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173 Este artigo analisa a obra clássica de M. Mauss, Ensaio sobre a dádiva, à luz de desenvolvimentos recentes da Antropologia. Salienta como contribuição de Mauss o entendimento da dimensão política da troca de dádivas, assim como a sugestão de sua universalidade, posteriormente demonstrada por Lévi-Strauss, constituir-se em princípio formal-abstrato, e não num fato empírico-concreto. A partir desse princípio, avalia a tese segundo a qual a dádiva é fundamento de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como sua presença e sua diferente institucionalização em várias sociedades analisadas por Mauss, capitalistas e não- capitalistas. PALAVRAS-CHAVE: Marcel Mauss; teoria da troca; reciprocidade; hierarquia. Marcos Lanna Universidade Federal do Paraná RESUMO Rev. Sociol. Polít. , Curitiba, 14: p. 173-194, jun. 2000 NOTA SOBRE MARCEL MAUSS E O ENSAIO SOBRE A DÁDIVA I. SOBRE MARCEL MAUSS O Ensaio sobre a dádiva, obra fundamental de Marcel Mauss, é um marco no desenvolvimento da sociologia durkheimiana. Esse desenvolvi- mento é no sentido de uma Antropologia. Mauss avança, em relação a Durkheim, ao aprofundar uma postura crítica em relação à filosofia, ado- tando a etnografia, abrindo-se para as sociedades não-ocidentais e assumindo cada vez mais a comparação. Talvez por isso mesmo, a obra de Mauss se caracterize pela dispersão, como ele próprio reconhece 1 . Mauss interessava-se pelas manifestações dos fenômenos humanos em quais- quer tempo e espaço do planeta e sua obra aborda uma “variedade vertiginosa de temas”, para usar uma expressão de Gomes Jr. (1999). O Ensaio so- bre a dádiva reflete de modo evidente esses as- pectos, presentes também em outros trabalhos de Mauss. Inicia-se com menções a questões de língua norueguesa antiga e posteriormente aborda as mais variadas formas de organização social, de grupos e regiões os mais diversos – celtas, Índia, China, Oceania, índios do noroeste americano. A obra de Mauss tem recebido a mais favorável aceitação por antropólogos contemporâneos das mais diversas inclinações teóricas. Ela presta-se, sem dúvida, a interpretações discrepantes, múlti- plas e divergentes, dentro e fora da Antropologia.. A inspiração de Mauss é aceita por sociólogos (de G. Gurvitch a P. Bourdieu, passando pelo grupo que se autodenomina “de vanguarda” do Collège de Sociologie – cf. JAMIN, 1992, p. 457), escritores ou filósofos (R. Callois, G. Battaille, entre outros), historiadores (F. Braudel e a escola dos Annales) ou mestres da Antropologia inglesa (A. R. Radcliffe-Brown, E. E. Evans-Pritchard, R. Firth). A aceitação de Mauss é geral: Guidieri (1984, p. 31) notou que Mauss recebe, de modo bastante freqüente, tratamento “hagiográfico”. Mais recentemente, a Antropologia norte- americana pós Clifford Geertz (seja lá como rotulemos suas diversas correntes interpretativista, pós-moderna, textualista etc.), preza em Mauss, de modo surpreendentemente geral, uma suposta aversão à noção de sistema, “confusão inspirada” e “caráter boêmio” ( GOMES JR., 1999). Em The predicament of culture, de 1988, James Clifford aproxima a obra de Mauss do que chama de “etnografia surrealista”, notando 1 “Não estou interessado em desenvolver teorias sis- temáticas [...] Trabalho somente meus materiais e se, ali ou acolá, aparece uma generalização válida, eu a estabeleço e passo a qualquer outra coisa. Minha preocupação princi- pal não é elaborar um grande esquema geral que cubra todo o campo – tarefa impossível –, mas somente mostrar algumas das dimensões do campo do qual apenas tocamos as margens [...]. Tendo trabalhado assim, minhas teorias são dispersas e não sistemáticas” (apud FOURNIER, 1993, p. 106).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 14: 173-194 JUN. 2000

Este artigo analisa a obra clássica de M. Mauss, Ensaio sobre a dádiva, à luz de desenvolvimentos recentesda Antropologia. Salienta como contribuição de Mauss o entendimento da dimensão política da troca dedádivas, assim como a sugestão de sua universalidade, posteriormente demonstrada por Lévi-Strauss,constituir-se em princípio formal-abstrato, e não num fato empírico-concreto. A partir desse princípio, avaliaa tese segundo a qual a dádiva é fundamento de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como suapresença e sua diferente institucionalização em várias sociedades analisadas por Mauss, capitalistas e não-capitalistas.

PALAVRAS-CHAVE: Marcel Mauss; teoria da troca; reciprocidade; hierarquia.

Marcos LannaUniversidade Federal do Paraná

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 14: p. 173-194, jun. 2000

NOTA SOBRE MARCEL MAUSSE O ENSAIO SOBRE A DÁDIVA

I. SOBRE MARCEL MAUSS

O Ensaio sobre a dádiva, obra fundamentalde Marcel Mauss, é um marco no desenvolvimentoda sociologia durkheimiana. Esse desenvolvi-mento é no sentido de uma Antropologia. Maussavança, em relação a Durkheim, ao aprofundaruma postura crítica em relação à filosofia, ado-tando a etnografia, abrindo-se para as sociedadesnão-ocidentais e assumindo cada vez mais acomparação. Talvez por isso mesmo, a obra deMauss se caracterize pela dispersão, como elepróprio reconhece1. Mauss interessava-se pelasmanifestações dos fenômenos humanos em quais-quer tempo e espaço do planeta e sua obra abordauma “variedade vertiginosa de temas”, para usaruma expressão de Gomes Jr. (1999). O Ensaio so-bre a dádiva reflete de modo evidente esses as-pectos, presentes também em outros trabalhos deMauss. Inicia-se com menções a questões de

língua norueguesa antiga e posteriormente abordaas mais variadas formas de organização social, degrupos e regiões os mais diversos – celtas, Índia,China, Oceania, índios do noroeste americano.

A obra de Mauss tem recebido a mais favorávelaceitação por antropólogos contemporâneos dasmais diversas inclinações teóricas. Ela presta-se,sem dúvida, a interpretações discrepantes, múlti-plas e divergentes, dentro e fora da Antropologia..A inspiração de Mauss é aceita por sociólogos (deG. Gurvitch a P. Bourdieu, passando pelo grupoque se autodenomina “de vanguarda” do Collègede Sociologie – cf. JAMIN, 1992, p. 457),escritores ou filósofos (R. Callois, G. Battaille,entre outros), historiadores (F. Braudel e a escolados Annales) ou mestres da Antropologia inglesa(A. R. Radcliffe-Brown, E. E. Evans-Pritchard,R. Firth). A aceitação de Mauss é geral: Guidieri(1984, p. 31) notou que Mauss recebe, de modobastante freqüente, tratamento “hagiográfico”.

Mais recentemente, a Antropologia norte-americana pós Clifford Geertz (seja lá comorotulemos suas diversas correntes –interpretativista, pós-moderna, textualista etc.),preza em Mauss, de modo surpreendentementegeral, uma suposta aversão à noção de sistema,“confusão inspirada” e “caráter boêmio” (GOMESJR., 1999). Em The predicament of culture, de1988, James Clifford aproxima a obra de Maussdo que chama de “etnografia surrealista”, notando

1 “Não estou interessado em desenvolver teorias sis-temáticas [...] Trabalho somente meus materiais e se, aliou acolá, aparece uma generalização válida, eu a estabeleçoe passo a qualquer outra coisa. Minha preocupação princi-pal não é elaborar um grande esquema geral que cubratodo o campo – tarefa impossível –, mas somente mostraralgumas das dimensões do campo do qual apenas tocamosas margens [...]. Tendo trabalhado assim, minhas teoriassão dispersas e não sistemáticas” (apud FOURNIER, 1993,p. 106).

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a presença constante de artistas surrealistas emsuas aulas.

Seria possível argumentar que um desenvolvi-mento pleno da obra de Mauss foi feito por trêsde seus ex-alunos, que vêm a ser os pais funda-dores do estruturalismo francês em Antropologia:Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss e LouisDumont. Mas isso seria assunto para um outrotrabalho: importa aqui realizar uma leitura doEnsaio sobre a dádiva. Para tanto, adotarei umapostura oposta à de alguns apologistas contem-porâneos de Mauss, como os citados pós-moder-nistas norte-americanos: não irei correlacionar umespírito não-dogmático com a aversão à noção desistema ou com o culto a uma “confusão ins-pirada”. Afinal, o próprio Mauss (1983, p. 139)definia-se como um cientista social “positivista”.

Mauss pautou sua vida por um esforço paraseparar vida pessoal – na qual ele incluía suasatividades como militante socialista – e acadêmica:“em Mauss, ciência e política não se confundem”(FOURNIER, 1993, p. 107). Mauss não deixaráde publicar, entretanto, em 1924, uma “Apreciaçãosociológica do bolchevismo” na Revue deMétaphysique et de Morale e em 1925, na RevueSlave, o artigo “Socialismo e bolchevismo”. Mausspublica ainda em jornais textos que classifica como“políticos”, o primeiro dos quais sendo “L’actionsocialiste”, em Le Mouvement Socialiste de 15 deoutubro de 1899. Essa dualidade será discutidano decorrer deste artigo.

O leitor encontrará em Fournier (1993, entreoutros) importante análise sobre a biografia e apostura pessoal de Mauss, que tanto marcou seusalunos, como vários deles já comentaram (LÉVI-STRAUSS, 1944; DUMONT, 1986). Um interes-sante contraste poderia ser feito, a este respeito,entre Mauss e o espírito extremamente metódicoe rigoroso de Durkheim, já descrito como dogmá-tico por Lévi-Strauss (1944) ou “cartesiano” pelopróprio Mauss (1983, p. 140). Talvez a posturapessoal de cada um explique o sucesso maior queteve Mauss em deixar “discípulos”, cultuadoresde sua memória, enquanto Durkheim nos deixacomo legado menos uma memória que a impes-soalidade de “uma obra”. Mas, cada qual ao seumodo, sobrinho e tio compartilhavam a mais com-pleta dedicação aos trabalhos da escola sociológicaque fundavam.

A contribuição de Mauss se caracteriza ainda,como ele mesmo notou, por um certo “anonimato

voluntário” (idem, p. 139) e “auto-sacrifício”(idem, p. 140). Por exemplo, Mauss completou epublicou alguns estudos iniciados por compa-nheiros do grupo que se unia em torno da revistafundada por Durkheim, L´Année Sociologique,precocemente desaparecidos, como Henri Hubert,Robert Hertz (este durante a I Guerra Mundial) edo próprio Durkheim. Após ter recusado um cargode professor em Bordeaux em 1893, Maussassume em 1901, em Paris, a cadeira de “Históriada religião dos povos não-civilizados” da 5a seçãoda École Pratique des Hautes Études. Com a mor-te de Durkheim em 1917, conta com a ajuda de C.Bouglé, G. Davy, P. Fauconnet e M. Halbwachspara retomar a publicação de L’Année Sociolo-gique.

Paralelamente, é intensa sua atividade comomilitante político. Com Léon Blum, a quem co-nhece desde a primeira década deste século, é fielao socialismo de Jaurés. Mauss e Blum opõem-se, no período entre guerras, à criação do PartidoComunista Francês (cf. FOURNIER, 1993, p.104). Em 1904, Mauss participa da fundação doL’Humanité, tornando-se posteriormente secre-tário de redação, mas é bastante crítico em relaçãoà revolução bolchevique2 . Escreve ainda para LePopulaire a partir de 1920 (cf. JAMIN, 1992, p.456). Simultaneamente, funda em 1925 com L.Lévy-Bruhl e P. Rivet o Institut d’Ethnologie daUniversidade de Paris, onde a sua carga de aulasse acumula com a que tinha na École. Quase nãotinha tempo para publicar seus próprios trabalhos,mas forma toda a primeira geração de antro-pólogos de campo franceses (G. Devereux, G.Dieterlen, M. Griaule, A. G. Haudricourt, M.Leiris, A. Métraux, D. Paulme, A. Schaeffner, J.Soustelle, entre outros). Chega ao Collège deFrance em 1931.

Como foi dito, Mauss (1983, p. 142) reconheceo caráter “descontínuo” de sua obra. A unidadedesta deriva de um esforço “para organizar nãomeramente idéias, mas antes de tudo fatos [...]tomados de civilizações [ainda] não categori-zadas” (idem, p. 143). Ou melhor, seu interessenão seria tanto pelos fatos em si, mas por “grupos

2 “Como ‘sociólogos ingênuos’, os bolcheviques acredi-taram poder construir uma sociedade ‘a golpes de de-cretos, a golpes de violência’. É um erro, pensa Mauss: ‘aviolência é estéril em nossas sociedades modernas”(FOURNIER, 1993, p. 111).

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geográficos de fatos”; nesta passagem, Mauss citacomo exemplo de “grupos geográficos de fatos”os “sistemas religiosos africanos – como [eles] seconstituem” (MAUSS, 1983, p. 144). Avança ain-da que se trata de um “estudo global sobre a noçãode civilização” (idem, p. 151). Mauss parececonsciente de que não era isso o que o públicofrancês desejava, pois esse “público é ainda pordemais apegado à metodologia sociológica enossos estudantes e colegas por demais entrin-cheirados em reflexões filosóficas” (idem, p. 150).

Ao contrário de Durkheim, Mauss diz “não tersido nunca um militante da sociologia” (idem, p.142). Por outro lado, não só militava no PartidoSocialista Francês, como doava a este parte de suasparcas economias (FOURNIER, 1993). Se Maussseparava sua atividade intelectual de sua militânciapolítica, a interpretação que farei aqui do Ensaiosobre a dádiva não deixará de buscar entender essaaparente ruptura. Mas repito que não analisarei avida pessoal ou a militância política de Mauss;remeto novamente o leitor interessado nestasúltimas aos trabalhos de M. Fournier.

II. A TESE GERAL DO ENSAIO SOBRE ADÁDIVA

Se Mauss assume a descontinuidade de suaobra, ela também caracteriza o Ensaio sobre adádiva. Um mesmo parágrafo do Ensaio apresentacomparações entre várias regiões do globo.Publicado no tomo I do L’Année Sociologique(1923-24), um ano após Os argonautas doPacífico ocidental, neste trabalho Mauss teve deconfrontar-se com o fato de, ao contrário deMalinowski, nunca ter feito pesquisa de campo.Mauss não pôde aproveitar uma das principaispossibilidades abertas por Malinowski: a realiza-ção de pesquisas que buscassem uma maior con-textualização dos dados, como propunha, na mes-ma época, também A.R. Radcliffe-Brown, cujoAndaman islanders data igualmente de 1922.Mauss beneficia-se ainda, no Ensaio, das pesqui-sas de Franz Boas nos Estados Unidos, que tam-bém demonstravam desde o início do século, aimportância do trabalho de campo e da contextua-lização. Boas, Malinowski e Radcliffe-Browntrabalhavam assim contra aquilo que este últimodenominou “história conjetural”. Poder-se-ia mos-trar que Mauss não se livrou totalmente destaúltima. O Ensaio sobre a dádiva arrola umaquantidade impressionante de fatos, que só em ummomento posterior seriam melhor contextuali-zados pelas pesquisas de campo de inúmeros

antropólogos, alguns dos quais alunos de Mauss.

Mas há um fio condutor no Ensaio: a noção de“aliança”. Como ficará evidente no trabalho dealunos de Mauss, a preocupação com a aliançatorna-se uma característica central da Antropologiafrancesa (DUMONT, 1971). Mauss demonstra noEnsaio como “toda representação é relação – istoé, funda-se sobre a união de uma dualidade decontrários” (JAMIN, 1992, p. 456). Ora, o argu-mento central do Ensaio é de que a dádiva produza aliança, tanto as alianças matrimoniais como aspolíticas (trocas entre chefes ou diferentes cama-das sociais), religiosas (como nos sacrifícios, en-tendidos como um modo de relacionamento comos deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas(incluindo-se aqui as relações pessoais de hospita-lidade). Posteriormente, as pesquisas de inúmerosantropólogos revelaram a amplitude – já intuídapor Mauss – das noções de dádiva e de aliança.Entre eles, Lévi-Strauss (1949) fez dessas noçõeso fundamento das estruturas elementares do paren-tesco; P. Clastres (1978), da sociedade contra oEstado, e, muito modestamente, Lanna (1995) dadívida divina, implícita em relações de compadrioe patronagem no Brasil.

Mas Mauss já definia a dádiva de modo amplo.Ela inclui não só presentes como também visitas,festas, comunhões, esmolas, heranças, um sem-número de “prestações” enfim – prestações quepodem ser “totais” ou “agonísticas” (incluindo-se, neste último caso, como veremos, o potlatchdos índios do noroeste americano – MAUSS,1983, p. 147). Creio ser fundamental notar comoMauss entendia até mesmo os tributos como umaforma de dádiva. Esta é uma de suas proposiçõesque aguardam futuros desenvolvimentos.

Voltando à tese principal do Ensaio: nele sepostula um entendimento da constituição da vidasocial por um constante dar-e-receber. Mostraainda como, universalmente, dar e retribuir sãoobrigações, mas organizadas de modo particularem cada caso. Daí a importância de entendermoscomo as trocas são concebidas e praticadas nosdiferentes tempos e lugares, de fato que elas po-dem tomar formas variadas, da retribuição pessoalà redistribuição de tributos. Mauss dedicava espe-cial atenção ao fato de algumas trocas serem prer-rogativas de chefias: receber tributo, por exemplo.Essas prerrogativas podem ser socialmente cons-truídas de modo diferente, como privilégios, obri-gações etc. A isso Mauss associava o fato de que,freqüentemente, da chefia emanam valores que se

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extendem à sociedade como um todo, generali-zando-se (um pouco como Marx mostrara ter amoeda capacidade para generalizar-se como valorcapitalista). Como foi posteriormente desen-volvido por P. Clastres (1978), a dádiva de pala-vras ou objetos é freqüentemente um dever dachefia, em um sentido ontológico: mais que con-dição necessária da sua existência, são manifes-tações particulares da chefia que se criam pordiferentes formas de troca. Citando o tomo II daEthnographie de Madagascar de Grandidier,Mauss (1974, p. 66) nos lembra que “os betsimisa-raka nos contam que de dois chefes, um distribuíatudo o que estava em sua possessão e o outro nãodistribuía nada e guardava tudo. Deus deu fortunaao que era liberal e arruinou o avarento”. Veremosa seguir como a chefia se define a partir de umaposição privilegiada em relação às trocas, centrali-zando-as nos sistemas antigos de redistribuição,como o dos Incas, impérios africanos ou asiáticos,ou no caso de sociedades socialistas.

Mas, evidentemente, o aspecto generativo oucriador de sociabilidade da dádiva não se limita àpolítica. Já a epígrafe do Ensaio exprime uma dia-lética inerente à dádiva: ao receber alguém estoume fazendo anfitrião, mas também crio, teórica econceptualmente, a possibilidade de vir a ser hós-pede deste que hoje é meu hóspede. A mesma trocaque me faz anfitrião, faz-me também um hóspedepotencial. Isto ocorre porque “dar e receber” impli-ca não só uma troca material mas também umatroca espiritual, uma comunicação entre almas. Énesse sentido que a Antropologia de Mauss é umasociologia do símbolo, da comunicação; é aindanesse sentido ontológico que toda troca pressupõe,em maior ou menor grau, certa alienabilidade. Aodar, dou sempre algo de mim mesmo. Ao aceitar,o recebedor aceita algo do doador. Ele deixa, aindaque momentaneamente, de ser um outro; a dádivaaproxima-os, torna-os semelhantes. A etnografiada troca dá ainda um novo sentido às etiquetassociais. Por mais que estas variem, elas semprereiteram que, para dar algo adequadamente, devocolocar-me um pouco no lugar do outro (porexemplo, de meu hóspede), entender, em maiorou menor grau, como este, recebendo algo de mim,recebe a mim mesmo (como seu anfitrião).

Tão próximo da ideologia da generosidade edo altruísmo, o ato de dar, mostra-nos Mauss, nãoé um ato desinteressado. Isso não se limita à práticados “chefes”. O ato de dar pode assim se associarem maior ou menor grau a uma ideologia da gene-

rosidade, mas não existe a dádiva sem a expecta-tiva de retribuição. O free gift de Malinowski, estesim, é pura ideologia; o altruísmo puro é umamistificação. Mauss, escrevendo com Hubert oEnsaio sobre a natureza e função do sacrifício, jámostrara, em 1898, que “esta abnegação e essasubmissão não deixam de ter um lado egoísta”.Para Mauss, a dádiva é um ato simultaneamenteespontâneo e obrigatório. O estudo da dádivapermitiria à sociologia a superação relativa dedualidades profundas do pensamento ocidental,entre espontaneidade e obrigatoriedade, entreinteresse e altruísmo, egoísmo e solidariedade,entre outras3. Este ponto é importante porque aconclusão do Ensaio irá criticar a generalizaçãoda noção de interesse individual implícita nasociedade burguesa e no pensamento liberal, queirão opor radicalmente aquilo que a dádiva une.

Um dos representantes do pensamento liberalno Brasil, Delfim Netto (1999), notou recen-temente que tal preocupação em propor alter-nativas à ética do mercado valeu o Prêmio Nobelde Economia de 1998 ao indiano Amartya KumarSen4 . Talvez até porque conhece “por dentro”uma “civilização da dádiva”, como a indiana, pôdeSen reconhecer que o desejo egoísta do lucro nãosó é incapaz de fundar qualquer sociedade, mastende, justo ao contrário, a inviabilizá-las. ComoMauss, os estudos de Sen debruçam-se sobre

3 Um dos pareceristas anôminos da Revista de Sociologiae Política lembra haver distinção entre “superar” e “me-diar” antinomias, o que me parece rigorosa e filoso-ficamente correto. Para uma argumentação que buscamostrar que Mauss realmente promoveria uma “supera-ção” das mencionadas dualidades, cf. Caillé (1998). A meuver, a posição de Mauss, como a de Lévi-Strauss, realmenteacena mais para uma “mediação” que para uma “supera-ção” dessas antinomias. Por outro lado, eu proporia queMauss nos ensina ainda que a “mediação” é a “superação”possível. Esta parece ser a conclusão de Viveiros de Castro(1996) – um autor que acredito representar bem os desen-volvimentos recentes dessa eminente linhagem –, a res-peito de outras antinomias, correlatas àquelas que mencio-nei, como cultura/natureza e razão prática/razão simbóli-ca. Quando uso assim “superação relativa”, eu talvez de-vesse deixar mais clara minha própria posição, no sentidode que trata-se realmente mais de “mediação” do que de“superação”. Para uma análise a respeito da mediaçãoentre as categorias de “sujeito” e “objeto” na obra de C.Lévi-Strauss, cf. Lanna (1999).

4 Digo pensamento liberal, mas evidentemente, foi outraa prática desse que foi um tirano de nossa economia.Como indica outro parecerista da Revista de Sociologia ePolítica , é “paradoxal” (e tragicamente irônico, eu

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“tragédias distributivas” e recusam fundamentoscomo a noção de escassez. Entretanto, Sen pareceestar muito aquém de Mauss, não chegando nemmesmo a fazer uma crítica ao paradigma utilita-rista. Isto é, seus trabalhos revelam uma incorpo-ração da lógica da dádiva pelo pensamento liberal,mais do que o contrário. Já Mauss foi o inspiradorde um “Movimento anti-utilitarista nas CiênciasSociais”, que publica há mais de uma década im-portante periódico semestral, La Revue duM.A.U.S.S.. Menciono Sen para mostrar a atuali-dade do pensamento de Mauss, cuja preocupaçãocom instituições arcaicas jamais significaram apostulação de um retorno nostálgico a um passadopré-moderno. Seu horizonte é o da defesa de umequilíbrio entre o individualismo e a moralidade,por um lado, e o direito da dádiva, por outro.Mauss reconhecia o fato básico de que na moder-nidade “somos cidadãos e não santos [...]. Osocialismo é para Mauss ‘um espírito [...] um novosistema de valores’, um ‘novo sistema moral decastigos e recompensas’” (FOURNIER, 1993, p.108).

Finalmente, eu salientaria como fundamentaloutra contribuição de Mauss, a de que a vida socialnão é só circulação de bens, mas também depessoas (mulheres concebidas como dádivas empraticamente todos os sistemas de parentesco

conhecidos), nomes, palavras, visitas, títulos,festas. Note-se que as trocas não são só materiais:a circulação pode implicar prestações de valoresespirituais, assim como maior ou menor alienabili-dade do que é trocado. Por exemplo, os sobre-nomes na nossa sociedade são pouco alienáveis,circulam ainda menos que os prenomes, mas suacirculação gera considerável valor. Há, entretanto,outras dádivas que devem necessariamente cir-cular muito, para gerar cada vez mais valor, comoos objetos kula descritos por Malinowski. Arelação entre maior ou menor alienabilidade e cria-ção de valor não é, assim, como veremos, simplese direta.

III. LENDO A INTRODUÇÃO DO ENSAIOSOBRE A DÁDIVA

C. Lefort (1979) notou que a questão “o que éuma sociedade” está sempre subentendida em todaa obra de Mauss. Este fala em “contrato” paraexprimir a sociabilidade criada pela dádiva. ParaMauss, a noção de contrato seria universal, mas,ao contrário dos contratualistas anglo-saxões,concebe os contratos como não-individuais. Nãose trata assim de acordos entre indivíduos racionaismas de regras da organização social primitiva.Nela, “os contratos fazem-se sob a forma de pre-sentes” (MAUSS, 1974, p. 41). Mas se há mo-mentos em que Mauss pensa a troca como umcontrato, há outros em que ele, funcionalistica-mente, supõe a troca como reforçando realidadespré-existentes, ou “também um meio de fortalecero contrato” (idem, p. 40). Isso indica que, se seupróprio trabalho permite a superação do funcio-nalismo e da chamada “razão prática”5 , há mo-mentos em que ele se contamina por estes proce-dimentos, os quais critica. Esta passagem inicialda introdução do Ensaio já anuncia como estetexto é profundamente “descontínuo”.

Para Mauss (1974, p. 41), “este trabalho é umfragmento de estudos mais vastos”. A elaboraçãodesse trabalho exigiu o conhecimento de umagrande quantidade de fatos de várias civilizações.Como expressar a universalidade de uma idéia, aimportância da troca? Mauss opta por tratar da

acrescentaria) recuperar aqui o pensamento de um homemque deu “expressivo exemplo de falta de ética” e protago-nizou verdadeira “predação do social”. Isso, entretanto,revela a força do pensamento liberal, mesmo em temposde pós-modernidade e mesmo em uma realidade de cen-tralização político e econômica como a brasileira. O mes-mo poderia ser dito para R. Campos, que declarou emrecente entrevista algo que resume bem uma das tesesprincipais deste meu artigo, a de que a desigualdade polí-tica não é exterior à troca: “só tem independência de fatoquem não se endivida [...] a autonomia não é uma opçãopolítica, mas está subordinada à condição econômica”(apud LUCENA, 1999). Pretendo aqui oferecer umainterpretação maussiana de posições como essa e impli-citamente, de um modo mais amplo, do próprio pen-samento liberal. Aliás, é impressionante o contraste entrepensamento e prática desses ex-ministros da ditaduramilitar, o que revela as dificuldades e distorções do pensa-mento liberal no contexto brasileiro, assim como sua inca-pacidade para contextualizar-se, na prática, enquanto pen-samento liberal (caso típico do que alguns entendem como“idéia fora do lugar”), e, ao modo de Mauss, informar-sepelo social concreto. Nos termos deste, a autonomiadesejada por Campos não é nunca plena, sem o seu oposto,a dependência.

5 Assumo aqui o entendimento de Sahlins (1976) do queseria a “razão prática”, um paradigma das ciências sociaisque se caracteriza por reduzir as relações sociais à relaçõesentre meios e fins, à maximização de objetivos ilimitadosa partir de recursos escassos.

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Polinésia no “Capítulo I”, das Ilhas Andaman, noOceano Índico, Melanésia e do noroeste americanono “Capítulo II”, das chamadas sociedades antigas(Roma, Índia, povos germanos) no “Capítulo III”e da Europa moderna na “Conclusão”.

As maiores contribuições do Ensaio talvezsejam:

1) mostrar que fatos – incluindo-se aqui tantoa prática da troca como a reflexão sobre ela– das mais diferentes civilizações nos re-velam que trocar é mesclar almas, permi-tindo a comunicação entre os homens, ainter-subjetividade, a sociabilidade. A An-tropologia é o estudo desta comunicação edas regras que a estabelecem;

2) essas regras manifestam-se simultanea-mente na moral, na literatura, no direito, nareligião, na economia, na política, na orga-nização do parentesco e na estética de umasociedade qualquer. Podemos isolar o aspec-to econômico de uma troca, mas ela implicasempre também um aspecto religioso (quese evidencia nos sacrifícios, nas dádivas depalavras das rezas etc.), político (que se evi-dencia nas trocas mal-sucedidas – queredundam em guerra –, na troca de violênciaou ainda no desequilíbrio entre o que étrocado6 e na assimetria temporal implícitaem qualquer redistribuição – cf. BOUR-DIEU, 1996), ou mesmo estético (a confec-ção dos objetos, o modo de oferecimentoetc.). A troca é assim um fato social “total”.Ela o é ainda no sentido de manifestar-se

historicamente em cada indivíduo7;

3) as trocas são simultaneamente voluntáriase obrigatórias, interessadas e desinteressa-das, como eu dizia, mas também simultanea-mente úteis e simbólicas. Mauss enfraquecea dicotomia símbolo/morfologia presente naobra de Durkheim. Desde Formas primi-tivas de classificação, publicado em 1903 eescrito em parceria com este último, Maussjá nos mostrava como a morfologia socialtambém é um fato simbólico;

4) Mauss propõe um método comparativo quepressupõe uma sociologia. Se não chega arealizar trabalho de campo e por vezes re-produza generalizações típicas da chamadahistória conjectural, Mauss difere dos evo-lucionistas da época, como James Frazer,em cuja comparação “tudo se confunde ena qual as instituições perdem toda cor locale os documentos seu sabor” (MAUSS, 1974,p. 43). Por outro lado, ao contrário dacomparação anti-evolucionista de Radcliffe-Brown, o método de Mauss não exclui ahistória. Esta contribui e enriquece suascomparações. Mauss indica no Ensaio,assim como no texto sobre a noção depessoa, escrito 15 anos mais tarde, que faz“história social”, sem distinguir esta da“sociologia teórica”, nem das “conclusõesde moral [e] de prática política e econômica”(idem, p. 42-43).

Nesse momento do texto, Mauss pergunta-sequal a regra que estipula a retribuição, concluindoque cada sociedade tem a sua. Posteriormente,Lévi-Strauss (1949), proporá haver algo deuniversal por trás da diversidade no nível dos fatos,formalizando o “princípio de reciprocidade”.Mauss entenderá a generalidade da retribuição“por meio de um número de fatos”, sua análisepermanecendo assim no nível das instituiçõesparticulares. Muitos dos críticos atuais da noçãode troca de Lévi-Strauss “reduzem a troca a umainstituição” (VIVEIROS DE CASTRO, 1998), oque revelaria que “eles se acham na mesma situa-ção intelectual de um século atrás” (LÉVI-STRAUSS, 1998).

6 A última estrofe da epígrafe do Ensaio (de número 145),por exemplo, indica que nunca se dá demais a um superior,seja ele chefe ou o deus, pois o ato de dar gera semprecerta superioridade, política e religiosa. A epígrafe indicatambém que o fato de não se retribuir adequadamente, aavareza (que pode ser entendida como uma manipulaçãoda troca), gera o medo. Sugere-se assim algo que será repe-tidamente indicado por Mauss: basta haver uma prestaçãounilateral, um oferecimento e uma aceitação para haverdádiva e essa prestação unilateral para se gerar valor; istoé, uma ética impõe-se mesmo àqueles que não a retribuem,ainda que isso ocorra diferentemente em cada caso espe-cífico. Isso é importante porque, a meu ver (LANNA,1996), quando se fala em dádiva, não é de troca que sefala; trata-se de uma prestação unilateral, na qual há simul-taneamente o ato de dar (por um sujeito A) e o de “rece-ber” (por um outro sujeito B).

7 A noção de indivíduo de Mauss, enquanto unidade“fisiopsicológica”, é apresentada em textosconhecidos de Sociologia e Antropologia.

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Eu dizia que Mauss generaliza a noção decontrato ao mesmo tempo em que a reformula.Ele não a usa no sentido de um contrato entreindivíduos, como faziam os filósofos dos séculosXVII e XVIII. É exatamente esse contrato maus-siano que Lévi-Strauss substituirá pelo princípiode reciprocidade. Mauss também generaliza a no-ção de mercado – aliás, como outro grande estu-dioso das trocas arcaicas, da primeira metade desteséculo, Karl Polanyi (1980). Ambos irão suporque o mercado sempre existiu, mas a atenção deMauss recai na diversidade das formas de troca,buscando uma comparação que procura “atingiruma dupla meta”: entender “a natureza das tran-sações humanas” de um modo geral e traçar a gê-nese de noções como “interesse individual” e dopróprio sistema de mercado ocidental. Assim, seMauss generaliza a noção de mercado, por outrolado ele tem consciência da importância de sepensar a especificidade do mercado ocidental.Nisso há uma recuperação de alguns dos objetivosde Karl Marx, que, apesar de evidente, tem sidopouco notada. Ainda como Polanyi, Mauss assumecomo universais as noções de mercado e contrato,mas não o homo œconomicus ou as noções de“economia natural” e de estado de natureza(MAUSS, 1974, p. 44).

Como notei, a Antropologia maussiana dife-rencia-se da dos economistas liberais à medidaque, no primeiro caso, “não são indivíduos mascoletividades que se obrigam mutuamente, trocame contratam” (idem). Ou, por outra, as pessoas quetrocam são “pessoas morais”, não indivíduos.Nessas trocas, os grupos podem ser representadospor seus chefes (idem, p. 45), mas apenas no capi-talismo de mercado a troca é antes de mais nadaentre indivíduos, pois esses são as pessoas moraisno sistema. A gênese desse fato distintivo da mo-dernidade é uma das preocupações de Mauss,posteriormente desenvolvida por L. Dumont.

Como vimos, para Mauss as trocas incluembens mais ou menos alienáveis, assim como benseconomicamente úteis ou não. Elas podem incluir“serviços militares, danças, festas, gentilezas, ban-quetes, mulheres”; em resumo, qualquer “circula-ção de riquezas” (incluindo-se aqui as mulheres)é apenas um momento “de um contrato mais gerale muito mais permanente” (MAUSS, 1974, p. 65).Ou seja, o objeto do Ensaio não é a economiaprimitiva, mas a circulação de valores como ummomento do estabelecimento do contrato social.

Vimos ainda que Mauss chama essas presta-ções, esses diversos tipos de dádiva, de “totais”.Uma forma, para ele “evoluída” e “agonística” de“prestação total”, seria o potlatch dos índios dacosta noroeste da América do Norte (kwakiutl,tsimshian, haida, tlingit, chinook etc.). Nesses ca-sos, chefes, representando diferentes “linhagens”(ou, mais propriamente, “casas”, como demons-trou Lévi-Strauss (1979)), competem entre si, ofe-recendo-se mutuamente quantidades cada vezmaiores de bens, especialmente brasões de cobreesculpidos e peles de animais (posteriormentesubstituídas por cobertores industrializados, dadoque estes teriam mais “valor” – SAHLINS, 1988).“Ganha” o chefe mais generoso. No potlatch, asposições políticas, na tribo e nas confederaçõesde tribos, são constituídas pela rivalidade entre“casas” (Mauss ainda usa o termo de Boas, “li-nhagens”). A troca também pode aí assumir a for-ma de destruição de riquezas, os escudos braso-nados de cobre jogados ao mar. No potlatch, atroca de certo modo substitui a guerra, mas guar-dando um sentido de rivalidade: vence quem dáou destrói mais, a “luta dos nobres” é a luta dosgrupos. Em certos potlatch, o chefe deve gastartudo o que possui e nada guardar.

Mauss (1974, p. 47) reserva ao potlatch adenominação “prestação total de tipo agonístico”.Isto é, implica um desenvolvimento da rivalidade,uma maior institucionalização da competição. Emoutros lugares, as trocas assumiriam uma “formamais elementar de prestação total”, sem tantacompetição, que seria uma “forma mais antiga dadádiva” e não seria o objeto de estudo do Ensaio(MAUSS, 1974, p. 98). Ao mesmo tempo em quesua comparação é cuidadosa, Mauss por pouconão propõe uma tipologia evolucionista, dado quea prestação total agonística deriva-se da prestaçãototal simples. Digo “por pouco” porque o próprioMauss não dá grande importância a esta classifi-cação (das classificações nativas), importância quenós tampouco devemos dar. Fundamental nessapassagem da “Introdução” é a demonstração decomo, nos potlatch, os fato da economia não sedissociam dos do direito. Mauss especifica a intui-ção de Durkheim de que a economia é, em últimaanálise, regida pela religião, ou mais exatamente,por “mecanismos espirituais [...] regras e idéias”(MAUSS, 1974, p. 48) – a mais forte das quaissendo a própria obrigação moral de retribuição.

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IV. POLINÉSIA

A Polinésia interessa especialmente a Mausspor causa da noção de mana, através da qual iniciaseu estudo sobre a obrigação de retribuir. A noçãode mana é também importante em partes daMelanésia, mas em um contexto de menor desen-volvimento da chefia como instância centraliza-dora da vida social. Essa noção permitiria com-parações não só entre essas regiões próximas, mastambém entre outras sem uma história de contatos:o potlatch da costa noroesta americana apresen-taria noções semelhantes, implicando honra,prestígio e autoridade; não retribuir implica perdado mana.

Mauss inicia a análise da Polinésia por Samoa,salientando a presença de uma classificação debens e pessoas em:

tonga (feminino) : oloa (masculino) : : inalie-nável : alienável : : autóctone : estrangeiro.

Essa relação entre gênero e inalienabilidadefoi posteriormente estudada por A. Weiner (1976,1992). Não só objetos mas também conhecimentosrituais são classificados como tonga; são as estei-ras de casamento, herdadas pelas filhas, mas tam-bém os tesouros, talismãs, brasões, tradições,cultos e rituais. Eles pouco circulam. Proibiçõesimpedem-nos de serem repassados a qualquer um;ligam-se assim ao poder, daí serem bens de pres-tígio, freqüentemente marcas da chefia, carregadosde mana.

Analisando as noções nativas de mana e dehau, Mauss conclui que “o que, no presente rece-bido e trocado, cria uma obrigação, é o fato deque a coisa recebida não é inerte”. Nesse sistema,“o doador tem uma ascendência sobre o bene-ficiário” (Mauss, 1974, p. 54). A transmissão criaum vínculo jurídico, moral, político, econômico,religioso e espiritual, um “vínculo de almas.Presentear alguma coisa a alguém é presentearalguma coisa de si” (idem, p. 56). Tanto a quan-tidade e a qualidade do que é trocado tem impor-tância no estabelecimento da superioridadepolítica e moral como também a iniciativa do ofe-recimento de uma primeira dádiva que irá esta-belecer a relação. Há algo de perigoso no ato dedar, há sempre o perigo de não sermos aceitos. Aascendência do doador se relaciona assim tambémà iniciativa da troca.

Em seguida, Mauss explica a destruição sa-crificial a partir da lógica da reciprocidade, o

sacrifício sendo uma doação que implicadestruição e que deve ser retribuída pelos deuses(idem, p. 63). O sacrifício também é um contrato(idem, p. 65). Como no potlatch, os chefes aliados/rivais polinésios se vêem mutuamente como deu-ses. Esse tema ainda merece mais estudos, assimcomo o das esmolas, também presentes tanto nocontexto polinésio como no do noroeste norte-americano, e que podem ser definidas como“dádivas oferecidas às crianças e aos pobres [que]agradam os mortos” e aos deuses (idem, p. 65-66). Mauss sugere haver uma relação entre essestemas, o sacrifício e a esmola: esta é um sacrifíciofeito às crianças e aos pobres8.

Mauss (1974, p. 67) nota ainda que a imensamaioria das sociedades polinésias apresentamsistemas monárquicos fundados em hierarquias de“clãs” (ou, como hoje sabemos, de “casas” – cf.LANNA, 1998). Essas monarquias seriam maisestáveis, a ponto de não necessitarem deinstituições como o potlatch, cujo sentido seria ode “fixar por instantes” uma hierarquia9. Assim,se os índios da costa noroeste evoluíram daprestação total simples à prestação total agonística,os da Polinésia teriam evoluído desta última àmonarquia. Os maori seriam o povo polinésio ondeas trocas mais se assemelhariam ao potlatch,porque lá os clãs estariam mais isolados, havendoentre eles maior rivalidade. Na Melanésia, osistema de trocas se assemelharia mais ao potlatchdo que na Polinésia, por não haver rígida edesenvolvida hierarquia. Esse raciocínio não épuramente evolucionista, pois concede que umasociedade pode se desenvolver em diferentessentidos, institucionalizando ora a dádiva, ora acentralização política. Até que ponto há evolu-cionismo na suposição da maior centralizaçãorepresentar um sentido geral é uma questão aindasem resposta na Antropologia de hoje, como revelao colóquio que se reuniu para discutir esse tema e

8 Sobre a associação entre as crianças e os mortos, presenteem um grande número de sociedades, cf. Lévi-Strauss(1952).

9 Note-se que tanto as sociedades polinésias como as dacosta noroeste da América vêm sendo interpretadas como“sociétés à maisons” (LÉVI-STRAUSS, 1979). Maussaponta haver uma maior instabilidade política nessa regiãodo globo, uma menor centralização da instituição dachefia e, logo, a não existência de monarquias, como asque encontramos na Polinésia.

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que redundou na coletânea de artigos organizadapor Godelier, Trautman & Tjon Sie Fat (1998).

V. A EXTENSÃO DESSE SISTEMA

Nesta parte do texto, Mauss ambiciona mostrara generalidade da lógica da dádiva, por ele esbo-çada anteriormente. Comenta que comparar civili-zações não implica desvendar as “conexões” entreelas. Antropólogos hoje concordam com esta po-sição. Por exemplo, a crítica de Lévi-Strauss(1958, 1992) a Boas revela de modo definitivoque a dificuldade no sentido de estabelecermosconexões históricas não nos impede de buscarmosconexões lógicas entre elas (cf. também os quatrovolumes das Mythologiques). De todo modo, éfundamental a demonstração de Mauss de podera troca gerar valores sociais e que sua associaçãoà rivalidade é bastante generalizada nas sociedadeshumanas – não só porque dar freqüentemente sig-nifica obter prestígio, mas também por que a trocaincorpora nela mesma algo da guerra. Para usar aterminologia da teoria da hierarquia de L. Dumont(1992), é como se o dar englobasse o receber (ooposto talvez defina o capitalismo e a troca mer-cantil, tal como definida por Marx, visando ao lu-cro em dinheiro). Em todo caso, trocando, domes-tico meu parceiro, e se for bem sucedido, se dermais do que recebo, posso fazer dele, segundo umametáfora melanésia, “um cachorro que vem lambera mão do dono” (idem, p. 81).

As dádivas perpassam e organizam diferentesesferas sociais. Mauss dá vários exemplos (ilhasAndaman, China, Polinésia) de como o casamentopode ser entendido como a dádiva de uma mulher.Na verdade, o casamento envolve uma série dedádivas entre grupos aliados, a dádiva da mulhersendo concebida como a “principal”, aquela quefundamenta a instituição (como o voto pode serconcebido em alguns lugares como a dádivaprincipal, que fundamenta as eleições – cf. Lanna,1995). No casamento, a dádiva da mulher freqüen-temente é acompanhada, como na nossa sociedade,de outras dádivas, feitas a um dos cônjuges (porexemplo, o dote, tão importante na Europa oci-dental do século IV até a revolução industrial –cf. Goody, 1983) ou à familía de um deles (comono caso da riqueza da noiva, tão importante emtoda a África sub-sahariana – cf. Goody, 1973).O casamento pode ainda ser uma ocasião propíciapara um potlatch (Mauss, 1974, p. 107), sendoneste caso a prestação englobada (Sahlins, 1988),não a englobante.

Mauss repete observações de que as trocas dedádivas assumem múltiplas formas e conteúdos.Elas podem levar à superação de um estado deguerra. Ou ainda, como entre os andamaneses, porexemplo, entre outras sociedades, serem associa-das não à aproximação mas à interdições, respeito,ritos de separação e evitação; isto é, elas criamuma relação e ao mesmo tempo sacramentam umadistância entre os parceiros. As dádivas podemainda se relacionar ao contrário da evitação, àsrelações jocosas entre afins (Mauss, 1974, p. 70).

Após passar em revista a descrição dos anda-maneses de Radcliffe-Brown, Mauss abordadescrição dos trobriandeses feita por Malinowski.Coerentemente com sua suposição de umauniversalidade do mercado, Mauss (idem, p. 88-89) define como moeda os vaygu´a trobriandeses,os braceletes e colares que são os valores máximostrocados entre diferentes ilhas no conhecidocircuito kula. Mauss ainda não percebe a impor-tância das esferas distintas de troca implícita naclassificação trobriandesa, fenômeno caracteris-ticamente ligado à dádiva, como mostraria maistarde a Antropologia econômica (cf. Lanna, 1998,ou ainda os capítulos iniciais de Giannotti, 1983).Isto é, no sentido marxista inclusive, a moedadefine-se por sua capacidade em generalizar-se,permitindo a conversão entre diversas esferas detroca. Assim, não se pode associar diretamente,numa sociedade africana que pratique a riquezada noiva, por exemplo, a dádiva da mulher àsoutras prestações materiais que acompanham ocasamento, o que levou antropólogos como JamesFrazer a erroneamente falarem em “compra demulheres”.

O próprio Mauss (1974, p. 75) nota queMalinowski criticou, a meu ver corretamente, asua concepção de moeda, pois esta implicariaapenas a noção de meio de troca e não de padrãogeral de valor. Isto é, Mauss não parece ciente daespecificidade da moeda capitalista, como um“valor que se generaliza” de modo não hierár-quico. Nas sociedades não-capitalistas, os valoressó se generalizam de modo hierárquico (sempreno sentido de Dumont). Isto é, o valor de certosobjetos pode não ser no sentido de sua genera-lização quantitativa, como padrão ou medida datroca. Por exemplo, seu valor pode estar em umacapacidade regenerativa milagrosa (ou “life-giver”) ou em uma capacidade emblemática pararepresentar todo um clã ou linhagem (caso das

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esteiras polinésias mencionadas por Mauss). Nessecaso, tratam-se de valores “subjetivos e pessoais”,freqüentemente inalienáveis. O que distingue amoeda capitalista das “moedas” hierárquicas é queestas são menos alienáveis. Claro que elas tambémnão são totalmente inalienáveis, pois por definiçãosão passíveis de serem trocadas, apesar de essatroca ser sempre cercada de proibições e condições(ocorrer só quando há um casamento real, porexemplo).

Já no capitalismo, a moeda destrói as esferasde troca, acabando com a possibilidade de umadessas esferas vir a ser hierarquicamente superior.A divisão fundamental passa a ser entre o que éou não é mercadoria, isto é, passível de compra evenda, ser trocado por dinheiro; no mercado, amoeda passa a ser uma medida geral. Como in-dicava Malinowski (e mais recentemente, Barraudet alii, 1984) a moeda hierárquica também é umamedida geral, mas não no sentido de poder serdiretamente trocada por qualquer objeto. No capi-talismo, a própria alienabilidade passa a ser umvalor; todos desejam a moeda por esta ser aquiloque pode, potencialmente, tudo alienar. Assim, sea lógica da mercadoria define uma esfera extre-mamente ampla de troca –, o mercado –, a dadádiva define sempre várias esferas restritas,fechadas em si mesmas, mas em relação hierár-quica entre elas. Mauss poderia ser criticado pornão distinguir a generalização de valores hierár-quicos (no sentido dumontiano do termo) da gene-ralização capitalista do valor e do valor-moeda (nosentido marxista do termo).

De uma perspectiva marxista, Mauss poderiaainda ser criticado por freqüentemente nãodistinguir o que Marx denominava “gênese lógica”da “gênese histórica da moeda”. Nas reflexõessobre a moeda do Ensaio, fica implícito, a todomomento, que Mauss não deixar de buscar a “ori-gem” da nossa moeda. No caso do cobre kwakiutl,por exemplo, Mauss impressiona-se com o signi-ficado desse bem tão valorizado e ao mesmo tem-po tão pouco alienável. Por outro lado, para eleimporta também pensar a sua própria forma(cobre), pois ela poderia representar uma continui-dade com a moeda capitalista.

Apesar dessa criticável preocupação com ori-gens históricas, que, ao modo dos evolucionistasdo século XIX, fundamentaria algumas dascomparações de Mauss, o autor está ciente de queos cobres dos índios da costa noroeste da América

do Norte teriam um significado construídolocalmente. Seriam assim “moeda”, a meu ver, nãopor sua forma (cobre), mas por sua capacidadepara representar um todo, ao serem associados aochefe. Quanto a esse significado do cobre nocontexto kwakiutl, lembro que para Mauss a chefiaengloba o cobre. Por outro lado, o chefe nãoapenas possui um cobre, mas ele mesmo é umcobre quebrado, os cobres são o seu espírito(Mauss, 1974, p. 127-128). O cobre seria umamoeda personalizada, que inclusive fala e isso,para Mauss, o diferiria fundamentalmente da nossamoeda. Mas não tanto: “serve-se do cobre porpercussão, como no direito romano: cunha-se neleo gens ao qual são dados [...] coisas tocadas pelocobre são-lhe anexadas, mortas por ele; esse, aliás,é um ritual de paz”. Assim, “as coisas têm umapersonalidade e as personalidades são, de certamaneira, coisas permanentes do clã” (Mauss,1974, p. 128).

Essa concepção de moeda de Mauss leva-oentão a tratar a dádiva como comércio. Mas eledeixa claro que, se a dádiva também é comércio,ela não é exclusiva nem principalmente comércio;seria apenas um dos seus sentidos, seu “aspectoeconômico”. O kula, por exemplo, pode ser enten-dido como um comércio intertribal, por implicaruma troca circular que ocorre entre várias ilhasmelanésias. Mas, como Malinowski mostra, ele édistinguido pelos próprios trobriandeses das trocaspuramente econômicas “de mercadorias úteis”,denominadas gimwali, e que ocorrem paralela-mente a ele (idem, p. 74). Mauss nota que ostrobriandeses sempre foram comerciantes. Emresumo, para Mauss, como para Malinowski, astrocas podem ter um caráter mais ou menoscomercial.

Após refletir sobre a noção de moeda, em geral,a partir do kula e do potlatch, Mauss salienta umasemelhança entre essas duas formas de troca:ambas são “de ordem nobre” (Mauss, 1974, p. 73).Note-se que a comparação não é tanto entre socie-dades, isto é, não é aquela que propunham namesma época Boas, Malinowski e Radcliffe-Brown, cada qual ao seu modo. Não há um esforçopara uma contextualização totalizadora da mesmaordem da que encontramos naqueles grandesetnógrafos. Trata-se, no caso de Mauss, de com-parar formas de troca, ou manifestações especí-ficas de instituições que se revelam fundamentaisem diferentes sociedades.

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Mauss aponta ainda para outra questãoimportante, o fato de que cada sociedade faz suahierarquia entre as esferas sociais. Posteriormente,Godelier (1981), entre outros autores, retoma estatarefa fundamental de entender a hierarquia entreas esferas sociais de cada sociedade. Para Godelier,a esfera fundamental, fosse ela qual fosse,“funcionaria” sempre como “relação de produção”(economia no capitalismo, religião na Índia,política no final do feudalismo europeu, paren-tesco na Austrália etc.).

Em um debate que é até hoje retomado entreMarx e Mauss, este último faz outra contribuiçãofundamental ao salientar, com base nos dados deMalinowski, que a produção dos objetos kula, osvaygu´a, não parece ser tão relevante quanto suatroca (Mauss, 1974, p. 86). Ou, por outra, asrelações de produção são nas Ilhas Trobrianddeterminadas pela dádiva, assim como a produçãodos vaygu´a é subsumida na sua condição dedádiva fundamental.

Ainda a partir da etnografia de Malinowski,Mauss retoma as diversas formas de dádivastrobriandesas (inicial, de fechamento, convite, deretorno etc.) interpretando-as como “formasprimitivas de classificação”10. Corretamente, nãodá atenção à (re)classificação malinowskiana destaclassificação trobriandesa. Sugere futuras pes-quisas sobre o lugar do indivíduo não generosono kula, infiel aos seus parceiros, e conclui que“o kula não passa, ele próprio, de um momento, omais solene, de um vasto sistema de prestações econtra prestações que parece englobar a totalidadeda vida econômica e civil dos trobriandeses” pois“ele concretiza e reúne muitas outras instituições”(idem, p. 83). O kula é assim um fato fundamentalda vida trobriandesa, englobando não só o queMauss chama de “vida civil e econômica” (in-cluindo aqui a política e a diplomacia intertribal)como também os mitos, a religião, a magia, as

práticas funerárias e a moral (Mauss, 1974, p. 86).

Fiz alhures (Lanna, 1992) uma discussão sobreeste aspecto englobante do kula, apontando paraum fato não salientado por Mauss: a produção e atroca de bens não-kula, aqueles excluídos da esferade troca dos vaygu´a, são função das relações deparentesco. Ou mais precisamente, nas IlhasTrobriand, a troca de mulheres funda uma relaçãode vassalagem, denominada urigubu, na qual odoador de mulheres recebe prestações de inhames– às quais tanto Mauss como Malinowski sereferem como “tributos”. Os chefes trobriandesesarrebanham vassalos “distribuindo” suas filhascomo esposas. Mauss (1974, p. 87) lembra comoé importante a redistribuição, feita pelo chefe, dosobjetos trazidos por uma expedição kula “aosgrupos que prestaram serviços ao chefe ou ao seuclã”. Se o urigubu é um mecanismo endógeno decriação do poder do chefe, no kula tudo se passacomo se este poder se fizesse de fora para dentro,ao trazer valores kula do exterior. É nesse contextoque deve ser entendida a afirmação de Mauss deque a troca kula organiza todas as relações dogrupo, inclusive as internas.

Vimos que o kula envolve diversos gruposmelanésios e que Mauss interpreta como “moeda”certos objetos melanésios que são a devidarecompensa ao oferecimento de “cantos, mulheres,serviços” (MAUSS, 1974, p. 90). É interessanteque também no potlatch haja a troca de “cantos,mulheres e serviços” pelos cobres e pelas peles(SAPIR, 1994). Como os objetos melanésios, co-bres e peles da costa noroeste americana realmentese assemelham à moeda que representam valoressociais centrais. Sugerem ainda a idéia de casa-mento por meio da compra, mas Mauss já indicavaser imprópria essa expressão, pois esse casamento“na verdade compreende prestações em todos ossentidos, inclusive os da família da mulher”, istoé, há uma superposição de diversos circuitos detroca.

Mauss conclui sua observações sobre osmelanésios negando que eles sejam menos evo-luídos, mas simplesmente “não têm nem a idéiada venda [...] e contudo fazem operações jurídicase econômicas que tem idêntica função” (idem, p.91). Lembra ainda que eles são “uma parte dahumanidade, relativamente rica, laboriosa ecriadora de excedentes importantes” (idem, p. 92).Diz o mesmo dos índios da costa noroeste daAmérica, que desenvolveram uma rica civilização

10 Mauss, entretanto, ora reconhece o “refinamento”(1974, p. 89) intelectual das classificações trobriandesas,ora as toma como “pueril” (idem, p. 88). Mas sua análisenão deixa de relacionar as classificações nativas das trocasà morfologia de cada grupo. A troca pode, assim, envolverem cada caso mais ou menos os chefes, clãs, fratrias econfrarias (idem, p. 104), ou um potlatch que tem comocausa um funeral pode ser, em um dado grupo, distinguidode outros tipos de potlatch (idem, p. 114), e assim pordiante.

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material e espiritual, como demonstram, por exem-plo, suas esculturas, mas, curiosamente, não co-nheciam nem a agricultura nem a cerâmica. Apóso contato com os brancos, esses índios não sómantiveram como desenvolveram o potlatch.Vimos que, em relação aos sistemas de dádivasdo Pacífico sul, os índios da costa noroesteapresentam maior rivalidade e um certo elementode violência, a “guerra de propriedade”; outradiferença relevante, salientada por Mauss, seria ade terem elaborado mais “a noção de crédito aprazo” (idem, p. 96).

O fato de trocas do tipo potlatch obedecerema um crescendo foi entendido por Boas como umamanifestação daquilo que concebemos comoempréstimos a juros: deve-se sempre dar mais doque se recebeu em um potlatch anterior. Mausssugere substituir os termos dívidas, pagamento,reembolso e empréstimo, mas mantém o de juros– chega a falar em “taxas” (idem, p. 112).Argumentei, ao contrário, a favor de mantermoscomo universal a noção de dívida, mas não a dejuros (LANNA, 1995). Em todo caso, não po-demos jamais tomar a noção de crédito como sinalde uma evolução, como supõem alguns histo-riadores econômicos e o próprio Mauss, na parteIII do Ensaio, como veremos a seguir.

O potlatch sugere a Mauss outros insights,como o de que o jogo e a aposta, mesmo entrenós, são formas de potlatch: neles “empenha-se ahonra e o crédito [e], não obstante faz-se circulara riqueza”. Mauss supõe ainda haver umaassociação universal (evidentemente queinstitucionalizada diferentemente em cada caso)entre troca e sacrifício (MAUSS, 1974, p. 99); odar seria associado à vida e o receber à morte.Fica a impressão de que essa “tendência” se enfra-queceria no capitalismo. No potlatch, muitoclaramente, é o receber e não o destruir que éassociado à morte. Destruir seria uma forma dedar, uma forma muito específica exatamenteporque evita a retribuição (idem, p. 100). Do pontode vista do doador, “dar já é destruir”, um sa-crifício, logo um modo de dar vida, de regeneraçãosocial. Ao se destruir, tira-se a vida do objeto, masrecria-se a vida do doador. Freqüentemente, nonoroeste da América a destruição pode ser pelofogo (queimam-se casas do próprio grupo) ouatiram-se os cobres ao mar. Alternativamente,quebram-se os cobres em pedaços (o que, por sinal,não implica necessariamente que eles deixem de

circular).

Ao analisar o potlatch Mauss nota ainda aassociação entre troca e circulação de nomes11.Dá-se um potlatch para ganhar, manter ou recu-perar um nome, geralmente nome de linhagem.Ganha-se assim reputação. Obviamente os insightsde Mauss não se limitam ao potlatch. O estudodas trocas permitem-no relacionar o mana poli-nésio e melanésio ao “homem largo” da costa no-roeste da América e à autoridade romana. Nos trêscasos trata-se da associação entre honra e magia,prestígio e riqueza. Mauss (1974, p. 102) nota queo mesmo ocorre “nas tribos realmente primitivas,como as australianas”.

Ao mesmo tempo, perder um potlatch podegerar escravidão (idem, p. 105), ou ainda, dá-seum potlatch para se “resgatar cativos” (idem, p.107). Em resumo, o potlatch indica como a dádivapode se ligar simultaneamente ao sacrifício, aonome e à escravidão. Isso implica, entre outrascoisas, sua relevância para o entendimento dasmais variadas sociedades, dos indígenasamazônicos à Roma antiga. A autoridade é assimum conceito romano que não apenas ou nãofortuitamente lembra o de mana: há em torno deambos semelhantes “arcabouços institucionais”.Assim, o nexum (idem, p. 112) é um conceitoromano que lembra a “escravização por dívida”da costa noroeste; em ambas “empenha-se onome”.

Mauss está consciente que apenas iniciacomparações possíveis a partir da noção de dádiva.As comparações que faz são bastante intuitivasmas também bastante ousadas. Sugere que opotlatch nos permite repensar o feudalismoeuropeu. Há entre os tsimchian, por exemplo, doistipos de potlatchs, o dos chefes e os de vassalos(idem, p. 107, nota 170). Mas, mais comumente,o potlatch se liga à confederação de tribos,estabelecendo uma hierarquia entre chefes. Elestêm entre si relações vassalo/suserano; perder umpotlatch é tornar-se ora escravo, ora vassalo. Emalguns casos, estabelece-se que para vencer um

11 A análise de Mauss é a meu ver muito mais sugestivaque certos desenvolvimentos da Antropologia da Mela-nésia, que associam a circulação de nomes em trocas dotipo kula à noção de fama e não à onomástica ou àdistribuição de títulos (cf. MUNN, 1986; WEINER, 1976,entre outros).

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potlatch, tornar-se suserano, deve-se antes terperdido, ter sido vassalo, recebido bens que seriamfuturamente dados (idem, p. 105). Por outro lado,o que um chefe recebe no potlatch de outro chefe,é necessariamente por ele redistribuído interna-mente (idem, p. 107). O chefe que perde umpotlatch não perde totalmente sua autoridade, poisé um intermediário; ele está então em condiçõesde passar adiante algo da alma, da identidade, doser do vencedor. O perdedor tem assim duaspossibilidades: a primeira seria, a partir dos valoresque recebe e de outros que pode vir a acumular,tentar ganhar outro potlatch no futuro; a segundaseria passar a ser um representante do vitorioso,ainda que tendo seu prestígio diminuído em re-lação a este.

Neste momento do texto (o sub-item do “Capí-tulo I”I, intitulado A força das coisas), Maussadota o conceito de mana para explicar fatos dacosta noroeste americana. É famosa a crítica deLévi-Strauss (1974) a esta passagem, que tem sidoentendida como uma censura ao fato de Mausstomar a teoria nativa como teoria antropológica.A meu ver, o problema dessa passagem é não só ofato de Mauss generalizar uma noção particular, ade mana, como aponta Lévi-Strauss, mas tambémaproximar categorias nativas muito distantes,romanas, samoanas e kwakiutl. De modo seme-lhante, é evidentemente errônea a afirmação deMauss de que o potlatch existe na Melanésia. Hojesabemos que o que é geral é o princípio dereciprocidade, formalizado por Lévi-Strauss(1949), a partir do próprio Ensaio sobre a dádiva.Por outro lado, Mauss (1974, p. 121) encontra nanoção de logwa, da costa noroeste, um equivalenteao mana. Ambas teriam uma “virtude produtora”(ibidem). É como se houvesse uma funcionalidade(ou efi-cácia?) de uma ideologia, ou melhor, deum “prin-cípio mágico e religioso da posição e daabundân-cia” (idem, p. 121-122), isto é, nãoexatamente de um princípio político-econômico.

Como já disse, Mauss nota que, em toda parte,distinguem-se bens mais ou menos inalienáveis,e que os segundos são sempre os mais valiosos –mulheres, privilégios que se passam a um genroou nomes a um filho. Da mesma forma, distin-guem-se, em toda parte, como entre nós, os“alimentos ricos” das “simples provisões”. ParaMauss, seria mais correto falarmos não em trocamas sim em “empréstimos” entre bens inaliená-veis. Os títulos, como o de xamã ou de titular dedanças em uma confraria (idem, p. 118) podem

ser tidos como bens inalienáveis. São “coisas dafamília” (idem, p. 119). No caso da costa noroesteamericana, casas, portas, talheres, mantas, caixas,pratos, canoas, cachorro seriam, neste sentido,semelhantes às nossas “coisas da família”. Elassão, como todas as dádivas, individualizadas;como cada um dos objetos kula, cada uma destas“coisas da família” é identificada por um nome etem sua história própria.

Exatamente por sua inalienabilidade Mauss(1974, p. 121-122) também associa os cobertoresda costa noroeste às esteiras polinésias, por serem“bens essenciais de circulação bastante estrita,cuidadosamente repartidos entre os clãs e as famí-lias dos chefes”. Eles seriam ainda semelhantes acertos objetos kula, também bens de circulaçãorestrita a uma esfera de troca e às ocasiões solenesde kula. Mauss nota que um cobre que já foidestruído e depois reconstruído, isto é, já passoupor vários potlatch, tem mais valor (idem, p. 125).Mas Mauss nota ainda que os kwakiutl distinguemduas espécies de cobres, distinção feita com basena maior ou menor alienabilidade (ibidem). Istoé, há cobres que não saem da família e que nãodeixam de ter grande valor, equivalente ao dafamília. O valor máximo seria então o de um co-bre-de-família-nobilérrima-que-circulou que reali-za a síntese entre inalienabilidade e alguma aliena-bilidade. Essa interpretação se reforça pelo fatode que os cobres secundários não podem ser que-brados e refundidos; são “satélites dos primeiros”,exatamente porque são definidos, de antemão,como mais alienáveis.

VI. DIREITOS E ECONOMIAS ANTIGAS

O título do “Capítulo III” do Ensaio é “Sobre-vivência desses princípios nos direitos antigos enas economias antigas”. Como se sabe, a noçãode sobrevivência foi cara aos evolucionistas. Tam-bém a noção de antigüidade sugere um estágioentre a modernidade e o primitivismo. Sugeriacima que as comparações de Mauss estão de certaforma entre Boas e Frazer, dirigindo-se para aperspectiva mais etnográfica do primeiro sem abrirmão da pretensão para encontrar traços universaisdo pensamento humano que caracterizava osegundo. O título do “Capítulo III” indica queMauss não se livrou totalmente de influênciasevolucionistas. No segundo parágrafo deste ter-ceiro capítulo, Mauss fala em comparação (Frazer)e explicação histórica (Boas), de certo modoconfundindo ambos os métodos. A meu ver, como

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seu título indica, este é o capítulo mais evolu-cionista do Ensaio, justamente porque também éaquele com mais pretensões históricas. A históriade Mauss difere assim da de Boas por não perderuma obsessão com a noção de origens. Esse evolu-cionismo não é, entretanto, a característica centraldo texto, nem invalida inúmeras de suas con-tribuições.

De um ponto de vista metodológico, o evolu-cionismo do capítulo expressa-se ainda pelo fatode Mauss apoiar-se não na lingüística porém simna filologia. Mas o próprio Mauss (1974, p. 147)parece consciente dos limites deste procedimento,quando indica que não irá aprofundar sua“tentativa de reconstrução por etimologia”. Tam-bém na parte dedicada aos fatos indianos, Maussmostra-se consciente dos limites de sua preocupa-ção com origens (p. 143-144), afirmando a seguirque “nossa demonstração atual não nos obriga adosar estas múltiplas origens e a reconstituirhipoteticamente o sistema completo” (idem, p.147). Conclui, como faríamos hoje, que “a simplesdescrição será bastante demonstrativa” (idem, p.148). Quanto à identificação entre comparaçãoantropológica e trabalho histórico, está claro queela se limita a algumas passagens do texto, pois,como vimos, há no Ensaio inúmeras passagensonde a comparação prescinde a abordagemhistórica, fundamentando-se no próprio fato datroca de dádivas, pressupondo assim mais a análisesociológica que a histórica.

É ainda no “Capítulo III” que surge a idéia deque “entre nós”, isto é, na sociedade capitalista, adádiva se enfraquece, ao opor-se à obrigação e àprestação não-gratuita (idem, p. 132). Mauss(1974, p. 143-144) supõe neste capítulo que, doponto de vista moderno, a moral da dádiva seria“envelhecida e acidental”, e “demasiado dispen-diosa e suntuária, assoberbada por consideraçõespessoais, incompatível com o desenvolvimento domercado e da produção”.

Ao mesmo tempo, ao abordar a instituição ro-mana do nexum, Mauss nota que ela fundaria asnoções de crédito e penhor, estando a meiocaminho entre a economia capitalista e a da dádiva.Mauss não chega a reproduzir o erro dos historia-dores econômicos que critica (Mauss, 1974, p. 98)por suporem ser o crédito uma conquista daevolução da humanidade, mas sua abordagem nãodeixa de ser evolucionista. Como já disse a respeitodas interpretações de Mauss sobre a moeda, ao

contrário de Marx, Mauss parece confundirevolução lógica com a histórico-factual. De todomodo, Mauss (1974, p. 134) mostra que, no nexumromano, o credor se vincula ao devedor como orecipiente de uma dádiva ao seu doador: em umarelação de empréstimo, “o indivíduo que recebeua coisa é ele mesmo, ainda mais que comprado,aceito pelo empréstimo”; ou ainda, “o mero fatode ter aceito algo de alguém torna o indivíduoobrigado” (ibidem).

Em Roma não teríamos ainda, num primeiromomento, a compra e a venda, mas sim a entregade um bastão (de cobre) junto com a coisa empres-tada. Esse bastão foi posteriormente substituídopela moeda, representando um título que em-penhava o gado das gentes, e que tinha cunhadasua face. A moeda teria sido então antes um pe-nhor, depois um valor12. Essa sugestão parecefactível para o caso romano. De qualquer modo,ainda que as generalizações históricas de Mausspossam ser criticadas, fica a sugestão genial, aindaque apoiada na etimologia e na intuição socio-lógica: vendere foi “originariamente venum-dare”(idem, p. 142).

Mencionamos que a noção de contrato tem,para Mauss, caráter universal. Coerentemente,para ele o nexum seria, como o potlatch e o kula,um contrato, implicando algo mais que um vínculomágico, religioso e jurídico – o que aliás já eranotado pelos romanistas da época. Mauss (1974,p. 136) sugere associarmos esses aspectos do vín-culo (ou nexum), isto é, sua “semelhança” com opotlatch ou o kula, ao fato de a família romanaincluir os escravos e as coisas. Estas coisas sedividiam em res mancipi e res nec mancipi, istoé, alienáveis ou não. Mauss afirma que a pecúnia,o gado, que se tornou moeda, pecúlio, era o bemalienável por excelência, isto é, o que menos re-presentava a família e a casa. Segundo a classifi-cação romana, ele estaria, mais do que qualqueroutro bem da família, próximo das “coisas quepassam”, comerciáveis.

Mauss nota a associação entre essas “coisasque passam” e a idéia de tradição. A raiz dessapalavra é a mesma da palavra que significa“comércio” em inglês (trade). A idéia é que as

12 É interessante notar que a noção de valor não seriapara Mauss universal. Dumont, ao contrário de seu mestreMauss, generaliza a noção de valor, mas não a de moeda.

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coisas criam vínculos espirituais: tradição. Nestesentido, a tradição é o que fica daquilo que passa.Mauss nota que “os romanos não tinham outrapalavra além de dare, dar, para designar todosesses fatos que consistem na traditio” (idem, p.142). Não há assim novidade na sugestão, feitapor certos cientistas sociais anglo-saxões, quecertamente leram mal Mauss, de que as tradiçõessão dinâmicas ou “inventadas”.

Por mais que se possa criticar Mauss por fazercomparações intuitivas, sem distinguir perfeita-mente as conexões lógicas das históricas, suaanálise revela claramente a importância do estudoda dádiva para entendermos os direitos romano egermânico. Por exemplo, Mauss nota que a noçãoromana de réu, antes de assumir o sentido de“culpado”, indicava o homem possuído pela coisa.A “inferioriedade espiritual” que caracterizariaaquele que recebe algo seria uma “quase culpa”(idem, p. 140).

Em seguida Mauss aborda o direito hindu clás-sico, do qual há numerosas fontes escritas, verda-deiras “epopéias da dádiva”, até hoje “extrema-mente populares na Índia” (idem, p. 144-145).Como o direito germânico, o hindu teria conser-vado um sistema moral fundado na dádiva querepresentaria uma etapa “anterior” (lógica e histo-ricamente) aos direitos grego e romano. Mauss(1974, p. 145) espera poder revelar, através “dateoria das dádivas” elaborada pelos próprios hin-dus, uma continuidade entre estes direitos e a mo-ralidade cristã.

Havia na Índia a prescrição de se dar aos brâ-manes, superiores hierárquicos. Nesse caso, Maussnão chega a falar em tributos. Essas prestaçõesreligiosas eram claramente sacrificiais e retribuídaspelos brâmanes com serviços religiosos. Os brâ-manes “encarregariam os deuses de retribuir ospresentes feitos a eles”. Mauss fala em uma sériede presentes aos deuses, sem descrevê-la pre-cisamente, praticada tanto por brâmanes comopelo “comum dos mortais”. Aparentemente, trata-se de “repastos funerários”. Mauss afirma que“faltam dados” e que não haveria necessidade deesses fatos serem “especificados com precisão emum trabalho de comparação” (idem, p. 148).Tratar-se-ia de um “direito” que esteve em vigorna prática do séc. 8 a. C. até o 3 d. C., mas quesobrevive até hoje na “lei brâmane” (ibidem). O“Mahabarata é a história de um gigantesco potlatch[...] torneio e escolha de noivas” (idem, p. 147). A

Índia antiga teria sido um “país de potlatch” (idem,p. 145), de “prestações totais de clãs e aldeias”,apesar de já conhecer “o mercado, o mercador, opreço, a moeda, a venda”. Mauss fala em rituaisda venda, que se associariam aos “princípios dehospitalidade” (idem, p. 146).

Mauss comenta que uma dádiva produz sempresua recompensa. No caso hindu, essa recompensapode ocorrer nesta ou em outra vida. A dádiva“não é perdida, reproduz-se” (idem, p. 148), voltade alguma forma ao doador inicial. Assim, um ava-ro “renasce em uma família pobre” (idem, p. 148).Trata-se assim de uma “teologia jurídico-econô-mica” (idem, p. 149) presente nas leis e na práticacristã. Entre os brâmanes, como entre os cristãos,prega-se que o “verdadeiro lucro” implica “renún-cia de si” (idem, p. 149).

Mauss lembra ainda ser bastante geral a crençade que aquele que consome sem dar (isto é, semser consumido) é tido como alguém que consomeveneno. Há, assim, também na Índia, a equaçãojá mencionada acima, entre dar e viver. Associadoao viver, o dar é pensado no caso indiano comoqualidade natural: “tudo que se é dado são seresvivos, com os quais se dialoga e que tomam parteno contrato” (idem, p. 149). Ou ainda: “é da natu-reza da comida ser partilhada” (idem, p. 150). Seo entesouramento é associado à morte, o dar éassociado à vida e à noção, fundamental na Índia(DUMONT, 1992), de pureza.

Mauss nota que “tal é a interpretação ao mesmotempo materialista e idealista que o bramanismodeu para a caridade e a hospitalidade” (idem, p.150). Do ponto de vista da organização social epolítica, o sentido da riqueza é ser dada aosbrâmanes. Há dois modos de destruição: um, anti-social, é associado à avareza; o outro, do sacrifíciobrâmane, é associado ao seu oposto, a generosi-dade divina. Ao mesmo tempo em que vivem dasdádivas, os brâmanes fingem recusá-las; são rece-bedores na prática, mas definidos ideologicamente(num sentido forte) como doadores, encarnandoos valores máximos daquela sociedade. Receben-do algo de toda a sociedade, inclusive dos reis (oskshatriyas, em relação aos quais são superiores),os sacerdotes a encarnam: cada um dá um poucode si e o todo se representa no brâmane.

Já a civilização germânica, segundo Mauss,não teria teorizado tanto sobre a dádiva como ahindu, mas não teria deixado de praticá-la.Diferiria ainda da hindu por ser “essencialmente

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feudal e camponesa” e “desprovida de mercados”(idem, p. 156). Analisando os germanos, Maussnega a tese da existência de uma “economia fe-chada”, tese esta que viria a se tornar incrivelmentecomum nas ciências sociais do segundo pós-guerra, tanto nos desenvolvimentos dos trabalhosdo próprio Mauss feitos pela chamada “Antro-pologia econômica” como, por exemplo, noschamados “estudos de comunidade”, de inspiraçãonorte-americana. Mauss (1974, p. 156) mostracomo toda sociedade tem suas formas de exo-gamia, suas trocas de mulheres, bens, ritos etc.Apresentando um argumento posteriormentedesenvolvido por Lévi-Strauss (1952, entreoutros), Mauss indica que, ainda que possa havercerto isolamento, ele é sempre relativo, restrito,por exemplo, no caso da civilização germânica, auma certa época do ano. Mauss (1874, p. 157)nota que as famílias, tribos, chefes e reis germâ-nicos se comunicavam através de festas, alianças,penhores, hospedagens e presentes “tão grandesquanto possível”. Batismos, comunhões, noivadose casamentos incluíam banquetes nos quais osconvidados poderiam ser “todo um povoado”. Umcasamento real germânico lembraria o caso brâ-mane: o casal real recebe não em nome da avarezamas do seu oposto, sua fertilidade sendo aquelade todo o reino; este, por sua vez, é representadopela soma das dádivas recebidas pelos nobresnoivos. Como no caso dos tributos, os bens possi-bilitam ao rei representar o todo.

Mas não só em casamentos reais “a genero-sidade das dádivas é um penhor da fertilidade dojovem casal”. Por isso mesmo, refletir sobre ainstituição do casamento nos ajuda a entender osignificado do penhor. Evitamos assim pensar osfatos econômicos como se fossem fatos puramenteeconômicos. Mauss (1974, p. 157) fala que casa-mento e penhor são instituições de mesma “ori-gem”, havendo “a necessidade do penhor em todasas espécies de contratos germânicos”. Este penhorteria dado origem à própria noção de salário(wadium, wage): “o penhor aceito permite aos con-tratantes do direito germânico agir um sobre ooutro, pois um possui algo do outro” (idem, p.158). O penhor era em geral um objeto pessoal,de pequeno valor, como uma luva, uma moeda ouuma faca. Aquele que o entregava empenhava asua honra, ficando em uma posição inferior até aquitação do contrato. Há assim um perigo em dare em receber, seja uma dádiva, seja um penhor.Lembrando uma representação que vimos estar

presente na Índia, nas línguas germânicas a palavragift tem o duplo sentido de dádiva e de veneno. Otema da “dádiva funesta” é comum no folcloregermânico.

Também a civilização chinesa reconhece ovínculo entre o doador e o bem dado, “mesmo hojeem dia” (idem, p. 161). Também lá “aceitar umpresente é perigoso”. Mauss se aproxima dasreflexões de Karl Polanyi (1980) a respeito damercantilização da terra, quando observa que “nahistória humana a venda definitiva da terra é muitorecente” sendo por isto “normal que a terra escapeao direito e à economia do capital” (1974, p. 161,nota 125). Isso explicaria em parte, a meu ver, aforça do movimento comunista chinês e da nossaprópria idéia de reforma agrária: nada menoscapitalista do que uma dádiva do Estado. Dis-tancio-me assim de J. T. Godbout (1998, p. 44),quando este afirma que “entende-se por dádivatudo o que circula na sociedade que não está ligadonem ao mercado nem ao Estado (redistribuição)nem à violência física”. Quanto à relação entredádiva e violência física, remeto o leitor, entretantos outros, ao texto de Carneiro da Cunha &Viveiros de Castro (1985). Ao contrário deGodbout (1998, p. 47), penso que, para Mauss, adádiva não seria “fundamentalmente diferente domercado e do Estado”13. Quanto a este ponto,Mauss difere significativamente de Polanyi, dequem Godbout parece adotar uma tríade cara aosevolucionistas: dádiva, redistribuição e mercado.Sem chegar, entretanto, a negar a diferença entrea dívida mercantil e a dívida da dádiva, mostrareia seguir que a redistribuição parece oferecer algoque, por falta de termo melhor, denominarei“forma geral” dos Estados14.

VII. SOCIEDADES MODERNAS

Na “Conclusão” do Ensaio, Mauss estendesuas observações para “as nossas sociedades”.Para ele, como para Marx, estas se definem pelopapel central das relações de compra e venda. Ao

13 Conseqüentemente, discordo das afirmações deGodbout segundo as quais “o mercado e o estado são duasinstituições neutras, que não alimentam nossas relaçõessociais”, porque são “exteriores aos laços com as pessoasque nos são caras” (GODBOUT, 1998, p. 48).

14 Evito conscientemente a noção lévi-straussiana de“estrutura”; estamos aqui no nível da instituições e nãode uma forma abstrata universal e intemporal.

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mesmo tempo, como para Lévi-Strauss (1952), oque Mauss denomina “nossas sociedades” tambémse define, de um ponto de vista quantitativo, pelamultiplicação das relações de troca. Uma primeiraconclusão: o estudo da circulação de riquezas,através da dádiva, oferece uma base para umacomparação inicial entre diferentes sociedades epermite uma passagem entre o estudo da nossasociedade e o das “outras”. Para Mauss, a dádiva,nas sociedades modernas, estaria “embutida nacompra e venda”, e não paralela ou independentedesta. Mauss minimiza a importância das relaçõesde “pura dádiva” no capitalismo, eximindo-se deuma análise de momentos como o do Natal, o dasfestas e das relações de hospitalidade na modernacivilização ocidental.

Nas suas referências à sociedade germânica,Mauss sugere ter ocorrido, nesta sociedade, umcerto desenvolvimento histórico, da dádiva aomercado. Mas a “Conclusão” do Ensaio nega aexistência dessa linha contínua e da passagemsupostamente universal. Mauss é ambígüo quantoa esse ponto: ora a presença do mercado enfra-quece a dádiva, ora não, o mercado carregando alógica da dádiva dentro de si. Em todo caso, suaposição na “Conclusão” deixa de ser aquela, cla-ramente evolucionista, implícita no “Capítulo III”,de que há um contínuo (lógico e histórico) dadádiva ao mercado. Mas, como vimos, mesmo nodecorrer do “Capítulo III”, em suas observaçõessobre a Índia antiga, Mauss indicava haver con-vivência entre dádiva e mercado.

Parece-me que, mais importante do que avaliara incipiente presença do mercado nas “outras”civilizações, devemos considerar em profundidadea presença da dádiva na “nossa”. Isto é, por maisque, como Marx e outros nos ensinaram, a socie-dade ocidental moderna se caracterize por umdesenvolvimento, sem precedentes na históriahumana, das relações mercantis, por outro ladoMauss (1974, p. 163) nos lembra que “não temosapenas uma moral de comerciantes”. Não é apenaso hábito de presentear, oferecer hospitalidade oudar festas que permanece entre nós, mas toda umamoral, derivada da intersubjetividade que estasrelações implicam. Se, em determinados con-textos, há conflito entre as lógicas da dádiva e damercadoria, em outros pode haver complemen-taridade. Há instâncias onde cada uma dessasidéias opostas se verificam, a mercadoria ora pres-supondo ora destruindo a dádiva (Lanna, 1995).

Mas na “Conclusão” do Ensaio Mauss nãopensa em um paralelismo entre dádiva e merca-doria. Sua idéia, cuja importância, a meu ver, aindanão foi devidamente avaliada, é a de que, namodernidade, a dádiva está de certo modo em-butida na compra e venda. Isto é, essas lógicasnão se excluem porque “as coisas vendidas temuma alma” (Mauss, 1974, p. 164). Neste momentodo texto, Mauss faz uma defesa do socialismo.Haveria para ele um resquício da moralidade dadádiva no fato de os trabalhadores –, denominadospor ele “produtores” –, terem “vontade de seguira coisa que produziram” e “a sensação aguda deque seu trabalho é revendido sem que tomem parteno lucro”. Mas Mauss assume algo, a meu ver,falso e não demonstrado em momento algum doEnsaio: que também os nativos das sociedades nãocapitalistas tenham esse “desejo” de seguir as dá-divas que fazem. Os inúmeros exemplos etnográ-ficos do Ensaio mostram exatamente o contrário,a saber:

a) que os desejos não organizam nem a pro-dução nem a distribuição não capitalista;

b) que, ao contrário do que ocorre no capitalis-mo, a produção pode ser determinada pelatroca;

c) que o fato de o doador “ir”, ele mesmo, comas dádivas que faz – mesmo que ele não astenha produzido, mas tenha sobre elas algumdireito (é irmão da esposa do produtor, nocaso do urigubu trobriandês, ou é o sobri-nho uterino do produtor, no caso fijiano etc.)– é algo profundamente diferente do argu-mento psicologizante segundo o qual o tra-balhador “quer seguir” as mercadorias queproduz.

A sugestão da “Conclusão” do Ensaio é a deque o trabalho é sempre uma dádiva, em qualquersociedade, capitalista (onde ele é também umamercadoria) ou não. Essa tese segue a tradição daescola de Durkheim de se opor às análises de Marxda sociedade capitalista, pois, se verdadeira,implicaria a possibilidade de o operário ser elemesmo o agente – simultaneamente voluntário einvoluntário (dada a brilhante e indiscutível ca-racterização da dádiva pelo próprio Mauss) – daentrega de uma parte de si mesmo ao industrial. Aposição marxista, quanto a isso, seria a de quesemelhante entrega não deixa de ocorrer, mas nãose trataria de dádiva e sim de algum tipo de apro-priação, que talvez merecesse ser tida como

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extorsão.

Haveria, assim, conflito entre a posição mar-xista e a suposição, ao meu ver ingênua, de Mauss,de que a lógica da dádiva permite uma superaçãoda alienação, no sentido de que, se pudesse o“produtor” elaborar mais o sentimento de que algodele vai “com o bem dado”, isso implicaria ummaior “controle ou posse” sobre os bens, sobre sie sobre todo o processo social. Resta, entretanto,a intuição, a meu ver correta e que mereceriamaiores estudos, de que há realmente um aspectode dádiva na lógica da mercadoria, do trabalho ede suas representações nas sociedades capitalistas.

Mauss argumenta que artistas e operários se-riam menos contaminados pela lógica burguesada compra e venda. Por isso mesmo, Mauss deixade aprofundar algumas de suas próprias reflexõessobre o fato de a burguesia (ele não usa o termo,mas a referência é clara) também praticar a dádiva(festas, hospitalidade, favores intra-patronais,etc.), o que poderia contradizer aquela tese. Seuargumento é no sentido de que a burguesia deveriase deixar contaminar mais profundamente por estalógica universal que é a da dádiva. Já os operários,para Mauss, deveriam tomar maior consciênciadas próprias dádivas que fazem, de como suasvidas já são permeadas pela dádiva. Isto é, aesperança de Mauss era a de que a burguesia fossecada vez menos individualista e os operários eartistas, cada vez mais. Estes não teriamconsciência de sua posição para reivindicar,defender seus interesses. Assim se resolve atensão, que mencionei acima, segundo a qualMauss ora reconhece a presença da dádiva nocapitalismo, ora nota sua ausência: seriam osoperários os representantes da lógica da dádivaneste contexto.

Ora, foi exatamente nesse sentido que Maussfoi assimilado pela Antropologia urbana brasileira,ou ao menos pela paulista15. Meu argumento é de

que essa perspectiva é incompleta por não atentarpara a capacidade burguesa de realização e decontrole da dádiva, não atentar aos fatos, notadospor T. Veblen (1953), que nos remetem ao “con-sumo conspícuo burguês”. Este consumo ex-clu-dente a meu ver se generaliza na sociedade pósmoderna, pois ele já não é mais prerrogativa dosproprietários dos meios de produção e caracterizamuito mais uma alta classe média “executiva”. Issodo ponto de vista sociológico. Do ponto de vistados valores, essa alta classe média de assalariadosque dirigem as “sociedades anônimas” também“faz” a burguesia. Desenvolver essa tese seria per-seguir um caminho já sugerido pelo próprio Marxquando demonstra, em A ideologia alemã, que aburguesia tem a capacidade de generalizar seusvalores, ainda que, evidentemente, não ao modo(hierárquico) dos brâmanes ou dos reis germâ-nicos, analisados no Ensaio sobre a dádiva.

Ainda como para Marx, haveria, para Mauss,uma tendência “para a desumanidade” no desen-volvimento de “nossa sociedade”. Mas a análisede Mauss não privilegia a esfera da economia,como Marx fez, mas sim o que ele denomina“códigos morais” e “o direito”. Como para o tam-bém socialista K. Polanyi, para Mauss (1974, p.165) um retorno a costumes antigos seria uma“reação sadia e boa”, no sentido da superação detendências do capitalismo. Mauss mostra que essastendências poderiam ser consideradas nocivassegundo uma moral e um direito universais. ParaPolanyi (1980), esta reação se concretizaria naimportância crescente da lógica redistributiva. Éclaro que tanto Polanyi como Mauss não propõemuma volta a instituições do passado, mas sim aum “fundamento constante do direito, ao princípiomesmo da vida social moral” (MAUSS, 1974, p.168). Esses seriam re-elaborados nas condiçõesmodernas, possibilitando que se acrescentasse“outros direitos ao direito brutal da compra evenda” para “limitar os frutos da especulação eda usura” (idem, p. 167).

A concepção de socialismo de Mauss impli-caria então:

15 Estudos como os de Sarti (1996), por exemplo, come-tem o erro de associar a dádiva a uma “moral dos pobres”,associando-se assim a uma tradição que trata os “pobres”como “outros” (CALDEIRA, 1984), dissociando trocase ideologias de cada classe social e não analisando as trocasentre as classes. Ora, se a dádiva cria uma moral, issotambém ocorre em nossa elite. Haveria ainda que sedemonstrar até que ponto há uma “moral dos pobres” euma “moral das elites” ou se não se trata de uma mesma

“moral”. Mostrei como a dádiva é fundamento de socia-bilidade tanto no engenho pernambucano como em umpequeno município potiguar, mas também como essasociabilidade extende-se aos Poderes Legislativo e Exe-cutivo, ainda que essas morais não se baseiem apenas nalógica da dádiva (LANNA, 1995).

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1) a defesa dos mecanismos de legislaçãosocial e de redistribuição estatal, da impor-tância da arrecadação de tributos (que, comotento argumentar alhures – Lanna 1995 –,não deixam de ser prestações totais, asse-melhados assim às dádivas);

2) um pedido ingênuo para “os ricos” terem“boa-fé, sensibilidade e generosidade noscontratos de aluguel”, ou “caridade, solida-riedade”, reconhecerem “o interesse queexiste no dar” e o fato de que, se recebemdos trabalhadores bens e almas, que “voltema considerar-se como espécies de tesoureirosde seus concidadãos”; apela-se inocen-temente para que “os ricos” voltem às prá-ticas de “despesa nobre” (MAUSS, 1974,p. 167). Note-se que há aqui uma visãoaristocrática da burguesia enquanto classedominante: ela é, de certo modo, associadaaos chefes primitivos, enquanto benefi-ciários por excelência da dádiva. Mas, comopara Marx, para Mauss “as massas” teriam“melhor que os dirigentes o sentido dointeresse comum”, enquanto os ricos teriamapenas o sentido do seu próprio interesse;

3) o argumento de que “os grupos devem agir”,isto é, os sindicatos devem, enquanto asso-ciação voluntária, defender “seus interesses”(MAUSS, 1974, p. 168), devem participardo progresso, da lógica individualista. Damesma forma, os artistas devem assumir seudireito à posse de suas criações, estas nãosendo apenas dádivas, mas algo que podeser vendido. Há uma defesa da arte; ela nãoperderia seu valor mágico se se tornasse,cada vez mais, também mercadoria16.

4) uma defesa da previdência privada e de que“o custo da segurança trabalhista fizesseparte das despesas gerais de cada indústria

em particular” (idem, p. 166). Aliás, este ar-gumento talvez fosse mais liberal do quesocialista, mas se liga à percepção de queos trabalhadores merecem mais do que osalário.

Mauss enfatiza ainda que o estudo da dádivaimporta também para a “gestão” da sociedade mo-derna. Essa gestão administrativa seria importantedemais para se informar apenas pelo utilitarismo.Como Polanyi, Mauss indica a importância doestudo comparado das várias formas de economiae lamenta que os economistas pouco se dedicarama essa questão, equivocando-se, aliás, quandotentaram (idem, p. 171). A meu ver, esse estudose iniciaria com o reconhecimento da univer-salidade da noção de “valor” (com Dumont) e dos“signos de riqueza” (Saussure) e da especificidadeda noção de valor mercantil (Marx).

Mauss (1974, p. 171) lembra que seu Ensaiosegue a sugestão de Durkheim de uma origemreligiosa da noção de valor econômico, já que nassociedades não-capitalistas “as diversas atividadeseconômicas são impregnadas de ritos e mitos eguardam um caráter cerimonial obrigatório”.Haveria, nessas atividades, um híbrido entre liber-dade e obrigação, interesse e liberalidade. Maussnos ensina a não associar o econômico à circulaçãodo útil. Há “instituições econômicas”, como “adivisão do trabalho”, mesmo em “sociedades infi-nitamente menos evoluídas” (idem, p. 173). Mas,como nos ensina Dumont (1977), nem por issodevemos supor a inexistência de uma esfera daeconomia com um desenvolvimento caracteristi-camente moderno: o mercado.

Critiquei aqui Mauss por adequar, de modoprecipitado, “valores” não-capitalistas à “moeda”capitalista. Vimos ainda que, em outros momentos,Mauss (1974, p. 174) assimila rápido demais “ochefe trobriandês ou tsimshian” ao “capitalista”.Vimos que, se valores, como os cobres do potlatch,são “signos de riqueza e meios de troca” (ibidem),eles, ao contrário do dinheiro capitalista, circulamem esferas. Ao contrário do dinheiro, seu valornão se generaliza da mesma maneira. Um vaygu´a(colares ou braceletes kula) é um valor supremonão enquanto valor econômico, pois não pode sertrocado por quaisquer outras mercadorias; o quese generaliza é seu significado hierárquico, reli-gioso inclusive, dada sua imersão específica noconjunto da gramática da sociedade trobriandesa.Quanto à questão dos valores em relação, aliás,

16 Esse entendimento da arte como dádiva foi desen-volvido por Hyde (1979), que analisa, por exemplo, o“mito” da musa criadora. Permito-me aqui, muito mo-destamente, divergir de Mauss: o momento (pós-mo-derno?) quando a arte ocidental deixa se conceber comodádiva e se assume como mercadoria é aquele no qual elase revoluciona de tal modo que praticamente deixa deexistir (penso, por exemplo, no anúncio da morte da tra-dição musical ocidental, após Stravinsky, com o surgi-mento do dodecafonismo e da música concreta, feito porLévi-Strauss na “Ouverture” das Mythologiques).

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Saussure é evidentemente mais sofisticado que seucontemporâneo Mauss.

Outro tema fundamental do Ensaio é a indi-cação de que as noções de interesse e de utilidadeassumem significados específicos em cada casoconcreto17 e de que na nossa sociedade o interesseassume uma forma “pura”; surge daí a transfor-mação do homem em um “animal econômico”(idem, p. 176). A noção de interesse seria “umacategoria da ação” (ibidem); por isso mesmo, “nãoserá no cálculo das necessidades individuais quese encontrará o método da melhor economia”(idem, p. 177). A análise econômica não pode selimitar apenas à “nossa sociedade”, sob o risco degeneralizar noções particulares, como as de “ne-cessidade” e “interesse individual”. Neste caso,ela incentivará “a perseguição brutal dos fins doindivíduo [que, ao contrário do que postulam osteóricos liberais] é nociva aos fins e à paz doconjunto” (ibidem).

Mauss conclui o Ensaio fazendo um elogio doestudo do concreto. A teoria comparada, econô-mica ou não, deve antes de mais nada iniciar-sepela etnografia. Nada seria mais urgente e frutíferodo que encontrar fatos novos para enriquecer oestudo comparativo. A etnografia desvendaria acor local de algo universal, a moral da dádiva. Ossociólogos deveriam, como os historiadores e psi-cólogos, deixar de fazer “abstrações em demasia”(idem, p. 181).

Finalmente, Mauss argumenta que a dádivaimplicaria mais felicidade e menos seriedade(idem, p. 182). O caminho a seguir seria ainda ode trocar mais e guerrear menos. Se, em certosmomentos, a sociedade ocidental se afastou dadádiva, Mauss não pensa este afastamento comodefinitivo. Como posteriormente fez Lévi-Strauss(1952), Mauss (1974, p. 183) não deixa de associara intensificação das trocas à noção de progresso.O progresso, assim como o crescente aumento dasdiferenças sociais, se explicaria pela intensificaçãodas trocas. Mas se Mauss pensa em um efeitodeletério das trocas mercantis, Lévi-Strauss pensaem efeito deletério da intensificação de qualquer

tipo de troca. Quanto a isso, Lévi-Strauss (1952,1998, entre outros) é também mais explícito,argumentando inclusive a favor de um “esfria-mento” da história do Ocidente. Esta “máquina avapor” deveria aprender com as “sociedades frias”a ser menos obstinada, a desejar menos as ino-vações – que ele mesmo, como Karl Marx já ofizera, mostrou ser o oxigênio da “civilizaçãomecânica”.

Mauss, por sua vez, na “Conclusão” do Ensaio,argumenta a favor de uma intensificação das trocasde dádivas, que para ele conduziria, ao contráriodo que para Lévi-Strauss, a uma minimização daestratificação entre nações e indivíduos, esta sendoo resultado da intensificação (apenas) das trocasmercantis. Se o Ensaio mostra como a dádiva “es-tabelece a hierarquia”, Mauss (1974, p. 174) nãodeixa de reconhecer haver outros modos de produ-ção da diferença social: a dádiva “não seria absolu-tamente necessária para tanto”.

Está implícita no Ensaio a suposição de que adiferença estabelecida na troca de dádivas nossalvaria da constante criação de diferençasestabelecida pela troca mercantil. Nesse sentido,o paralelo entre Mauss e Marx é evidente: paraeste, o capitalismo se autodestruiria, e seria su-cedido por uma sociedade mais igualitária. ParaMauss, trata-se menos de substituir as formascapitalistas de produção de desigualdades e muitomais de se estimular a produção de desigualdadesa partir da dádiva, de tal forma que estas se sobre-pusessem gradualmente àquelas.

Se Mauss é, de certo modo, mais pessimistaque Marx, Lévi-Strauss o é ainda mais que ambos:para o último, quanto mais troca, seja ela de qualtipo for, mais exploração. Finalmente, penso serimportantíssimo lembrar que, em sua “Conclusão”otimista, Mauss nega uma das demonstrações deseu próprio Ensaio, a de que a solidariedade geradapela dádiva não pode ser sem sacrifício. Isto é,essa troca de dádivas não exclui o interesse, nãoexclui (mas a meu ver pressupõe) a produção dedesigualdades e mais ainda, de sofrimentohumano. Mas, ao fim e ao cabo, o tom otimista da“Conclusão” parece se justificar minimamentepelo fato de Mauss nos ensinar algo, a meu ver,absolutamente funda-mental: a felicidade humananão está em outra parte que não no dar e receber,“no respeito mútuo e na generosidade recíproca”.

Recebido para publicação em 11 de março de 1999.

17 Esta é uma conclusão que só muito recentemente foiassimilada pela Antropologia anglo-saxã (cf. PARRY &BLOCH, 1989).

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