder em outro, de forma a viabilizar a
efetivação dos Direitos Fundamentais Sociais.
3 O PODER JUDICIÁRIO COMO LEGISLADOR POSITIVO
Como vimos, o argumento mais utilizado como forma de impedimento da
atuação do Poder Judiciário como legislador positivo se funda numa visão
ultrapassada do Princípio da Separação dos Poderes, constante no artigo 2º da
Constituição Federal, em que se objetivava proteger o indivíduo contra intervenções
arbitrárias do Estado.
O Judiciário, ao analisar atos executivos, não pode, por certo, substituir a
vontade do administrador pela sua própria: cabe-lhe apenas conformar a atuação
administrativa aos preceitos da ordem jurídica, somente invalidando atos
eventualmente violadores de normas cuja observância é obrigatória. Assim se
manifesta Sérgio de Andréa Ferreira11:
É certo que o juiz não vai substituir ao legislador, ao administrador, no núcleo do poder discricionário. Mas não o estará fazendo se verificar que, diante de uma aparente legalidade extrínseca, na verdade esteja diante de uma grande injustiça, de um procedimento administrativo desarrazoado, ilógico, contrário à técnica, à economicidade, à logicidade, que são os parâmetros do controle jurisdicional, neste campo específico da chamada legitimidade.
Impõe-se frisar que se defende a possibilidade dos juízes atuarem como
legislador positivo para salvaguardar Direitos Fundamentais Sociais sem que sejam
10 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 42.
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subvertidos os basilares da Democracia. Conforme Gesta Leal12, as eventuais
interpretações extensivas que o Poder Judiciário imprime no sistema jurídico não
implicam a negação - mas talvez a mitigação - do modelo da democracia
representativa brasileiro:
Se há migrações pendulares de concentração do Poder Estatal neste particular, por vezes encontrando-se no Legislativo a maior iniciativa de produção de normas, por ora no Executivo, (em face de suas novas feições promocionais e interventivas), e por vezes no Judiciário (em face das eventuais interpretações extensivas que imprime no sistema jurídico) isto não implica a negação (mas talvez a mitigação) do próprio modelo da democracia representativa [...].
Em suma, defende-se que o Judiciário tem a função de garantir a Supremacia
da Constituição, em especial o Supremo Tribunal Federal, no controle concentrado
de constitucionalidade13. Conforme o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes14, tem
sido de suma importância o papel exercido pelo STF no controle de
constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro e ao poder legiferante
indireto do Judiciário, exercendo tanto o papel de legislador negativo quanto de
“legislador positivo". Segundo ele:
Um levantamento na jurisprudência do STF indica que, entre 5 de outubro de 1988 e 27 de maio de 1998, 99 disposições federais e 602 preceitos estaduais tiveram a sua eficácia suspensa, em sede de cautelar. No mesmo período, 174 disposições estaduais e 27 normas federais tiveram a sua inconstitucionalidade definitivamente declarada pelo Supremo Tribunal no âmbito do controle abstrato de normas. Esses números ressaltam a importância do controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Eles demonstram também que, enquanto pretenso "legislador negativo", o Supremo Tribunal Federal – bem como qualquer outra Corte com funções constitucionais – acaba por exercer um papel de "legislador positivo". É que o poder de eliminar alternativas normativas contém, igualmente, a faculdade de, por via direta ou transversa, indicar as fórmulas admitidas ou toleradas.
11 FERREIRA, Sérgio de Andréa apud FERREIRA, Ximena Cardozo. Disponível na Internet: < http://www.mp.rs.gov.br/ambiente/doutrina/id376.htm> Acesso em: 20 maio. 2007. 12 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 31. 13 ANDRADE SILVA, Ana Cristina Monteiro de. O Poder Judiciário como legislador? Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero27/prodacad.pdf>. Acesso em: 01 mai. 2007. 14 MENDES, Gilmar Ferreira. Teoria da Legislação e Controle de Constitucionalidade: Algumas Notas. Revista Jurídica Virtual. Ano 01. v. 01, mai. 1999. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_01/teoria.htm>. Acesso em: 01 mai. 2007.
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Por sua vez, Nagib Slaibi Filho15 afirma que o STF, através da “Ação
Declaratória de Constitucionalidade”, possui poderes mais extensos que o próprio
Poder Legislativo, tendo em vista que o Poder Legislativo não consegue imunizar os
seus próprios atos do Controle de Constitucionalidade incidental ou concentrado,
mesmo as emendas constitucionais.
Um exemplo no qual o Poder Judiciário atuou como legislador positivo é a
decisão cautelar proferida na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 4, cujo relator
foi o Ministro Sidney Sanches, julgada em 11 de fevereiro de 1998, pois além de
imunizar o art. 1º da Lei 9.494/9716 do controle incidental de inconstitucionalidade, a
decisão suspendeu os efeitos das decisões anteriores que tivessem por pressuposto a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade do mesmo dispositivo legal.
Outrossim, percebe-se claramente uma função normativa do Judiciário
prevista no artigo 557 do Código de Processo Civil, quando se determina que o
relator negue seguimento a recurso manifestamente em confronto com súmula ou
com jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do STF, ou de outro Tribunal
Superior17.
Igualmente, a decisão proferida na Ação de Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental nº. 54, que versa sobre a interrupção da gestação de fetos
anencefálicos, por entenderem que, sendo permitido esse tipo de aborto - que não
tem previsão legal no Código Penal - o STF estaria agindo como legislador positivo.
Neste caso, o STF agiu como guardião dos princípios fundamentais, através da
15 SLAIBI FILHO, Nagib. Breve história do Controle de Constitucionalidade. Disponível em: http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo34.htm>. Acesso em: 01 mai. 2007. 16 Lei que disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública. 17 Esse efeito erga omnes, indeterminado e abstrato, é denominado por Slaibi de “pan-processual” por que “alcança outros processos que não aquele em que foi proferido o precedente” ou até mesmo de efeito normativo ou efeito legislativo (posto que alcança sujeitos indeterminados prevendo condutas hipotéticas), as decisões do Supremo Tribunal Federal, proclamando a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, estadual, distrital ou municipal, passaram a dispensar não só a comunicação ao Senado Federal, como exigido no art. 178 do seu Regimento Interno, como a própria resolução a que se refere o art. 52, X, da Constituição, dispositivo que, a partir daí, se tornou letra morta, como gostavam de dizer os antigos.” SLAIBI FILHO, Nagib. Breve história do Controle de Constitucionalidade. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br/artigos/artigo34.htm> Acesso em: 01 mai. 2007.
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interpretação da própria Constituição e de lei infra-constitucional (Código Penal) e,
conseqüentemente, autorizou um novo permissivo legal, mas não criou norma.
Questiona-se, contudo, se esta questão polêmica não deveria ter sido objeto de
consulta popular, oportunizando um debate público sobre o tratamento a ser dado à
matéria18.
Outro fator que deve ser apreciado quanto a vedação da atuação dos juízes
como legisladores positivos é que a própria Constituição não traz expressamente esse
impedimento, mas também não os autoriza expressamente a suprir omissões.
Sergio Fernando Moro19, faz parte minoria doutrinária que defende a atuação
do juiz como legislador positivo, sustentando que esta vedação não tem base racional,
não sendo decorrente de comando constitucional expresso e que, admitir esta
atuação, vai de encontro ao Princípio da Supremacia da Constituição e ao Princípio
da Efetividade deste decorrente.
Segundo o mesmo doutrinador20, já se reconhece a possibilidade de
suprimento da omissão inconstitucional, pelo Poder Judiciário, no controle incidental
de constitucionalidade. Assim, segundo o autor, não é racional que se espere ad
eternum que uma norma seja implementada pelo Poder Legislativo, se este se recusa a
fazê-lo. A respeito dos Direitos Fundamentais Sociais da educação e da saúde o autor
adverte:
Como as constituições não mais apenas garantem direitos já assegurados, mas também realizam promessas constitucionais de direitos – como a universalização da saúde e da educação, cuja implementação demanda atuação do poder público, resta evidente que a eficácia da jurisdição constitucional será comprometida caso seja atribuído ao juiz função meramente negativa.
Neste sentido, os Juízes não são mais a boca da lei, como defendia
Montesquieu, mas são os tradutores dos sentimentos que foram expressos tanto na
18 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 88. 19 MORO, Sergio Fernando. Por uma revisão da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, Ano 9, n.37,out-dez. 2001, p.104. 20 MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como Democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.238.
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Constituição como nos Pactos Internacionais. “É nesse sentido que Rawls descreve o
poder dos Tribunais e, em particular, dos Tribunais de Justiça Constitucional, como
um ‘fórum da razão pública’”21.
Em face do aqui exposto, questiona-se: - Quais são os limites da atuação dos
juizes como legisladores positivos? Ou ainda, o processo da normatização jurídica
não deveria se realizar sob as condições da política deliberativa? Em resposta a estas
indagações, sustenta-se que este limite encontra-se emoldurado dentro da “reserva da
consistência” e a “reservada do possível”, adiante explicitadas.
4 RESERVA DE CONSISTÊNCIA
Conforme Peter Häberle22, a expressão “reserva de consistência” foi utilizada por
Habermas, em Legitimationsproblema in Spätkapitalismusque, que refere que o processo de
interpretação é infinito e que o resultado de sua interpretação está submetido à reserva da
consistência, devendo ela, no caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer
justificativas diversas e variadas, ou ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas
racionais.
Rogério Gesta Leal, de acordo com a teoria habermasiana, refere que em
havendo um Estado Democrático de Direito, associado a uma sociedade democrática
de Direito, a legitimidade da Jurisdição vai estar fundamentada exatamente no
assecuramento das regras do jogo, resguardando a ação política da cidadania
compromissada com o universo normativo axiológico e deontonlógico vigente, sob
pena de usurpação autoritária e contingencial das vias que operam estas relações23.
21 RAWLS, John APUD QUEIROZ, Cristina, M.M. Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2002, p. 290. 22 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional em Crise: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997, p. 42. Häberle defende que a interpretação da Constituição não pode ser mais atributo de uma sociedade fechada, restrita aos juristas, mas que a interpretação deve ser realizada pela sociedade aberta e pluralista, composta pelos seguimentos públicos, mas também particulares, cidadãos, etc. 23 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 90.
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O conceito de “reserva de consistência” é resgatado, no Brasil, por Sergio
Fernando Moro24, que sustenta que a concretização judicial da Constituição está
sujeita ao limite da “reserva de consistência”. Em relação à interferência no Poder
Legislativo, salienta que no controle judicial de ato legislativo, cumprirá ao juiz
argumentar convincentemente o acerto de sua interpretação da Constituição e o
desacerto daquela que levou à edição do ato legislativo. Deste modo, em se tratando
de concretização judicial em face da inércia do Legislativo, caberá ao julgador
demonstrar que o ato judicial resulta de correta interpretação do texto constitucional,
sob pena de abuso de poder.
Muitas vezes, o termo “reserva de consistência” tem sido utilizado apenas
como sinônimo da necessidade de fundamentação da decisão judicial, a qual obriga
que os juízes expliquem as razões de sua decisão, isto é, o caminho percorrido para se
chegar a sentença. Conseqüentemente, para fundamentar sua decisão, não raras
vezes, o juiz terá que tratar de assuntos que fogem ao campo da ciência jurídica,
alçando vôos por outras ciências, como por exemplo, gestão pública, medicina,
pedagogia, engenharia, etc25.
Todavia, a observância da “reserva de consistência” por parte do Judiciário vai muito
mais além do que mero formalismo na fundamentação da decisão. Sua observância pressupõe
o resgate da figura do amicus curiae, para consubstanciar as decisões que exijam
conhecimentos que fogem da esfera jurídica, mas que são imprescindíveis para a
“consistência” da fundamentação da decisão dos juízes ao julgar de forma que interfira nas
atribuições de outro Poder, além de expandir o caráter democrático de tal decisão26.
Desde os primórdios do século XX, a figura do amicus curiae é adotada na Suprema
Corte norte-americana visando a proteção de direitos coletivos e difusos, tendo a função de
24 MORO, Sergio Fernando. Por uma revisão da teoria da aplicabilidade das normas constitucionais. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero10/artigo13.htm>. Acesso em: 06 mai. 2007. 25 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista os Tribunais, 2005, p.121. 26 SILVA, Luis Fernando Martins da. Amicus Curiae, direito, política e ação afirmativa. Disponível em: < http://www.achegas.net/numero/vinteequatro/l_fernando_24.htm#_edn4 > Acesso em: 14 mar. 2006.
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chamar a atenção dos julgadores para alguma matéria que poderia, de outra forma, escapar-lhe
ao conhecimento27.
No Brasil, a única legislação que faz menção expressa a figura do amicus curiae é a
Resolução 390/2004 do Conselho da Justiça Federal, que dispõe sobre o Regimento Interno da
Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais28.
Também a Lei 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal, resgata a figura do amicus curiae na participação processual, embora não
expressamente. Interessante, ainda frisar, outro instrumento de participação da sociedade,
através do amicus curiae, permitido pela Lei 9.868/99, que é a audiência pública, e que não
tem sido muito utilizada pelo STF29.
Defende-se, pois, que o instituto do amicus curiae poderia/deveria ser utilizado
a outros tipos de ações judiciais, bem como a realização de audiências públicas, de
forma a se atingir a proposta de Habermasiana de deliberação popular, com uma
interpretação pluralista da constituição.
Conforme Gestal Leal30, a reflexão de Habermas é no sentido de que o Tribunal
Constitucional deve proteger o sistema de direitos, de forma a possibilitar a
autonomia privada e pública dos cidadãos, examinando e deliberando sobre os
conteúdos e normas controvertidas especialmente no contexto dos pressupostos
comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático.
Sustenta-se, também que, diante de certas ações que irão gerar um impacto em
determinada comunidade, o juiz deve inteirar-se do contexto social e econômico daquela
localidade, sendo tais matérias submetidas ao debate nacional, através dos mecanismos
disponíveis para tanto, pois se tratam de assuntos de alta complexidade moral e ética, que
dizem respeito a toda a sociedade, o que exige a sua participação efetiva na tomada de
decisões. Observa-se, pois, que o modelo normativo de democracia defendido por Habermas,
27 Ibidem. 28 BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Resolução nº. 390, de 17 de setembro de 2004. Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/Resolucoes> . Acesso em: 06 mai. 2007. 29 BRASIL. Lei nº. 9.868 de 10 de maio de 1999. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 27 dez. 2005. 30 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 88-89.
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qual seja, o modelo deliberativo-procedimental, passa a ser pano de fundo para o debate
político-jurídico da “reserva de consistência”.
Contudo, além da “reserva de consistência”, a atuação jurisdicional é limitada
pela “reserva do possível”, tema analisado a seguir.
5 RESERVA DO POSSÍVEL
O conceito da “reserva do possível” surgiu na Alemanha, no caso numerus
clasusus, em que foi pleiteada na Corte Constitucional Federal vaga no ensino
superior público, em razão a insuficiência de vagas existentes, embasado na garantia
da Lei Federal Alemã de escolha da profissão31.
A reserva do possível diz respeito a disponibilidade orçamentária do Poder
Público, retirando de tal equação as quotas de responsabilidade que tanto o mercado
como a Sociedade possuem, defendendo-se que apenas o “mínimo existencial” poder
ser garantido, isto é, apenas os direitos sociais, econômicos e culturais considerados
mais relevantes, em face do caso concreto32.
Passou a se entender, assim, que os direitos sociais só poderiam ser exigidos se
houvesse recursos disponíveis: existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres
públicos. Todavia, Canotilho refere que “um direito social sob ‘reserva dos cofres
cheios’ equivale na prática, a nenhuma vinculação jurídica"33.
Conseqüentemente, diante do caso concreto, o Magistrado se depara com o
dilema: Direitos Fundamentais Sociais X “Reserva do possível”. Novamente, o
primeiro obstáculo a ser enfrentado, é o da violação ao Princípio da Separação de
Poderes, sob a alegação de que os Juízes estariam adentrando na alçada Executiva e
Legislativa, sob o argumento de que em matéria de recursos públicos, apenas o
31 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos fundamentais. 4.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 282-283. 32 ALEXY, Robert. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos. Revista Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro/RJ, vol. 34, 1998, p. 39. 33 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 149.
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legislador democraticamente legitimado possui competência para decidir sobre a
afetação destes recursos34.
O Ministro Celso de Mello, ao fundamentar a sua decisão na Ação de Descumprimento
de Preceito Fundamental n° 4535, sustenta que a cláusula da “reserva do possível” está
condicionada ao binômio: razoabilidade da pretensão versus disponibilidade financeira do
Estado, concluindo que ambas devem se fazer presentes, em situação de cumulativa
ocorrência, pois se ausente uma delas não será possível ao Estado a realização prática de tais
direitos36.
Desse modo, segundo Gesta Leal, há de se estabelecer um juízo de ponderação destes
bens, valores e interesses, para se chegar a alguma conclusão sobre as condições e
possibilidades de intervenção democrática da Jurisdição Constitucional e infraconstitucional
no âmbito das relações societais, dando prioridade às interpretações que favoreçam a
integração política e social e que possibilitem o reforço da unidade política que visem o
sistema como um todo. Há se revisar os limites da jurisdição constitucional, “não para excluir
sua dimensão protetiva e concretizadora dos direitos e garantias fundamentais”, mas para
propiciar formas de manifestação e participação da sociedade em temas que lhe interessam37.
Assim, diante escassez de recursos, o Poder Judiciário deve agir conforme o
principio da razoabilidade e da proporcionalidade quando se depara com a
violação/não satisfação dos Direitos Fundamentais Sociais por parte dos Poderes
Legislativo e Executivo.
6 CRÍTICAS À ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO COMO LEGISLADOR POSITIVO
Em face do tema polêmico, não poderíamos deixar de suscitar algumas
considerações acerca das críticas efetuadas pela Doutrina quanto à atuação do Poder
34 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, n. 10, jan. 2002. Disponível em: < www.direitopublico.com.br> Acesso em: 12 mai. 2007. 35 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental .n. 45. , julgada em 29 abr. 2004. Partido da Social Democracia Brasileira-PSDB e Presidente da República Federativa do Brasil. Relator: Ministro Celso de Melo. Disponível em: < http://www.stf.gov.br >. Acesso em: 08 maio. 2007. 36 Ibidem. 37 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 97
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Judiciário como Legislador Positivo. Neste sentido, importantes os questionamentos
acerca da legitimidade do Poder Judiciário argüidas por Clèmerson Merlin Clève38:
No que concerne à atividade do Judiciário, é importante verificar os limites impostos, também, pelo princípio da separação dos poderes. É preciso, ademais, superar o problema da legitimidade democrática do Poder Judiciário, ou seja, num Estado Democrático de Direito, com poderes divididos, até onde pode ir o Poder Judiciário enquanto instância garantidora dos direitos fundamentais?
Clève concebe o Judiciário como um poder contra-majoritário em defesa dos
direitos das minorias e apresenta os argumentos e contra-argumentos para a atuação
dos juízes como legisladores positivos:
Se é certo que há um consenso no que diz respeito à atuação dos juízes enquanto legislador negativo, o mesmo não ocorre quando se está a falar numa atuação análoga à do legislador positivo. Ou, eventualmente, do administrador. De outro viés, cumpre verificar se, do fato de o Judiciário não dispor de um meio de legitimação como os demais poderes (o mecanismo eleitoral para a investidura de seus membros), não se poderia deduzir que está impedido de atuar a partir de determinado limite. Poder-se-ia, eventualmente, afirmar, para afastar o argumento, que o Judiciário atua como uma espécie de delegado do Poder Constituinte para a defesa da Constituição e, especialmente, dos direitos fundamentais. O contra-argumento seria no sentido de que, no contexto do regime democrático, é a maioria (princípio majoritário) que governa.
Igualmente importantes questionamentos tecidos por Rogério Gesta Leal39
acerca da competência das instituições oficiais – Judiciário, Executivo e Legislativo - e
o papel que devem desempenhar no cenário brasileiro, diante de uma sociedade
altamente complexa e diferenciada em termos de condições materiais e subjetivas:
Numa Constituição que se pretende axiologicamente definida como Democrática, o plexo valorativo que contém autoriza por si só medidas e ações concretizadoras do modelo de sociedade que sinaliza por qualquer ator político? Ou ainda se mantém determinadas regras de competência e autoridade institucionais em face das atribuições normativas que o próprio texto Político confere a determinados agentes sociais? Tais regras devem ser interpretadas com que grau de independência e autonomia, ou em que medida podem ser violadas e por quem? Em que situações?
38 CLÈVE, Clemerson Mèrlin. Desafio da efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Disponível em: <http://ww bw.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 28 abr. 2007 39 LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 93.
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Segundo este autor, o Poder Judiciário tem assumido, nos últimos tempos,
comportamento e condutas cada vez mais amplas, judicializando temas e questões
que possuem, em tese natureza política e social atinentes também a outras esferas e
espaços de deliberação pública40.
De acordo com a teoria habermasiana, na perspectiva de uma sociedade
republicana e democrática, a idéia de uma instância privilegiada de dicção dos
standards e pautas deontológicas normativas, é tão arbitrária quanto a centralização
do Poder nas mãos de um parlamento ou Executivo Imperiais41.
Neste ponto, Gisele Cittadino42 questiona se o Poder Judiciário, para não violar
a deliberação pública de uma comunidade política que atua autonomamente
orientada pelos valores que compartilha, deve ou atuar como regente republicano da
cidadania ou abdicar de garantir direitos constitucionalmente assegurados? A autora,
citando Ingeborg Maus43, responde de forma negativa, sob o argumento de que:
[...] autorizar os tribunais, especialmente as cortes supremas, a atuar como profetas ou deuses do direito, consolidando aquilo que já é designado de “teologia constitucional” e imunizando a “atividade jurisprudencial perante a crítica à qual originariamente deveria estar sujeita (...), pois quando a justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social...
De acordo com o pensamento de Habermas44, os tribunais constitucionais,
devem proferir “decisões corretas” e não se envolver na tarefa de “criação do
direito”, a partir de valores preferencialmente aceitos. A interpretação constitucional
deve decidir “qual pretensão e qual conduta são corretas em um dado conflito e não
como equilibrar interesses ou relacionar valores”.
40 Ibidem, p. 53. 41 HABERMAS, Jürgen apud LEAL, Rogério Gesta. O Estado-Juiz na Democracia Contemporânea, p. 61. 42 CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judiciário e democracia. Disponível em: <publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n9_cittadino.pdf ->. Acesso em: 02 mai. 2007. 43 MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade. O papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Novos Estudos, CEBRAP, nº 58, novembro de 2000. 44 HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 1996, pp. 239-240.
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Segundo Habermas, a corte constitucional, em um Estado Democrático de
Direito, deve apenas entender a si mesma enquanto protetora de um processo de
criação democrático de direito e não como guardiã de uma suposta ordem
suprapositiva de valores substanciais:
A função da Corte é velar para que se respeitem os procedimentos democráticos para uma formação da opinião e da vontade políticas de tipo inclusivo, ou seja, em que todos possam intervir, sem assumir ela mesma o papel de legislador político.
Ainda, conforme Cittadino45, o processo de “judicialização da política” não
precisa invocar o domínio dos Tribunais, nem defender uma ação paternalista por
parte do Poder Judiciário, pois a própria Constituição de 1988 instituiu diversos
mecanismos processuais para dar eficácia aos seus princípios, sendo esta tarefa de
responsabilidade de uma cidadania juridicamente participativa que dependerá
também da atuação dos Tribunais, mas, principalmente do nível de pressão e
mobilização política que, sobre eles, os cidadãos fizerem.
Segundo defende Habermas, deve-se ter em mente a importância da
democracia representativa e a sua maturação política racional, que passa pela
questão de uma comunicação não-coatada dos cidadãos em geral, devendo-se
oportunizar o exercício da cidadania, que deve ser fazer ativa e co-responsável pelo
processo de gestão dos interesses comunitários.
7 CONCLUSÃO
Conforme exposto, pode-se concluir que o cidadão que necessita do mínimo
essencial para a sua sobrevivência, em virtude da omissão ou incompetência das
autoridades públicas, não pode ser feito prisioneiro da discricionariedade e de uma
visão arcaica do Princípio da Separação de Poderes. Assim, nos casos em que o
Estado se mantém inerte, omisso, o Poder Judiciário tem um papel a cumprir.
45 CITTADINO, Gisele. Poder Judiciário, ativismo judiciário e democracia. Disponível em: <publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n9_cittadino.pdf ->. Acesso em: 02 mai. 2007.
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Portanto, é necessária certa dose de ativismo judicial para a efetivação progressiva
dos direitos constitucionais.
Salienta-se, contudo, que não se pretende, neste estudo, propor atitudes
desmedidas ou abusivas por parte do Poder Judiciário para concretizar os Direitos
Fundamentais Sociais. Sustenta-se, outrossim, que o Judiciário não deve temer a
função de assegurar o cumprimento da Constituição, sendo necessário, contudo, a
observância dos conceitos da “reserva de consistência” e da “reserva do possível”, os
quais devem seguir juntos para atingir uma solução que não fira os ideais
democráticos da nossa Constituição. Assim, há que se ter em mente os limites da
atuação judicial nesta gama de direitos, pois a judicialização da política pode implicar
na inaceitável politização do Poder Judiciário.
O dogma da vedação da autuação do juiz como legislador positivo,
representado pelo entendimento jurisprudencial tradicional, não pode ser
considerado um óbice à força normativa da Constituição. Contudo, o Judiciário,
enquanto promovedor de medidas sociais compensatórias e mesmo satisfativas, não
pode ser tomado como fórmula substitutiva e emancipadora dos demais Poderes
instituídos.
Em síntese, a cidadania e sociedade não poderão se acostumar com a proteção
que o Poder Judiciário dispensa quando atua pró-ativamente na garantia dos Direitos
Fundamentais Sociais. Também se faz necessária a mobilização da sociedade para
que seus direitos sejam cumpridos, sob pena de se ter um Estado estático e
essencialmente paternalista. É preciso que seja recuperado o Estado Democrático
enquanto espaço de deliberação moral e ética da sociedade civil, pois acreditar
somente nos Poderes do Estado, significa retirar dos cidadãos a sua responsabilidade
enquanto “gestores” do Poder Público.
Neste ponto, conclui-se juntamente com Gesta Leal, que há de se estabelecer
um juízo de ponderação entre os bens, valores e interesses em jogo, para se chegar a
alguma conclusão acerca das condições e possibilidades de intervenção da jurisdição
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constitucional e infraconstitucional nas relações societais. É necessário oportunizar
meios para a realização destes direitos, os quais somente poderão ser encontrados
com a radicalização dos instrumentos da Democracia Popular, mais
especificadamente os instrumentos da Democracia Participativa.
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Enviado: 13/09/07
Aceito: 12/12/07
Publicado: 14/12/07