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XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis 1 O INSTITUTO DA REMISSÃO NO PROCESSO DE CONHECIMENTO DE ATO INFRACIONAL Mariane Mauss dos Santos Mestranda em Direito UniRitter [email protected] Resumo:O presente trabalho busca analisar o processo de responsabilização de adolescentes pela prática de Ato Infracional, especialmente no que concerne ao instituto da remissão previsto nesse no procedimento. Inicialmente, por meio da retomada da evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente no cenário nacional, com especial ênfase nas alterações registradas no ordenamento jurídico pátrio após a ratificação da Convenção dos Direitos da Criança e do Adolescente e, posteriormente, com o advento e implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, pretende-se pontuar as inovações trazidas com a implementação da Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente, com especial atenção à doutrina da proteção integral e à proteção da pessoa em peculiar condição de desenvolvimento. Em decorrência do procedimento especial e célere de apuração da prática de ato infracional, pretende-se demonstrar a violação de garantias ocorridas no curso do processo de conhecimento, especialmente naquilo que concerne ao instituto da remissão, traçado um paralelismo entre o que acontece no direito penal dos adultos no que tange à oferta de transação penal. Palavras-chave: Ato Infracional. Principio da Proteção Integral. Remissão. 1. Introdução A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou direitos e garantias extremamente inovadores no ordenamento jurídico nacional. Isto porque, nos anos que antecederam sua vigência, não existia quase nenhuma previsão normativa voltada especificamente para crianças ou adolescentes em conflito com a lei. 1 Dentre as modificações ocorridas em virtude da criação do Estatuto destacam-se as diferenciações realizadas no sistema de responsabilização juvenil, pois adolescentes autores de ato infracional passaram a receber um tratamento diferenciado, observando sua personalidade. A explicitação do 1 PAES, Janiere Portela Leite. O código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente: Avanços e retrocessos. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-codigo-de-menores-e-o-estatuto-da-crianca-e-do- adolescente-avancos-e-retrocessos,43515.htm > Acesso em: 09 de ago de 2017.

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XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq

Centro Universitário Ritter dos Reis 1

O INSTITUTO DA REMISSÃO NO PROCESSO DE

CONHECIMENTO DE ATO INFRACIONAL

Mariane Mauss dos Santos

Mestranda em Direito UniRitter

[email protected]

Resumo:O presente trabalho busca analisar o processo de responsabilização de

adolescentes pela prática de Ato Infracional, especialmente no que concerne ao

instituto da remissão previsto nesse no procedimento. Inicialmente, por meio da

retomada da evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente no

cenário nacional, com especial ênfase nas alterações registradas no ordenamento

jurídico pátrio após a ratificação da Convenção dos Direitos da Criança e do

Adolescente e, posteriormente, com o advento e implementação do Estatuto da

Criança e do Adolescente, pretende-se pontuar as inovações trazidas com a

implementação da Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do

Adolescente, com especial atenção à doutrina da proteção integral e à proteção da

pessoa em peculiar condição de desenvolvimento. Em decorrência do

procedimento especial e célere de apuração da prática de ato infracional,

pretende-se demonstrar a violação de garantias ocorridas no curso do processo

de conhecimento, especialmente naquilo que concerne ao instituto da remissão,

traçado um paralelismo entre o que acontece no direito penal dos adultos no que

tange à oferta de transação penal.

Palavras-chave: Ato Infracional. Principio da Proteção Integral. Remissão.

1. Introdução

A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou

direitos e garantias extremamente inovadores no ordenamento jurídico

nacional. Isto porque, nos anos que antecederam sua vigência, não existia

quase nenhuma previsão normativa voltada especificamente para crianças ou

adolescentes em conflito com a lei.1

Dentre as modificações ocorridas em virtude da criação do Estatuto

destacam-se as diferenciações realizadas no sistema de responsabilização

juvenil, pois adolescentes autores de ato infracional passaram a receber um

tratamento diferenciado, observando sua personalidade. A explicitação do

1 PAES, Janiere Portela Leite. O código de Menores e o Estatuto da Criança e do

Adolescente: Avanços e retrocessos. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-codigo-de-menores-e-o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-avancos-e-retrocessos,43515.htm > Acesso em: 09 de ago de 2017.

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devido processo legal para apuração de atos infracionais somado a instituição

de um elenco de medidas jurídicas consiste em um dos principais avanços

trazidos pelo Estatuto.2

A pesquisa foi impulsionada pelo fato do tema ser de grande destaque e

objeto de constantes discussões por doutrinadores e aplicadores do direito,

tendo em vista que a Lei nº 8.069/90 trouxe profundas mudanças no trato dos

direitos da criança e o do adolescente. A técnica de pesquisa utilizada foi

baseada em referenciais teóricos, e consiste na investigação bibliográfica com

a exposição de ideias doutrinarias pertinentes ao assunto.

Assim, para um melhor entendimento e visando a construção lógica e

evolutiva do pensamento, este trabalho foi dividido em dois pontos de

abordagem que analisarão a evolução histórica dos dispositivos que

normatizam a responsabilização de crianças e adolescentes em conflito com a

lei e, posteriormente, será realizada uma análise do instituto da remissão, tanto

do ponto de vista normativo quanto comparativo, quando analisado à luz do

dispositivo da remissão previsto no Direito Penal Brasileiro.

2. De menor à cidadão: Breve retomada histórica da evolução dos direitos

infantojuvenis no Brasil

No Brasil, a preocupação com os infratores teve início no período

imperial, fossem eles maiores ou menores de idade. No período mencionado, a

repressão dava-se frente ao temor da punição, uma vez que as penas

aplicadas costumavam ser demasiadamente cruéis. Considerava-se, então,

penalmente imputável o maior de sete anos de idade, e para estes era

dispensado tratamento similar ao dos adultos, resguardada certa atenuação da

pena em razão da idade e, até atingir quatorze anos, a inaplicabilidade de pena

de morte.

2 PAES, Janiere Portela Leite. O código de Menores e o Estatuto da Criança e do

Adolescente: Avanços e retrocessos. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,o-codigo-de-menores-e-o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente-avancos-e-retrocessos,43515.html> Acesso em: 09 de ago de 2017.

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Assim, os tomados por “jovens adultos”, ou seja, aqueles que contassem

com idade entre 17 e 21 anos na data do fato, já estariam suscetíveis à

aplicação da pena de morte. Excepcionando a regra etária, existia a previsão

de aplicação de pena de morte por enforcamento àqueles que cometessem o

crime de falsificação de moeda, neste caso a sanção era permitida para o

infrator que contasse com mais de quatorze anos na data do fato.3

Devido à entrada em vigor do primeiro Código Penal do Império em

1830, houve pequenas modificações no paradigma anterior. Essa legislação

fora a precursora nacional no tratamento à criança e ao adolescente,

classificando de “menores criminosos” os infratores com até 21 anos de idade.

Para este ordenamento, o critério utilizado para definir a responsabilização dos

menores de 14 anos era o da Teoria da Ação com Discernimento. Ocorre que

esse critério trazia um grau de incerteza muito grande, uma vez que a

avaliação do grau de consciência do infrator recaía exclusivamente sob a

autoridade judiciária, carecendo de um parâmetro mais seguro para o

apontamento da responsabilidade do menor em questão.4

Com a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, e o

surgimento do Código Penal da República ou Código Penal dos Estados

Unidos do Brasil, Decreto nº. 847, de 11 de outubro de 1890, a imputabilidade

penal restou mantida aos quatorze anos e a inimputabilidade até o computo

dos nove anos de idade5. Da mesma forma, permaneceu em vigência a Teoria

da Ação com Discernimento para os compreendidos na faixa de nove a

quatorze anos de idade, prevalecendo o critério biopsicológico e cabendo a

3 TAVARES, José de Farias. Direito da Infância e da Juventude. Belo Horizonte. Editora: Del

Rey, 2001. p. 51 4 KAMINSKI, André Karst. O Conselho Tutelar, a Criança e o Ato Infracional; Proteção ou

Punição? 1. ed. Canoas: Editora ULBRA, 2002. p.16. 5[...] Art. 30. Os maiores de 9 annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento,

serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos. (BRASIL. Senado Federal. Decreto n. 847 - de 11 de outubro de 1890. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=847&tipo_norma=DEC&data=18901011&link=s>. Acesso em: 09 set. 2017.)

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avaliação da imputabilidade exclusivamente ao magistrado. Apesar da

semelhança existente entre os Códigos de 1830 e 1890, há de se destacar que

o último se ocupou em excluir completamente a responsabilização do menor de

nove anos, independente de sua capacidade de discernir.

No período do Estado Novo, mais precisamente no ano de 1937, o

presidente Getúlio Vargas outorgou uma Constituição que contava com

dispositivos voltados aos menores carentes. Dentre outras inovações, a

Constituição previa a inserção do Serviço Social em programas de bem-estar.

Assim, no ano de 1941 foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), por

meio do Decreto- Lei nº 3.799/41, e posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº

6.865/44.6

O SAM era um órgão vinculado ao Ministério da Justiça que

desempenhava atividades equivalentes a de um sistema penitenciário voltado

para menores de idade. Apesar de sua estrutura eminentemente repressiva, o

sistema preocupava-se em fazer uma diferenciação entre o adolescente autor

de ato infracional, que seria internado nas casas de correção, e o menor

carente ou abandonado, que seria direcionado às escolas de aprendizagem de

ofícios urbanos ou rurais. Na década de 1960 o SAM foi extinto, pois “este

órgão foi considerado repulsivo pela opinião pública mais politizada”. 7 Neste

cenário, foi aprovada a Lei nº 4.513/64 que cria a Fundação Nacional do Bem-

Estar do Menor (FUNABEM), tendo como órgãos executores estaduais as

Fundações Estaduais de Bem-Estar do menor (FEBEMs).

A Constituição de 1988 introduziu no ordenamento jurídico vigente o

Novo Direito da Criança e do Adolescente, art. 227 da CF,8 o qual inova o

6 VILAS-BÔAS, Renata Malta. Compreendendo a criança como sujeito de direito: a

evolução histórica de um pensamento. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11583>. Acesso em 12 ago. 2017. 7 LOPES, Jaqueline Paulino; FERREIRA, Larissa Monforte. Breve histórico dos direitos das

crianças e dos adolescentes e as inovações do Estatuto da Criançae do Adolescente – lei 12.010/09. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/view/1967>. Acesso em 15 set. 2017. 8 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e

ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao

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cenário até então existente, assegurando diversas garantias que abrangem

desde o direito à filiação até o direito ao voto e amamentação dos filhos de

presidiárias.9

Em consonância com os compromissos assumidos pela Constituição

cidadã, no ano de 1990 o Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da

Criança e do Adolescente e criou o Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), Lei nº 8.069/90. O referido Estatuto tem como norteador o Princípio da

Proteção Integral10 e, dentre outras finalidades, prima por efetivar os princípios

constitucionalmente previstos de modo a garantir o pleno gozo de direitos e o

desenvolvimento das crianças e adolescentes, levando em consideração a

condição especifica de seus tutelados. Com o advento do Estatuto da Criança

e do Adolescente, o termo “menor” deixou de ser utilizado, porquanto essa

nomenclatura é dotada de um estigma negativo aos olhos da sociedade.

Referente à questão do ato infracional, o Estatuto da Criança e do

Adolescente cria um mecanismo diferenciado de responsabilização para a

criança e para o adolescente infrator. Deste modo, a criança que praticar ato

contrário à lei penal estará sujeita à aplicação das medidas protetivas previstas

no artigo 101 do ECA. A sua vez, o adolescente que pratique conduta contrária

à lei penal, responderá a um processo de apuração do ato infracional. Caso

lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm >. Acesso em 12 ago. 2017. 9 KAMINSKI, André Karst. O Conselho Tutelar, a Criança e o Ato Infracional; Proteção ou

Punição? 1. ed. Canoas: Editora ULBRA, 2002. p.33. 10

A Doutrina da Proteção Integral é prevista no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal, que declarou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. FERREIRA, Luis Antônio; DOI, Cristina Teranise. A proteção integral das crianças e adolescentes vítimas. Disponível em: <http://www.pjpp.sp.gov.br/2004/artigos/26.pdf> Acesso em 12 ago. 2017.

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reste comprovada a autoria e materialidade do ato, ser-lhe-á aplicada uma das

medidas socioeducativas elencadas no artigo 112 do ECA.

De certa forma, substituição do Código de Menores de 1979 pelo

Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, consolidou uma verdadeira

troca de paradigma, uma revolução cultural. A sua maneira, ECA trouxe

inovações no que se refere ao acesso à justiça, visando à proteção judicial dos

interesses individuais, difusos e coletivos de seus tutelados. Ao menos

formalmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente consolida e reconhece a

existência de um novo sujeito político e social, detentor de atenção prioritária,

garantindo-lhe o acesso à educação, a serviços de saúde, inclusive aos

adolescentes privados de liberdade.

3. Aspecto controvertido do procedimento de conhecimento de ato

infracional: A Discricionariedade da remissão versus o direito à transação

penal.

As inovações e benefícios trazidos pela Lei nº 8.069/90, Estatuto da

Criança e do Adolescente, foram as responsáveis diretas por uma acentuada

redefinição na forma de atendimento dispensada a crianças e adolescentes no

cenário nacional. Saliente-se que as mudanças ocorridas se deram nas mais

diversas esferas de seus interesses, através de um mecanismo de preceitos

que objetiva implementar a teoria da proteção integral. No entanto, em que

pese os avanços realizados, o ECA ainda comporta determinadas apreciações

díspares de inúmeros dispositivos.11

Dentre os aspectos controversos que merecem destaque, o presente

trabalho ocupou-se em analisar a discricionariedade da remissão comparada

ao direito de transação penal para réu adulto, assim como o julgamento dos

recursos provenientes de processo de conhecimento de ato infracional pelas

11

HERINGER JÚNIOR, Bruno. Algumas questões controvertidas do ECA. Disponível em:

<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=155 > Acesso em: 14 ago.2017.

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câmaras cíveis, demonstrando as referidas desvantagens contidas nesses

dispositivos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza que, ao

representante do Ministério Público, incumbe a tarefa de decidir

fundamentadamente sobre o arquivamento, a concessão de remissão ou a

representação do adolescente pela prática de ato infracional. Em se tratando

de arquivamento ou remissão, para que surta efeito, deverá haver

homologação do ato judicialmente, consoante inteligência do artigo 181 do

ECA. 12

A remissão visa trazer agilidade à fase de apuração do ato infracional

prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente. Para Saraiva, este instituto

teve origem no texto das “Regras Mínimas Uniformes das Nações Unidas para

a Administração da Justiça de Menores”, também conhecido como “Regras de

Beijing”.13

Assim, no que concerne ao instituto da remissão, cumpre referir que o

mesmo originou-se das Regras de Beijing, especificamente no artigo 11 do

texto das Regras Mínimas Uniformes das Nações Unidas para Administração

da Justiça de Menores, em seu artigo, senão vejamos:

11. REMISSÃO DOS CASOS 11.1. Examinar-se-á a possibilidade, quando apropriada, de atender os jovens infratores sem recorrer às autoridades competentes, mencionadas na regra 14.1 adiante, para que os julguem oficialmente. 11.2. A polícia, o ministério público e outros organismos que se ocupem de jovens infratores terão a faculdade de arrolar tais casos sob sua jurisdição, sem necessidade de procedimentos formais, de acordo com critérios estabelecidos com esse propósito nos respectivos sistemas jurídicos e também em harmonia com os princípios contidos nas presentes regras. 11.3. Toda remissão que signifique encaminhar o jovem a instituições da comunidade ou de outro tipo dependerá do consentimento dele, de seus pais ou tutores; entretanto, a decisão relativa à remissão do

12

ROSA, Alexandre Morais da. Ato Infracional, Remissão, Advogado e Garantismo. Disponível Em:<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/infanciahome_c/adolescente_em_ conflito_com_a_Lei/Doutrina_adolescente>. Acesso em: 25 jul. 2017 13

SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil – adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002, p.59-60.

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caso será submetida ao exame de uma autoridade competente, se assim for solicitado. 11.4. Para facilitar a tramitação jurisdicional dos casos de jovens, procurarse- á proporcionar à comunidade programas tais como orientação e supervisão temporária, restituição e compensação das vítimas.

14

Faz-se importante a ressalva de que a expressão “remissão” não

consiste necessariamente em uma espécie de perdão, haja vista a

possibilidade de ser concedida cumulativamente com medida socioeducativa.

Todavia, a remissão combinada com medida socioeducativa exige que o

adolescente seja assistido pelo seu responsável e por defensor devidamente

constituído para tanto.15

Em se tratando de remissão, evidentemente que o representante do

Ministério Público se ocupará em fazer a análise da conveniência de sua

concessão para, motivadamente, submeter seu posicionamento à

homologação judicial para que surta efeito. Quanto a “concessão” de remissão,

Saraiva assevera que “é imprópria a expressão ‘concedido’, eis que a remissão

operada perante o Promotor de Justiça tem evidente caráter de transação”.

Seguindo a linha argumentativa, Saraiva pondera que a figura da remissão

possui origem doutrinária no instituto norte-americano “pobation”, o que

nitidamente configura sua natureza de transação.16

Acerca da comparação entre remissão e transação penal, Cristino

ressalta:

A possibilidade de remissão concertada pelo Ministério Público com caráter transacional, incluindo aplicação de medida socioeducativa

14

ONU. Declaração dos direitos da criança - Resolução ONU, 20 de novembro de 1959. ONU. Regras mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing - Resolução 40/33 – ONU – 29 de novembro de 1950. ONU. Diretrizes das Nações Unidas para prevenção da delinqüência juvenil – Diretrizes de Riad - 1° de março de 1988 – RIAD. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/le x47.htm> Acesso em: 27 jul. 2017. 15

ROSA, Alexandre Morais da. Ato Infracional, Remissão, Advogado e Garantismo. ROSA, Alexandre Morais da. Ato Infracional, Remissão, Advogado e Garantismo. Disponível em:<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/infanciahome_c/adolescente_em_conflito_com_a_Lei/Doutrina_adolescente>. Acesso em: 27 jul. 2017. 16

SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil. Disponível em: <http://www.unijui.edu.br/arquivos/clinicapsicologia/informativos/falandonisso16/opiniao.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2017

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não privativa de liberdade constitui outra interpretação prejudicial ao infrator adolescente. Uma vez comparada à transação penal prevista na Lei 9.099/1995, esta exige a presença do juiz e dos advogados, sendo aquela concedida em ato privativo do Ministério Público.

17

Dessarte, pode-se dizer que a atuação judicial limita-se apenas a

determinar o cumprimento da medida, porque de fato ela já fora aplicada pelo

parquet.

Um importante estaque a ser feito é que, uma vez aplicada, a remissão

não poderá caracterizar a figura de antecedentes na trajetória do adolescente.

Entretanto, ela poderá ser aplicada cumulativamente com uma das medidas

socioeducativas em meio aberto, previstas no artigo 112 do ECA, mesmo que

com a ausência de um defensor, sem que para isso seja realizado processo de

apuração do ato infracional.

Sobre essa possibilidade, Saraiva tece a seguinte crítica:

Evidentemente que se na remissão concertada pelo Ministério Público, de caráter pré-processual, vier proposta a aplicação de alguma medida sócio educativa, em nome do contraditório, haverá de o adolescente estar acompanhado de Defensor na audiência pré-processual realizada junto ao Ministério Público onde operou-se a transação expressa na remissão. Diz-se tal porque evidentemente quando resultar a remissão de decisão do Juiz, no curso do processo, estará o adolescente representado por defensor, eis que não se admite em juízo adolescente representado pela prática de ato infracional sem o respectivo defensor. Embora esta exigência de defensor na audiência prévia com o Ministério Público não esteja expressamente prevista no ECA, decorre de uma interpretação sistemática das garantias constitucionais asseguradas a todos. Não é possível que se pretenda reviver nesta etapa pré-processual, porém decisiva, onde pode vir a ser concertado cumprimento de uma medida sócio educativa, um novo Juizado de Menores, sem possibilidade de defesa do adolescente, posto que evidentemente, frente ao Ministério Público estão os pais ou responsáveis do adolescente em flagrante desvantagem.

18

Outro ponto controverso do instituto da remissão reside na possibilidade

de ser revista a qualquer tempo pela autoridade judicial que, inclusive, poderá

determinar sua regressão consoante o art. 122, III do ECA. Assim, essa

17

CRISTINO, Fernanda da Rosa. A ilusão da impunidade penal da adolescência: considerações sobre o direito penal juvenil. Disponível em: <https://www.jurisway.org.br /v2/dhall .asp?id_dh=657>. Acesso em: 14 jul.2017. 18

SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil – adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002, p.59-60.

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hipótese apresenta uma acentuada violação constitucional, pois, a medida em

meio aberto cujo descumprimento ensejou regressão pode ter sido aplicada

sem que houvesse o processo de conhecimento, logo, considerando a situação

de regressão, o adolescente poderá sofrer restrições a sua liberdade sem que

para isso haja processo, observando assim nítida afronta ao artigo 5 º da

Constituição Federal.19

No entanto, conforme destaca Beloff (apud Costa), nas situações em

que houver terminação antecipada do processo ou derivação para instâncias

não judiciais, o importante é que, em havendo alguma medida sancionatória,

seja tomada a maior cautela para que não sejam atingidas as garantias básicas

do adolescente em conflito com a lei. Assim afirma a autora:

A lógica é sempre a mesma. Se o Estado renuncia a intervenção coercitiva, então o episódio não implicará nenhuma modificação ou intervenção na vida do jovem e de sua família. Se existe alguma modificação ou intervenção estatal (no sentido amplo), então, deve-se recorrer a todas as garantias para que esta intervenção seja realizada no marco da legalidade.

20

Assim, se está diante ao princípio da necessidade da pena, segundo o

qual o monopólio da aplicação se dá pelos órgãos judiciais, além de apresentar

um avanço para a humanidade, consiste no próprio caráter instrumental e

público do direito processual penal, qual seja, o caminho para a aplicação da

pena.

Deste modo, a aplicação de remissão cumulada com medida

socioeducativa, assim como a regressão por descumprimento injustificado de

medida em meio aberto aplicada em sede de remissão, como resultado de

transação entre o adolescente e o Ministério Público, não sendo realizado o

19

SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil – adolescente e ato infracional. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002, p.59-60. 20

BELOFF, Mary. Os sistemas de Responsabilidade Penal Juvenil na América In: MENDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary. In: MENDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância Lei e Democracia na América Latina. Vol.1.p.134 (apud) COSTA, Ana Paula Mota. As garantias processuais como limite à violência estatal na aplicação da medida socioeducativa de internação. Maio de 2004. 331 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós Graduação em Ciências Criminais. Faculdade de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre. 2004.

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devido processo legal, consiste em uma das maiores violações à garantias

constitucionais contida no ECA.

4. Considerações Finais

Com o advento do ECA crianças e adolescentes são colocados em

situação de igualdade de direitos, independente de sua condição

socioeconômica. Ao mesmo passo que lhes impõe obrigações compatíveis

com sua peculiar condição de desenvolvimento21, assegura-lhes o desfrute de

direitos e garantias previstas no ordenamento jurídico vigente. Assim, crianças

e adolescentes tornam-se titulares de direitos fundamentais à proteção integral.

Quanto a estrutura, o ECA referencia três grande sistemas de garantia,

baseados na proteção integral e de modo a garantir às crianças e aos

adolescentes o pleno gozo das garantias previstas no ordenamento jurídico

vigente. Segundo esse tríplice sistema, quando a criança ou adolescente não

se enquadrar no sistema primário de prevenção (políticas públicas), o Conselho

Tutelar deve ser acionado como operador do sistema secundário (medidas de

proteção). Entretanto, se ao adolescente for atribuída a autoria de ato

infracional, recorre-se ao sistema terceário (medidas socioeducativas), que tem

como operador o chamado sistema de Justiça.

No entanto, em que pese os inúmeros benefícios trazidos pelo ECA, a

não observância do devido processo legal nos casos de aplicação de remissão

cumulada com medida socioeducativa, assim como a regressão por

descumprimento injustificado de medida em meio aberto aplicada em sede de

remissão, como resultado de transação entre o adolescente e o Ministério

Público, para além da nítida violações de garantias fundamentas, representa

um desrespeito ao próprio espírito da lei, bem como do princípio da legalidade

e de outros decorrentes.

21

Essa classificação reforça que toda pessoa, enquanto viva, encontra-se em permanente

desenvolvimento de sua personalidade, porém na infância e na adolescência esse desenvolvimento é mais intensoe , portanto, peculiar. (Karyna Soposato p. 105)

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XIII Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-Graduação - SEPesq

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