O Julgamento de Nietzsche No Orkut - Alexandre Anello

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  • O JULGAMENTO DE NIETZSCHE NO ORKUT

    Alexandre Anello

    Capa: ANBAL TURENKO.

    Manaus 2007

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  • AGRADECIMENTOS

    Para no ser injusto com ningum, vou agradecer a Nietzsche por ter arregimentado este verdadeiro exrcito de pensadores que

    se reuniu para me ajudar a construir esta obra.

    3

  • NDICE

    AGRADECIMENTOS................................................................................. pg. 03

    PREFCIO ................................................................................................. pg. 05

    INTRODUO........................................................................................... pg. 07

    LIVRO PRIMEIRO Desfazendo mal-entendidos................................. pg. 11Consideraes Iniciais.................................................................... pg. 12

    1. Sobre o extermnio de mendigos..................................................... pg. 14

    2. Sobre Nietzsche ser anti-semita...................................................... pg. 19

    3. Sobre Nietzsche ser o Anticristo.................................................... pg. 23

    4. Sobre a loucura de Nietzsche.......................................................... pg. 27

    5. Sobre a morte de deus.................................................................. pg. 30

    6. Sobre Nietzsche ser machista......................................................... pg. 34

    7. Sobre Nietzsche ser niilista ou pessimista....................................... pg. 36

    8. Os herdeiros de Nietzsche............................................................ pg. 40

    9. A bibliografia de Nietzsche................................................................pg. 43

    LIVRO SEGUNDO Alguns pontos da filosofia de Nietzsche.............. pg. 491. O cristianismo e o niilismo............................................................... pg. 50

    2. Uma leitura da Genealogia da Moral............................................... pg. 65

    3. O eterno retorno e o alm-do-homem........................................... pg. 70

    4. Entrevista com Roberto Machado.................................................... pg. 75

    5. Alguns poemas ............................................................................... pg. 81

    LTIMAS PALAVRAS................................................................................ pg. 85

    BIBLIOGRAFIA........................................................................................... pg. 86

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  • PREFCIO

    As idias de muitos autores entram em nosso dia-a-dia como que de

    contrabando. No sabemos ao certo como, quando ou por que passamos a

    reproduzi-las. Tampouco sabemos como foram produzidas, as circunstncias e

    a poca em que foram concebidas. As usamos deslocando-as do contexto

    histrico e lgico em que foram concebidas e que lhes conferia sentido.

    Normalmente, essas idias nos aparecem como grandes snteses,

    como frmulas mgicas que nos ajudam a dizer em poucas palavras aquilo que

    nem com muitas conseguiramos expressar. Usamos essas idias com alto

    grau de liberdade, tanto para confirmar quanto para negar aquilo que nos

    parece que elas postulam.

    Como Maquiavel e Marx, para ficar com dois que so emblemticos da

    modernidade, Nietzsche desses pensadores que entraram para a cultura

    ocidental de modo enviesado. Seus aforismos e interpretaes so

    seguidamente citados, mas pouco lidos; suas posies so mais comentadas

    do que analisadas; suas contribuies so mais estigmatizadas do que

    compreendidas. Talvez sua iconoclastia e os longos e cheios bigodes tenham

    concorrido para uma espcie de mistificao de seu pensamento, que ora leva

    a associ-lo loucura, ora crueldade, ora ao niilismo.

    Foi para desfazer mal-entendidos e ressaltar algumas das contribuies

    da filosofia de Nietzsche para o pensamento que Alexandre Anello escreveu

    esta sinttica, clara e instrutiva obra. Mas seu ponto de partida no foi um

    interesse aleatrio e de carter estritamente pessoal pela obra de Nietzsche.

    Inquietou-o o modo como esse autor era recebido por comunidades do Orkut.

    Cruel, anti-semita, anticristo, louco, herege, machista e niilista. Esses

    eram alguns dos qualificativos que acompanhavam as discusses sobre

    Nietzsche no Orkut. Anello os toma como referncia para perscrutar a obra do

    prprio Nietzsche em busca de indcios que confirmem ou neguem tais

    imagens. Com isso, ele nos convida a um exerccio heurstico da maior

    importncia quando se pretende mergulhar no pensamento de outrem. Parece

    dizer-nos: se queremos saber o que Nietzsche disse, faamos as perguntas

    que nos inquietam a ele e tiremos nossas concluses. E isso o que faz.

    No exagero dizer que, partindo dos demnios dos outros, dos

    freqentadores das comunidades do Orkut, Anello procura desvendar aqueles

    que inquietavam Nietzsche, procurando saber se h adequao de sentido ou

    5

  • no entre o que muitos daqueles dizem do filsofo alemo e o que ele

    realmente escreveu. Por isso, este tanto um livro sobre a recepo das idias

    de Nietzsche quanto sobre Nietzsche.

    O esforo empreendido por Alexandre Anello nos mostra o quanto h de

    contrabando ideolgico em vrias das interpretaes correntes sobre

    Nietzsche. Isso se evidencia desde o ttulo da obra. Anello fala do julgamento e

    no da interpretao de Nietzsche, como a sugerir o predomnio de pontos de

    vista mais preocupados em afirmar seus prprios preconceitos do que em

    compreender os demnios alheios, as inquietaes de outrem.

    Para desfazer os mal-entendidos, esclarecer as injustias, o autor

    contrasta os julgamentos sobre Nietzsche com sua obra e biografia. Assume os

    demnios dos juzes como se seus fossem. Convoca, ento, o prprio

    Nietzsche e lhe pergunta: isso que pensas?

    Anello pe em evidncia, tambm, um objeto ainda fugidio, mas

    insinuante, que se coloca para a anlise das cincias sociais: as comunidades

    virtuais. Reconhece-as como espaos de sociabilidade, como lugares cuja

    virtualidade produz idias e debates que animam nossos modos de ser e estar

    no mundo. Quando faz isso, promove um criativo encontro entre a fora das

    novas tecnologias e a fora das idias, convertendo sua obra numa forma de

    registrar como o pensamento se atualiza, ganhando novos espaos,

    atravessando as relaes sociais.

    Recebemos todos uma excelente obra introdutria ao pensamento de

    Nietzsche e ao modo como ele vem sendo recebido, julgado; uma obra que nos

    convida a ler Nietzsche e a apreci-lo nas circunstncias em que escreveu,

    sem esquecer de nos indagarmos sobre as circunstncias em que o lemos, em

    muito por ele anunciadas.

    Marcelo Serfico. 1

    Porto Alegre, 06 de maro de 2007.

    1 Marcelo Serfico cientista social graduado pela UFAM, mestre em Sociologia pela UNICAMP e doutorando em Sociologia pela UFRGS.

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  • INTRODUO

    O OBJETIVO DESTA OBRA:

    Este livro pretende dizer, de maneira pragmtica, um pouco sobre quem

    foi o filsofo alemo Friedrich Nietzsche (1844-1900), analisar um pouco da sua obra, e ainda, mostrar ao leitor a importncia deste pensador para a

    Filosofia contempornea. Entende o autor que a delimitao entre Nietzsche e

    sua obra de extrema importncia. Pretende-se fazer uma abordagem ampla

    mas no superficial sem deixar de ser claro e objetivo - medida do possvel,

    para os simpatizantes da leitura e da Filosofia, em especial os no-filsofos (no

    sentido acadmico da palavra) os famosos filsofos eruditos. Enfim, um

    livro para os iniciantes e simpatizantes da Filosofia. Alm disso, esta obra

    tambm se prope a mostrar o lado bom dos sites de relacionamentos da

    internet, to famosos por estarem envolvidos em atividades no muito

    construtivas, mas que, acredite o leitor, tm arregimentado toda sorte de

    pensadores, filsofos, curiosos, artistas, etc. - gente da melhor qualidade em

    torno de debates filosficos diariamente. S para que o leitor tenha uma idia,

    h hoje dezenas de comunidades de Filosofia nos sites de relacionamentos,

    algumas delas com aproximadamente 100 mil membros.

    Transmutao de todos os valores uma das mximas

    nietzscheanas. Talvez a mais importante. Significa que a principal questo

    levantada pelo filsofo alemo foi que j estava na hora isso em 1800 e

    poucos de o homem retomar o seu papel de criador, inclusive de valores, e

    reavaliar os valores que at ento regiam (e regem) a humanidade. Para

    Nietzsche, j era hora do homem rever esses valores milenares e voltar a criar

    valores como o fizeram nossos ancestrais h muito tempo atrs. Assim foi

    inspirado esse livro: escrito por um erudito e fora do ambiente acadmico. Eis

    a uma boa aplicao da mxima nietzscheana citada acima. A obra contou

    ainda com a colaborao de outros pensadores orkutianos, notadamente o

    pensador Rosangelo Freitas, de cujos ensaios extraram-se boa parte do que

    aqui foi escrito, em especial, algumas abordagens no Livro Segundo desta

    obra.

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  • A HISTRIA DESTE LIVRO:

    Em julho de 2006, ao aderir a algumas comunidades de Filosofia de um

    site de relacionamentos na internet (o Orkut), percebi que o filsofo Nietzsche,

    no passava despercebido em tais debates filosficos. A maioria dos assuntos

    debatidos nos tpicos daquelas comunidades passava, invariavelmente, pelo

    nome do pensador alemo.

    Percebeu-se que Nietzsche sempre era citado em algum momento, em

    qualquer tema e que poucos eram indiferentes a ele. Uns simpatizavam com

    ele, outros o odiavam. Tal interesse acabou por se tornar o combustvel

    necessrio para que essa obra fosse posta em andamento. Conduzi

    pessoalmente alguns tpicos nas comunidades de Filosofia do Orkut e pude

    aprender quais eram as opinies dos participantes acerca do filsofo, assim

    como me dediquei leitura de suas obras para poder formar uma opinio

    razoavelmente embasada sobre sua obra.

    Com o passar do tempo, fomos descobrindo mais e mais sobre o filsofo

    dionisaco e seus pensamentos. Descobrimos que seu principal objetivo era

    derrubar dolos e, por isso, despertou o dio de muitos. Descobrimos que

    Nietzsche teve a coragem de romper com todo um pensamento predominante

    em sua poca, pensamento este que vinha, em parte, da era antes de Cristo e

    em parte, do prprio Iluminismo. Nietzsche foi, de modo resumido, o precursor do Ps-Modernismo na Filosofia, para dizer o mnimo.

    No incio dos debates, alguns participantes entravam nos tpicos de

    debates para cham-lo de demente, nazista, esquizofrnico, e outros

    adjetivos da mesma ordem. Com o passar do tempo, porm, muitos (no

    todos) passaram a perceber que Nietzsche foi o filsofo pr-vida e que, toda

    sua obra foi dedicada a isso: exaltar a vida como valor maior. Transmutar os

    nossos valores de modo que o nosso valor maior passe a ser A VIDA, e no

    deuses, semideuses, metafsicas e excessos de racionalidades: eis o principal

    escopo da filosofia nietzscheana.

    Pde-se perceber com o desenvolvimento dos tpicos, o quo difcil ,

    para o ser humano, desapegar-se de seus dolos, de suas crenas. Muitos a

    grande maioria tomam isso como uma afronta, uma ofensa pessoal. Por ter

    dedicado parte de seus estudos filosficos questo da moral sobretudo a

    moral crist; a fria dos fundamentalistas religiosos se manifestava, ora e outra,

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  • pela incapacidade de encararem as interpretaes do filsofo apenas como

    interpretaes: sentiam-se ofendidos, enfim.

    Paralelamente aos tpicos nas comunidades de Filosofia do Orkut, foi

    aberto um blog em sua homenagem (www.nietzschebrasil.blogspot.com), onde

    trechos da obra dele esto expostos para pesquisa, debate e consulta dos

    interessados. Comeava assim a nascer esse livro. Reforando o que j foi dito

    no incio, os objetivos deste livro so basicamente dois: divulgar a obra de Nietzsche ao pblico jovem, principalmente os freqentadores das comunidades do Orkut e, ao mesmo tempo, mostrar que h sim vida inteligente no Orkut, na juventude brasileira, em oposio s manchetes constantemente veiculadas, onde o Orkut no tem uma imagem positiva, muito

    pelo contrrio.

    O LANAMENTO DA PRIMEIRA EDIO ELETRNICA:

    No dia 19/1/2007 a primeira edio (experimental) deste livro foi

    disponibilizada para download. Abriu-se uma comunidade especfica para a

    divulgao do livro (O Julgamento de Nietzsche) e as adeses comearam a

    surgir. Em 29 dias o livro foi baixado da internet por 299 leitores. A comunidade

    cresce at hoje, quando se encontra com mais de 400 membros. Vrias foram

    as mensagens de congratulao pela iniciativa.

    Nesta comunidade, conseguimos entrevistar o Professor Ps-Doutor em

    Filosofia, Roberto Machado, na opinio do autor, a maior autoridade sobre

    Nietzsche no Brasil. Para quem no o conhece, alm de vrios livros

    publicados sobre Nietzsche, Foucault & Cia., o Professor Machado foi aluno de

    Michel Foucault e Gilles Deleuze, s para ilustrar o quilate deste brilhante

    filsofo brasileiro. Alguns ensinamentos adquiridos na referida entrevista foram

    acrescentados a presente edio, buscando agregar mais valor a esta obra.

    Hoje, a comunidade deste livro funciona como um centro de debates

    filosficos, alm de uma compilao de vrios sites de cultura em geral, onde

    seus membros tm acesso a links que possibilitam o download de todo tipo de

    obra escrita, especialmente as de Filosofia. Em suma, uma espcie de centro

    cultural gratuito.

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  • SOBRE ESTE LIVRO:

    Esta obra divide-se em dois livros:

    . LIVRO PRIMEIRO DESFAZENDO MAL-ENTENDIDOS

    Nesta parte, as principais injrias, difamaes e curiosidades levantadas

    no Orkut sobre o filsofo alemo so debatidas e analisadas em sua prpria

    obra e nas consideraes de estudiosos consultados, especialmente na prpria

    internet. Nos temas mais polmicos, buscou-se trazer para o amigo leitor as

    prprias palavras de Nietzsche, por meio de citaes, a fim de dirimir quaisquer

    dvidas acerca das interpretaes de suas mensagens.

    Finaliza-se o LIVRO PRIMEIRO apresentando ao leitor, em ordem

    cronolgica de publicao, todas as obras do filsofo alemo.

    . LIVRO SEGUNDO ALGUNS PONTOS DA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

    Aqui se traz tona, com a colaborao especial do amigo Rosangelo

    Freitas, alguns dos principais temas da filosofia de Nietzsche, suas principais

    idias.

    Que fique claro, entretanto, que no se tem aqui a pretenso de afirmar

    a verdade sobre Nietzsche, tampouco discorrer a fundo suas idias, com respaldo filosfico acadmico profundo. Tem-se apenas a inteno de tornar

    pblica uma interpretao sobre sua obra. Esto convocados os leitores a fazerem o mesmo: interpret-lo ao invs de ler o que os outros falaram sobre

    ele.

    No final, para dar um refresco, um pouco de arte: poemas de Nietzsche

    e de nossos amigos orkutianos, todos brilhantes escritores.

    Desejo a voc uma boa leitura.

    O Autor.

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  • LIVRO PRIMEIRO

    DESFAZENDO MAL-ENTENDIDOS.

    11

  • CONSIDERAES INICIAIS

    Nietzsche em 1882

    Entretanto, a desproporo entre a grandeza da minha alma e a PEQUENEZ dos meus contemporneos se evidenciou no fato de que no fui ouvido, nem sequer compreendido. 2

    Friedrich Nietzsche foi um homem muito alm de sua poca. Foi um

    extemporneo. Foi um marco na Histria do Pensamento Mundial e disso no

    h dvidas. Tal arrojo, no poderia ser diferente, custou-lhe caro. No foi

    compreendido. Foi solenemente ignorado pelos seus contemporneos. Isolou-

    se de sua prpria poca. Foi taxado de louco por estes e pelos discpulos

    destes. Isto, para dizer o mnimo.

    Nietzsche rompeu com toda uma linha de pensamento que vinha desde

    o advento do Iluminismo. Criticou ferrenhamente os adoradores da Razo, a

    saber, os iluministas e seus seguidores; criticou os religiosos, os niilistas, e

    mais, instituiu uma nova maneira de fazer filosofia: Nietzsche transvalorou os

    valores atacando todos os dolos que eram grandes e fortes.

    Tal ousadia custou-lhe muito caro, como j foi dito. Dentre seus

    detratores, toda sorte de calnias lhe foram auferidas em parte, por no o

    entenderem; em parte para desmerec-lo. Esta primeira seo desse livro

    cuidar disso. Desfazer os mal-entendidos sobre a obra e a pessoa de

    Nietzsche. Focar a obra, que o que realmente interessa. As questes aqui

    levantadas e analisadas foram extradas dos prprios tpicos sobre Nietzsche

    no site de relacionamentos mencionado, tendo como parmetros a obra do

    autor e alguns pensadores que sobre ele escreveram.

    2 Ecce Homo, Prlogo.12

  • Considera-se tal profilaxia de suma importncia principalmente para

    quem ainda no conhece Nietzsche antes de entrarmos nos conceitos

    bsicos de sua filosofia, propriamente dita. Citando o prprio Nietzsche:

    (..) como eu poderia misturarme queles aos quais se presta ouvidos atualmente? Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem pstumos. 3

    3 O Anticristo.13

  • 1 - Sobre o extermnio de mendigos

    Nietzsche aos 20 anos. Ainda sem sua marca registrada: o bigode.

    Ai! Onde se fizeram mais loucuras na terra do que entre os que tm d, e que haver que mais dano fizesse na terra do que a loucura dos que tm d?Pobres dos que amam sem estar acima da sua piedade!4

    Comearemos pelo Segundo Livro de Assim Falou Zaratustra, onde h

    um trecho em que Nietzsche, pela voz de Zaratustra, fala aos homens sobre a

    real natureza da compaixo crist; mas foi, por alguns, interpretado

    erroneamente como se estivesse pregando o extermnio fsico dos mendigos.

    Nesse trecho de sua obra, uma pessoa diz a Zaratustra que os homens

    estavam zombando dele por no estarem entendendo do que ele falava.

    Acusavam-no de chamar os homens de animais pejorativamente. Zaratustra

    explicou-se dizendo que o homem era mesmo um animal, mas que nisso no

    havia ofensa alguma (at porque as alternativas seriam os homens serem

    minerais ou vegetais). O ponto de Zaratustra era outro. O que ele dizia era

    que os homens eram os nicos, dentre os animais, a sentirem vergonha! Eis o tema secundrio desse trecho: a vergonha. Mas, vergonha de qu, Zaratustra?

    Segundo Zaratustra, por ser o nico animal portador da vergonha, o

    homem nobre impunha a si mesmo o dever de no se envergonhar. um

    sentimento que s o homem entre os animais - tem, mas que ao mesmo

    tempo, impe a si mesmo a obrigao de esconder-se dele. A vergonha, nesse

    caso especfico analisado por Nietzsche, ocorre devido existncia de

    mendigos nas sociedades. Segundo Zaratustra, o homem no quer se expor

    4 Assim Falou Zaratustra. Dos Compassivos.14

  • aos que sofrem; no quer ver nem ouvir falar deles. Zaratustra no via mrito

    algum nos misericordiosos (os portadores da compaixo crist), os que sentiam

    pena dos mendigos e davam esmolas. Tal piedade nada teria de amor, ao

    contrrio, seria fruto da vergonha que ele acabara de citar. Se ele Zaratustra -

    tivesse que ser piedoso, preferia s-lo distncia dos outros homens, para que

    ningum o visse sendo piedoso. Zaratustra convidou os amigos a fazerem o

    mesmo que ele, pois, tambm ele, sentia vergonha diante dos que sofrem.

    Ainda segundo ele, seu desejo era sempre encontrar em seu caminho

    homens que estivessem realmente vivos, lutando; pois, com estes homens ele

    poderia repartir vrias coisas, com as pessoas moribundas, no. Eis ento que

    ele comea a entrar no mrito da piedade crist, o assunto principal desse

    trecho. Zaratustra diz que quem no se diverte aquele que se sente culpado

    pelo pecado original uma clara aluso ao ascetismo cristo, to combatido

    por Nietzsche em toda sua obra. Para ele, se houve pecado original, este

    pecado foi justamente ter deixado de se divertir, ao contrrio do que pregavam

    os sacerdotes cristos. Divertir-se no pecado. Nesta parte, Nietzsche faz

    uma referncia ao deus Dioniso, o deus grego da alegria, da diverso, da

    msica e do movimento, outra crtica nietzscheana muito presente em sua

    obra. Nietzsche dizia que uma das caractersticas principais do cristianismo era

    o que ele chamava montono-tesmo, um trocadilho com a palavra

    monotesmo. Frequentemente, em sua obra, Nietzsche recorda-se dos

    tempos em que o homem ainda no havia abandonado o politesmo, donde ele

    elegera como seu deus favorito o deus Dioniso, especialmente por sua (de

    Dioniso) paixo pela msica, assim como Nietzsche. Voltando ao tema, ele

    atribui esse desinteresse pela diverso ao valor cristo culpa (pelo pecado

    original) que viria a ser a fonte de todo ascetismo cristo.

    Dizia ele que a existncia de mendigos nas sociedades, os miserveis,

    existem por nossa responsabilidade, como sociedade. O autor de Assim Falou

    Zaratustra, dessa vez, estende sua crtica sociedade que cegamente seguiu

    a razo (herana iluminista) e obteve como frutos, dentre outros, a

    marginalizao de muitos. Para ele, tal razo nada mais que o predomnio do

    Apolo (outro deus grego) sobre o Dioniso, da razo sobre a diverso, da razo

    sobre os instintos, da (tentativa de estabelecer-se) ordem sobre o caos. Foi

    seguindo tal razo que teramos chegado a esse ponto. Ns, homens,

    deveramos nos divertir mais, porque, quando estamos nos divertindo o nico

    momento em que no estamos contribuindo para fomentar aquela misria ou

    15

  • inventando dores, como a culpa pelo pecado original j citado. Percebam

    que o que Nietzsche disse foi claramente ratificado pelos pintores Paul Klee (1879-1940) e Edward Munch (1863-1944) em seus quadros Angelus Novus e Le Cri, respectivamente: pura crtica Modernidade!

    Le Cri (Munch) Angelus Novus (Klee)

    Ele diz mais: segundo Zaratustra, o mendigo que recebe a esmola

    sente-se humilhado, ofendido e, por isso, quem d a esmola deve depois disso

    lavar a mo, pois acabou de fazer mal a outrem. Mesmo os pequenos favores

    roem o orgulho dos homens, lembrando-os que os aceitaram por terem deles

    necessitado, por no terem sido capazes de obter o que desejaram ou

    precisaram com seus prprios esforos; este outro motivo de vergonha

    dessa vez dos prprios mendigos. Por isso, quanto aos seus ensinamentos

    (frutos de sua rvore), Zaratustra diz que prefere no o dar aos pobres, para

    no humilh-los; ele os convoca a virem arranc-lo dele, pois assim lhes

    menos humilhante.

    nesse momento que ele profere a frase que foi to mal interpretada:

    Dever-se-iam, porm, suprimir totalmente os mendigos. 5 A expresso suprimir, nesse caso, no tem nada de desumano (?) (sem falar nos eternos

    problemas de tradues), cruel; de maneira alguma deveria ser interpretada

    como sinnimo de matar, exterminar, etc. uma exortao at muito clara do

    autor para que o homem realmente evolua a ponto de no mais haver tais

    desequilbrios em suas sociedades a ponto de uns serem extremamente

    abonados enquanto outros morrem de fome e moram nas ruas.

    5 Em Assim Falou Zaratustra, Dos Compassivos.16

  • O que o filsofo fala aqui, ao que parece, que tanto a razo quanto a f

    crist nada fizeram para evitar que a sociedade produzisse mendigos seres

    discriminados, marginalizados. Eis a vergonha antes citada: no se ter

    evoludo, enquanto sociedade, a ponto de no mais existirem mendigos. Tanto

    quem d esmola quanto quem no d se desgosta. Os que crem no pecado

    original e os adoradores da razo sentem-se da mesma maneira:

    envergonhados. Tudo porque o homem mesquinho. Existem mendigos

    porque os homens so mesquinhos. Se no fossem mesquinhos, j os

    haveriam suprimido como ele disse. Tal mesquinhez tamanha que deixar que

    isso acontea vlido, o que no vlido ser rude, duro, como ele estava

    sendo naquele momento, chamando os cidados de mesquinhos. Por isso

    zombavam dele, porque ele no compactuava com essa vergonha. Ao

    contrrio, a expunha rudemente chamando os homens de animais de faces

    vermelhas6.

    Neste ponto de seu discurso, Nietzsche aprofunda-se na origem da

    piedade crist e a analisa enquanto dogma, enquanto valor antinatural. Diz que

    o prazer em dar esmolas (ser piedoso) uma pequena maldade onde o

    homem encontra alvio para suas grandes maldades, como construir

    sociedades injustas onde os excludos passam fome e tm de morar nas ruas,

    por exemplo. Reconhece que h na maldade, porm, certa nobreza a de

    no se esconder (aqui, Nietzsche faz uma colocao muito semelhante de

    Schopenhauer quando este diz que a dor nobre, pois no se esconde; ao

    contrrio: avisa, denuncia que algo est errado). A verdadeira maldade no se

    esconde, ela ri os homens. Por isso eles buscam prazer compensatrio nas

    pequenas maldades, pois estas mascaram as grandes maldades, as que lhes

    fazem sentir-se muito envergonhados, como o fato da mesquinhez de cada um

    produzir para a sociedade pessoas excludas, como os mendigos. aqui que

    entra, exatamente, o valor piedade crist, como sendo uma virtude (para os cristos). Para Nietzsche, nada h de virtuoso na piedade crist. Ela a

    pequena maldade que ele acabara de citar. Para no ter que encarar sua

    grande maldade a mesquinhez o cristo se apegaria sua pequena

    maldade a piedade para melhor sentir-se, sem deixar de ser mal e,

    principalmente, sem resolver o problema dos mendigos. Com tal interpretao,

    Nietzsche desfaz assim um pequeno dolo: a piedade crist como virtude, como fruto do amor. Enfim, amor seria suprimir os mendigos e no lhes dar

    6 Idem.17

  • esmolas para que eles continuem sendo mendigos. Resumindo: a piedade

    crist no foi criada para espalhar amor ao prximo, como professam os

    cristos, mas sim, para fazer os homens sentirem-se melhores com suas

    prprias conscincias, para mascarar sua prpria mesquinhez.

    Que o homem encare a sua maldade: ser mesquinho, sem se esconder

    atrs de pequenas maldades: ser piedoso. Eis a mensagem de Zaratustra.

    Mais frente, conclui que, para o bom convvio entre os homens

    necessrio saber guardar segredos: fingir que a piedade crist uma virtude,

    nesse caso. Quem no procede assim, como ele, mal-interpretado como

    estava sendo Zaratustra em tal episdio. Conclui-se, em uma perspectiva mais

    pragmtica, que Nietzsche no convocou ningum a matar mendigos, muito

    pelo contrrio; convocou seus leitores a analisarem suas atitudes enquanto

    cidados e a buscarem uma soluo real para o problema dos excludos. Alis,

    tal tema bastante comum em pases como o Brasil, quando as pessoas se

    questionam constantemente sobre o tema dar esmolas ou cidadania.

    Outra interpretao tambm cabe ao mesmo tema (a compaixo crist)

    em toda a obra de Nietzsche: ele teria sim, dito aos homens que matassem

    logo os mendigos, pois at isso seria menos desumano que impor a eles

    aquelas condies de vida por pura mesquinhez. Mesmo nessa perspectiva,

    no cabe a interpretao de que Nietzsche convocara os discpulos de

    Zaratustra a assassinar mendigos. Escolha sua perspectiva, interprete voc

    mesmo.

    Nietzsche, por Munchen.

    CONCLUSO: NIETZSCHE NUNCA DISSE QUE DEVERAMOS MATAR OS MENDIGOS!

    18

  • 2. Sobre Nietzsche ser anti-semita. 7

    Como? Vs escolhsseis a virtude e o peito estufado, mas olhais ao mesmo tempo invejosamente para as vantagens dos inescrupulosos? Com a virtude renuncia-se, contudo, s "vantagens"... (escrito na porta da casa de um anti-semita). 8

    O sentimento anti-semita imperava na Europa na poca de Nietzsche.

    Havia um forte sentimento anti-semita no povo alemo, grandemente

    influenciado pelos pensadores da poca em sua maioria, declaradamente

    anti-semitas. Frequentemente, Nietzsche criticava tal tendncia e mais: fazia questo de ser manifestamente contra. Para ele, o anti-semitismo nada mais era que uma das conseqncias do niilismo e do cristianismo daquela poca,

    especialmente do ltimo, pois os cristos da poca de Nietzsche justificavam

    seu dio aos judeus dizendo que eles, os judeus, haviam crucificado Jesus. Em

    Ecce Homo, ele chegou a dizer que pressentia que um dia teria seu

    pensamento associado a algo de monstruoso. Dito e feito. Alguns seres

    atriburam a Nietzsche a pecha de precursor do nazismo, sabe-se l com que

    razes: h quem creia que por pura burrice (no entenderam o que ele

    realmente quis dizer); enquanto outros crem em oportunismo, deturpando

    suas idias propositadamente, esquivando-se da responsabilidade da autoria

    (apenas o escolheram para bode expiatrio).

    Por se tratar de assunto extremamente delicado, onde as palavras e

    idias do filsofo tm sido mal interpretadas por muitos, pretendo abusar das

    citaes para explanar sobre este assunto em especfico. Assim, o leitor fica

    livre para ler nas prprias palavras de Nietzsche quais eram seus sentimentos

    em relao a este tema. Adianto que se trata de uma calnia odiosa,

    repugnante, tentar denegrir um pensador do nvel de Nietzsche, chamando-o

    de anti-semita.

    Nietzsche era avesso a temas polticos, evitava fazer comentrios a

    respeito disso ainda que o fizesse algumas vezes, especialmente contra o

    comunismo/socialismo, que ele considerava nada mais que um despotismo

    disfarado. Ele falou sim, em linhas gerais, sobre socialismo, comunismo,

    democracia, aristocracia, etc., mas sua obra foi preferencialmente voltada

    7 Anti-semitismo = dio aos descendentes de Sem, filho de No. A saber, todos os judeus e rabes (normalmente se pensa que s aos judeus).8Crepsculo dos dolos. Sentenas e setas, 19.

    19

  • anlise da moral e de seus preceitos antinaturais. Sua crtica era baseada

    nisso. Ele falava de filosofia, no de poltica.

    Ainda assim, inmeros foram os que tentaram conect-lo ao

    pensamento anti-semita, mesmo quando ele ainda estava vivo. A ligao de

    sua irm com o nazismo, mais tarde, veio a comprometer mais ainda tal juzo

    acerca de sua obra e de seus objetivos. Enquanto ainda estava lcido,

    Nietzsche rompeu relaes com a irm Elisabeth Fster por ela ter se casado

    com um anti-semita. Iniciemos vendo o que nos diz Antnio Souza sobre a

    idia de ter sido Nietzsche o precursor do nazismo:

    preciso afastar, em relao a pensadores como Nietzsche, o conceito de guerra propagandstico ou ingnuo -, que o encara como uma espcie de Rosenberg mais fino e procura ver no seu pensamento o precursor do nazismo. Este antipangermanista convicto deve ser considerado o que realmente : um dos maiores inspiradores do mundo moderno, cuja lio longe de exaurida, pode servir de guia a muitos problemas do humanismo contemporneo. (...) devemos reter e ponderar a sua tcnica de pensamento, como propedutica superao das condies individuais. O homem um ente que deve ser ultrapassado disse ele... (...)9

    Em uma carta irm, no Natal de 1887, Nietzsche enftico, dizendo

    que sua irm cometeu uma grande estupidez (para ambos) associando-se aos

    anti-semitas do Partido Nacionalista Alemo, que, mais tarde em 1920, viria a

    tornar-se o Partido Nazista Alemo (Ultranacionalista). Disse ainda que era

    uma questo de honra para ele ser o mais claro possvel quanto sua posio

    em relao ao anti-semitismo, a saber, que ele era nomeadamente contra e que considerava isso uma estupidez, e mais, que sentia nojo de tal Partido. Segundo ele, devido atitude dela, casando-se com um anti-semita, ele vinha

    sendo confundido frequentemente, recebendo cartas de apoio de anti-semitas.

    Dizia Nietzsche que os anti-semitas estavam utilizando-se do nome dele para

    se promoverem10. Mais claro impossvel.

    H tambm um aforismo em A Gaia Cincia (377) onde Nietzsche fala

    sobre os filsofos, enquanto espritos-livres, os sem-ptria e outro, em

    Crepsculo dos dolos, onde ele critica abertamente os anti-semitas. No 9 Mello e Souza, Antnio Cndido. Nietzsche Coleo Os pensadores. Editora Abril. Prefcio.10 You have committed one of the greatest stupiditiesfor yourself and for me! Your association with an anti-Semitic chief expresses foreignness to my whole way of life which fills me again and again with ire or melancholy. It is a matter of honor with me to be absolutely clean and unequivocal in relation to anti-Semitism, namely, opposed to it, as I am in my writings. I have recently been persecuted with letters and Anti-Semitic Correspondence Sheets. My disgust with this party (which would like the benefit of my name only too well) is as pronounced as possible. Friedrich Nietzsche, Letter to His Sister, Christmas 1887.

    20

  • primeiro trecho ele se afirma europeu antes de ser alemo, rejeita a idia de

    ser alemo por no concordar com os pensamentos alemes daquela poca e

    critica tal postura escancaradamente, sem deixar dvidas de seu repdio aos

    sentimentos que teriam motivado o ultra-nacionalismo na Alemanha, naqueles

    tempos.

    (...) No, no amamos a humanidade; mas, por outro lado, somos muito pouqussimos alemes, no sentido que a palavra tomou nos nossos dias, para poder falar em favor do nacionalismo e do dio das raas, para nos regozijarmos com esta lepra do corao, com este envenenamento do sangue, que faz com que os povos da Europa se isolem, criem barricadas, se ponham de quarentena. Somos muito imparciais para isso, maus espritos e delicados, estamos muitssimo bem informados e viajamos muito: (...)11

    Nietzsche disse mais, em Para alm do Bem e do Mal, aforismo 250,

    onde fez elogios aos judeus enquanto povo, dizendo que a Europa deve muito

    a eles. Disse que os artistas e os filsofos deviam muito a eles tambm. 12 No

    aforismo seguinte, Nietzsche faz uma crtica ferrenha aos alemes e sua

    xenofobia exacerbada, seus idealismos. 13

    No se deve confundir a anlise que Nietzsche faz sobre a moral

    judaico-crist com anti-semitismo ou nazismo, portanto. Lembremos que

    Nietzsche rompeu sua amizade com um de seus maiores amigos, Richard

    Wagner, justamente porque este aderiu ao cristianismo, transformou sua

    msica em msica das massas e, principalmente, por Wagner ter simpatizado

    com a causa anti-semita.Wagner condescende a tudo que desprezo, at o anti-semitismo. 14

    11 A Gaia Cincia, aforismo 377.12 O que a Europa deve aos judeus? Muitas coisas, boas e ms, e antes de mais nada uma coisa que tem do melhor e pior para dar: o estilo grandioso da moral, o terrvel e a majestade de postulados imensos, de infinitos significados, todo o romantismo e o sublime dos problemas morais e conseqentemente a parte, mais interessante, embaraosa e procurada pelo caleidoscpio de sedues da vida, que ilumina com seus ltimos clares a cu, o pr-do-sol, talvez, de nossa civilizao europia. Ns artistas entre os espectadores e os filsofos nos sentimos reconhecidos por isso aos judeus.. Para Alm do Bem e do Mal, aforismo 250.

    13 (..)se tem, em resumo, qualquer acesso de imbecilidade; assim, por exemplo, os alemes da atualidade cultivaram a demncia anti-francesa, outras, a anti-semita, a anti-polaca, a romntico-crist, a wagneriana, a teutnica, a prussiana (..)Mas os judeus so incontestavelmente a raa mais vigorosa, mais tenaz e mais genuna que vive na Europa, sabem caminhar nas piores condies (e talvez muito melhor que em condies favorveis) e isto quanto a tais virtudes (..)seria adequado afastar, de todos os pases, os agitadores anti-semitas. (..) Idem, aforismo 251.

    14 Nietzsche Contra Wagner21

  • No faltam abortos de qualquer gnero, nem mesmo os anti-semitas. Pobre Wagner! At onde chegara! Fosse dar pelo menos em meio de sunos! Mas... Entre alemes!... 15

    Papa Pio XII abenoando Hitler e o exrcito nazista. Ser que Nietzsche se referia a

    isso, quando dizia que deveramos expulsar os sacerdotes do nosso convvio?

    CONCLUSO: NIETZSCHE NUNCA FOI ANTI-SEMITA! ELE DESPREZAVA OS ANTI-SEMITAS!

    15 Ecce Homo, Humano, Demasiado Humano, 2.22

  • 3. Sobre ser Nietzsche o Anticristo.(...) A prpria palavra cristianismo um mal-entendido no fundo s existiu um cristo, e ele morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz. O que, desse momento em diante, chamou-se de Evangelho era exatamente o oposto do que ele viveu: ms novas, um Dysangelium. um erro elevado estupidez ver na f, e particularmente na f na salvao atravs de Cristo, o sinal distintivo do cristo: apenas a prtica crist, a vida vivida por aquele que morreu na cruz, crist..16.

    Foto-montagem: Nietzsche usando uma coroa de espinhos

    Nietzsche deu a uma de suas obras o ttulo de O Anticristo17 e ele mesmo

    assinou como tal. Podemos observar, porm, que nada h em sua obra contra

    a pessoa de Jesus Cristo. Muito pelo contrrio. Claro que isso no significa o

    reconhecimento de Jesus como Deus ou filho do Tal em momento algum. Para

    ele, Jesus era um homem. Um homem aparentemente frente do seu tempo

    por suas supostas idias e atitudes, mas ainda assim um homem. Sua crtica a

    Paulo de Tarso comeou a partir da: da dificuldade de entender quem

    realmente foi Cristo lendo-se os Evangelhos. Para Nietzsche, o Novo

    Testamento deveria ser lido com luvas 18, pois se tratava de uma obra

    extremamente obscura, produzida deliberadamente com o objetivo de dar

    poder ao sacerdote, ao padre; pois, sem a interpretao do pregador, o Novo

    Testamento seria um livro totalmente sem nexo, incompreensvel. Da a

    necessidade constante de recorrer-se utilizao de metforas para interpret-

    lo. Tal necessidade de interveno do sacerdote acaba por explicar a origem

    de um dos argumentos cristos: o de a Bblia ser um texto realmente divino

    16 Em O Anticristo.17 Na verdade, h controvrsias a respeito de Nietzsche ter dado esse nome a sua obra. Este um dos livros que foi publicado aps sua morte. Estava pronto, mas Nietzsche no o publicou. Ficou doente antes. 18 Em O Anticristo.

    23

  • porque, mesmo 2.000 anos aps (o NT, pelo menos) ela ainda pode ser

    considerada atual. Ora, ela no atual por ter sido escrito por inspirao

    divina, mas sim, por estar sendo constantemente interpretada, por sacerdotes

    atuais. Voltemos a Nietzsche, portanto.

    Sua crtica recai impiedosamente sobre Paulo de Tarso, que o filsofo

    entende como tendo sido o verdadeiro criador do cristianismo. A crtica dele

    contra a antinaturalidade dos dogmas cristos e a tentativa de difundir o ideal

    asctico cristo como nico caminho que levaria a uma suposta salvao da

    alma para uma vida vindoura em um paraso alm-mundo, segundo

    Nietzsche: apelo a conceitos metafsicos em detrimento dos fsicos. Negao

    da vida real (esta) em favor de uma vida imaginria (o paraso cristo).

    Para Nietzsche, Paulo de Tarso fundou uma religio baseada no

    sentimento de culpa, o que ele considerou como uma herana judaica.

    Argumentos totalmente embasados no fato dos cristos terem adotado o Antigo

    Testamento judaico como livro santo tambm e ainda, adorarem o mesmo

    Deus que os judeus. Paulo interpretou equivocadamente (com motivao

    questionvel) o que o Cristo de melhor havia deixado para a humanidade a

    sua atitude perante a cruz. A interpretao de Paulo, para Nietzsche, foi clara:

    Paulo propagou a idia de que Jesus havia morrido na cruz para salvar os

    homens do pecado, criando no homem um sentimento de culpa to grande que

    s o arrependimento poderia salv-lo. Tal teoria comprova-se amplamente na

    estratgia crist para converso de adeptos, quando os pregadores cristos,

    desde o sculo I, saam (e ainda o fazem nos dias de hoje) s ruas gritando:

    Arrependei-vos, pecadores! O fim est prximo; Jesus voltar e julgar a

    todos.

    Eis o cerne da crtica do alemo a Paulo: o cristianismo idealizado por

    Paulo ressaltava uma suposta perfeio divina com o nico objetivo de imputar

    ao homem uma sensao de total imperfeio, de incapacidade, de misria

    espiritual. Assim, consciente de sua imperfeio e sua incapacidade, no

    haveria ao homem nenhuma alternativa alm de buscar refgio no suposto

    Altssimo. Para tal, seria necessrio reforar o sentimento de culpa no homem,

    sem o qual no haveria de que o mesmo arrepender-se. Sem essa culpa, sem

    esse arrependimento, no haveria converses. Mas, como fazer com que os

    homens se sentissem culpados? Arrependidos?

    Foi para preencher essa lacuna que, de acordo com Nietzsche, Paulo

    criou uma alegoria: a que Deus havia criado suas leis e, por serem perfeitas,

    24

  • nem Ele mesmo as poderia desrespeitar. Nesse mbito, vendo Deus que o

    mundo estava corrompido pelo mal e, tendo que cumprir suas prprias leis,

    ou seja, condenar o homem morte eterna; Deus criou um artifcio para

    burlar sua prpria lei por amor ao homem, segundo Paulo. Assim, Deus fez

    um Filho perfeito, sem pecado, mas carnal. Enviou-o ao mundo para que ele

    fosse crucificado pelo homem e acabasse por se tornar seu intercessor junto

    ao prprio Deus. Assim, mesmo sendo pecador, todo aquele que acreditasse

    no Filho encontraria o perdo do Pai. Estava assim criada a maior razo para

    se tornar um cristo: salvar sua prpria alma, professando amor pelo Cristo.

    Nietzsche afirmara, em O Anticristo, que o Evangelho morreu na cruz. O

    nico cristo que at hoje viveu, morreu na cruz. 19 Era essa outra crtica de

    Nietzsche a Paulo: o Evangelho ser uma obra que nada tinha de Cristo, uma

    obra na qual era impossvel at mesmo entender quem foi realmente Cristo,

    definir seu perfil psicolgico. 20

    A crtica do filsofo recai sobre o cristianismo, sobre a sua moral, sobre

    seus dogmas, sobre a sua metafsica e sobre seu niilismo. Segundo ele, o

    cristianismo no tinha qualquer ponto de contato com a realidade; tal religio

    oferece causas puramente imaginrias Deus, alma, eu, esprito, livre-

    arbtrio, etc. e efeitos imaginrios pecado, salvao, graa, punio,

    beno, remisso dos pecados, etc. 21.

    Relacionamento entre seres invisveis (imaginrios) Deus, espritos e

    almas com histrias igualmente imaginrias negao total do conceito de

    causas naturais, idiossincrasia moral-religiosa presena de Deus, tentao

    do demnio, alm de uma teologia imaginria reino de Deus, vida eterna

    e juzo final. Tais conceitos constituem-se, de acordo com o filsofo em uma falsificao da realidade. O cristo passa a viver negando o mundo real, adotando o ideal asctico como estilo de vida, na esperana de que, agindo

    assim, ir morar eternamente num mundo perfeito onde no precise nem

    trabalhar... (Seriam os cristos, no fundo, apenas preguiosos?).

    Nietzsche entendia que o cristianismo adotara uma ttica simples: tudo

    que fosse natural seria chamado de pecado e seria atribudo ao Diabo,

    criando assim, no cristo, uma verdadeira parania que culminaria com o dio

    a si mesmo. O amor ao mundo fictcio ps-morte nasceria do dio contra o que

    19 Em O Anticristo. 20 Idem.21 A Genealogia da Moral.

    25

  • natural. dio ao corpo pela salvao da alma. Manifestaes do corpo

    instintos entendidas como desejos diablicos.

    Como a destruio dos instintos implicaria na destruio do prprio ser,

    Nietzsche concluiria que o Cristianismo tende a alimentar o dio ao prprio

    corpo, o dio a si prprio e, obviamente, ato contnuo, o dio ao outro, o dio

    ao prximo 22.

    Ele questiona, em sua obra, sobre quem teria a necessidade de fugir,

    dessa maneira, da realidade. Conclui que s poderia ser quem sofre com ela.

    O cristianismo a preponderncia do sofrimento sobre o prazer, tal

    preponderncia a causa moral do cristianismo. Eis a a frmula da

    decadncia humana, para Nietzsche.

    Ainda segundo Nietzsche, o pior do asceta justamente a sua

    necessidade de ascetismo... 23

    CONCLUSO: O VERDADEIRO ANTICRISTO FOI PAULO DE TARSO!

    22 Julio Daio Borges. 23 Em O Anticristo.

    26

  • 4. Sobre a loucura de Nietzsche.

    Eu sou uma coisa: outra a minha obra. 24 Mesmo nos tempos de mais grave doena, nunca me tornei doentio. 25

    Nietzsche figura com destaque no panteo dos intelectuais

    extraordinrios cuja genialidade confundida com patologia 26. O que mais se

    fez entretanto foi confundir-se Nietzsche, a doena de que foi acometido e

    sua obra. No foram poucos os que buscaram explicaes patolgicas para as

    idias de Nietzsche, por no o terem entendido ou terem dele discordado.

    Confundiram obra e autor, e mais, confundiram interpretaes equivocadas

    sobre sua obra com a sua obra propriamente dita. Nietzsche passou a ser o

    avalista in memorian de todas as interpretaes e aes equivocadas de sua

    prpria obra.

    Tal confuso entre homem e obra no se deu por acaso e nem por m-

    inteno, puramente. Isso foi fruto de todo o pensamento de uma poca,

    sobretudo dos eugenistas e dos social-darwinistas. Estes senhores

    classificavam os indivduos em dois grupos: aptos e inaptos para a existncia.

    Rotulavam os inaptos de degenerados (incapacitados de contriburem para o

    avano da espcie). Pensavam que eles poderiam contribuir geneticamente,

    corrompendo a humanidade. Os degenerados seriam portadores de um destino

    patolgico irremedivel e, pior, no vislumbravam nenhuma possibilidade de

    cura para estes. A falta de expectativa de cura, por sua vez, fomentaria tais

    indivduos a cometerem atos anti-sociais. No caso dos pensadores, em

    especfico, os eugenistas acreditavam que eles se voltariam para a destruio

    da sociedade burguesa e seus valores por meio de suas obras 27, por serem

    formadores de opinio. Ainda segundo os eugenistas, a nica soluo era

    esterilizar tais elementos ou mand-los para a cmara de gs. 28

    Estes amveis senhores criaram, assim, o habitat perfeito para que os

    crticos de Nietzsche considerassem sua obra como produto de sua

    degenerao. A doena manifestada aos seus quarenta e quatro anos,

    passara, segundo tais, a ser considerada algo que estava l o tempo todo e,

    pior, que havia influenciado definitivamente sua obra durante a sua 24 Ecce Homo. Por que escrevo livros to bons.25 Ecce Homo. Por que sou to sbio.26 Miscolci, Richard. 27 Miscolci, Richard. 28 Idem.

    27

  • composio. Em tudo isso h somente uma inteno: transformar Nietzsche e

    sua obra em uma coisa nica, a despeito do que o prprio Nietzsche afirmara.

    Nietzsche estava to frente de sua poca que sabia at de que seria acusado

    pelos seus detratores.

    Fato que Nietzsche ficou doente depois de participar como enfermeiro

    da guerra Franco-Prussiana. Ele mesmo percebeu que havia se tornado um

    decadente por estar doente. Ele mesmo alertou para o fato de estar

    consciente disso e mais, de sentir-se apto a pensar saudavelmente, apesar de

    estar doente.

    necessria uma explicao: no sou eu to-somente um decadente; sou tambm o contrrio de um decadente. Uma prova evidente disso, entre outras, o fato de ter instintivamente discernido sempre os justos meios nas situaes difceis, enquanto quem somente decadente procura constantemente os meios que lhe so perniciosos. 29

    A escola francesa ps-estruturalista redimiu Nietzsche das

    interpretaes distorcidas sem apelar para uma reviso que expurgasse os

    aspectos problemticos de sua obra. 30 Michel Foucault desenvolveu, por

    exemplo, o que veio a ser chamado de metodologia arqueolgica partindo dos

    ensinamentos nietzscheanos, sobretudo da metodologia genealgica criada

    pelo alemo. Assim, uma nova maneira de abordagem dos fenmenos

    histricos foi criada e muitos puderam com ela aprender. Foucault segue

    Nietzsche ao partir de uma questo presente como ponto de partida de uma

    investigao histrica e, de forma muito refinada, faz da histria um processo

    de compreenso da emergncia de uma questo social. A isto Foucault

    chamou de metodologia arqueolgica. 31. O interessante que, quando

    Nietzsche desenvolveu tal metodologia, poucos, para no dizer ningum,

    entenderam do que se tratava. Chamaram de loucura.

    29 Ecce Homo, Por que sou to sbio, #2.30 Miscolci, Richard.31 Idem.

    28

  • O pensamento de Nietzsche tem muito mais a oferecer aos leitores que no se desviem dele atravs de especulaes sobre a sade ou doena do filsofo. Os livros de Nietzsche no tm um poder de infeco maligno, antes de incitar reflexo lcida e transformadora. Quem assim os compreender perceber que uma coisa foi a loucura do filsofo, um acidente no percurso de sua existncia; outra foi seu pensamento, o qual ainda provoca os que ousam penetrar em sua profundidade e incomoda maioria dos que tentam se desviar dele.32

    CONCLUSO: NIETZSCHE PROPS-SE A DESTRUIR TODOS OS DOLOS DE SUA POCA E POR ISSO FOI CHAMADO DE LOUCO PELOS QUE NO CONSEGUIRAM ACOMPANHAR SUAS IDIAS. O RESTO ESTRIA.

    32 Idem.29

  • 5. Sobre a morte de Deus.

    (...) Deus est morto! Deus continua morto! E ns o matamos! Como nos consolar, a ns, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo at ento possura sangrou inteiro sob os nossos punhais quem nos limpar deste sangue?33

    Eis outro ponto interessante sobre as interpretaes que se do s

    palavras deste filsofo. Primeiramente, sugiro ao leitor muito cuidado com suas

    fontes de pesquisa, em especial na internet. O site wikipedia brasileiro, por

    exemplo, est muito atrasado em relao ao americano e ao espanhol. Sobre a

    questo da morte de deus, por exemplo; o wikipedia brasileiro afirmava que

    tal afirmao referia-se, SEM DVIDA, ao fato de deus ser Jesus e este ter

    morrido na cruz. Quem j leu algo sobre Nietzsche, ou pelo menos, leu o item 3

    deste livro j deve ter percebido que isso um absurdo.

    Outra interpretao equivocada, sob a minha tica, a questo de

    Nietzsche, por ter sido filho e neto de pastor, ter sido preparado para ser um

    pastor, ter dito deus morreu como sendo sua renncia carreira de pastor.

    Ele iniciou, inclusive, estudos sobre teologia, antes de optar pela Filologia

    Clssica. Alguns pensadores entenderam que a afirmao sobre a morte de

    deus fosse uma ruptura de Nietzsche com Deus; que Nietzsche acreditava em

    Deus e, por alguma mgoa pessoal, passou a neg-lo, como maneira de

    manifestar sua revolta. Especulaes sem sentido.

    Primeiramente, que fique claro uma coisa: o fato de um cidado ser

    pastor no - em hiptese alguma, muito pelo contrrio prova de que ele acredite na existncia de um deus. Tenho c minhas dedues at de que isso

    seja prova de que ele sabe no haver nenhum Deus. Apenas uma opinio.

    Ainda assim, Nietzsche nos diz:

    Deus, imortalidade da alma, redeno, alm, todos esses so conceitos que nunca levei em conta; nunca com eles sacrifiquei meu tempo, nem mesmo em criana; talvez nunca fosse bastante ingnuo para faz-lo? Para mim o atesmo no nem uma conseqncia, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto. Sou bastante curioso, suficientemente incrdulo, demasiado insolente para contentar-me com uma resposta to grosseira. Deus uma resposta rude, uma indelicadeza contra ns, pensadores; antes, dizendo-se a verdade, no seno um tosco empecilho contra ns mesmos: no deveis cogitar dele! 34

    33 A Gaia Cincia, aforismo 125.34 Ecce Homo, Por que sou to inteligente.

    30

  • Tumba de Nietzsche em Rcken - Alemanha. A nica desculpa de Deus nunca ter existido. 35

    O romancista russo Fiodr Dostoievski, um dos preferidos de Nietzsche,

    em seu livro Os irmos Karamazov, pela voz de um dos personagens (o ateu

    Ivan Karamazov) disse que se Deus no existe, ento tudo permitido. H

    quem veja nessa frase a influncia para a afirmao de Nietzsche sobre a

    morte de deus. Sobre isto trataremos mais adiante, quando falarmos sobre o

    niilismo e o cristianismo, na segunda parte deste livro. H quem diga at que

    no h tal frase na obra do Russo, mas isso irrelevante, por ora. A existncia

    ou no de deus, sua morte, etc., no tem tanta importncia na obra de

    Nietzsche, como se pensa; o que realmente preocupava o filsofo era a

    questo da herana da moral judaico-crist. No seu entender, os europeus

    muito embora se afirmassem curados dos cacoetes do Cristianismo ,

    continuavam a cultivar velhos hbitos da antiga moral. 36

    Tal desconfiana de Nietzsche se confirmava nos pensadores

    modernos, herdeiros dos iluministas, que, mataram Deus, mas colocaram em

    seu lugar a Razo. Nietzsche alerta em sua obra o que veremos mais tarde

    detalhadamente que o mesmo raciocnio que levava os homens certeza da

    existncia de um deus antes do Iluminismo, estava sendo utilizado no apelo

    exacerbado Razo. A manifestao mais clara disso se dava na busca da

    35 Frase de Stendhal, que Nietzsche confessou publicamente t-lo invejado por diz-la antes dele.36 Julio Daio Borges.

    31

  • coisidade, a coisa-em-si, o ser, na filosofia. Mais frente, Nietzsche

    afirmara que no estamos livres de Deus por ainda termos f na gramtica37.

    Portanto, no se deve pensar na afirmao de Nietzsche como uma

    continuao ou confirmao de um tema levantado pelo personagem Ivan

    Karamazov. O Alemo foi muito alm disso. Ele afirmava que no havia mais nem a necessidade de um deus para a humanidade. A libertao de Deus s seria completa com a mudana no modo de pensar do prprio homem. Ao

    invs de perguntar-se: existe um deus?, o homem deveria passar a perguntar:

    para que serve um deus?, ou ainda: temos mesmo a necessidade de um

    deus?.

    Trocamos a nossa f em Deus pela f na cincia.

    Eis a, a origem da necessidade da transmutao dos valores, para

    Nietzsche.

    Para o filsofo, a ausncia de Deus, o vazio deixado onde antes havia a

    crena em Deus, era a fonte do materialismo cientfico moderno. Ressalte-se

    que, para a cincia, naquela poca, a vida no passava de um mero acidente

    de percurso. O materialismo cientfico constituir-se-ia, assim, na origem do

    niilismo negao de todos os valores inclusive a vida. Em sendo Nietzsche o filsofo preocupado com a exaltao da vida, no haveria de

    concordar com nenhum dos dois: nem niilismo, nem cristianismo.

    37 Crepsculos dos dolos A Razo na Filosofia.32

  • O primeiro, negando tudo, inclusive a vida; e o ltimo negando esse

    mundo em favor de outro metafsico (o reino de Deus).A runa da interpretao moral do mundo, que no tem mais nenhuma aceitao hoje em dia, a mesma que depois tentou refugiar-se no alm, termina em niilismo... A impossibilidade de uma nica interpretao do mundo algo a que se dedicou uma fora descomunal leva desconfiana de que todas as interpretaes do mundo so falsas. Tudo perde o sentido... Estamos cansados porque perdemos a nossa motivao principal. Foi em vo at agora... 38

    Nietzsche enxergava assim, a situao: o homem cria em um trono

    santo, onde nele sentava-se um Deus poderoso, criador de tudo; inclusive

    dele, homem. Com o cientificismo que se propagava, alguns homens

    destronaram tal deus e, em seu lugar, colocaram a Razo e a Cincia como

    valores maiores; capazes de tudo explicar, tudo julgar. Nietzsche tinha uma

    terceira opinio. Para ele, o valor maior era a vida. No tnhamos que tentar explic-la e sim am-la incondicionalmente (amor fati) - pois somos parte

    dela, e no o contrrio. Quanto ao trono, se este existisse realmente, o nico

    ser digno de sentar-se nele seria o alm-do-homem, este sim, o nico capaz de

    criar novos valores. Em suma: quando o homem deixar de se sentir criatura e

    passar novamente a se sentir criador, renascer o alm-do-homem.

    CONCLUSO: A MORTE DE DEUS SIGINIFICA, NA REALIDADE, A MORTE DA NECESSIDADE DE UM DEUS.

    38Genealogia da Moral.33

  • 6. Sobre Nietzsche ser machista.A mulher, quanto mais mulher , tanto mais se defende com as mos e com os ps contra tudo o que for direito: o estado de natureza, a eterna guerra entre os sexos, lhe d h muito o primeiro lugar. 39

    Salom (com chicote na mo), Paul Re e Nietzsche.

    Como podemos ver pela citao acima, Nietzsche no considerava a

    mulher como o sexo fraco, ao contrrio do que muitos poderiam pensar. Antes,

    devemos nos lembrar do contexto em que Nietzsche viveu. Ele no era to

    machista quanto os cristos (a exemplo de Lutero40); ou ainda como

    Schopenhauer41; mas era sim machista, principalmente quanto a determinados

    assuntos relativos relao entre os sexos.

    Na opinio do filsofo, a principal funo da mulher, seu objetivo maior

    na vida, era ter filhos. Isto antes de qualquer coisa. Ele dizia que para a mulher,

    o homem era apenas um meio. O fim era a maternidade.

    Isto posto, somado ao contexto histrico em que Nietzsche viveu; duras

    crticas acabaram sendo proferidas por ele em relao aos movimentos

    feministas da Europa sua poca. Suas crticas tinham por base alguns

    pontos.

    39Ecce Homo, Por que escrevo livros to bons, 5.40Lutero aconselhava as mulheres, se caso seus maridos permitissem-nas ir aos cultos, que, estando na igreja, no se manifestassem sem a autorizao deles.41Schopenhauer se referia s mulheres como bpedes fmeas.

    34

  • O movimento feminista, no incio, nada tinha a ver com igualdade de

    direitos pura e simplesmente; o incio do movimento feminista, na Alemanha

    principalmente, assemelhava-se mais a um movimento de masculinizao das

    mulheres, e no, uma apologia aos direitos delas. Era ainda algo bastante

    confuso, onde as mulheres vestiam-se como homens, portavam-se como

    homens. Tal atitude seria inadmissvel, na perspectiva do filsofo. Quem sabe no serei eu o primeiro psiclogo do eterno-feminino?! Amam-me todas, o que uma velha histria; menos as desgraadas, as emancipadas, s quais falta a fibra para dar filhos ao mundo. Afortunadamente, no penso de modo algum deixar-me dilacerar; a mulher perfeita, quando ama, destri. Conheo estas amveis Mnades... (...) 42

    Outra importante interpretao de Nietzsche sobre a funo da mulher

    na sociedade diz respeito ao alm-do-homem, ao guerreiro. Dizia ele que o

    homem realmente bom era o homem guerreiro (ele chegou a esse conceito

    atravs da anlise da origem dessa palavra, bom; que descobriu ter nascido

    na poca dos gregos). Guerrear era nobre. Para ele, a mulher ser-lhe-ia

    importante sendo me de seus filhos e sendo ainda, amante e me dele prprio

    (do guerreiro). A mulher deveria dar prazer como amante e cuidar, como me,

    de seu guerreiro.

    Ainda sobre o movimento feminista, penso que talvez Nietzsche

    reconsiderasse algumas posies se tivesse tido a oportunidade de conviver

    com as mulheres do sculo XXI; mulheres independentes, globalizadas,

    conectadas, sem, contudo, deixarem de ser femininas. Mulheres que

    conciliam as tarefas de donas-de-casa, mes, profissionais e, tudo isso, sem

    perderem sua feminilidade, sua beleza. O fato , entretanto, que Nietzsche

    deparou-se com mulheres nada femininas querendo tomar o lugar dos homens.

    Viu tambm nisso uma formao de mentalidade de rebanho pregando algo

    que ele tinha como antinatural: mulheres tomando o lugar dos homens o que poderia trazer mais confuso ainda sociedade naqueles tempos. Isso,

    sem mencionar a feira das alems daquela poca...

    CONCLUSO: NIETZSCHE PODE AT TER SIDO MACHISTA, MAS COM ALGUNS DESCONTOS A SEREM LEVADOS EM CONTA!

    42 Idem.35

  • 7. Sobre Nietzsche ser niilista ou pessimista.(...) Foi precisamente nos anos da minha mais dbil vitalidade que eu cessei de ser pessimista; a necessidade instintiva de restabelecer-me afastou-me da filosofia da misria e do desnimo (...). 43

    Niilismo e pessimismo estavam intimamente ligados poca de

    Nietzsche. Os niilistas eram pessimistas por excelncia. Schopenhauer era

    pessimista e niilista. O niilismo europeu foi um dos dolos a que Nietzsche

    props-se a derrubar, inclusive, criticando o cristianismo por ser uma forma de

    niilismo (alm do budismo e o seu nirvana). Mais frente, na segunda parte

    dessa obra, o niilismo merece um captulo parte, sob a tica exclusiva de

    Nietzsche. Vejamos, ento, o que seria o niilismo-pessimismo em linhas gerais,

    antes de prosseguirmos no prximo livro sobre isso.

    Mas o que niilismo, afinal? Primeiramente, a palavra original

    nihilismo, donde o prefixo nihil significa nada em alemo. Nihilismo viria a

    ser, portanto, a doutrina do nada. Vejamos outras definies:

    a) Doutrina que admite que o nada (nihil), alm de ser, ou de haver,

    capaz de ser pensado. O argumento de Grgias (pura falcia), que

    defendia tal doutrina, era o seguinte: Se posso pensar em alguma

    coisa, porque ela existe; ora, se posso pensar no nada, porque o

    nada existe. 44

    b) Chama-se de niilismo toda posio filosfica, doutrinria, tica que

    preconize uma supervalorizao desse conceito negativo de nada, e

    ainda empreenda sua atividade social ou doutrinria no que destrutivo,

    no que aniquila o que h, ou que pretende, em suma, destruir todos os

    valores para afirmar os desvalores. 45

    Nietzsche foi um crtico do niilismo e o classificou em positivo e negativo, ativo e passivo. Ativo o que destri os valores. Ele positivo quando destri para substituir por outro valor que julga ser melhor, superior,

    mais nobre; e, negativo, quando consiste na no-oposio ao destrutivo. passivo quando aceita a destruio sem criar obstculos e sem participar diretamente dela uma cumplicidade passiva. Essa cumplicidade ser

    positiva ou negativa medida em que colabore com a destruio para

    43 Ecce Homo. Por que sou to sbio. 2.44 Dicionrio de Filosofia e Cincias Culturais.45 Idem.

    36

  • construir ou somente pela destruio. Nietzsche considerava-se um niilista

    ativo positivo, pois desejava destruir os valores da sociedade de sua poca, para dar-lhes valores outros mais nobres, mais dignos para o homem, uma

    nova escala de valores onde o valor maior seria a vida, e no o nada.

    Um exemplo tpico de niilista pessimista, ou passivo negativo foi

    Schopenhauer. No incio dos estudos de Nietzsche (em 1865, mais

    precisamente), este se impressionou com a obra-prima de Schopenhauer O

    Mundo como Vontade de Representao e nela se inspirou no incio de seus

    estudos e escritos (Nietzsche comea a romper definitivamente com

    Schopenhauer e Kant a partir de Humano, Demasiado Humano). Abandonou

    esse pensamento e partiu justamente de onde Schopenhauer errou, de

    acordo com Nietzsche. Segundo Schopenhauer (na minha interpretao e de

    forma resumidssima), o mundo seria uma vontade de representao: em

    suma, tudo era uma representao de si mesmo; nada existia

    verdadeiramente. O ser tinha as mesmas caractersticas do no-ser. Nem a

    vida propriamente dita existia. O niilismo consistia basicamente nisso,

    naquela poca: no acreditar em nada, no ter valores de referncia algum.

    Nietzsche pegou da, e desenvolveu (adaptando seu pensamento quele de

    Schopenhauer) sua definio sobre a vida. Segundo ele, a vida seria vontade

    de potncia, o impulso que move o ser, o eterno vir-a-ser, ou, devir.

    Movimento. Transformao. Superao. Luta de foras.

    Como se v. Fica clara a diferena entre ambos. Enquanto

    Schopenhauer buscava consolo para o seu nada no budismo, onde o nirvana

    se apresentava como a soluo para os problemas atravs da ausncia de

    desejos (quem no deseja nada no sofre por no conseguir tal coisa);

    Nietzsche filosofava com o martelo, proferindo pensamentos como este:

    37

  • Ningum pode construir em teu lugar as pontes que precisars passar, para atravessar o rio da vida. Ningum, exceto tu, s tu. Existem, por certo, atalhos sem nmeros, e pontes, e semideuses que se oferecero para levar-te alm do rio; mas isso te custaria a tua prpria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um nico caminho por onde s tu podes passar. Onde leva? No perguntes, segue-o! 46Enquanto Nietzsche escrevia palavras como as acima, Schopenhauer

    dizia:

    1. A felicidade no seno o momento fulgaz da ausncia de infelicidade; 2. "A vida um pndulo que oscila entre a angstia e o tdio"3. "O otimismo uma zombaria amarga das desgraas do homem";4. "Quando tentamos transformar a nossa miservel existncia numa sucesso de

    alegrias, gozos e prazeres, no conseguimos evitar a desiluso; muito menos o seu acompanhamento obrigatrio, que so as mentiras recprocas." 47

    5. Viver sofrer.6. "No existe desgraa que no possa se tornar pior". (Se bem que essa faz

    sentido...).7. "Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida dor.8. Quanto mais elevado o esprito do homem, mais sofre. 9. A vida no mais do que uma luta pela existncia com a certeza de sermos

    vencidos.10. A vida uma incessante e cruel caada onde, s vezes como caadores, outras

    como caa, disputamos em horrvel carnificina os restos da presa.

    46Assim Falou Zaratustra.47Aforismos para a Sabedoria de Vida.

    38

  • Creio que a comparao acima demonstra a diferena entre um

    pessimista e Nietzsche. Isso no significa, porm, que Schopenhauer no

    tenha sido um brilhante filsofo. Ele foi. A filosofia desenvolvida por

    Schopenhauer foi extremamente bem articulada, muito bem embasada. A

    Filosofia e Nietzsche devem muito a Schopenhauer. Mas isto j so outros

    500...

    Resumindo: a soluo para completar a obra iniciada pelos outros

    niilistas, os passivos, era descobrir qual seria o valor maior para critrio de referncia que no fosse o nada, claro. Nietzsche descartava a hiptese de ser o nada. Para ele, transmutar os valores significava isso; dar um novo valor aos prprios valores, e no simplesmente negar todos os valores.

    Perguntar-se sempre: o que mais importante?. Sua resposta foi: a vida, o valor maior.

    Em Humano, Demasiado Humano, aforismo 28, Nietzsche nos fala que

    pessimismo e otimismo so palavras de m reputao. Diz que no h necessidade do emprego de nenhuma delas e mais; que s os tagarelas tm

    necessidade de us-las. 48

    Segundo ele, o otimismo serve para quem tem a necessidade de

    defender um deus que criou um mundo perfeito (pois ele, Deus, smbolo da

    perfeio); e diz mais: pergunta ele que ser pensante ainda tem a necessidade

    de um deus? (Humano Demasiado Humano, 28); enquanto o nico objetivo

    dos pessimistas provocar os advogados de Deus 49 - os telogos dizendo

    que o mal governa, que a dor maior que o prazer, que o mundo uma obra

    malfeita, etc.

    Ocorre que, pelas palavras dele, hoje, os nicos que ainda se importam

    com os telogos so os prprios telogos. mais que evidente o fato do

    mundo no ser nem bom nem mal, nem melhor nem pior e, que os conceitos

    de bom e mau s fazem sentido para o homem. So interpretaes

    humanas.

    CONCLUSO: NIETZSCHE FOI O PRIMEIRO NIILISTA ATIVO POSITIVO E NO ERA PESSIMISTA NEM OTIMISTA!

    48Humano, Demasiado Humano.49Humano, Demasiado Humano. Aforismo 28.

    39

  • 9. Os herdeiros de Nietzsche

    Nietzsche deixou um legado que at hoje no foi totalmente explorado

    pela humanidade. Muitos grandes pensadores partiram de Nietzsche, como

    Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980), e at mesmo o

    recm-falecido pragmatista Richard Rorty (1931-2007). H quem diga que o

    prprio Sigmund Freud (1856-1939) foi muito influenciado pela obra de

    Nietzsche (o que Freud negou: disse nunca ter lido nada sobre o Alemo).

    Destacaremos, entretanto, os trs principais herdeiros (ou descendentes) da

    filosofia de Friedrich Nietzsche: Michel Foucault, Gilles Deleuze e o brasileiro

    Roberto Machado.Michel Foucault (1926 1984)

    "No me pergunte quem sou e no me diga para permanecer o mesmo".

    Principais obras:

    1. Vigiar e Punir;2. A Histria da Sexualidade;3. Microfsica do Poder.

    possvel dividir a obra de Foucault em trs perodos: a arqueologia do saber, que engloba seus textos da poca de 60, a genealogia do poder, que est em seus estudos dos anos 70, e a genealogia da tica ou do sujeito, como tambm chamada, que Foucault comeou nos anos 80, at morrer em

    84. 50

    50 Roberto Machado, em entrevista comunidade do Orkut O Julgamento de Nietzsche.40

  • Nietzsche quem ofereceu como alvo essencial, digamos, ao discurso filosfico, a relao do poder, enquanto para Marx era a relao de produo. Nietzsche o filsofo do poder, mas que chegou a pensar no poder sem se encerrar no interior de uma teoria poltica. (...) Quanto a mim, os autores de que eu gosto, eu os utilizo. O nico sinal de reocnhecimento que se pode ter para com um pensamento como o de Nietzsche precisamente utiliz-lo, deform-lo, faz-lo ranger, gritar. 51

    Gilles Deleuze (1925-1995)

    "A filosofia a arte de formar, inventar, fabricar conceitos".

    Principais obras:

    1. Diferena e repetio;2. Spinoza e o problema da expresso;3. Crtica e clnica.

    (...) Eu digo a mim mesmo: quem hoje em dia o jovem nietzscheano? Ser aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? possvel. Ou bem ser aquele que voluntria ou involuntariamente , pouco importa, produz enunciados particularmente nietzscheanos no decorrer de uma ao, de uma paixo, de uma experincia? 52

    51 Entrevista de Michel Foucault a J. J. Bronchier, publicada com o ttulo Os fogos do Poder.52 Gilles Deleuze em Pensamento Nmade.

    41

  • Roberto Machado (22/04/1942)

    Mais importante do que pensar determinados filsofos, isto , ter erudio em filosofia, seguindo cursos para se ilustrar, procurar pensar por si mesmo ou ousar pensar. 53

    Roberto Cabral de Melo Machado Bacharel em Filosofia pela Universidade Catlica de Pernambuco (1965), Mestre (1969) e Doutor (1981)

    em Filosofia pela Universit Catholique de Louvain - Blgica. Foi ouvinte na

    Universidade de Heidelberg, no ano letivo de 1969-70.

    Fez vrios estgios no Collge de France, sob a orientao de Michel Foucault, entre 1973 e 1980, e Ps-doutorado na Universidade de Paris VIII, com Gilles Deleuze, em 1985-1986.

    Principais obras:

    1. Danao da norma. Medicina Social e a constituio da psiquiatria no Brasil. 2. Nietzsche e a verdade.3. Deleuze e a filosofia. 4. Zaratustra, tragdia nietzschiana. 5. Foucault, a filosofia e a literatura. 6. O nascimento do trgico: de Schiller a Nietzsche. 7. Foucault, a cincia e o saber.

    A filosofia de Nietzsche tem uma dimenso crtica ou uma tarefa negativa muito importante. Essa tarefa, presente em todos os momentos de sua obra e em cada um de seus livros, basicamente uma crtica da modernidade, como ele afirmou em Ecce homo. isso, inclusive, que o faz voltar ao passado, criticar a metafsica e o cristianismo e mostrar que a modernidade positivista, humanista no introduz nenhuma ruptura fundamental. 54

    53 Roberto Machado, em entrevista comunidade O Julgamento de Nietzsche.54Idem.

    42

  • 10. A bibliografia de Nietzsche

    A bibliografia de Nietzsche vastssima. Ele nos deixou inmeros ensaios,

    cartas e, principalmente, bons livros. Vamos a eles:

    1. O Nascimento da Tragdia:

    Publicado em 1872, despertou a fria do helenista Mllendorf (1848-

    1931), a quem Erwin Rohde e Richard Wagner responderam com

    veemncia.55 Nietzsche reflete sobre a cultura grega e a relao entre a arte e

    o conhecimento. O principal enfoque a complementaridade de dois princpios

    antagnicos: o apolneo (artes plsticas, beleza do deus Apolo); e o

    dionisaco (do deus Dioniso deus da msica, da dana, da alegria). Nietzsche

    atribui a uma influncia socrtica a supresso do apolneo sobre o dionisaco,

    na tragdia grega.

    De acordo com o Autor, a tragdia uma prova precisa de que os gregos no

    eram pessimistas. 56 Nesta obra, Nietzsche acusa Scrates de ter sido o

    instrumento da decomposio grega como tipo decadente. O raciocnio em

    oposio ao instinto. 57 Para uma melhor compreenso desta obra, sugiro a

    leitura do livro O Nascimento do Trgico: de Schiller a Nietzsche, do

    Professor Roberto Machado. Nietzsche chega a dizer, em Ecce Homo, que ele

    tinha o direito de se considerar o primeiro filsofo trgico, o que, para ele, era

    a perfeita anttese do filsofo pessimista; assunto sobre o qual discorreu-se

    algumas pginas atrs.

    2. As Intempestivas (ou Consideraes Extemporneas):

    Livro composto por quatro Consideraes Extemporneas, ou

    Intempestivas. A primeira, publicada em 1873 se chamou Primeira

    Considerao Extempornea: David Strauss, o Devoto e o Escritor. Em 1874

    vieram:Segunda Extempornea: Da Utilidade e Desvantagens da Histria para

    a Vida, e Terceira Extempornea: Schopenhauer Educador. Em Junho de

    1876 publicada a Quarta Extempornea: Richard Wagner em Bayreuth

    55 Nietzsche, Vida e Pensamentos Martin Claret.56 Ecce Homo. Porque escrevo livros to bons. O Nascimento da Tragdia.57 Idem.

    43

  • (nesta poca, Nietzsche e Wagner deixavam de ser amigos). Em Novembro

    deste ano, encontra-se pela ltima vez com Wagner que viria a tornar-se um

    desafeto de Nietzsche. Mais tarde, Nietzsche afirma que tudo o que foi dito

    sobre Wagner e Schopenhauer, nessas obras, na verdade era sobre ele

    mesmo: Nietzsche.

    As quatro Extemporneas viriam a se tornar, mais tarde, um livro nico.

    3. Humano, Demasiado Humano:

    Publicado em 1878, este livro marca o incio da segunda fase de

    Nietzsche. 58 Na minha opinio, melhor livro para se iniciar a ler Nietzsche.

    Marca o incio do uso dos aforismos como estilo de sua escrita. O subttulo

    Um Livro Para Espritos Livres, d o tom dessa obra. Nela, no prlogo,

    encontramos as seguintes palavras de Nietzsche: Dedicado memria de

    Voltaire, em comemorao ao aniversrio de sua morte, em 30 de maio de

    1778. 59 Mais adiante, Nietzsche afirma que Voltaire foi um dos grandes

    libertadores do esprito. 60

    Nesta obra, Nietzsche fala sobre vrios temas (em 638 aforismos):

    metafsica, arte, literatura, poltica, moral, religio, etc. Um detalhe interessante

    sobre essa obra, que Nietzsche, por estar acometido de difteria aps a

    Guerra Franco-Prussiana, no teve foras para escrever o livro, propriamente.

    Ele limitou-se a ditar seus pensamentos enquanto o amigo Peter Gast o

    escreveu. Disse Nietzsche, em Ecce Homo: (...) ditava-o com a cabea

    dolorida, envolta em compressas; ele o escrevia, corrigia-o, enfim; era o

    verdadeiro escritor enquanto eu no passava de autor.

    4. Aurora Pensamentos Sobre os Preconceitos Morais:

    Lanado em 1881, neste livro Nietzsche comea sua campanha contra

    a moral (Ecce Homo). A epgrafe do livro, h tantas auroras que no

    brilharam ainda (tirada das Escrituras Indianas) resume a esperana de

    Nietzsche em um mundo novo, livre de iluses: o que ele chamava de grande

    meio-dia.

    58 Vrios estudiosos do filsofo concordam que Nietzsche teve 3 fases. Ele mesmo reconhece, em Ecce Homo, que o tom mudou completamente.59 Humano, Demasiado Humano. Prlogo original.60 Idem.

    44

  • Neste excelente livro, Nietzsche comea a sua crtica a moral judaico-

    crist-ocidental e todos os preconceitos a ela associados, como livre-arbtrio,

    Deus, pecado, etc.

    Comea a se delinear sua crtica ao cristianismo, e portanto, os padres

    no so poupados. Com Aurora, Nietzsche comea a luta contra a moral da

    renncia de si mesmo. 61

    5. A Gaia Cincia:

    Publicado em 1882. Um detalhe muito importante, para quem pretende

    ler Nietzsche, que sua obra prima, Assim Falou Zaratustra, na verdade,

    comea no ltimo captulo desta obra. Portanto, para uma melhor

    compreenso, sugere-se que se inicie a ler Assim Falou Zaratustra lendo

    antes A Gaia Cincia.

    Nesta obra, Nietzsche nos traz, pela primeira vez, a sua teoria sobre o

    eterno-retorno (que falaremos mais tarde). um dos melhores livros de

    Nietzsche e, contm grande quantidade de poemas escritos por ele. Ele

    considerava que este livro tratava basicamente da mesma coisa que Aurora,

    porm num grau bem superior (Ecce Homo). Ainda sobre os poemas: este

    livro foi escrito quando Nietzsche se recuperou de uma de suas piores crises

    de sade. Ao levantar-se e sentir-se fortalecido, decidiu escrever alguns versos

    em homenagem ao ms de janeiro. Ele considerou toda essa obra um

    ofertrio.

    6. Assim Falou Zaratustra Um Livro para Todos e para Ningum.

    Nietzsche comeou a escrev-lo em 1883 e terminou em 1885. A

    concluso da primeira parte, em 13 de fevereiro de 1883 (escreveu-a em

    apenas 10 dias), coincidiu com a morte de Wagner em Veneza vtima de

    ataque cardaco. Este livro a obra-prima do senhor Friedrich Nietzsche. Livro de estilo bblico e potico, Assim falou Zaratustra serve para

    anunciar a sua teoria do eterno-retorno e mais: anunciar o alm-do-homem

    (outro conceito que veremos mais adiante). Tais conceitos seriam teis,

    segundo Nietzsche, para derrotar a moral de rebanho crist e o ascetismo

    servil predominante na cultura ocidental.

    61 Ecce Homo.45

  • No h o que falar sobre esse livro. Apenas a sugesto: LEIA!.

    7. Para Alm do Bem e do Mal Preldio de uma Filosofia do Futuro.

    Escrito em 1886. Nietzsche aborda, nesta belssima obra, o problema do

    idealismo metafsico e os valores morais que o condicionam. Prope uma nova

    abordagem, um novo mtodo de investigao: a metodologia genealgica (que

    tambm falaremos mais adiante sobre o ttulo Uma abordagem sobre a

    Genealogia da Moral).

    Neste livro, Nietzsche afirma que os valores morais vigentes no Ocidente

    (sobretudo) tm sua origem na reao dos fracos, que colocam o Bem como

    a negao das aes dos mais fortes. 62 Nasce aqui outro conceito

    nietzscheano: a Vontade de Potncia. Para ele, bom deveria ser tudo que

    vem dela; mal tudo que age contra ela (que vem da fraqueza, no caso). Este

    um dos livros mais completos de Nietzsche. Leitura recomendadssima.

    Esta obra , na essncia, uma crtica modernidade no excludas as

    cincias modernas, as artes modernas, e at a poltica moderna -, dando

    tambm indicaes acerca de um tipo oposto, bem mais que moderno, um tipo

    nobre, afirmativo. 63

    8. A Genealogia da Moral.

    Publicado em 1887, inicialmente como um adendo a Para Alm do Bem

    e do Mal, este livro acabou por se tornar uma das mais importantes obras do

    filsofo. Mereceu, inclusive, um captulo especial na segunda parte deste livro,

    onde se far uma abordagem genealogia da moral.

    9. Crepsculo dos dolos Como Filosofar com o Martelo.

    Escrito em 1888. Nietzsche chamava este livro de o demnio que ri. 64

    Foi o ltimo livro que Nietzsche viu publicado antes do colapso psquico que se

    lhe acometeu em Turim.

    62 Para Alm do Bem e do Mal.63 Ecce Homo64 Idem.

    46

  • 10. O caso Wagner.

    Escrito em 1888. Ressinto-me de que a msica tenha sido privada do

    seu carter afirmativo e trasnfigurador do mundo, que se tenha tornado msica

    de decadncia, no sendo mais a flauta de Dioniso.... 65 Assim Nietzsche

    comea a narrar esta obra, onde ele busca mostrar a popularizao da

    msica de Wagner como resultado de sua converso ao cristianismo. Mais

    frente, ele diz que Wagner se resumira a tudo que ele desprezava, at ao anti-

    semitismo. Eu estimei muito Wagner. 66

    11. O Anticristo.

    Tambm de 1888. Talvez o maior primeiro livro lido de Nietzsche,

    atualmente. Foi publicado pela irm de Nietzsche quando este j no mais

    tinha conscincia da realidade. Nesta obra, o Alemo faz uma crtica pesada ao

    cristianismo, sobretudo figura de Paulo de Tarso o verdadeiro anticristo,

    para Nietzsche. Para ele, o cristianismo nada tem de Cristo. O Evangelho

    morreu na cruz; como j falamos acima.

    Considero um erro comear a ler a obra de Nietzsche por esse livro (eu

    mesmo comecei por esse livro); pois, sem ter lido toda a anlise que o filsofo

    fez nos primrdios de sua obra acerca da influncia da herana judaica sobre o

    cristianismo pode levar o leitor a interpretar equivocadamente que

    Nietzsche se referia ao povo judeu, e no sua ideologia religiosa baseada no

    arrependimento, pecado, castigo, etc., que vieram a ser a base do cristianismo

    e que Nietzsche considerava como absurda e nociva humanidade.

    12. Ecce Homo.

    Outro livro escrito em 1888. Trata-se da autobiografia de Nietzsche.

    Escreveu esse livro preocupado com interpretaes equivocadas que

    pudessem vir a acontecer acerca de suas idias. Resolveu ele mesmo falar

    sobre si e suas obras. Tem ttulos interessantes, como Porque sou to sbio;

    Porque escrevo livros to bons; Porque sou um destino. Uma boa dica para

    quem quer comear a ler Nietzsche. Comear por Ecce Homo.

    65 Ecce Homo.66 Idem.

    47

  • 13. Nietzsche contra Wagner & Ditirambos de Dioniso.

    Ambos tambm escritos em 1888 antes do surto. O primeiro trata da

    questo musical, tambm mencionada em O Caso Wagner, e o ltimo um

    livro de poemas.

    14. Vontade de Potncia.

    Trata-se de uma coletnea de ensaios, pensamentos e rascunhos

    deixados por Nietzsche que foram ordenados e organizados por sua irm e

    publicados. Nietzsche no escreveu essa obra como ela se apresenta, ainda

    que, tudo que est escrito nela seja obra sua.

    Feita esta profilaxia, podemos passar, na segunda parte desta obra, ao

    estudo (sem muito aprofundamento) dos principais pontos da Filosofia

    desenvolvida pelo Senhor Friedrich Wilhelm Nietzsche.

    48

  • LIVRO SEGUNDO

    ALGUNS PONTOS DA FILOSOFIA DE NIETZSCHE

    49

  • O CRISTIANISMO E O NIILISMO 67

    O que significa niilismo? que os valores mais altos se desvalorizam. Falta a

    finalidade; falta a resposta ao por qu?. 68

    O niilismo, a desvalorizao dos valores mais elevados historicamente

    constitudos, no um fato isolado que ocorre eventualmente em uma cultura,

    mas sim a dinmica essencial da histria. Assim, a histria se perfaz como

    declnio. No entanto, de maneira diferente do que pensa o senso-comum, a

    decadncia, o movimento da histria, no deve ser pensado como algo

    puramente negativo, mas como o processo que permite que a histria se faa

    como criao. O prprio carter violento de toda quebra de valores possui um

    carter altamente necessrio, pois ele que possibilita ao homem desvelar o

    mundo para si a fim de que se abram novas possibilidades de ser.

    neste sentido que Nietzsche recusa o excesso de memria em Da

    Utilidade e da Desvantagem da Histria para a Vida, pois a tendncia a ficar

    preso ao passado estrangula e mumifica a vida, no possvel voltar atrs e

    desfazer o que foi feito. Uma vida saudvel aquela que compreende que

    todo o horizonte de realizao sempre o futuro. Se no houvesse este

    processo de negao do anterior em direo a novas possibilidades, a rigor,

    no haveria histria, pois o tempo ficaria preso e amarrado e a cultura seria

    monoltica e monocromtica. Esta tendncia da cultura a se eternizar e lanar

    seus tentculos sobre a vida pode perfeitamente mumific-la e paralis-la, no

    permitindo que ela siga sua dinmica mais prpria.

    Nesta perspectiva, o uso que Nietzsche faz da palavra niilismo

    ambguo medida que ela designa tanto o declnio, quanto o prprio processo

    67 Escrito a partir de um ensaio de Rosangelo Freitas.68Vontade de Potncia.

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