O Mata Pau

download O Mata Pau

of 5

Transcript of O Mata Pau

  • 7/23/2019 O Mata Pau

    1/5

    O Mata-pau Monteiro Lobato

    Pncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de mataria virgem, sombria emida, tramada de taquaruus, aestoada de taquaris, com grandes !rvores vel"as de cu#osgal"os pendem cip$s e escorrem barbas-depau e musgos%%

    &uem sobe da v!r'ea, depois de transpostas as capoeiras da rai', ao emboscar-se de c"ore norio tnel vegetal que ( ali a estrada, inevitavelmente espirra% ) se ( "omem das cidades, poucoaeito aos aspectos bravios do sert*o, depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama%

    )xtasia-se ante a graciosa copa dos samambaiuus, ante as borboletas a'uis, ante as orqudeas,os liquens, tudo%

    +orea o animal sem o sentir mas n*o p!ra% ai parar diante, na olta ria, onde um broto d.!guagelada, a /uir entremeio 0s pedras, o tenta a sorver um gole aparado em ol"a de caet(% 1ebida a!gua, e dito que nas cidades n*o "! daquilo, leva-l"e a vista o soberbo mata-pau que domina ogrot*o%

    &ue raio de !rvore ( esta2 pergunta ele ao capata', pasmado mais uma ve'%

    ) tem ra'*o de parar, admirar e perguntar, porque ( duvidoso existir naquelas sertanias exemplarmais truculento da !rvore assassina%

    )u, de mim, conesso, 3' as tr4s coisas% O camarada respondeu 0 terceira5 6*o v4 que ( ummata-pau%

    ) que vem a ser o mata-pau2 6*o v4 que ( uma !rvore que mata outra% 7omea, quer vercomo2 disse ele escabic"ando as rondes com o ol"ar agudo em procura dum exemplar tpico%)st! ali um8 Onde2 perguntei, tonto%

    Aquele fapinho de planta, ali no gancho daquele cedro continuou o cicerone,apontando com dedo e beio uma parasita mesquinha grudada na orquilha de umgalho, com dois flamentos escorridos para o solo. Comea assinzinho, meia dzia deolhas piquiras; bota pra baio esse fo de barbante na ten!o de pegar a terra. " #aiindo, sempre naquilo, nem pra mais nem pra menos, at$ que o fo alcana o ch!o. "#ai ent!o o fo #ira raiz e pega a beber a sust%ncia da terra. A parasita cria &lego ecresce que nem emba#a. ' barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa acorda, passa a pau de caibro e acaba #irando tronco de (r#ore e matando a m!e, comoeste guampudo aqui concluiu, dando com o cabo do relho no meu mata)pau.

    7om eeito8 exclamei admirado% ) a !rvore deixa2 &ue ( que "! de a'er2 6*o descon3a denada, a boba% &uando v4 no seu gal"o uma isca de quatro ol"in"as, imagina que ( parasita en*o se precata% O 3o, pensa que ( cip$% +$ quando o malvado gan"a alento e garra de engrossar,( que a !rvore sente a dor dos apertos na casca%

    Mas ( tarde% O poderoso da por diante ( o mata-pau% 9 !rvore morre e deixa dentro dele a len"a

    podre%)ra aquilo mesmo8 O len"o gordo e vioso da planta acinorosa envolvia um tronco morto, adesa'er-se em carcoma% iam-se por ele arriba, intervalados, os terrveis cngulosestranguladores5 inteis agora, desempen"ada #! a miss*o constritora, #a'iam rouxos eatro3ados%

    :magina*o envenenada pela literatura, pensei logo nas serpentes de Laocoonte, na vboraaquecida no seio do "omem da !bula, nas 3l"as do rei Lear, em todas as 3guras cl!ssicas daingratid*o% Pensei e calei, tanto o meu compan"eiro era criatura simples, pura dos vcios mentaisque os livros inoculam% )ncavalgamos de novo e partimos%

    6*o longe dali a serra complana-se em rec"* e a mata mingua em capoeira rala, no meio da qual,em terreiro descoivarado, entremostra-se uma tapera% )sverdece o mel*o-de-s*o-caetano porsobre o derrudo tapume do quintale#o, onde laran#eiras com erva-de-passarin"o e uma ou outraplanta dom(stica marasmam agoniadas pelo mato suocante%

    9ntigo stio do )lesb*o do &ueixo d.9nta, explicou o camarada%

  • 7/23/2019 O Mata Pau

    2/5

    Largado2 perguntei%

    ;! que anos8

  • 7/23/2019 O Mata Pau

    3/5

    6*o se conta o terror de ambos aquilo era na certa alma penada de criana morta pag*% 7omo,entretanto, a pobre alma berrasse com pulmFes muito da terra, e cada ve' mais, )lesb*o duvidoudo bruxedo e, acendendo uma braada de pal"a, lanou-a ora pela #anela% O terreiro clareou at(longe e eles viram, a pouca dist=ncia, uma criaturin"a de gatas a berrar com desespero de quem( absolutamente deste mundo%

    ) n*o ( que ( uma criana de verdade2 exclamou ele, sado de um assombro e entradonoutro% ) agora2 Pois ( recol"4-la, disse Dosa, cu#o instinto de mul"er s$ via no caso um pobreen#eitadin"o ao l(u, a reclamar conc"ego%

    Decol"eu-o )lesb*o, depondo o c"orincas no colo da esposa% Dosa o estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmo tempo que assentavaG o marido%

    +e n*o aparecer a m*e, cria-se o aparecido% a' tanta alta um c"orin"o por aquiH

    6o dia seguinte bateram nas vi'in"anas em indagaFes, sem nada col"erem explicativo doestran"o caso% Desolveram, pois, adotar o pequeno%

    o pai de )lesb*o, consultado, ponderou? 6*o presta criar 3l"o al"eio%

    Mas como o consulente armasse cara de vacila*o, remendou logo a sua 3loso3a? Eamb(m n*o( caridade en#eitar um en#eitado e 3cou-se nisso%

    Dosa conservou o pequeno e deu com ele criado 0 ora de leite de cabra e caldin"os%

    A medida, por(m, que medrava, o menino pun"a a nu a m! ndole congenial% 6*o prometia boacoisa, n*o%

    )u avisei, recordou o vel"o, como )lesb*o se queixasse um dia da ruim casta do recol"ido%

    Meu pai disse tamb(m que n*o era caridade en#eitar um en#eitadoH

    B verdade, ( verdadeH con3rmou o 3l$soo de p(no-c"*o, e calou-se%

    Manuel 9parecido era o nome do rapa'in"o% 7omo tivesse ol"os gateados e cabelos louros de

    mil"o, denunciadores de origem estrangeira, puseram-l"e os vi'in"os a alcun"a de Duo%>an"ou ama de madrao, e o era pereito, inimigo de enxada e oice, s$ atento a negociatas,bargan"as, esperte'as% 9mado pela Dosa como 3l"o, livrava-o ela da san"a do esposoescondendo suas malandragens, porque )lesb*o vivia ameaando endireit!-lo a rabo de tatu%

    6*o endireitou coisa nen"uma% 7om de'oito anos era o Duo a peste do bairro, atarantador dospac3cos e traioeiro para com os escoradores%

    B ruim inteirado8 di'ia o povo%

    Por esse tempo navegava Dosa na casa dos trinta anos%

    7omo a n*o estragaram 3l"os, nem se estragou ela em grosseiros trabal"os de roa, valia muitomais do que em menina% O tempo curou-l"e a sapiroca, e deu-l"e carnes a boa vida%

  • 7/23/2019 O Mata Pau

    4/5

    Eudo transpira% Eranspirou nas redonde'as a eia maromba daqueles amores% 1oas lnguas, e m!s,boque#avam o quase incesto%

    &uem de nada nunca suspeitou oi o "onradssimo )lesb*o5 e como na porta dos seus ouvidosparavam os rumores do mundo, a vida das tr4s criaturas corria-l"es na toada mansa a que se d!o nome de elicidade%

    oi quando caiu de cama o pai de )lesb*o, doente de vel"ice%

    Mandou c"amar o 3l"o e alou-l"e com vo' de quem est! com o p( na cova? Meu 3l"o, abra os

    ol"os com a PocaH

    Por que ala assim, meu pai2 O vel"o ouvira o 'un'um da m! vida5 vacilava, entretanto, emabrir os ol"os ao empul"ado% 7orreu a m*o tr4mula pela cabea do 3l"o, aagou-a e morreu semmais palavra% +empre ora amigo de retic4ncias, o bom vel"o%

    )lesb*o regressou ao stio com aquele aviso a verrumarl"e os miolos% Passou dias de caraamarrada, acastelando "ip$teses%

    endo o marido assim demudado, casmurro, de pra'enteiro que era, Dosa caiu em guarda%7"amou de banda o Duo e disse-l"e? Lesb*o, des.que morreu o pai, anda amode que ervado%Mas n*o ( sentimento, n*o% )le descon3aH 9s ve'es pega de ol"ar para mim dum #eito esquisito,

    que at( me gela o cora*oH

    Manuel segurou o queixo e re/etiu% 7ontinuar naquela vida era arriscado% :r-se, pior5 nada possuade seu e trabal"ar para outrem n*o era com ele% +e )lesb*o morresseH

    6*o se sabe se "ouve concerto entre os am!sios% Mas )lesb*o morreu% ) como8 7erta ve', devolta da vila pr$xima ali pelo escurecer, caiu de borco na olta ria, barbaramente oiado nanuca%

  • 7/23/2019 O Mata Pau

    5/5

    Im dia o Duo ameaou de larg!-la, se n*o vendesse tudo, #! e #!5 e a pobre mul"er deu aobandido essa derradeira prova de amor% endeu por uma bagatela o que restava acumulado peloesoro do deunto a moenda, o mon#olo, a casa, o canavial em soca% ) combinaram para ooutro dia o ambicionado mergul"o na terra roxa%

    6essa noite Dosa despertou suocada por violenta umaceira% 9 casa ardia% +altou como louca daenxerga e berrou pelo Duo% 6ingu(m l"e respondeu%

    9tirou-se contra a porta? estava ec"ada por ora% O instinto 4-la agarrar o mac"ado e romper a

    uriosos golpes as t!buas ri#as% )scapa-se da ornal"a, rola para o terreiro com as vestes em ogo,precipita-se no tanque e, livre das c"amas, cai inerte para um lado #ustamente onde vinte anosatr!s vira o en#eitadin"o c"orando ao relentoH

    &uando de man"* passantes a recol"eram, estava d.ol"os pasmados, muda% Levaram-na emmaca para o "ospital, onde sarou das queimaduras, mas nunca mais do #u'o%

    oi eli', Dosa% )nlouqueceu no momento preciso em que seu viver ia tornar-se puro inerno%

    ) o Duo2 9balou com o din"eiroH

    9 parava a "ist$ria do )lesb*o, como a sabia o meu camarada% Im crime vulgar como os "! naroa 0s de'enas, se a lembrana do mata-pau o n*o colorisse com tintas de smbolo%

    6*o ( s$ no mato que "! mata-paus8H murmurei eu 3loso3camente, 0 guisa de coment!rio%

    O capata' entreparou um momento, como quem n*o entende%