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Texto Portugues - O medo da massa... Caderno Pós Ciências Sociais. v.1 n.2 ago/dez, São Luis/MA, 2004 O MEDO DAS MASSAS: Representações científicas e literárias sobre a multidão e a violência THE FEAR OF THE MASSES: scientific and liberaty representations about crowd and violence Yuri Michael Pereira Costa Bacharel em História e Direito, mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão. e-mail: [email protected]. ____________________________________________________________________________ ____________________ RESUMO Analisar os conceitos de indivíduo e multidão cunhados por autores do séc. XIX e início do séc. XX, apontando, especificamente, para a idéia da multidão, quando envolvida em atos de violência, como fenômeno capaz de diluir os indivíduos dela participantes. 1 / 25

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    Caderno Ps Cincias Sociais.v.1n.2ago/dez, So Luis/MA,2004

    O MEDO DAS MASSAS: Representaes cientficas e literrias sobre a multido e a violncia

    THE FEAR OF THE MASSES: scientific andliberaty representations about crowd andviolence

    Yuri Michael Pereira Costa

    Bacharel em Histria e Direito, mestrandoem Cincias Sociais pela Universidade Federal doMaranho.e-mail: [email protected].

    ________________________________________________________________________________________________

    RESUMO

    Analisar os conceitos de indivduo e multido cunhados por autores do sc. XIX e incio do sc.XX, apontando, especificamente, para a idia da multido, quando envolvida em atos deviolncia, como fenmeno capaz de diluir os indivduos dela participantes.

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    Palavras-chave: Modernidade, Indivduo, Violncia da multido.

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    ABSTRACT

    To analyze the concepts of individual and multitude produced by authors of XIX century andbeginning of XX century, pointing, specifically, with respect to the idea of the multitude, wheninvolved in violence acts, while phenomenon capable to dilute the participant individuals of it.

    Keywords: Modernity, Individual, Violence of the multitude.

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    A multido matou Scrates;

    a multido matou Jesus.

    A multido mata.

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    BillBuford

    1 INTRODUO

    Irracional, primitiva, selvagem, onipotente, infantil, volvel, caprichosa, imprevisvel. Comquantos adjetivos convive a multido?Gustave Le Bon, psiclogo francs que escreve nasprimeiras dcadas do sc. XX, diria que as caractersticas da multido no podem serencontradas pela soma das qualidades dos indivduos que a compe, pois, nas massas, noexistiriam mais indivduos. Estes se encontrariam diludos.

    A pretenso deste trabalho analisar os conceitos de indivduo e multido cunhados porcientistas e literatos do sc. XIX e incio do sc. XX. Para tal, priorizarei o estudo depensadores que, de diferentes maneiras, escreveram sobre a relao entre massas e violnciaou sobre estratgias de controle das massas, interpretando-as ora como fenmeno capaz defazer desaparecer os indivduosdelaparticipantes, ora como aglomerao que possibilita o alcance pleno da liberdade pelo indivduo moderno.Busco tambm perceber como autores contemporneos (re)utilizam interpretaes sobre a multido, aliceradas naquele contexto histrico, em estudosmais atuais, notadamente do campo jurdico.

    2NASCE O INDIVDUO

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    O aparecimento do conceito de indivduo bastante recente. Para autores como JacobBurckhardt(1994) e Norbert Elias (1994b), na pr-modernidade o homem se reconhecia apenas enquantoraa, povo, corporao, famlia ou qualquer uma das demais formas do coletivo.

    Na Idade Mdia, para os mesmos autores, existia uma mescla entre as duas faces deconscincia que possui o homem: uma voltada para o mundo exterior e outra para o interiordele prprio. A produo da imagem de si derivava da idia que o sujeito tinha de suainsero em estruturas coletivas.

    S com o desenvolvimento de uma personalidade entregue a si prpria, voltada para o euinterior, surgea subjetividade, nasce o indivduo.

    O historiador J.Burckhardt procura analisar as transformaes da subjetividade no homemmoderno a partir das artes e da literatura. Para tal, considera comoepicentro de tais acontecimentos a Itlia renascentista, mais precisamente as grandes cidadesitalianas do perodo. Inmeras modificaes nas artes simbolizam o surgimento do conceito deindivduo como ser autnomo e auto-suficiente: a revalorizao de cidados da antiguidadeitaliana (TitoLvio, Cssio, Ovdio, Virglio [...] ); o desenvolvimento sem precedentes das biografias, ou seja, dehistrias individuais; e, o surgimento de quadros com imagens de uma s pessoa, e mesmo deobras que retratam apenas rostos de indivduos.

    Estas mesmas transformaes Elias reconhece como o advento da segunda natureza dohomem a crena de que h uma distino, e mesmo uma relao conflituosa, entre o euinterior e tudo o que circunda o sujeito (sociedade).

    Assim o autor se expressa:

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    Existe uma padronizao muito difundida da auto-imagem que induz o indivduo a se sentir epensar assim: estou aqui; internamente s; todos os outros esto l, tal como eu, com uminterior que seu eu verdadeiro, seu puro eu, e uma roupagem externa, suas relaes com asoutras pessoas. (ELIAS, 1994b, p. 32).

    Porm, se a modernidade caracteriza o indivduo como serautnomo, estabelece como preoda autonomia a responsabilidade pelo incessantedisciplinamento(vigilncia) dos atos e pensamentos desse mesmo indivduo. Surgem ento padres sociais emorais que levam o sujeito a ter controle de si mesmo. Neste sentido, o que chamamos decivilidadeno nada mais do que uma luta pelo rigoroso controle de aes e pensamentos pessoais. Oautocontrole, para Norbert Elias, abase da civilizao.

    A moderao das emoes espontneas, o controle dos sentimentos, a ampliao do espaomental alm do momento presente, levando em conta o passado e o futuro, o hbito de ligar osfatos em cadeias de causa e efeito todos esses so distintos aspectos da mesmatransformao de conduta [...]. Ocorre uma mudana civilizada no comportamento. (ELIAS,1993, p. 198).

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    No podemos tambm esquecer que a idia de civilidade se constri em oposio s deanormalidade, patologia e crime. Dessa forma, qualquer elemento que afaste do autocontroleos indivduos, que enfraquea sua subjetividade, tido como ameaa de queda no barbarismo.Dentre as ameaas, a multido.

    3 O ESVAZIAMENTO DAS ALMAS INDIVIDUAIS

    Alm da reeducao do olhar do sujeito sobre si mesmo, os sculos XVIII e XIXproporcionaram uma releitura do espao onde o homem moderno habita.Sennett (1987, p.30-33) entende que desde o incio do sc. XVIII cidades como Paris e Londres passaram a serconcebidas como um mundo em que grupos bastante diferentes mantm estreito contato. Oespao urbano, ao menos nas grandes cidades europias, passa a ser identificado como oaglomerado de formas e de pessoas estranhas entre si.

    No mesmo sentido, Foucault (1982, p. 87) acredita que a Paris dosc XIX no mais tidacomo unidade territorial organizada, mas como o emaranhado de territrios heterogneos epoderes rivais, marcado pela aglomerao humana que faz surgir outra grande marca dametrpole moderna: as massas.

    A multido , nessa interpretao, um dos elementos caracterizadores das grandes cidades;das metrpoles que, atravs de sua dinmica, modificam-se a cada instante. CharlesBaudelaire, percebendo esta acelerada metamorfose, adjetiva Paris de cidade formigante,vegetal irregular, palcio indefinido, Babel de sonhos, arquitetura de fantasias(BAUDELAIRE, 2003, p. 99, 106-107).

    Mas qual a valorao do conceito de multido cunhado nessas cidades formigantes?

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    O jornalista americanoBuford (1992, p. 169) entende que os vrios inconvenientes provocadospelas aglomeraes humanas nas grandes cidades europias do sc. XIX de sobremaneirativeram reflexo na forma como a elite letrada percebia (e escrevia sobre) tais acontecimentos.Para o autor, a histria das multides uma histria do medo, pois escrita por suas vtimas,ou seja, por intelectuais que temiam perder bens materiais ou sentiam ameaada suaintegridade fsica. Por isso uma histria em que se tenta, sob o manto da cientificidademoderna, dar um nome e uma razo s massas. Em que, racionalizando a irracionalidade damultido, procura-se entend-la.

    Assim, as primeiras dcadas do sc. XX conheceram o surgimento do que a sociloga Singer(2003, p. 288-289) denomina de psicologia das multides um conjunto de pensadores quepriorizaram em seus estudos interpretaes sobre a multido e sua atuao em diferentesesferas do social. Dentre eles:Scipio Sighele, na Itlia, Gabriel Tarde eGustave Le Bon, naFrana, e Sigmund Freud, na Alemanha.

    Elias (1994b, p. 15) cr que estes autores elegeram como um de seus principais postulados aidia de que as massas possuem uma alma prpria. Uma alma que transcende as almasindividuais dos sujeitos que a compe; uma alma coletiva; uma mentalidade grupal.Quando no chegaram a ir to longe, ainda para Elias, tais pensadores se contentaram emtratar os atos polticos da multido como a soma ou a mdia das manifestaes psicolgicasdos indivduos nela envolvidos.

    justamente a idia de esvaziamento das almas individuais, ante a ao da multido, queproduziria a fragmentao do indivduo e sua conseqente queda no barbarismo.

    Pelo mero fato de tomar parte em uma multido organizada, um homem desce vrios degrausna escala da civilizao. Isolado, ele pode ser um indivduo cultivado; em uma multido, umbrbaro isto , uma criatura agindo por instinto. Ele possui aespontaneidade, a violncia, a ferocidade, e tambm o entusiasmo e herosmo dos seresprimitivos (LE BON, 1954, p. 130, grifo nosso).

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    A multido produziria, principalmente quando da prtica de atos de violncia como oslinchamentos, a completabarbarizao do homem, o retrocesso a um estado que beira aanimalidade: a crueldade que os homens se permitem no ato do linchamento explica-sepossivelmente pelo fato de no poderem eles devorar sua vtima. Provavelmente vem-secomo homens porque no cravam nela seus dentes. (CANETTI, 1986, p. 117).

    Em atos de violncia, ainda para os autores que estudaram a chamada psicologia dasmultides, as massas agiriam por contgio, hipnotizando os indivduos que dela participam comtamanha intensidade que sequer seria correto os considerar criminosos. No sepoderia punirvontades individuais submetidas vontade (alma)coletiva, mais forte e contagiante que qualquer outra vontade.

    A literatura jurdica brasileira talvez nos ajude a perceber o alcance de tais idias. Com apalavra, juristas do porte deEsther Figueiredo Ferraz e Anbal Bruno:

    Sob o domnio da multido em tumulto opera-se, por assim dizer, um fenmeno dedesagregao da personalidade. Os bons sentimentos humanos cedem lugar mar invasora dos maus instintos, dastendncias perversas e anti-sociais [...]. A idia de delito ganha terreno nessa praa deantemo conquistada.E os piores crimes passam a ser cometidos por pessoas que, individualmente, seriamincapazes de causar o menor mal ao semelhante.(FERRAZ, 2003, p. 71 apud NUCCI, 2003, p. 286, grifo nosso).

    Quando uma multido se toma de um desses movimentos paroxsticos, inflamada pelo dio,pela clera, pelo desespero,forma-se por assim dizer uma alma nova, que no a simplessoma das almas que a constitui, mas sobretudo do que nelasexiste de subterrneo e primrio

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    , e esse novo esprito que entra a influir e orientar as decises do grupo; conduzindo-o muitasvezes a manifestaes de to inaudita violncia e crueldade que espantaro mais tardeaquelas mesmas que dele faziam parte. (BRUNO, 1978, p. 82 apud NUCCI, 2003,p. 286, grifo nosso).

    No s em termos doutrinrios tais idias prosperam contemporaneamente. Ainda sob oexemplo do discurso judicirio, Helena Singer nos trs citao de trechos das alegaes finaisapresentadas em maro de 1994 pelo advogado de um dos acusados de participar de umlinchamento ocorrido em Campinas/SP em 1985.

    A prova dos autos, em verdade, demonstra que a autoria dos homicdios desconhecida, eisque participaram inmeras pessoas indeterminadas, o povo da vizinhana, multidoenfurecida, vrios populares armados de paus, espetos de assar carne[...], um bolo degente. No h porque, apenas para efeito de no deixar impune os acontecimentos, culparalguns dos moradores por fato praticado por inmeras pessoas no identificadas. (SINGER,2003, p. 183).

    Nesta ltima citao reaparece a idia de que a diluio das individualidades em meio multido violenta tem como conseqncia a impossibilidade (ou, ao menos, a dificuldade) de seidentificar a autoria dos fatos.

    No entanto, reduzir a viso das massas apenas a objeto de medo seria, no mnimo, umaanlise precipitada.

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    4 MORTE E LIBERDADE EM MEIO MULTIDO

    Como o medo, a angstia ambivalente. pressentimento do inslito e espera da novidade,vertigem do nada e esperana de uma plenitude. ao mesmo tempo temor e desejo .(DELUMEAU, 2001, p. 26). Isto vale para as massas? Em outras palavras, podemos identificar amultido tambm como novidade, esperana de plenitude e mesmo desejo? Ou asrepresentaes que giraram em torno da multido foram (e so) necessariamente marcadaspela ojeriza e pelo temor? Acredito que no. As massasso ao mesmo tempo objeto de medo e de desejo.

    O temor multido est ligado substancialmente necessidade de segurana. Dessa forma,no me refiro, aqui, a qualquer multido, mas apenas multido insegura, ao medo damultido no organizada. Para o historiador JeanDelumeau, a histria do medo das massasno a histria dos movimentos maduramente premeditados, organizados e conduzidossegundo uma estratgia elaborada, mas sim das exploses sbitas, das violncias excessivas,das utopias sangrentas e das rpidas debandadas [...]. o medo de uma multido que serene sem objetivos precisos, acolhe rumores, amplifica-os, ataca pessoas, pilha e saqueia.(DELUMEAU, 2001, p. 152).

    Assim como a idia moderna de multido aparece em meio s ruas das grandes cidadeseuropias, ali tambm surge a ojeriza e temor s massas. Na verdade, o medo das massas apenas uma face de um temor ainda maior. apenas parte do medo urbano.

    Nasce [nas cidades europias do sc. XIX] o que chamarei de medo urbano, medo da cidade,angstia diante da cidade que vai se caracterizar por vrios elementos: medo das oficinas efbricas que esto se construindo,do amontoamento da populao, das casas altas demais,da populao numerosa demais

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    ; medo, tambm, dasepidemias urbanas, dos cemitrios que se tornam cada vez mais numerosose invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, dascavessob as quais so construdas as casas que esto sempre correndo o perigo dedesmoronamento. (FOUCAULT, 1982, p. 87, grifo nosso).

    Mas, em especfico, o que se teme na multido?

    A diluio da subjetividade (individual) na multido, como jvisto, gera a crena naimpossibilidade de identificao dos sujeitos que dela participam. E, na concepo de WalterBenjamin, recorrente para os literatos do sc. XIX a idia de que um homem se torna tantomais suspeito quanto mais difcil seja encontr-lo. Por isso, a massa aparece como o asilo queprotege o elemento associalfrente a seus perseguidores .(BENJAMIN, 1991, p. 69).

    Edgar Allan Poe, por exemplo, projeta em suas estrias essa angstia. Em contos comoWillian Wilson, A Mscara da morte rubra e O Barril deamontillado . (POE, 2003, p.126-160, 167-199) o desfecho de suas narrativas tem um local certo: a multido, e,especialmente, a catica multido do carnaval de cidades europias. No por coincidncia ofim destas histrias marcado por assassinatos. Assassinatos facilitados pela proteo epelo anonimato que o indivduo possui quando envolvido pelas massas.

    A mesma idia de que a aglomerao de pessoas nas cidades possibilita a cobertura do crimese faz presente na obra de Charles Baudelaire. Em O Crepsculo da tarde, a noite omomento ideal para o criminoso embrenhar-se na multido, forar a construo de umaescondida estrada em meio a ela e principiar seu trabalho:

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    Vai forando [o ladro] por tudo uma escondida estrada,

    Tal como um inimigo a tentar a emboscada;

    Move-se pelo bairro; o que o lodo consome,

    E como um verme rouba ao homem o que come.

    Ouve-se em cada canto a cozinha assobiar,

    O teatro estremecer, a orquestra ressonar;

    Nas mesas dos cafs, sonoras de remoques,

    Vo conversando as cortess com os escroques.

    Os ladres que merc nem trgua alguma tm,

    Vo logo principiar seu trabalho tambm,

    A forar fechaduras docemente

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    Para viver os seus dias e vestir a amante. (BAUDELAIRE, 2003, p. 109).

    Porm, como j exposto, assim como a multido fator de medo, tambm produtora dedesejo. Ainda na obra de Baudelaire (2003) podemos perceber esta atrao pelas massas.

    Nas palavras de Benjamin (1991, p. 69), pensava [Baudelaire] que quanto menos tranqila setornasse a grande cidade, tanto maior o conhecimento humano necessrio para agir nela.Baudelaire acredita ser a multido um grande mar que possibilita a plena liberdade do homem.Mar (multido) e homem so, ao mesmo tempo, eternos rivais e irmos implacveis.

    Homem livre, hs de sempre amar omar,O mar teu espelho e contemplas a mgoa

    Da alma no desdobrar infindo de sua gua,

    E nem teu ser menos acre ao se abismar

    [...]

    Mas ambos [homem e mar] sois tenebrosos e discretos:

    Homem, ningum sondas teus fundos abismos,

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    Mar, ningum viu jamais teus tesouros ntimos. (BAUDELAIRE, 2003, p. 27).

    Se a multido o local onde se esconde o crime e se facilita a morte (assassinato), Baudelairese sente atrado por ambos, pelo crime e pela morte.

    Sem cessar ao meu lado o Demnio arde em vo;

    Nada em torno de mim como um ar vaporoso;

    Eu degluto-o a sentir que me queima o pulmo,

    Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso. (BAUDELAIRE, 2003, p. 124).

    Vivemos pela Morte e s ela que afaga;

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    a nica esperana e o mais alto prazer,

    Que como um elixir nos transporta, e embriaga,

    E nos faz caminhar at o anoitecer. (BAUDELAIRE, 2003,p,147).

    Dessa forma, o autor francs concebe a multido, pela aproximao que ela possibilita damorte e do ato criminoso, comoalgo de extrema vitalidade. Admira aqueles que sabem seapaixonar pela multido, como C. G., pintor annimo (e, quem sabe, imaginrio) lembrado (ouinventado) por Baudelaire: o perfeito flneur.

    A multido seu universo, como o ar o dos pssaros, como a gua, o dos peixes. Sua paixoe profisso desposar a multido. Para um perfeito flneur, para o observador apaixonado, um imenso jbilo fixar residncia no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e noinfinito. Estar fora de casa, econtudosentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo epermanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espritosindependentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem no podem definir senotoscamente. O observador um prncipe que frui por toda parte o fato de estar incgnito[...].

    Assim o apaixonado pela vida universal entra na multido como se isso lhe aparecesse comoum reservatrio de eletricidade. Pode-se igualmente compar-lo a um espelho to imensoquanto essa multido, a um caleidoscpio dotado de conscincia, que, a cada um de seusmovimentos, representa a vida, mltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. umeu insacivel do no-eu, que a cada instante o nivela e o exprime em imagens mais

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    vivas do que a prpria vida. (BAUDELAIRE, 2002, p. 20-21, grifo do autor).

    A ambivalncia (medo e desejo) da multido tambm se faz presente na obra de Edgar A. Poe.O Homem das multides. (POE, 1998) narraa histria de um convalescente que, atrs dasvidraas de um caf, contempla com prazer a multido. Aos poucos o personagem vai semisturando mentalmente a todos os pensamentos que se agitam a sua volta.

    Resgatadoh pouco das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indcios e eflviosda vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se detudo. Finalmente, precipita-se no meio da multido procura de um desconhecido cujafisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou-se numapaixo fatal, irresistvel. (BAUDELAIRE, 2002, p. 17).

    Allan Poe(1988) constri uma histria na qual, quanto mais lacnica se torna a multido, maisexcitante para o narrador (personagem) passa a ser segui-la. Histria onde o narrador ficaatnito ao perceber que o homem por ele seguido est , h todo momento,refazendo seu caminho para entrar novamente nas vias mais populosas e desviar das ruasvazias. Allan Poe cria um personagem que s se sente quieto em meio ao turbilho depessoas. Cria o homem dasmultides1 .

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    5 NOMEANDO O MEDO

    A angstia do homem moderno ante as novas relaes (e perigos) presentes nas cidades fezsurgira necessidade de transformar e fragmentar este temor em medos precisos de algumacoisa ou de algum. Para Delumeau (2001, p. 11-13), o Ocidente venceu a angstianomeando, isto , identificando ou at fabricando medos particulares.

    Creio que a (re)criao do conceito de multido surge como uma dessas estratgias depreciso (e conteno) do medo. Medo que deveria, como qualquer outro, ser controlado.

    Duas estratgias de conteno do temor s massas, ao menos no mbito do estudo oraexposto, podem ser apresentadas: uma literria e outra poltico-cientfica.

    A estratgia cunhada pela literatura do sc. XIX se personifica na figura do flneur ohomem que anda (pela) e, sobretudo, observa a cidade formigante. A melhor idealizao do flneurse deu na histria de detetive, gnero literrio criado na dcada de1840 por Edgar Allan Poee que vai ter sua maior expresso na figura de Sherlock Holmes, personagem de ArthurConanDoyle.

    Assim, a histria de detetive a histria da cidade como lugar do crime. (BOLLE, 1994, p. 7).S ali (na cidade) o detetive poderia desenvolver suas aes, pois sua principal virtude poder, em meio multido que encobre o crime, coletar pistas que possibilitem a decifrao daautoria do delito. Sua funo recuperar (encontrar) as pegadas do indivduo diludo namultido. Sua inveno uma forma de reao ao ritmo e aos inconvenientes da cidadegrande.

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    Da o flneur aparecer como timo detetive. Da a rua se tornar sua moradia. Pois suaindolncia apenas aparente. Atrs dela se esconde a vigilncia de umobservador que no perde o malfeitor de vista (BENJAMIN, 1991, p. 70).

    O Homem das multides, de Allan Poe (1988), ao narrar a histria de um homem atrado pelamassa, transparece, atravs de seus personagens, a vontade(necessidade) de um autor em poder ler a multido, identificando seus elementos eproduzindo classificaes em meio ao aparente caos.

    Assim seu personagem (com seus dons emprestados pelo escritor) produz suas tipologias:

    Havia muitos indivduos de aparncia vivaz, que facilmente reconheci como pertencente raados elegantes batedores de carteira, de que todas as grandes cidades andam empestadas.Vigiei tal destacada espcie social com grande ateno e achei difcil imaginar como podiam sertomados por pessoas de trato pelas prprias pessoas distintas. (POE, 1988,p. 393-394, grifo nosso).

    A virtude de se conseguir entender (decifrar) a massa, de identificar sem muito esforo suasdistines, est tambm presenteem C. AugusteDupin, personagem que atua em diversoscontos de Allan Poe. Ele [ Dupin] segabava, com uma risadinha baixa e discreta, de que podia ler as intenes e pensamentos damaioria dos homens, como se tivessem janelas no peito.(POE, 2002, p. 95). Poe acredita que o dom de ler a multido a principal virtude desejadapelo homem moderno.

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    Por outro lado, existiu a produo de uma estratgia de conteno do medo das massas nombito poltico-cientfico.

    Sobre os atos da multido, a cincia moderna projetou conceitos, hierarquias e classificaesna nsia deos tornar inteligveis. A teoria das multides interpreta a multido e sua violnciacomo se, tal como numa experincia cientfica, as condies adequadas pudessem produzir, esempre produzissem, resultados idnticos. (BUFORD, 1992, p. 169).

    A multido torna-se um objeto de estudo. Objeto que deve ser entendido, para, somente assim,poder se tornar previsvel, controlado e domesticado.

    Neste aspecto, existiu uma conjugao entre a tentativa de estruturao de uma polticacentralizada nas grandes cidades europias do sc. XIX e o desenvolvimento das cinciasmodernas. Da porque falo em estratgia poltico-cientfica.

    Em grande parte, essa nsia pela centralizao poltica deriva da aglomerao das camadaspobres em cidades como a Parisoitocentista. O que incomoda, neste contexto, so astenses polticas no interior das cidades [...] que se manifestam atravs de agitaes esublevaes urbanas cada vez mais numerosas e freqentes. (FOUCAULT, 1982, p. 86).

    Como resposta a essas resistncias, surge o poder disciplinar. (FOUCAULT, 1987). Surgeuma sociedade na qual asrelaes de poder na medicina, no sistema penitencirio, na escola, nos hospcios e nas forasarmadas esto pautadas na domesticao do indivduo e na interiorizao de uma moral(mdica, sexual, militar, penal).

    O poder disciplinar se volta diviso e ao controle da populao urbana. Preocupa-se desobremaneira com a recuperao do indivduo fragmentado na multido. Ou mesmo,preocupa-se em produzi-lo2 .

    A estratgia poltico-mdica de combate lepra e peste aplicada em cidades como Paris eLondres de fins do sc. XVIII e incio do sc. XIX bem exemplificam este processo.

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    Esse espao [destinado aos hansenianos] fechado, recortado, vigiado em todos os seuspontos,onde os indivduos esto inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos socontrolados, onde todos os acontecimentos so registrados [...], onde o poder exercido semdiviso, segundo uma figura hierrquica contnua, onde cada indivduo constantemente localizado, examinado e distribudo entre os vivos, os doentes e os mortos isto tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. (FOUCAULT, 1987, p.163-164).

    Neste caso [da peste], a medicina no exclui, no expulsa em uma regio negra e confusa. Opoder poltico da medicina consiste em distribuir os indivduosuns ao lado dos outros, isol-los,individualiz-los, vigi-los um a um, constatar o estado de sade de cada um, ver se est vivo ou morto e fixar, assim, a sociedade em um espao esquadrinhado, dividido,inspecionado, percorrido por um olhar permanente e controlado por um registro, tanto quantopossvel completo, de todos os fenmenos.(FOUCAULT, 1982, p. 89).

    Ainda em relao Paris, Walter Benjamin reconhecia j o final do sc. XVIII como momentode gnese do processo demarcatrio de locais e pessoas na cidade.

    Desde a Revoluo Francesa, uma ampla rede de controle havia amarrado a vida civil cadavez mais firmemente em suas malhas. Para o avano da normalizao, a numerao dascasas era uma ajuda muito til. A administrao de Napoleo tornara-a obrigatria para Parisem 1803 (BENJAMIN, 1991, p. 75).

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    Nesse momento, os procedimentos de controle administrativo tambm se espraiam com afinalidade de prevenirem (anteverem) o crime. Surgem os nmeros policiais e os registrosfotogrficos, ou seja, formas de identificao civil para fins de catalogao de infratoresprimrios e reincidentes. Estratgia de se perpetuar no tempo nomes e rostos de indivduos, detorn-los, preventivamente, conhecidos. mistura desregrada dos corpos, as estratgiasmdicas e criminais vm trazer a possibilidade dodesmascaramento, da descoberta doindivduo.

    6 CONSIDERAES FINAIS

    A genealogia dos conceitos de indivduo e multido, ao menos no que respeita speculiaridades que tais categorias adquirem entre cientistas e literatos dos scs. XIX e incio doXX, confunde-se com a difuso da idia de processo civilizador.

    Conceber a configurao da sociedade como somatrio de elementos dotados de relativaautonomia (indivduos), creditar ao sujeito moderno a capacidade de autocontrole e devigilncia de pensamentos e aes e, ao mesmo tempo, mitigar estruturas coletivas quemarcaram a pr-modernidade.

    No entanto, a inveno da individualidade se d, tambm, como estratgia de controle deformas reais e imaginrias da desordem da multido. Nesse aspecto, a modernidade inauguradispositivos disciplinares que evitam que pessoas vivam e morram no anonimato.

    Descobrir os passos de quem se encontra aparentemente diludo em meio multido dasgrandes cidades. Com tal propsito, a literatura criou estilos e personagens urbanos e a cincia(e poltica) desenvolveu tcnicas higinicas e policiais. Mecanismos que, mais do que revelar

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    indivduos supostamente encobertos pelo manto das massas, os inventou, posto quedeterminaram ,atravs de taxonomias e hierarquias previamente estipuladas, o que ser doente,criminoso, louco. Categorias que contrastam com os anseios civilizadores de umasociedade formada por cidados saudveis dos pontos de vista mental e fsico.

    Ao menos nesse momento histrico (sc. XIX e princpio do XX), a anlise cientfico-literria sevolta contra todo fenmeno oriundo da mistura de pessoas nas cidades. Enfim, contra amultido sem controle.

    Notas

    1 Esta atrao desmedida e descontrolada pela multido est presente em outros trabalhos deE. A. Poe. Neste sentido, Assassinatos na rua Morgue conta a histria de um personagem(Monsieur C. Auguste Dupin) queadorava passear pelas ruas da Paris do sc. XIX, sempre atrado pela multido. Saamos sruas, lado a lado, ou simplesmente vagabundeando sem destino at alta madrugada,procurando entre as luzes e sombras, turbulentas da populosa cidade, aquele infinito deexcitao mental que somente a observao tranqila pode conceber .(POE, 2002, p. 94).

    2 Michel Foucault advoga, por caminhos pouco diferentes, a idia j apresentada de que oconceito de indivduo surge no sc. XIX. Para o filsofo francs, apenas com o advento dasociedade disciplinar se pode falar na individuao de sujeitos. Pois o poder produtor daindividualidade. O indivduo uma produo do poder e do saber. .(MACHADO, 1982, p. XIX).

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