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1 O nacional-popular e o marxismo: apontamentos teóricos acerca da arte, intelectuais e povo no Brasil dos anos 1960 Larissa Costard* 1 Nos primeiros anos da década de 1960, viu-se no campo das artes no Brasil uma divisão entre a arte de vanguarda e a arte nacional-popular, ainda que artistas de ambos os grupos estivessem envolvidos, cada qual a sua moda, com projetos de transformação social da realidade brasileira. Os temas e bandeiras, métodos de execução das obras e o que consideravam o papel social do artista transformavam-se profundamente. O artigo aqui apresentado, parte de um levantamento teórico inicial que comporá a tese de doutoramento, pretende começar a iluminar estas mudanças, como forma de compreender um deslocamento, especialmente quando comparados à geração de 1950, no paradigma do artista de esquerda, na compreensão de arte, em quais foram as implicações e transformações impressas na atividade intelectual e até que ponto suas demandas políticas foram alteradas, para mais ou menos à esquerda, mais ou menos revolucionárias. Portanto, o artigo aqui desenvolvido tem como objetivo central iniciar o estudo das temáticas relacionadas aos grupos artísticos e críticos que defendiam o modelo de uma arte nacional-popular. Para tal, noções a respeito do que é o sentido de nacional- popular e do que é uma perspectiva orgânica de vanguarda são fundamentais, como forma de articular um arsenal teórico que permita fazer a crítica aos documentos e à pouca produção de pesquisas disponíveis sobre o tema em questão. Nacional-popular, intelectuais e vanguarda na perspectiva gramsciana. * Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Badaró de Mattos, com financiamento do CNPq. Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ)

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O nacional-popular e o marxismo: apontamentos teóricos

acerca da arte, intelectuais e povo no Brasil dos anos 1960

Larissa Costard*1

Nos primeiros anos da década de 1960, viu-se no campo das artes no Brasil uma

divisão entre a arte de vanguarda e a arte nacional-popular, ainda que artistas de ambos

os grupos estivessem envolvidos, cada qual a sua moda, com projetos de transformação

social da realidade brasileira. Os temas e bandeiras, métodos de execução das obras e o

que consideravam o papel social do artista transformavam-se profundamente. O artigo

aqui apresentado, parte de um levantamento teórico inicial que comporá a tese de

doutoramento, pretende começar a iluminar estas mudanças, como forma de

compreender um deslocamento, especialmente quando comparados à geração de 1950,

no paradigma do artista de esquerda, na compreensão de arte, em quais foram as

implicações e transformações impressas na atividade intelectual e até que ponto suas

demandas políticas foram alteradas, para mais ou menos à esquerda, mais ou menos

revolucionárias.

Portanto, o artigo aqui desenvolvido tem como objetivo central iniciar o estudo

das temáticas relacionadas aos grupos artísticos e críticos que defendiam o modelo de

uma arte nacional-popular. Para tal, noções a respeito do que é o sentido de nacional-

popular e do que é uma perspectiva orgânica de vanguarda são fundamentais, como

forma de articular um arsenal teórico que permita fazer a crítica aos documentos e à

pouca produção de pesquisas disponíveis sobre o tema em questão.

Nacional-popular, intelectuais e vanguarda na perspectiva gramsciana.

*Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Badaró de Mattos, com financiamento do CNPq. Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ)

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Antonio Gramsci, em seus escritos no cárcere, buscou dar aos termos nacional e

popular sentidos diversos aos que encontravam na ideologia fascista que o marxista

italiano buscava combater. Para fazer a críticaao uso na noção de nacional-popular no

Brasil da década de 1960 é preciso compreender a proposição gramsciana, uma

perspectiva de esquerda para a interpretação do tema.

Para começar a discussão conceitual, é importante pontuar o contexto no qual

Gramsci desenvolveu suas reflexões sobre o tema, como forma de compreender a

construção de um “conceito” de nacional-popular como tentativa de contra-hegemonia.

Isto porque, um “conceito” de nacional-popular não é claramente esboçado pelo

intelectual em seus escritos – como é mais claramente, por exemplo, o de intelectual –,

mas pode ser inferido da forma como o problema é colocado no caso italiano. Gramsci

desenvolveu o debate a partir da crítica feita pelos periódicos italianos a respeito dos

temas relacionados à arte e literatura popular e seu desenvolvimento “nacional” na Itália

e sua relação com a literatura divulgada entre as classes populares.

Entre as primeiras questões colocadas por Gramsci para o debate com os críticos

da época estava o fato das classes populares não terem acesso à chamada “literatura

artística” e a inexistência de uma literatura popular italiana, razão pela qual os jornais

seriam obrigados a publicar obras de outros países, em especial os folhetins. De acordo

com a avaliação gramsciana, o afastamento entre “escritores” e “povo” seria a principal

causa da inexistência de uma literatura popular artística, ou mesmo de uma literatura

popular, ou ainda do conhecimento por parte do povo da literatura artística (levando-se

em conta que na Itália, de acordo com o autor, não haveria uma literatura que reunisse

as características de grande valor artístico e que fosse ao mesmo tempo popular).

Gramsci chega a afirmar que

“os sentimentos populares não são vividos como próprios pelos escritores,

nem os escritores desempenham uma função ‘educadora nacional’, isto é, não

se colocaram e não se colocam o problema de elaborar os sentimentos

populares após tê-los revivido e deles se apropriado” (GRAMSCI, 1968:

104).

Acrescentando elementos ao debate, Gramsci chama atenção ainda para o fato

de que, os organismos difusores da cultura, em especial os jornais que publicavam os

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folhetins, são entidades financeiras, que buscam publicar em suas páginas aquilo que

mais venda propiciasse. Neste momento, cabe colocar o fato de que Gramsci pontua que

as escolhas que levam os jornais à publicação e os motivos que levam os leitores a

comprar determinados jornais são construídos socialmente, e que tais determinações

também devem ser levadas em consideração quando se fala da formação e divulgação

de uma cultura nacional popular. 2 Mas isto não responde (ao contrário, vem a

complicar mais) às questões iniciais: considerando o fato de que a literatura popular é

rentável e por isso publicada nos jornais (tendo em vista os folhetins de outros locais e

épocas contidos nos jornais italianos), podemos considerar que existia interesse do povo

pela literatura, inclusive se ela fosse artística – Gramsci chega a afirmar que “o povo é

conteudista, mas se este conteúdo for expresso por grandes artistas estes são os

preferidos” (GRAMSCI, 1968: 124). Por que então, não existiria uma literatura

nacional-popular na Itália? A resposta dada por Gramsci teve como argumentação

central o fato de que em seu país os intelectuais não desempenhavam a função de

intelectuais orgânicos.

Para entender a concepção gramsciana de intelectual é preciso antes observar sua

concepção de Estado: de acordo com Gramsci, o Estado é composto por duas esferas, a

sociedade política e a sociedade civil. Na sociedade política estaria a esfera do comando

jurídico e do uso da força, o que se identifica como o “Estado” (restrito) em outras

interpretações. Na sociedade civil se localizam os organismos designados como

“privados”, que corresponde ao plano da construção da hegemonia, a função

organizativa. Somadas, estas duas esferas compõem a concepção gramsciana de Estado,

o Estado ampliado. A sustentabilidade de determinada estrutura social se daria no par

2 Um exemplo destas determinações sociais sobre a produção artística claro no texto sobre a literatura popular é o que Gramsci usa para justificar o êxito da literatura policial. Tal justificaçãoo autor localiza na psicologia, na necessidade de aventura para sobrepor à taylorização da vida. Isto já era consenso entre os críticos, mas Gramsci acrescentou ainda que este sucesso se deveu em grande parte ao fato de que naquele momento, entre os setores intelectualizados, também o taylorismo queria reger o processo de trabalho.A racionalização coercitiva da vida teria chegado à classe média e aos intelectuais, por isso o maior número de produção dentro do tema, que ia além da procura por parte dos setores populares. Além disso, Gramsci coloca um argumento interessante, de que a utopia, a busca por evadir dos limites da organização existente, não seriam um fenômeno puramente mecânico, revelando o desejo de educar-se, “de conhecer um modo de vida que se considera como superior ao que se tem, o desejo de elevar a própria personalidade através da proposição de modelos ideais, o desejo de reconhecer mais o mundo e os homens do que é possível em certas condições de vida, o esnobismo...”. Idem, p. 123. Este tema da educação popular será retomado mais adiante.

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coerção-consenso. Neste ponto, localizamos o conceito de intelectual em Gramsci e sua

importância social. Entendendo hegemonia como a direção moral e política de uma

classe sobre as demais, o consenso de toda a sociedade em tono do projeto de uma

classe, os intelectuais são tidos como os “arquitetos do consenso” em torno do qual a

hegemonia ampara a estrutura social, porque são aqueles que exercem a função social3

de elaboração e organização do projeto de classe. Estes intelectuais são os chamados

intelectuais orgânicos, que estão vinculados a uma proposta de classe, sistematizando e

dando sentido ao senso comum das classes dominadas. 4 O partido, considerado como

intelectual coletivo, é o grande intelectual das classes,5 organismo de construção de

hegemonia, seria o encarregado da reforma moral que promoveria a organização dos

interesses de determinada classe (GRAMSCI, 2000). 6

Para compreender melhor a noção da atuação intelectual orgânico e de partido

em Gramsci, é preciso ter em mente ainda o que Gramsci considera as tarefas de uma

vanguarda e a filosofia da práxis. Considerando que todos os homens são filósofos, pois

em suas atividades cotidianas investem linguagem, senso comum – ou bom senso – ou

religião, Gramsci afirma que todos os homens carregam em si visões de mundo

desagregadas, uma concepção própria de mundo que se manifesta na ação. A filosofia

da práxis deve atuar de maneira a ser a crítica de uma visão de mundo da qual os

homens participam de maneira “imposta” pela hegemonia, elaborando uma visão

própria, crítica e consciente. Esta tarefa da filosofia é a da superação do senso comum –

conjunto de concepções e moral desagregada acumulada dos resquícios de filosofias

precedentes – através da crítica, contrapondo-se a ele com o bom senso – a direção

consciente da ação através da superação das paixões, devendo ser desenvolvido para ser

transformado em algo unitário e consciente. À filosofia crítica, que produz vontade e

3 Cabe recordar que em Gramsci todo homem desenvolve alguma atividade intelectual, mas só são reconhecidos como tais aqueles que exercem a função social de intelectuais. 4 Estes intelectuais também podem exercer a função de construção de contra-hegemonia, na medida em que estejam vinculados aos projetos da classe dominada. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Os

Intelectuais. O Princípio Educativo. O Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 5 Partido em Gramsci não possui o sentido restrito de cunho eleitoral. É considerado o momento no qual se superam os interesses econômico-corporativos e se elaboram propostas de cunho nacional. Assim, os aparelhos de construção de hegemonia, de organização da vontade coletiva, são considerados partidos na perspectiva de Gramsci. 6Gramsci distingue os momentos de formação do partido, sendo o último a passagem do momento econômico-corporativo para o ético-político, de criação de uma cultura comum, sendo o ponto de partida para a filosofia da práxis.

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ação, se coloca a tarefa de construir esta unidade ideológica, sem a separação entre os

estratos intelectuais e os “homens comuns” (que não exercem a função de intelectuais).

Esta unidade cultural e ideológica, segundo Gramsci, só pode ocorrer na mesma

medida em que ocorre a unidade entre teoria e prática, em que os intelectuais estejam

organicamente ligados à causa daquela massa, organizando a vontade coletiva que essas

massas colocam em suas atividades, constituindo assim um “bloco cultural e social”.

Deste modo, um movimento só é filosófico na medida em que elabora um pensamento

superior ao senso comum, coerente e em contato com as questões objetivas que a

realidade coloca, isto é, que se propõe a responder questões colocadas por seu tempo

histórico. Ou seja, a relação entre a filosofia da práxis e o senso comum é assegurada

pela política, e não por meras escolhas individuais. E, diferentemente das filosofias

imanentistas e religiosas, a filosofia da práxis não deve buscar manter os “simples” no

senso comum, mas sim aproximá-los da filosofia crítica, forjando um bloco intelectual e

moral que torne possível o progresso intelectual das massas.

Esta elaboração de uma concepção crítica de si mesmo e de seu estar no mundo

é a tarefa imprescindível para a relação entre os filósofos e as massas. O ‘homem ativo

de massa’ atua de maneira prática no mundo, e produz conhecimento na medida em que

o transforma, ainda que não tenha clara consciência teórica de sua ação. Por isso, sua

consciência prática – ligada à ação – e sua consciência teórica – sustentada no discurso

herdado e hegemônico no senso comum – podem ser, e geralmente são, contraditórias.

Para compreender o papel da vanguarda em Gramsci, portanto, é preciso ter em

mente a importância fundamental da dialética entre pensamento e ação, levando em

conta que é impossível separar as duas esferas. Aí está mais um elemento de grande

originalidade de Gramsci: a teoria não é mero acessório, bem como deve ser

desenvolvida por aqueles que têm a consciência prática da ação no mundo. Logo, a

vanguarda não é composta por intelectuais apartados da classe, que a interpretam, na

tradicional relação vanguarda-base comum a algumas correntes do marxismo. A

autoconsciência crítica significa a elaboração de uma camada de intelectuais, uma vez

que as massas não se tornam independentes sem organização. Os intelectuais surgem no

seio da própria classe, organizando-a, expandindo-a, e são o aspecto de ligação entre

teoria e prática, o processo de criação e o desenvolvimento das camadas intelectuais

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estão ligado, historicamente, à dialética entre teoria e prática, e na medida em que a

massa se expande criticamente reelabora e complexifica suas categorias intelectuais. Os

partidos seriam organismos privilegiados de vinculação entre teoria e prática,

elaborando intelectuais que promovem a unidade teórico-prática no processo histórico

real. Nestes termos Gramsci coloca o papel da vanguarda da filosofia da práxis,

compreendendo-se assim, a dimensão e o papel dos intelectuais. (GRAMSCI, sem data)

Retomando as questões colocadas por Gramsci sobre o nacional-popular na

Itália, fica mais claro perceber que afastados do povo-nação, os intelectuais italianos

eram adeptos de uma tradição artística e postura intelectual de casta, de modo que na

Itália a literatura nacional era a literatura “livresca”, de intelectuais tradicionais (no

sentido gramsciano do termo), pautada pelas regras e formalismos da arte. Na Itália,

portanto, o nacional foi separado do elemento popular. Esta literatura “nacional” italiana

era considerada a literatura artística. Logo, a literatura artística não era popular porque

os intelectuais italianos não cumpriam a função de intelectuais orgânicos, não

desenvolviam o papel de organizar a classe e sua concepção de mundo. Ainda que

algum, fugindo à regra, tivesse saído das classes populares, não mantinha com elas

identificação em sua produção. Assim, a falta de identidade entre povo e a literatura

artística não era produto de uma falta de interesse por parte do primeiro, haja visto o

fato de que escritores estrangeiros traduzidos apresentavam boa vendagem na Itália, mas

sim do fato de que o intelectual local estava distante do povo-nação.

Por conseguinte, podemos afirmar que a produção de uma literatura nacional-

popular dependia de que os intelectuais, agindo como vanguarda – também no sentido

gramsciano –, cumprissem o papel de intelectuais orgânicos, expressando em sua arte

projetos e aspirações da classe subalterna, e fossem produzidos pela própria classe.

A construção da noção de nacional-popular na obra de Gramsci deve ser

entendida como uma tentativa de alcançar uma compreensão do termo oposta à dada

pela hegemonia burguesa-fascista de então. De acordo com Marilena Chauí, se para os

intelectuais italianos o passado somente existia para propaganda, Gramsci visou resgatar

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o sentido de nacional no passado como um patrimônio das classes populares. Portanto, o

popular em seu texto significaria

“a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis

e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincidem. Essa

transfiguração pode ser realizada tanto por intelectuais que se identificam

com o povo quanto por aqueles que saem do próprio povo” (CHAUÍ,

1963:17).

Cabe, neste ponto, reafirmar que em Gramsci, a ideia de nacional-popular não é

a única via de contra-hegemonia, mas sim, uma forma histórica particular, uma tentativa

de resposta revolucionária à contra-revolução fascista, e ainda contra a perspectiva

liberal de um nacional-popular mediado pelo Estado, que rompe com a fragmentação

dos indivíduos e ao homogeneizar identidades antagônicas realiza o todo.

O nacional-popular na arte brasileira dos anos 1960.

Os Centros Populares de Cultura (CPC) foram criados em 1961, tendo a frente

intelectuais e artistas, principalmente o nome de Oduvaldo Vianna Filho e os estudantes

da UNE, com o objetivo de produzirem uma arte voltada para os temas necessários à

transformação social. Em 1962, o CPC ganhou seu primeiro texto de peso, buscando

amarrar as concepções de arte e de atuação dos artistas vinculados a esta proposta. Este

texto foi o Anteprojeto de Manifesto do CPC.

O Anteprojeto de Manifesto do CPCfoi escrito por Carlos Estevam Martins em

1962, e em sua primeira publicação era um documento de cerca de trinta páginas,

composto por sete partes, nas quais temas distintos são abordados.Tendo em vista os

objetivos deste artigo, o foco estará especialmente na questão do papel do intelectual e

da arte, o confronto da arte revolucionária ou nacional-popular com a arte produzida

pelas vanguardas artísticas, a ideia de povo. As críticas serão feitas à luz da teoria

marxista, em especial os conceitos apresentados na primeira parte deste trabalho.

Na primeira parte do Anteprojeto de Manifesto, Carlos Estevam cuida de

reafirmar a perspectiva marxista de cultura, tecendo considerações sobre a atividade do

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artista que se vê consciente de que sua atividade possui condicionantes, determinantes

sociais. A perspectiva é, no entanto, de um marxismo mais ortodoxo, tal como era

corrente no período. Afirma, com base na metáfora base-superestrutura,que a formação

do CPC não tem motivações estéticas, mas sim políticas, e que por isso, os artistas do

CPC chegam em suas concepções estéticas não somente com base em questões

artísticas, mas em decorrência da importância de outras “regiões da realidade”.

Assim sendo, o primeiro embate que travam no Anteprojeto de Manifesto é

contra o personagem do “artista alienado”, aquele que não consciente das determinações

sofridas por sua arte, se crê no reino da liberdade de criação. O documento afirma ainda

que este artista não declararia explicitamente sua vinculação de classe – que se não é a

favor da revolucionária popular seria burguesa –,mas que esta transparecia no teor de

suas obras. Assim, ao verdadeiro artista a primeira decisão, a mais importante seria a

decisão de atuar conscientemente na construção do processo social ou “transformar-se

na matéria passiva e amorfa sobre a qual se apoia este mesmo processo para avançar.

Ou declarar-se um sujeito, um centro ativo de deliberação e execução, ou não passar de

um objeto, de um ponto morto que padece sem conhecer, decide sem escolher, e é

determinado sem determinar”. (MARTINS, 1963: 80)

Para estes artistas alienados, portanto, as questões da arte apareceriam apenas

com reflexo do próprio campo artístico, sem nenhuma relação com outros campos da

vida social. Este artista “despolitizado” encararia a arte como um conjunto de

proposições formais, o que o manifesto chama de “romântico alheamentodo artista”. O

texto afirma então a urgência de que o artista percebesse que a superestrutura na qual se

inseria sua arte está sempre em conexão com a estrutura econômica da sociedade. A

partir de então, marca-se a diferença: o artista do CPC compreendia claramente que toda

manifestação cultural e artística só pode ser pensada em relação com a base material.

Era esta consciência de que não existe a liberdade plena de criação que dava a própria

liberdade para o artista do CPC, que a maioria dos artistas brasileirosnão possuiria,

segundo palavras do próprio manifesto. Afirmam os artistas do CPC:

“nós a conquistamos ao compreender que nosso pensamento e nossa ação se

inserem num contexto social dominado por leis objetivas. É pelo

conhecimento das relações reais que articulam os fenômenos uns aos outros

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que se afasta o perigo da falsa consciência da liberdade artística, porque

somente tal conhecimento é capaz de possibilitar a ação conforme as leis

científicas, ou seja, a ação que é essencialmente livre porque é eficaz no

mundo da objetividade e nunca é esmagada e anulada pelas leis, visto que

nunca se insurge contra elas” (MARTINS, 1963: 81).

Sobre os Cadernos do Povo Brasileiro Marilena Chauí faz uma interessante

observação, que pode se aplicar à atuação do CPC:

“O jogo entre alienação (popular) e racionalidade (vanguarda) ou entre a falsa

consciência (do povo) e o conhecimento científico (da vanguarda) se realiza

num campo de Aufklärung, no qual o avanço das luzes no mundo, isto é, o

progresso, depende da ação pedagógica de quem já as possui. Postulada a

alienação popular, está postulada também a conscientização vanguardista,

sem que, no entanto, os autores se deem ao trabalho de explicitar a

necessidade dessa relação que lhes parece óbvia e que, na realidade, foi

responsável pela representação do ‘povo’.” (CHAUÍ, 1983: 83)

Dotados da “consciência verdadeira”, portanto, estariam os artistas e intelectuais

do CPC. Se acrescentarmos ao lado do povo no trecho de Marilena Chauí o artista

alienado, a quem se dirige o manifesto (os cadernos se dirigem somente ao povo) o

texto faz total sentido para uma análise dos CPC’s. Não convém entrar profundamente

na polêmica da “falsa consciência”, mas cabe apontar que, numa perspectiva dialética,

baseada em Thompson e Gramsci, é preciso levar em consideração inúmeros fatores,

tais como a experiência de classe ou a construção de hegemonia, que contribuem para

formar tanto a consciência do “povo” quando a do “artista alienado”. Supor, então, que

uma arte pode ser feita de acordo com leis objetivas, tendo a História como seu único

tribunal, é se querer senhor do conhecimento e consciência verdadeira.Deste modo, não

poderia ser outra a postura da vanguarda do CPC, que não a do tom professoral, de

quem ensina a crítica, e não a criticar. Já que neles não falam os autores, mas as leis da

história, é uma pedagogia da persuasão algo impositiva. A conscientização do povo-

nação passa, portanto, por aderir aos pressupostos da consciência da vanguarda, a

“legítima representante dos interesses do povo e da nação”, a parte consciente e ativa do

povo. (CHAUÍ, 1983)

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Na segunda parte, intitulada “Funcionários da servidão”, o manifesto procura, a

partir da reafirmação da sociedade dividida em classes antagônicas, demonstrar que o

processo de dominação de uma classe pela outra é completado pelas instâncias que

chama de “superestruturais”, entre elas as ideias, sentimentos, moral, vontade e

sensibilidade, que são construídas também a partir da cultura e da arte. Assim,

validando sua militância, os artistas do CPC consideram importante o uso da arte como

forma de garantir o status quo ou alterá-lo.

A partir disto, a validade da atuação social dos artistas estaria dada, ainda que

estes pudessem fazer a opção por garantir o status quo. Nesta perspectiva, alguns pontos

do manifesto se aproximam da concepção de intelectual gramsciana. No interior do

Anteprojeto de Manifesto,o intelectual consciente (que acima citamos, de acordo com os

moldes do CPC) que optou por uma arte política, agiria como intelectual orgânico, ao

passo que o artista alienado, apareceria mais próximo de um intelectual tradicional. Isto

porque, de acordo com o texto do CPC da UNE, o artista que não era o revolucionário

do CPC se via acima do jogo das classes sociais, se sentindo superiores inclusive à

classe que eles mesmos alimentavam – ainda que em sua autorepresentação se

colocassem como “neutros”. Esta fantasia, de acordo com o argumento do manifesto,

viria do fato de que estes artistas e intelectuais eram os organizadores da própria classe

dominante, e lhes competia dizer “qual é o ser do dominador”. Neste momento cabem

duas observações.

A primeira é a de que, conforme acima dito, esta ideia do intelectual alienado se

aproxima da noção do intelectual tradicional, ainda que não seja exatamente a ideia de

Gramsci. Em Gramsci, o intelectual tradicional viria do resquício de formações sociais

anteriores que ainda sobreviviam, o que não necessariamente pode ser aplicado ao caso.

Mas quando se observa a atuação destes intelectuais em Gramsci há alguma semelhança

com o que propõe o manifesto para aqueles artistas alienados – que eram os que se

dedicavam a “arte de vanguarda” (não a vanguarda de Gramsci, é imprescindível ter em

mente). Percebem-se fora das classes sociais, ainda que atuassem, como qualquer

homem, de acordo com algum projeto social, do qual não parecem ser conscientes.

Interessante é que no manifesto há os artistas não conscientes e os revolucionários, mas

aqueles que atuam conscientemente no projeto burguês não são mencionados. Ao que

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parece no manifesto, os artistas são absolvidos pela alienação de qualquer eventual

adesão ao projeto burguês, sob argumentação de algo que parece uma adesão

inconsciente.

A segunda observação a ser feita, tema que será desenvolvido posteriormente na

tese, é que ao longo do manifesto, o artista de vanguarda (vanguardas artísticas) é tido

como sinônimo de artista alienado, ou do intelectual tradicional. É o artista que por

“incompetência ideológica não foi capaz de compreender sua obra” (MARTINS, 1963:

84). Cabe lembrar que neste período, os artistas do neoconcretismo, considerados o

“topo” da experimentação artística no Brasil, estavam engajados nos projetos de

transformação social à esquerda, ainda que não fossem filiados ao PCB ou ao CPC.

Portanto, impressionantemente, no Anteprojeto de Manifesto, o inimigo a ser combatido

não é o intelectual que aderiu à causa burguesa, mas sim o artista que alienado (como se

todo artista fosse inerentemente revolucionário, mas alguns estavam “vendados”), que é

este mesmo intelectual das vanguardas artísticas.

O manifesto considera, entretanto, que o bloco da ideologia dominante não seria

completamente fechado, e que havia espaço para exceções. Assim, ainda que os

aparelhos de difusão de hegemonia estivessem nas mãos da classe dominante, a própria

existência do artista de esquerda seria uma prova de que era possível reexaminar as

posições de alienação e tornar-se um artista revolucionário.

“A existência do artista de esquerda dentro da sociedade de classes é possível

pela simples razão de que nenhuma formação socioeconômica pode ser

inteiriça e isenta das contradições pelas quais coexistem sempre duas

sociedades dentro da mesma sociedade: a velha em fase de declínio e

extinção e a nova em fase de surgimento e expansão. Em nosso país, as

contradições cada vez mais agudas entre as forças produtivas em avanço e as

relações de produção em atraso (...) a nação despertando para a conquista de

seu futuro histórico e o imperialismo desejando para si o império da história,

são contradições que não podem deixar de se refletir em cada um dos

aspectos da vida nacional.” (MARTINS, 1963: 84)

Aí, entramos em outra questão comum aos intelectuais marxistas do período, a

ideia de que a Revolução brasileira estava em processo de acontecer, a do “fantasma da

Revolução brasileira”, como nomeia Marcelo Ridenti; e a identificação do imperialismo

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como principal inimigo a ser combatido pela nação.O contexto do governo João Goulart

foi um período de grande avanço das ideias de esquerda, entre os intelectuais

principalmente, e de grande mobilização popular. Este era o momento que Roberto

Schwarz falou em um país “irreconhecivelmente inteligente” e em “hegemonia cultural

de esquerda” (SCHWARZ, 2009) 7, porque na avaliação dos intelectuais, artistas e

militantes, a Revolução social no Brasil estava cada vez mais próxima e certa. Neste

contexto, a presença ativa do povo na política era o “novo”, era o futuro certo. Por isso,

não bastava o inconformismo 8 de rechaçar a ordem vigente sem nada fazer, era preciso

estar ao lado do povo, ser um intelectual revolucionário.

Considerando que o momento de mobilização das massas estava bastante

avançado, com uma proliferação de associações, diretórios estudantis, sindicatos e

outras entidades de organização da classe, o manifesto considera que o povo estaria em

condições de exigir as necessidades primárias (relativas à assistência médica, segurança,

sanitária, e etc.), podendo passar a um nível superior, de exigências das necessidades

culturais. O CPC seria uma arma de novo tipo para o combate. Considerando que o

povo já estaria organizado para reivindicar a subsist~encia, caberia a próxima iniciativa:

a luta por sua consciência e valores espirituais. O CPC seria o fruto desta iniciativa, da

própria “combatividade criadora do povo” (MARTINS, 1963: 87)

A proposta parecia, portanto, bastante razoável. O CPC, organismo criado pelas

próprias entidades de classe, deveria cumprir o papel de elevar o nível cultural das

massas. No entanto, o desenrolar da argumentação do documento e a própria

constituição do CPC e atuação de seus artistas deixaram falhas com relação a esta

proposta.

Neste ponto, entra o momento crucial do Anteprojeto de Manifesto, a terceira

parte, onde se coloca que “os membros do CPC optaram por Ser povo, por ser parte

integrante do povo, destacamentos de seu exército no front cultural.” (MARTINS, 1963:

87)

7Cabe frisar, fazendo justiça ao autor, que Schwarz fala em uma hegemonia “qualificada”, a saber, uma hegemonia das ideias de esquerda entre os setores intelectuais, um predomínio do linguajar e dos termos da esquerda na sociedade. 8 O manifesto classifica em três tipos os intelectuais brasileiros: os conformistas, os inconformistas e os revolucionários.

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A ideia de povo, no entanto, faz nebulosa a afirmação. Começando por uma

flexibilização na noção de classe, o manifesto afirma que o artista “se faz” povo, por

isso existia uma identificação na comunicação entre este e o público, já que o artista

faria parte desta classe social “não apenas pela posição que ocupa no processo da

produção, mas também pelo fato de que em sua consciência se refletem com fidelidade

os conteúdos da consciência desta classe”. Até aí se poderia apenas entender a noção de

que é possível pela construção de conhecimento aderir ao projeto de uma classe que não

seja a de pertencimento original de um indivíduo. No entanto, o texto do manifesto

deixa entrever uma noção de povo, bastante diferente daquela que aparece no nacional-

popular de Gramsci, que representa, na verdade, um distanciamento entre o artista e a

classe trabalhadora, ainda que ele diga escolher “ser povo”.

A ideia de povo no Anteprojeto aparece como o conjunto do público,

englobando a classe “revolucionária”, que portaria a verdadeira nova consciência, mas

também outros estratos sociais diversos –não exatamente definidos no manifesto, mas

que podemos imaginar que fossem a classe média, setores intelectuais, estudantes.

Assim, ao formular seus problemas artísticos, os intelectuais deveriam estar cientes de

estarem voltados para a classe revolucionária, e não para os tais“outros estratos” do

povo. E ainda mais: ao falar da questão da liberdade de criação dos artistas do CPC,

afirma que, em geral, por terem origem pequeno-burguesa, eles mesmos deveriam

impor os limites de não permitir que condicionamentos e habitus de sua classe,

incompatíveis com a classe a qual aderiu, conflitassem com a produção de uma arte de

luta.

Antes de abordar a questão a liberdade de criação, é preciso chamar atenção para

uma possível conclusão desta seção do manifesto: o CPC não estaria cumprindo a

função de vanguarda no sentido de organizar a vontade coletiva das massas e produzir

nela seus próprios intelectuais, mas sim, um conjuntos de artistas e intelectuais de fora

da classe estaria dizendo a esta o que seriam seus projetos. O manifesto não abre

consideração para a possibilidade de que os artistas sejam formados pela própria classe,

considerando, a priori, que os artistas do CPC são sempre de origem pequeno-burguesa.

Sobre a liberdade de criação, Carlos Estevam afirma que esta é inexistente na

“arte das minorias”, porque é determinada por condicionamentos capitalistas, apesar do

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artista de elite acreditar que é livre para criar o que deseja. No caso da arte popular

revolucionária somente os temas pertinentes à formação de uma consciência

revolucionária deveriam ser abordados. E o artista do CPC não lamentaria por não ter a

liberdade de criar tudo quanto desejasse, porque estava ciente de que a plena liberdade

não existia, e esta consciência lhe dava tranquilidade para saber se sua arte, ainda que

(como qualquer outra) não fosse plenamente livre, seria a verdadeira arte, cumprindo a

função social de revelar os rumos da história.

Vale ainda ressaltar que a abordagem da questão da liberdade de criação e dos

temas retratados na arte aparece no Anteprojeto de Manifesto bem próxima do que foi

odiscurso realista-socialista.

Na seção seguinte, já explícitas as condições de criação do artista do CPC, o

manifesto se propõe a diferenciar as artes que são direcionadas para o povo. Aí, povo já

parece assumir sinônimo de classe trabalhadora, pela lógica da argumentação. Entre as

artes relacionadas com o povo, Carlos Estevam distingue três modalidades: a arte do

povo, a arte popular e a arte popular revolucionária. Para o projeto de transformação

social, e até mesmo tendo em vista o resultado de sua produção, somente a última

poderia ser considerada arte e teria valor social. Observemos a definição que o autor faz

dos três tipos de arte.

A arte do povo seria produto de comunidades economicamente atrasadas, e se

definia principalmente pelo fato deo artista não se distinguir da massa consumidora, ou

seja, vive integrado no mesmo anonimato do público e seu nível de elaboração artística

é primário, se resumindo a

“ordenar os dados mais patentes da consciência popular atrasada (...) A arte

do povo é tão desprovida de qualidade artística e de pretensões culturais que

nunca vai além de uma tentativa tosca e desajeitada de exprimir os fatos

triviais dados à sensibilidade embotada”. (MARTINS, 1963: 90)

Aí se vê no manifesto uma noção bastante elitista de arte, e uma concepção de

povo como inerentemente infértil, incapaz de representar a si mesmo.

A arte popular, considerada mais elaborada tecnicamente, ainda não poderia ser

considerada arte, e nem popular. Isto porque era definida pelo manifesto como aquela

voltada para populações dos centros urbanos desenvolvidos, já apresentando divisão do

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trabalho que separava a “massa receptora improdutiva” e “obras que foram criadas por

um grupo personalizado de artistas”.A divulgação e elaboração de seus produtos,

entretanto, escapavam do artista, porque estavam localizadas no mercado. A arte

popular é tida como uma arte de atitude “escapista” porque não pretendia transformar a

realidade, mas apenas oferecer um refúgio para fugir dela. Não buscariaconstruir seus

valores por um processo de aprofundamento e intensificação das experiências vividas

pelo homem do povo.A arte do povo, que imaginamos poder fazer esta tarefa, não

expressaria a “essência do povo”, somente suas manifestações “fenomênicas”. As duas

formas artísticas ainda eram consideradas alienadas porque não assumiam posição

radical diante das condições de sua existência. Assim, a verdadeira arte, aquela que

poderia levar este nome, deveria ser muito mais do que a expressão das contradições do

ser do homem no mundo, deveria ser uma arte diretamente política, e estas

características somente a arte popular revolucionária do CPC possuía. Só o artista que

partia do fato nu das desigualdades entre as classes poderia produzir uma arte

revolucionária, que visassea transformação política e o fim da sociedade de classes,

defendendo os interesses da classe oprimida, poderia ser verdadeiramente popular.

A perspectiva da arte do CPC, portanto, não era inserir o povo no mundo da

cultura que lhe foi subtraído, participar das experiências artísticas e culturais, dar-lhe a

conhecer a cultura artística que lhe era negada na sociedade burguesa, ou ainda

reconhecer seus produtos como artísticos e a capacidade de questionar o que era arte na

sociedade capitalista. Ao contrário, criticaram esta postura no texto do manifesto,

afirmando-a uma concepção romântica:

“Para tais grupos [de artistas que pretendem aproximar o povo da arte] o

povo se assemelha a algo assim como um pássaro ou uma flor, se reduz a um

objeto estético cujo potencial de beleza, de força primitiva e de virtudes

bíblicas ainda não foi devidamente explorado pela arte erudita; nós, ao

contrário, vemos nos homens do povo acima de tudo a sua qualidade heroica

de futuros combatentes do exército de libertação nacional e popular.”

(MARTINS, 1963: 93)

E por isso, somente na arte revolucionária, que visava mostrar ao povo a

necessidade de se compreender no mundo que vive, como uma lição escolar, estaria a

verdadeira arte. Contra um povo tido como idealizado na arte “romântica” vemos no

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CPC um povo idealizado como ignorante e amorfo, sem que isso fosse qualificado,

problematizado, debatido. O “povo” do CPC já está dado, e agora cabia ao artista

conscientiza-lo, transformá-lo em sujeito de seu próprio destino. A “arte precisa

oferecer-lhe também os motivos que forjam e impulsionam a ação revolucionária”.

(MARTINS, 1963: 94) Questionamos, então: ao homem do povo não basta dar

ferramentas culturais para que interprete e critique por conta própria o mundo e a

posição social em que vive? Cabe ao artista ser a vanguarda que, de fora da classe,

organiza seus interesses coletivos?

Marilena Chauí chama atenção para o fato de que a voz do povo somente

aparece uma única vez no texto de trinta páginas no Anteprojeto de Manifesto. Este é o

momento no qual o homem do povo pergunta ao artista do CPC: “Quem sou eu?”. E o

artista se põe a lhe dizer o que é o povo. Com postura condescendente e tutelar, este lhe

respondeu, em primeiro lugar, explicando as condições materiais e a posição na cadeia

de produção, sua situação de classe. Em seguida, mostrou que o povo é também um

conjunto de concepções e valores morais que permitem que ele se organize e se liberte.

Ou seja, o povo do CPC não sabe quem é e o que deve fazer, dependendo da ação

cultural de sua vanguarda intelectual, os artistas da arte popular revolucionária. Aparece

essencialmente bom e sedento de justiça, capaz de se organizar porque possuiu,

inerentemente, senso de comunidade e coletividade, devendo a sua vanguarda explicar

ao povo suas condições de luta e vitória.

Deste modo, na perspectiva de arte do CPC existe um dilema entre expressão e

comunicação. Isto porque, conforme exposto na seção “Popularidade e Qualidade” do

texto, é inegável – reconhecido pelos próprios artistas do CPC – que a arte chamada por

eles de “formal”, aquela que investia nas questões plásticas, tinha qualidade superior do

ponto de vista de experimentação artística/estética. Na relação deste artista com seu

público (a elite), este está sempre a altura de compreender sua arte, e quando não está,

precisa educar-se alcançar o patamar posto pelo artista. No caso da arte popular

revolucionária, no entanto, teríamos um público que não está à altura das grandes

experimentações estéticas. O papel do artista do CPC, em vez de ser o de elevar o nível

cultural do público para compreender a arte, era o de rebaixar o nível estético da arte até

o momento em que ela se tornasse compreensível com as ferramentas possuídas pelo

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povo então.Daí o dilema entre comunicação, objetivo da arte popular revolucionária, e

expressão, grande vantagem da arte “formal”.

O problema do realismo-socialista aqui é novamente colocado: uma arte didática

é mais importante do que uma arte “artística”. O texto do manifesto afirma que o artista

das minorias “cria o novo” enquanto o das massas “se serve do usado”. Mas isto não

resultaria, em tese, na perda de importância da arte popular revolucionária, porque da

mesma maneira que ela, a arte das minorias também sofria de cerceamentos de sua

liberdade, na medida em que era determinada pelo mercado. Portanto, tratava-se – na

perspectiva do CPC – de escolher qual tipo de limitação criativa se submeter, se à do

mercado ou à da produção de conteúdos mais importantes que as formas. 9

Neste momento não pode deixar de ser mencionada a colocação de Gramsci de

que o povo é conteudista, mas se este conteúdo for oferecido sob forma “artística”

(recordando quando Gramsci opõe literatura popular à literatura artística) este último

era o preferido do povo. Ao povo não era dada a oportunidade de conhecer as formas

“artísticas” das artes, mas sim uma versão subalterna e fechada de reflexão sobre a

cultura e o mundo vivido.

“nosso público em sua apreciação da arte não procede segundo critérios

formais de julgamento. Suas relações com a arte são predominantemente

extra-formais: trata-se de um público que reage diretamente ao que se lhe

diz,um público em que é nula a capacidade de se desfazer das preocupações

práticas da existência, de abstrair os motivos, as esperanças e os

acontecimentos que configuram os quadros de sua vida material. (...) inserido

a tal ponto em seu contexto imediato que lhe está vedado participar da

problemática específica da arte.” (MARTINS, 1963: 100)

Que ao público em geral é vedada a participação nas questões plásticas da arte

não é difícil concordar. No entanto, da perspectiva de uma filosofia da práxis, não

caberia a estes intelectuais problematizar esta questão e militar no sentido de supera-la?

Em lugar de abrir mão das questões “artísticas” da arte e ficar somente com as políticas,

9 Cabe aqui mencionar, ainda que não seja o objeto direto deste artigo, a separação entre forma e conteúdo, que pode ser criticada com o uso de Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, relembrando que os signos formam consciências, e não as consciências determinam os signos, e por isso não se pode falar em significado sem se falar nas formas como ele são apresentados. O par forma-conteúdo é indissolúvel, nesta perspectiva.

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seria pertinente a discussão de que a arte e o gosto compõem o habitus de classe

dominante, e a frequência nas instituições culturais ecompreensão da arte não são

somente resultado do acesso à melhor educação, mas são também uma forma de

distinção de classe, e de dominação simbólica. Reforçar esta diferença, entre aqueles

que podem participar da expressão e os que podem participar da comunicação é reforçar

a divisão social em classes que nega aos últimos os assuntos do espírito.

Para cumprir seu papel de comunicação, o artista popular revolucionário deveria

se valer dos meios mais simples de comunicação, recolhendo entre a arte popular e a

arte do povo (que aí se tornariam úteis) as formas de expressão mais simples,

compreensíveis pelo elemento popular. O compromisso do CPC era eliminar o mal

maior entre os artistas: “a obsessão da forma pela forma”. Para o artista do CPC ficava a

tarefa de adestrar seus poderes formais – considerando que estes artistas vêm de outro

estrato social que não é o do seu público – de modo a não colocar em risco o “princípio

da comunicabilidade” de sua obra.

Por isso, no que tange ao tema da qualidade versus popularidade, o artista

revolucionário se caracterizava como aquele que, de posse de qualidades formais, não

deixava de lado seu comprometimento com o público: sua arte não abria mão de ser

eficaz, não ia além do limite imposto pela capacidade do espectador, “só irá onde o

povo consiga acompanha-la, entende-la e servir-se dela”(MARTINS, 1963: 102). Por

sua validade social, o documento conclui afirmando que a arte popular revolucionária é

superior à arte das minorias, não superior em ser popular ou revolucionária, mas em ser

arte.

Considerações finais

“Para poder respeitar o povo, o artista do CPC não pode toma-lo nem como

parceiro político e cultural, nem como um interlocutor igual; oscila, assim,

entre o desprezo pelo povo “fenomênico” (que, no entanto, é descrito como o

povo realmente existente) e a invenção do povo “essencial”, os heróis do

exército de libertação nacional e popular (que existem apenas em sua

imaginação). Sem o fantasma do ‘bom povo’ por vir, o artista do CPC não

teria sequer tido a lembrança de “ir ao povo” e sobretudo de “optar por ser

povo”. (CHAUÍ, 1983: 91)

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Tendo em vista o convite à reflexão sobre o nacional-popular em Gramsci e o

Anteprojeto de Manifesto do CPC, é possível colocar-se a pensar sobre como, a despeito

do discurso de viabilizar umas transformação social, o nacional-popular da década de

1960 trouxe para o jogo uma perspectiva de arte e de povo que pouco contribuíram para

a real atuação junto às massas. Uma distância patente entre os intelectuais e as massas

na atuação destes artistas era inegável, acabaram por reproduzir uma forma de lidar com

as classes populares tuteladae desigual.

Diferentemente do nacional de Gramsci, que buscava reaver o passado das mãos

fascistas para identifica-lo com a classe trabalhadora, o nacional brasileiro aparece

atrelado ao discurso anti-imperialista, de que o principal inimigo era a intervenção

ianque. Como o comum no período, as entidades de esquerda brasileira se

especializaram na luta anti-imperialista, e não na anticapitalista. O elemento popular,

então, passou ainda mais distante da concepção do nacional-popular gramsciana.

Enquanto na discussão do pensador italiano o popular era identificado com as classes

exploradas, mas tratado como sujeitos ativos, na versão do CPC o elemento popular é

fluido: ora é o público, ora são as massas, e muitas vezes as classes exploradas, mas

com roupagem amorfa e sem direção.A pedagogia do CPC, por estas razões, é antes a

da persuasão do que a discussão e esclarecimento. Os autores apresentam suas falas

cujas premissas são evidentes. Não há espaço para o povo nem para o debate. As ideias

já estão fechadas, e são as melhores para as necessidades da classe. Para uma concepção

de vanguarda que é colocada na posição de único sujeito do conhecimento, só pode

resultar uma arte de estilo pedagógico-persuasivo voltado para um povo que necessita

de orientação e condução, e por isso, pode-se concluir, que seja passivo e

desorganizado.

Aproximam-se assim, sem querer, de uma concepção de Estado, características

dos intelectuais de direita no Brasil, de que este forja a sociedade. Em um outro texto,

sobre a reforma cultural, Carlos Estevam Martins utiliza uma frase de Che Guevara para

demonstrar que primeiro era preciso instalar as massas no poder para então se promover

a reforma moral que era tarefa do partido executar: “Primeiro, toma-se o poder. Depois

faz-se a reforma agrária”, é a frase do argentino utilizada por Estevam, substituindo-se o

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agrário por cultural. Ora, a reforma cultural e a tomada do poder pelas massas não

devem andar lado a lado? Se não é a difusão de uma perspectiva de projeto social

contra-hegemônica que contribui para levar à filosofia da práxis, se organizando para

implementação de seus projetos sociais, como essa chegada das massas ao poder

ocorreria?

Em virtude deste povo do CPC, a vanguarda não poderia ser outra. Nada tinha a

ver com o momento da catarsis, da formação de um partido que organizaria os

interesses da classe, mas sim era o conjunto de intelectuais, declaradamente de fora das

classes, que esclarecidos cumpririam a hercúlea missão de organizar, guiar as massas

pelo caminho da revolução brasileira que estava no horizonte. Um missionário, o mártir

da cultura, negando seus hábitos de classe e a própria habilidade artística em nome de

“comunicar” aquilo que o “povo” precisava ouvir.

Encarnaram a tradicional concepção de filósofos destacados das massas, sendo o

oposto da concepção de uma vanguarda orgânica, como apresentada por Gramsci,

representando a tradicional dicotomia entre vanguarda e base. Sua primeira diferença

em relação à concepção gramsciana foi o esforço consciente em manter o simples no

senso comum, na medida em que sem elevação intelectual as massas não poderiam

exercer a crítica de si, superando o bom senso, transformado em filosofia da práxis.

Além disso, recusavam a perspectiva de formação de intelectuais dentro da própria

classe, ponto de partida para a concepção de vanguarda de Gramsci, que não descolaria

em momento algum a ação e a consciência, teoria e prática, o que pode ser localizado

como uma segunda diferença com relação à concepção de vanguarda de Gramsci. E por

fim, uma crítica derradeira à luz do marxista italiano: no momento em que a adesão a

um partido é apenas econômico-corporativa (como as massas reunidas pelo CPC, às

quais os artistas se direcionavam como um bloco exclusivamente pela posição que

ocupavam na cadeia de produção) uma lógica de fé irracional nas estruturas objetivas

termina em uma crença obstinada de que a realidade se transformará independentemente

da ação, certo mecanismo que estagna a ação, dado o abandono da unidade teoria-

prática. (GRAMSCI, sem data).Assim, o povo que é o novo do CPC, que é o futuro, o

germe puro da revolução, não precisa se elaborar criticamente porque é dado que a

Revolução brasileira está em curso, e o proletariado vai tomar as rédeas do Estado. Fé

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obstinada e paralisia da ação. Gramsci afirma que nestes casos, abandona-se a

perspectiva de que as massas se tornem dirigentes e responsáveis. Esquece-se, portanto,

que o papel da filosofia da práxis é elevar culturalmente o a organização da classe, e

cria-se uma vanguarda intelectual completamente apartada do povo. Entre as massas a

filosofia deve ser vivida como um elemento parte da realidade que se insere, como

aquilo que dá sentido à experiência. Uma das tarefas dos movimentos que se propõem

ao processo de superação do senso comum e à formação de uma nova visão de mundo

autoconsciente de si é:

“trabalhar incessantemente para elevar intelectualmente camadas populares

cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento da

massa, o que significa trabalhar na criação de intelectuais de novo tipo, que

surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para

tornarem-se seus sustentáculos”. (GRAMSCI, sem data: 27)

A vanguarda do povo, da teoria da práxis, deveria contribuir para construir sobre

uma determinada prática uma teoria, que coincidindo com a própria prática acelera o

processo histórico. Tal tarefa ficou em aberto para o jovem artista da “vanguarda” do

CPC. O jovem herói do CPC, nas palavras de Marilena Chauí:

“é e não é “povo” – não é ‘povo’, como indica a visão que possui de seu

público; e é ‘povo’ porque vanguarda do herói do exército de libertação

popular e nacional. Essa curiosa fantasmagoria, vasada em linguagem

hegeliana do em si e do para si, traduzida pera a fenomenologia husserliana

do fenomênico e do essencial e para o existencialismo do ser-no-mundo-com-

os-outros, acoplada ao conceito lukacsiano da falsa consciência e à

concepção leninista da consciência vinda de fora, pretende estar a serviço de

uma revolução popular heroica. (...) insere-se a figura extraordinária do novo

mediador, o novo artista que possui os recursos da arte superior e o encargo

de fazer arte inferior sem correr o risco da alienação presente em ambas (...) o

jovem herói do CPC”. (CHAUÍ, 1983: 92)

Nos termos brasileiros, o nacional-popular encontrou suas formulações entre o

romantismo e o populismo, motivo pelo qual a expressão possui um traço principal:

“nação e povo funcionam com arquétipos ou como entes simbólicos saturados de

sentido que se materializam em casos particulares, tidos como expressões dos símbolos

gerais.”(CHAUÍ, 1983: 48). E por isso, tanto o modernismo quanto a arte da década de

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1960 trabalharam com estes arquétipos, para reforça-los ou denunciá-los, seja para

“transformar em pedagogia política ou para oferecê-los como espelho à plateia.” No

romantismo (década de 1920/1930), há o “bom” povo e a “boa” nação, e cabe aos

artistas a tarefa de acordá-los e revela-los. Na perspectiva que Marilena Chauí chama de

“populismo de esquerda” (década de 1960) o “bom” povo e a “boa” nação estão por vir,

depois de libertos da alienação, e por isso a tarefa dos artistas e intelectuais era a de

conscientização popular. Enquanto na primeira a bondade já existe naturalmente, na

segunda está por vir historicamente. (CHAUÍ, 1983: 48-49)

Fazendo, deste modo, o balanço do que o artista do CPC considera que é a arte,

qual é o seu papel social e o do artista, é inevitável recordar o trecho de Gramsci, na

compilação Literatura a Vida Nacional, no qual o marxista italiano fala de teatro.

No campo do teatro italiano, Gramsci apresentou um quadro mais positivo no

que dizia respeito ao nacional-popular do que na literatura. Afirmou que existia um

conjunto de dramaturgos de grande valor literário que poderia cumprir o papel de

agradar o elemento popular, uma vez que “os sentimentos representados e a tendência

moral do autor encontram profunda ressonância na psicologia popular” (GRAMSCI,

1968: 114). Este foi chamado pelo pensador marxista de “teatro de ideias”, que

representava uma catarse progressista, sentimentos que deveriam ser representados, e

não desenvolvidos como uma tese ou propaganda. “O autor deve viver no mundo real,

com todas as suas exigências contraditórias e não expressar sentimentos absorvidos nos

livros” (GRAMSCI, 1968: 115).

Deste modo, Gramsci parece opor um “teatro de ideias” ao “teatro de tese”,

sendo este último mais propagandístico e não reflexivo. Em certo texto sobre a crítica

de Orvieto, Gramsci afirma: “[Orvieto escreve sobre a montagem] ‘é fabula, modelada à

antiga, que se vale dos velhos métodos infalíveis do teatro popular, sem perigosos

desvios modernistas. Tudo é elementar, limitado, de nítida marca. As tintas fortíssimas

e os clamores se alternam com as oportunas atenuações, e o público respira e concorda.

Demonstra apaixonar-se e divertir-se. É esta a melhor estrada para levá-lo ao teatro?’. A

conclusão de Orvieto é significativa” (GRAMSCI, 1968: 115-116).

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A colocação de Gramsci pode fechar este trabalho como conclusão ideal para

reflexão sobre a forma específica que assumiu o nacional-popular no Brasil: esta seria a

melhor maneira para leva-lo ao mundo das artes?

BIBLIOGRAFIA

CHAUÍ, Marilena. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Seminários. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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