O Pianista Glenn Gould

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1 Glenn Gould 1. Inverno/verão Este, como vocês todos conhecem, é Glenn Gould, considerado o maior pianista do século XX e, segundo especialistas, o maior intérprete de Bach. Chova ou faça sol, a roupa é a mesma, desde pequeno até o final da vida: este boné, o sobretudo, galochas, botas, luvas. Com 40° negativos ou positivos, ele passou a vida desta maneira. Ele nunca teve nenhum relacionamento amoroso que se saiba, nunca se relacionou com ninguém; não casou, não teve filhos. Percebe-se que ele não está dando muita bola para a moça. 2. Satélites Em 1977 a NASA lançou duas naves espaciais, o Voyager I e II, com a finalidade de fazer contato com extraterrestres. No dia em que algum marciano conseguir interceptar a nave, ele provavelmente terá uma amostra do melhor que nós podemos produzir na Terra. É, uma dessas obras, uma dessas maravilhas, é a interpretação de Glenn Gould de “Um cravo bem temperado”. A previsão é que estas duas naves viagem pelo espaço por pelo menos um bilhão de anos. 3. Bebê com os pais no pediatra Aqui temos Glenn Gould bebê com a roupinha dele, os papais muito felizes porque o Pediatra dizia: “Ah! Este garoto vai ser ou médico ou pianista”. Na verdade, estes movimentos com os dedos eram estereotipias. Era uma criança extremamente quieta. Foi o que chamou a atenção dos pais e dos parentes. Era filho único, os pais quadragenários, a mãe teve 3 ou 4 abortos anteriores e um investimento muito grande foi feito no pequeno Glenn. 4. Criança ao piano Quando o Glenn Gould tinha três anos, descobriu-se que ele tinha a capacidade de ler música espontaneamente - ele tinha hiperlexia musical. Ele também tinha o ouvido absoluto, o que é extremamente raro. E estes aí são os melhores amigos de dele na Terra. O Nick, que é o cachorrinho dele. Temos também este canarinho simpático aí, que é o Mozart, e os quatro peixinhos dourados, que são o Bach, o Beethoven, o Haydn e o Chopin. Então, aí está o pequeno Glenn, que ocupava a maior parte do dia tocando piano. Ele aprendeu sozinho, foi autodidata, apesar da mãe ser professora de canto e de piano, e o pai violinista, e ele por acaso ser descendente de um grande compositor norueguês, Edvard Grieg. 5. Menino na escola Este é o nosso Glenn na escola: fantástico! A escola para ele era um verdadeiro martírio. Ele ficava encostado em algum lugar, escondido, horas, minutos e segundos, calculando quanto tempo faltava para o sinal de saída. Enquanto as outras crianças brincavam, se associavam; ele procurava se isolar. É... não tinha contato, não praticava esportes na escola, não queria saber de nenhuma atividade extracurricular. Mas ele era bom em Matemática, em História e em Inglês também.

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Glenn Gould

1. Inverno/verão Este, como vocês todos conhecem, é Glenn Gould, considerado o maior pianista do século XX e, segundo especialistas, o maior intérprete de Bach. Chova ou faça sol, a roupa é a mesma, desde pequeno até o final da vida: este boné, o sobretudo, galochas, botas, luvas. Com 40° negativos ou positivos, ele passou a vida desta maneira. Ele nunca teve nenhum relacionamento amoroso que se saiba, nunca se relacionou com ninguém; não casou, não teve filhos. Percebe-se que ele não está dando muita bola para a moça.

2. Satélites Em 1977 a NASA lançou duas naves espaciais, o Voyager I e II, com a finalidade de fazer contato com extraterrestres. No dia em que algum marciano conseguir interceptar a nave, ele provavelmente terá uma amostra do melhor que nós podemos produzir na Terra. É, uma dessas obras, uma dessas maravilhas, é a interpretação de Glenn Gould de “Um cravo bem temperado”. A previsão é que estas duas naves viagem pelo espaço por pelo menos um bilhão de anos.

3. Bebê com os pais no pediatra Aqui temos Glenn Gould bebê com a roupinha dele, os papais muito felizes porque o Pediatra dizia: “Ah! Este garoto vai ser ou médico ou pianista”. Na verdade, estes movimentos com os dedos eram estereotipias. Era uma criança extremamente quieta. Foi o que chamou a atenção dos pais e dos parentes. Era filho único, os pais quadragenários, a mãe teve 3 ou 4 abortos anteriores e um investimento muito grande foi feito no pequeno Glenn.

4. Criança ao piano Quando o Glenn Gould tinha três anos, descobriu-se que ele tinha a capacidade de ler música espontaneamente - ele tinha hiperlexia musical. Ele também tinha o ouvido absoluto, o que é extremamente raro. E estes aí são os melhores amigos de dele na Terra. O Nick, que é o cachorrinho dele. Temos também este canarinho simpático aí, que é o Mozart, e os quatro peixinhos dourados, que são o Bach, o Beethoven, o Haydn e o Chopin. Então, aí está o pequeno Glenn, que ocupava a maior parte do dia tocando piano. Ele aprendeu sozinho, foi autodidata, apesar da mãe ser professora de canto e de piano, e o pai violinista, e ele por acaso ser descendente de um grande compositor norueguês, Edvard Grieg.

5. Menino na escola Este é o nosso Glenn na escola: fantástico! A escola para ele era um verdadeiro martírio. Ele ficava encostado em algum lugar, escondido, horas, minutos e segundos, calculando quanto tempo faltava para o sinal de saída. Enquanto as outras crianças brincavam, se associavam; ele procurava se isolar. É... não tinha contato, não praticava esportes na escola, não queria saber de nenhuma atividade extracurricular. Mas ele era bom em Matemática, em História e em Inglês também.

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6. Três “momentos” O momento mais feliz era a hora que ele estava saindo da escola. Aí ele saía cantarolando e com estes movimentos que conhecemos como “flapping”. Os outros dois momentos de lazer importantes na vida dele eram os períodos que ele passava no Lago Simcoe, perto de Toronto, no Canadá, passeando com o melhor amigo dele, o Nick, ou sentado à beira do lago, fazendo continhas de multiplicação, divisão... Era o que realmente ele apreciava.

7. Folha de caderno Esta é a caligrafia de Glenn Gould. Como sabemos, um dos sinais mais comuns que o portador de Síndrome de Asperger apresenta é esta letra “linda”, “maravilhosa”, que ninguém entende.

8. Carregando um carrinho de medicamentos Ele se percebia doente, de certa forma, mas o diagnóstico de Síndrome de Asperger é algo que só entrou nos manuais psiquiátricos em 1993, e Glenn Gould faleceu em 82, aos 50 anos de idade. Ele procurava saber o que tinha. Por que se sentia tão diferente? E desde criança começou a se “autodiagnosticar” e a se automedicar. Praticamente todos os médicos de Toronto, de Nova Iorque, de São Francisco, o conheciam muito bem. E ele freqüentava vários médicos que prescreviam vários medicamentos ao mesmo tempo. Então houve uma época em que ele tomava de 10 a 125 comprimidos por dia. Tomava antidepressivos, barbitúricos, analgésicos... Enfim, os medicamentos disponíveis no mercado que ele conhecia.

9. Apresentação pública Ele odiava apresentações públicas, mas era o momento em que ele se fundia com a música, um momento que alcançava um estado de êxtase, se desligava completamente do público e se fundia, havia uma fusão “Glenn Gould-música”. Tinha uma maneira de interpretar muito estranha, ele tocava o seu piano gesticulando e cantarolando. Eram estereotipias e o público achava isto extremamente excêntrico, e achava também que ele fazia isto como uma jogada de marketing, o que não era verdade. Com 31 anos abandonou as apresentações públicas.

10. No estúdio de madrugada Abandonando as apresentações, ele passou a trabalhar só em estúdio. Mas o horário de trabalho dele era a partir da noite, atravessando a madrugada. Então aqui nós temos o engenheiro de som de pijama e ele, Glenn Gould, que era incansável. Ele trabalhava doze horas seguidas sem parar, até encontrar a nota perfeita, o tom perfeito, a execução perfeita. Ele devia ser, acho, parente do Drácula - antes do sol nascer corria para casa. Odiava as cores claras, o vermelho, o laranja, o amarelo. Provavelmente ele tinha algum transtorno sensorial também. Então, assim ele foi fazendo programas isolados do público. Fazia gravações para rádio, para televisão, filmes, mas sem público presente.

11. Glenn Gould e as vacas Aqui, um de seus hobbies. Ele dizia que gostava muito mais dos animais do que das pessoas. Este é um dos passeios que fazia lá nas proximidades do Lago Simcoe. De vez em quando, parava e ficava cantando e regendo as vacas, a 10 ou 15 quilômetros da casa dele.

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Isso era muito comum. O pai ia atrás dele e o encontrava feliz e contente, cantando para as vacas. As vacas pareciam satisfeitas também.

12. Monólogos Isto é o que se chama de “monólogo a dois ou a três”. Na verdade era uma conversa de uma via só. Ele passava 3, 4 horas conversando com as pessoas a respeito de música moderna, música atonal, dodecafonia... as pessoas ficavam “muito interessadas” com esta conversa. Ele gostava mesmo era de falar pelo telefone, mas sempre de madrugada. Ele podia ligar para os conhecidos, cantar uma música, contar alguma história a respeito do trabalho dele, e, evidentemente, o interlocutor enquanto isto continuava dormindo.

13. Dirigindo. Este é o Glenn Gould com um amigo no carro. Se você se lembrar do filme “Rain Man”, vai se lembrar de como é que o Raymond guiava, subindo nas calçadas, derrubando os hidrantes, atropelando as pessoas. E é uma característica que Hans Asperger destaca bastante na sua síndrome: o problema de motricidade, orientação. Enfim, Glenn Gould era a pessoa mais conhecida da polícia de Toronto. Devia ter umas 150 a 200 multas. Muito famoso, a polícia “dava um desconto” pra ele.

14. uma ilha e os animais E finalmente, esta era uma fantasia infantil: ele pretendia um dia se isolar de todos e de tudo, numa ilha que ele queria comprar, chamada “Manitoulin” [nome francês, fala-se manitulãn], que fica no norte do Canadá, e levar todos os seus amigos, inclusive um gambá, que ele tentou na infância adestrar. Não sei se ele foi feliz, mas o gambá está aí, os amigos também. Ele queria uma comunidade para animais abandonados. Desta forma planejava encerrar seus dias. Porém, aos 50 anos, ele faleceu de um AVC (acidente vascular cerebral). Foi feita a necropsia e a única coisa que acharam foi um fígado gorduroso. Isto porque ele tinha uma dieta “muito saudável”: passou a vida comendo omelete, tomando leite e comendo biscoitos de araruta - essa era a dieta do Glenn Gould. O Glenn Gould é respeitado no mundo inteiro, até hoje. Antes de abandonar os palcos apresentou-se em 263 concertos ao vivo, de 1945 a 1964. Gravou 155 programas em rádio e televisão, e a discografia dele tem 181 obras gravadas. A vida dele é extremamente complexa, mas tivemos que condensá-la nesta apresentação. A mensagem que quero deixar é que pessoas extremamente inteligentes, extremamente capazes, podem ser autistas e elas não têm sido diagnosticadas – se nem aqueles com autismo de baixo funcionamento estão sendo propriamente diagnosticados, que diremos dos indivíduos com Síndrome de Asperger! Glenn Gould é uma exceção; não é comum existirem pessoas tão brilhantes. Mas elas existem. Não temos notícia no Brasil de pessoa tão brilhante, mas é um alerta: nós precisamos começar a fazer diagnóstico: quanto mais cedo melhor.