O FIO E A TRAMA: COMPARAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E … · 11. SE EM TODO O MUNDO O CAPITALISMO TENDE A...

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O FIO E A TRAMA: COMPARAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA Escrito pelo Prof. João Borba (em agosto-Setembro de 2008) Sumário 1. O “FIO” DOS NOSSOS PENSAMENTOS................................................................................2 2. A “TRAMA” DA SABEDORIA FILOSÓFICA.........................................................................5 3. COMO O FILÓSOFO FORMA ESSA “TRAMA” DE CONHECIMENTOS COM OS “FIOS” DO SEU PENSAMENTO? QUE ASSUNTOS ELE USA PARA TECER ESSA “TRAMA”?......................................................................................................................................7 4. O AMOR DOS FILÓSOFOS PELA SABEDORIA...................................................................9 5. A IMPORTÂNCIA DE CUIDARMOS DOS NOSSOS PRÓPRIOS CONHECIMENTOS....10 6. A FILOSOFIA NÃO É CIÊNCIA, E NÃO PODE SER AVALIADA COMO SE FOSSE.....11 7. POR QUE HOJE CONHECEMOS MAIS A CIÊNCIA DO QUE A FILOSOFIA?................12 8. A FILOSOFIA FAZ PENSAR NO SENTIDO DA VIDA........................................................13 9. A ESTRUTURA DA FILOSOFLA É DIFERENTE DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA.........18 10. TANTO A FILOSOFIA QUANTO A CIÉNCIA SÃO FORMAS DE PENSAMENTO TEÓRICO, E NÃO CONJUNTOS DE OPINIÕES: O QUE DIZEM É FUNDAMENTADO OU APOIADO Em CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO..........................................................................20 11. SE EM TODO O MUNDO O CAPITALISMO TENDE A ISOLAR A FILOSOFIA, NO BRASIL A DITADURA FEZ A FILOSOFIA SE ISOLAR AINDA MAIS DA REALIDADE, MAS ISSO JÁ ESTÁ MUDANDO...............................................................................................23 12. O QUE SÃO PROBLEMAS FILOSÓFICOS?.......................................................................25 13. E POR QUE OS FILÓSOFOS SÃO CHAMADOS DE “LIVRES·PENSADORES” SE O PENSAMENTO DELES PARECE PRESO A PROELEMAS QUE PODEM NÃO SER SOLUCIONADOS NUNCA?.......................................................................................................26 l4. MAS COMO O FILÓSOFO AVALIA O QUE É UM BOM PROBLEMA FILOSÓFICO?..28 15. O RISCO QUE A FILOSOFIA CORRE DE PERDER DE VISTA A REALIDADE...........29 16. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — A) PROGRESSO X ATUALIZAÇÕES.........................................................................................................................30 17. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — B) SOLUÇÕES E TEORIAS DESPERSONALIZADAS E ESPECÍFICAS X PROBLEMAS E ABORDAGENS QUE FORMAM TEORIAS GERAIS E PERSONALIZADAS...................................................31 BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................................34 O que o filósofo faz? O filósofo pensa. Mas todos nós pensamos! Estamos sempre pensando sobre uma porção de coisas diferentes. Então somos todos filósofos? Vamos com calma. Existem muitas maneiras deferentes de se pensar, e uma delas é a maneira filosófica. Examinemos primeiro a maneira como as pessoas costumam pensar normalmente, para entendermos depois, por comparação, a maneira como as pessoas pensam quando estão praticando filosofia... 1

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O FIO E A TRAMA: COMPARAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA

Escrito pelo Prof. João Borba(em agosto-Setembro de 2008)

Sumário1. O “FIO” DOS NOSSOS PENSAMENTOS................................................................................22. A “TRAMA” DA SABEDORIA FILOSÓFICA.........................................................................53. COMO O FILÓSOFO FORMA ESSA “TRAMA” DE CONHECIMENTOS COM OS “FIOS” DO SEU PENSAMENTO? QUE ASSUNTOS ELE USA PARA TECER ESSA “TRAMA”?......................................................................................................................................74. O AMOR DOS FILÓSOFOS PELA SABEDORIA...................................................................95. A IMPORTÂNCIA DE CUIDARMOS DOS NOSSOS PRÓPRIOS CONHECIMENTOS....106. A FILOSOFIA NÃO É CIÊNCIA, E NÃO PODE SER AVALIADA COMO SE FOSSE.....117. POR QUE HOJE CONHECEMOS MAIS A CIÊNCIA DO QUE A FILOSOFIA?................128. A FILOSOFIA FAZ PENSAR NO SENTIDO DA VIDA........................................................139. A ESTRUTURA DA FILOSOFLA É DIFERENTE DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA.........1810. TANTO A FILOSOFIA QUANTO A CIÉNCIA SÃO FORMAS DE PENSAMENTO TEÓRICO, E NÃO CONJUNTOS DE OPINIÕES: O QUE DIZEM É FUNDAMENTADO OU APOIADO Em CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO..........................................................................2011. SE EM TODO O MUNDO O CAPITALISMO TENDE A ISOLAR A FILOSOFIA, NO BRASIL A DITADURA FEZ A FILOSOFIA SE ISOLAR AINDA MAIS DA REALIDADE, MAS ISSO JÁ ESTÁ MUDANDO...............................................................................................2312. O QUE SÃO PROBLEMAS FILOSÓFICOS?.......................................................................2513. E POR QUE OS FILÓSOFOS SÃO CHAMADOS DE “LIVRES·PENSADORES” SE O PENSAMENTO DELES PARECE PRESO A PROELEMAS QUE PODEM NÃO SER SOLUCIONADOS NUNCA?.......................................................................................................26l4. MAS COMO O FILÓSOFO AVALIA O QUE É UM BOM PROBLEMA FILOSÓFICO?..2815. O RISCO QUE A FILOSOFIA CORRE DE PERDER DE VISTA A REALIDADE...........2916. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — A) PROGRESSO X ATUALIZAÇÕES.........................................................................................................................3017. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — B) SOLUÇÕES E TEORIAS DESPERSONALIZADAS E ESPECÍFICAS X PROBLEMAS E ABORDAGENS QUE FORMAM TEORIAS GERAIS E PERSONALIZADAS...................................................31BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................................34

O que o filósofo faz? O filósofo pensa. Mas todos nós pensamos! Estamos sempre pensando sobre uma porção de coisas diferentes. Então somos todos filósofos? Vamos com calma. Existem muitas maneiras deferentes de se pensar, e uma delas é a maneira filosófica. Examinemos primeiro a maneira como as pessoas costumam pensar normalmente, para entendermos depois, por comparação, a maneira como as pessoas pensam quando estão praticando filosofia...

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1. O “FIO” DOS NOSSOS PENSAMENTOS

Conforme vamos pensando sobre um assunto, vamos juntando um pensamento com outro, e mais outro, e mais outro, e assim por diante, formando uma linha de raciocínio, como se nossos pensamentos fossem se ligando uns aos outros e formando um fio, não e? É claro que não existe realmente um “fio” dentro da nossa cabeça, que isto é só uma imagem de como sentimos as coisas acontecerem no nosso pensamento. Estamos apenas usando a imaginação e comparando os pensamentos com um “fio” que vai se formando — mas é uma imagem que pode realmente nos ajudar a compreender um pouco melhor o trabalho da filosofia. Normalmente o fio dos nossos pensamentos não é muito firme, é meio frouxo, fácil de arrebentar. Às vezes estamos concentrados, pensando, e um colega barulhento interrompe o tio dos nossos pensamentos, perdemos toda a linha do nosso raciocínio só porque nos distraímos por um momento! Quando isso acontece, não temos a sensação de que o fio dos nossos pensamentos se “arrebentou”? Quando conseguimos nos concentrar, geralmente sentimos o fio dos nossos pensamentos mais firme.

Mas existe também um outro problema que deixa fraco o fio dos nossos pensamentos, fazendo com que ele seja fácil de arrebentar, e que não é um problema de concentração: é que não estamos acostumados a ligar muito bem um pensamento com o outro. Juntamos os nossos pensamentos quando um deles puxa “mais ou menos” o outro, como se, naquele milésimo de segundo em que ligamos dois pensamentos, saíssemos do primeiro pensamento tateando no escuro para encontrar o outro, e pegássemos o primeiro que aparece ou, no máximo, experimentássemos alguns e pegássemos o primeiro que parece se encaixar melhor.

Estamos tão acostumados com isso que ligar o primeiro pensamento com o segundo parece óbvio, fácil e claro. Nem paramos mais para pensar se aquela linha de pensamento está firme ou não. Se não apareceu nada que fizesse a gente ver que uma coisa poderia não estar tão ligada à outra, temos a sensação de que o nosso pensamento “funcionou”, e começamos a repetir em outras situações essa mesma ligação entre uma coisa e outra, ou seja, entre o primeiro pensamento e o segundo. O resultado é que quando aparece algum problema diferente daqueles aos quais estávamos acostumados, pode aparecer alguma coisa que realmente arrebenta esse fio — porque ela não se encaixa na maneira como costumamos pensar, como se o problema não “aceitasse” o nosso fio de pensamentos. Ou então pode acontecer que, quando somos forçados a testar o fio de pensamentos que formamos para ver se está firme, ele se arrebente facilmente, e sejamos pegos de surpresa, porque nossos pensamentos pareciam perfeitamente ligados uns aos outros, e de repente se tornou claro que não estavam assim tão bem ligados quanto pensávamos.

Neste caso, se alguém pedir, por exemplo, para explicarmos exatamente por que e de que maneira nós chegamos a juntar o primeiro pensamento com o segundo, ficaremos um pouco confusos e não saberemos responder muito bem. Aquilo que parecia tão óbvio, tão fácil e claro, na verdade era um fio de pensamento frouxo, fácil de arrebentar, porque os pensamentos pareciam ligados, mas agora percebemos que não estavam muito bem ligados uns aos outros, faltava esclarecer uma porção de coisas entre eles. Entre dois pensamentos que pareciam estar tão juntos, percebemos que existe um “buraco”, um “vazio”: e que estão faltando uma porção de pensamentos intermediários, ou seja, faltam outros pensamentos que deviam estar entre os dois, para fazer a “ponte” de um até o outro, e sem isso, o fio dos nossos pensamentos pode ser “arrebentado” facilmente por qualquer um que exija uma explicação.

Uma das coisas mais importantes para a filosofia é, justamente, que não haja nenhum “furo” na linha de raciocínio, que o fio dos pensamentos seja forte e firme. Por isso, boa parte do trabalho do filósofo ou de quem estuda filosofia é esclarecer, detalhar e ligar melhor os pensamentos uns com os outros. A filosofia é uma maneira de pensar muito parecida com esta como pensamos no dia-a-dia. Por exemplo não precisa usar aparelhos complicados ou cálculos lógicos mais complicados ainda como aqueles usados na física ou na química, que exigem treinamento especial

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ou grandes equipes de pesquisa. Mas ao mesmo tempo, é uma maneira de pensar muito mais exigente do que a maneira como pensamos no dia-a-dia. Ela exige que o fio dos nossos pensamentos seja muito mais firme e forte do que estamos acostumados, e a exigência da filosofia neste sentido é tão grande que as vezes assusta até mesmo os cientistas. Mas não é nada que uma pessoa sozinha, usando o seu próprio raciocínio, não possa fazer — desde que essa pessoa não faça isso completa e absolutamente sozinha, mas sim acompanhada da leitura e do que as pessoas da comunidade filosófica — os filósofos — têm estudado e discutido sobre o assunto ao longo dos tempos.

Um dos maiores benefícios da filosofia é que ela funciona, de certo modo, como uma grande “academia de ginástica” dos pensamentos. Mas seria bobagem reduzir a filosofia a isso. Ela é muito mais do que uma ginástica do pensamento, porque envolve também problemas filosóficos a serem resolvidos e toda uma sabedoria, todo um conjunto de conhecimentos, a ser conquistado e avaliado rigorosamente através desse exercício mental, a ser organizado e valorizado por fios de pensamento e linhas de raciocínio tão fortes quanto possível, e a ser utilizado para resolver problemas filosóficos.

No dia-a-dia do filósofo, quando ele vai formando esses fios de pensamento com todo o cuidado para ficarem bem firmes, não é somente nas ligações entre as suas idéias ou pensamentos que ele presta atenção: presta atenção também nas idéias ou pensamentos que estão sendo ligados uns aos outros, verifica sempre se estão bem-definidos ou não, porque não adianta ligar bem um pensamento com outro, se esses pensamentos estão mal definidos e não se sabe muito bem do que é que o filósofo esta falando.

Mas ao mesmo tempo, o filósofo é muito critico, e do mesmo modo como ele procura definir bem suas idéias e fazer ligações firmes e cuidadosas entre elas, ele pode também, em certos momentos, achar que é melhor desfazer uma certa ligação entre duas idéias, ou então desfazer uma definição, ou deixar uma idéia um pouco menos definida do que estava, porque acha que essa definição não estava boa ou então não estava correspondendo aos fatos. Por exemplo: um filósofo pode pensar em uma definição muito precisa e exata de “amor”, para desenvolver uma teoria a esse respeito, mas depois, examinando bem a questão, pode achar que o próprio amor não é um sentimento muito definido afinal de contas, e que a sua idéia de “amor” está mais definida do que deveria, porque não corresponde aos fatos, já que esse sentimento não é uma coisa tão exata, pois varia a todo momento e não pode ser definido com muita precisão. Também pode acontecer que um filósofo não ache boa a definição que outro filósofo construiu, então ele trata de desfazer essa definição, mostrando por que é que ela não é boa. Em suma: um filósofo sempre pode deixar uma idéia mais definida ou menos definida, e pode até desmanchar completamente uma idéia, ou construir uma idéia que não existia antes, definindo alguma coisa que nunca foi definida antes por ninguém.

Estamos usando aqui a palavra “definição”, por exemplo, de uma maneira bem aberta, bem “solta”, e também a palavra “idéia”. Alguns filósofos ficariam escandalizados com isto, e diriam que é preciso mostrar com clareza que idéias, definições, conceitos etc. são coisas muito diferentes umas das outras. Mas aqui, esta maneira bem solta e aberta de entender essas noções, é mais do que suficiente — e na verdade é bem mais útil, porque o que o que estamos tentando fazer aqui, é mostrar de que modo o pensamento filosófico se parece, afinal de contas, com isto que qualquer um de nós faz a todo momento, quando esta pensando sobre qualquer assunto. Só que o filósofo é um expert nisso, ele faz isso com muito mais cuidado e atenção, e dedica sua vida inteira a estudar qual ele acha a melhor maneira de fazer isso (e a pô-la em prática) nos seus próprios pensamentos, conforme vai pensando sobre outros assuntos e estudando-os também.

Uma maneira mais clara de se entender isto, é prestar atenção em uma noção que está

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embutida dentro da própria palavra “definição”, que é a noção de final, limite, fronteira, e imaginar como se o filósofo, quando faz uma definição, estivesse separando de um lado aquilo que faz parte da coisa definida, aquilo que está “dentro” dos limites ou fronteiras dessa coisa, e de outro lado aquilo que está “fora” da definição e que não faz parte dela. Vamos imaginar, por exemplo, que o filósofo estivesse definindo, delimitando, delineando, determinando a noção de “lei” — no sentido jurídico, como essa noção aparece no direito (e não, por exemplo no sentido de “lei da natureza”). “Definir”, “delimitar”, “delinear”, “determinar” — todas essas palavras carregam alguma coisa que no fundo parece o mesmo sentido de se traçar os contornos de alguma coisa, os limites aonde essa coisa termina. O que está “para dentro” desses limites faz parte da coisa, o que está “para fora” deles não faz.

Nosso filósofo iria então descrevendo o que entende por “lei” — por exemplo: “a lei é uma maneira de exprimir mais claramente os nossos direitos e deveres naturais em uma sociedade...” etc. Ao dizer isso, ele estaria ligando umas com as outras uma porção de características que descrevem isto que ele está chamando de “lei”: a) a “lei” é uma forma de exprimir alguma coisa; b) e uma forma de exprimir que deixa essa coisa mais clara, mais fácilde se entender; C) aquilo que ela exprime são os nossos direitos e deveres; d) não sãoquaisquer direitos e deveres que ela exprime, mas aqueles que temos quando vivemos emsociedade; e e) além disso, os direitos e deveres que ela exprime são direitos e deveresnaturais dos seres humanos. Isto pode ser imaginado na forma de um desenho ou diagrama,com as letras “a”, “b”, “c”, “d” e “e” no lugar dessas características escritas por extenso (sópara ocupar menos espaço no desenho), mais ou menos da seguinte maneira:

Neste desenho, essa linha circular em volta das letras representa o final, o limite, a linha de contorno, o término daquilo que faz parte da noção de “lei”. As características que estão colocadas para o lado de dentro dessa linha (as características “a”, “b”, “c”, “d” e “e"), fazem parte da definição de “lei” que o nosso filósofo esta apresentando. Qualquer outra característica, se fosse colocada do lado de fora dessa linha, seria uma característica que não faz parte da definição. Por exemplo: se na definição de “lei” do nosso filósofo não importa saber se ela: f) serve para dizer o que as pessoas devem e O que não devem fazer; e g) serve para determinar punições para quem faz algo que não devia; então podemos dizer que as características “f” e “g”, estando fora da definição que ele fez, estão do lado de fora da linha que marca os limites do que é “lei” para esse filósofo. Um outro filósofo poderia discordar completamente deste, e definir “lei” justamente como algo que serve para dizer o que as pessoas devem e o que não devem fazer; e que serve também para determinar punições para quem faz o que não devia. Neste caso, teríamos duas definições separadas: uma com as características “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, e outra com as características “f” e “g”. mas poderíamos também imaginar duas definições que não são completamente diferentes, porque têm alguma coisa em comum, por exemplo se o segundo filósofo acrescentasse na sua definição a características “a” e “b”, dizendo que “lei” é uma forma de exprimir algo de maneira mais clara, mas que o que ela exprime é aquilo que esta dito com as características “g” e “f” — ou

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seja, o que se deve e o que não se deve fazer, e qual a punição para que faz oque não deve.

Além de tudo isso, quer dizer, além de fazer ou desfazer definições (em alguma medida ou completamente), e além de ligar ou desligar as definições umas com as outras (completamente ou só em alguma medida, deixando as ligações mais firmes ou mais frouxas), podemos dizer que o filósofo também pode apenas avaliar as definições e ligações, verificar se elas estão boas como estão ou se estão ruins — o que não quer dizer necessariamente que ele vai chegar a desfazer as que acha ruins. Uma coisa é avaliar uma ligação entre duas idéias e dizer que não é uma boa ligação ou que não estão bem ligadas como deveriam estar. Outra coisa é dar um passo além e chegar a afirmar mesmo que elas não estão ligadas, ou que elas não estão ligadas daquela maneira.

Como estamos falando de teorias filosóficas, e não de opiniões soltas que alguém vai dizendo sem se preocupar em fundamentar o que diz, é importante que tudo o que o filósofo faz ou desfaz, ou então avalia — sejam definições ou ligações entre elas — seja justificado com bons argumentos. Se o filósofo não fizer isto em algum ponto de sua teoria, vai estarcorrendo o risco de ser cobrado neste sentido pelos outros filósofos. De qualquer maneira, perceba-se como as práticas intelectuais do filósofo são parecidas com aquelas que realizamos a todo momento no nosso dia-a-dia, conforme vamos seguindo uma linha de raciocínio qualquer. É isto o que o filósofo faz também, quando segue o fio do seu pensamento. Só que ele faz isso com muito mais critério, cuidado, dedicação e atenção do que a maioria de nós costuma fazer.

2. A “TRAMA” DA SABEDORIA FILOSÓFICA

Sabemos como é difícil definir o que filosofia. Podemos dizer que é uma forma de conhecimento teórico, ou seja, uma maneira de se conhecer as coisas fazendo teorias a respeito de como elas são. Também podemos dizer a filosofia nos traz sabedoria. Mas o que é uma sabedoria?

Quando sabemos de uma coisa, podemos dizer que “temos um saber” a respeito dessa coisa, ou seja, um conhecimento. Existem muitos tipos diferentes de conhecimento. Quando temos muito conhecimento sobre alguma área ou conhecimentos realmente importantes sobre ela, podemos dizer que temos alguma sabedoria nesse assunto.

É importante lembrar que a palavra “filosofia” foi criada na Grécia antiga, aproximadamente setecentos anos antes de Cristo ter nascido, a partir de duas outras gregas: philos e sophia1. Philos quer dizer apego amoroso, amizade, e Sophia quer dizer sabedoria, saber O filósofo não é aquele que sabe de uma vez por todas tudo o que há para saber sobre um assunto, Filosofia não é somente uma sabedoria, mas um apego amoroso à sabedoria. O filósofo é aquele que gosta de saber, que gosta da sabedoria, e procura conquistar uma grande sabedoria, quanto mais ele sabe, mais ele quer saber. Podemos dizer que ele é amigo da sabedoria, ou até mesmo que ele namora com a sabedoria, cuida dela com muito carinho e atenção.

Filosofar é uma maneira muito especial de se conhecer as coisas e conseguir uma sabedoria

1 Os gregos da antiguidade usavam letras diferentes das nossas. Ao invés de “a, b, c...” etc,, usavam “a, b, c...” (que se lê alfa,beta, gama...). Quando escrevemos em português uma palavra da Grécia antiga que não é mais usada hoje, costumamos usar ph no lugar de f Mas o som continua sendo o de f Então, não liam “pilos” e “Sopia”: liam como se fosse “filos” e “sofia” mesmo.

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cada vez maior a respeito delas, a maior sabedoria possível, tomando todo o cuidado para saber também o quanto é possível conhecer a respeito de um assunto, para não criar uma falsa sabedoria sobre coisas que não se consegue conhecer realmente. O filósofo não quer se iludir com fantasias nesse seu “namoro” com a sabedoria. Ou se preferirmos entender “philo” como amizade, podemos dizer que o filósofo quer uma amizade verdadeira com a sabedoria, e não uma enganação. A cada conhecimento novo que conquista, precisa saber claramente o quanto aquilo que ele aprendeu é realmente sabedoria, e sabedoria valiosa, não uma ilusão ou mero conhecimento superficial das coisas. Precisamos sempre lembrar o quanto o filósofo se preocupa em estudar assuntos que sejam importantes para a humanidade, ou pelo menos para os seus colegas filósofos.

Nós conhecemos as coisas formando idéias2 no pensamento a respeito de como elas são, e testando essas idéias para ver se elas estão corretas, se as coisas são realmente assim. E como formamos nossas idéias a respeito de como as coisas são? — Ligando os pensamentos uns aos outros. Por isso o filósofo é tão cuidadoso quando se trata de ligar um pensamento ao outro, e procura examinar nos mínimos detalhes como é que estamos fazendo essa ligação, porque muitas vezes ligamos “mais ou menos” os pensamentos sem muito cuidado, e nem percebemos que assim podemos estar formando uma imagem distorcida das coisas. Mas filosofar não é só cuidar do modo como ligamos os pensamentos uns aos outros.

Existe uma grande sabedoria sendo formada pelos filósofos com esses “fios de pensamento”, porque são assuntos importantes que estão sendo pensados, e os fios que vão se formando com os pensamentos dos filósofos sobre esses assuntos vão se entrelaçando uns nos outros, formando o que os filósofos costumam chamar de uma “trama” de pensamentos discutidos por todos eles, como um grande tecido em que estão bordados os grandes saberes da humanidade. De um filósofo para outro, de uma teoria filosófica para outra, existem muitas contradições, porque os filósofos não concordam uns com os outros, estão sempre debatendo e “testando” as teorias uns dos outros, por isso muitas vezes os cientistas parecem mais “certos” do que os filósofos. Na verdade, o que acontece é que os cientistas não são tão exigentes quanto os filósofos quando ligam um pensamento ao outro para formar um “fio” de pensamentos, ou quando ligam um “fio” de pensamento a outros “fios” para formar uma trama ou tecido de pensamentos, ou seja, uma teoria. Se fossem mais exigentes veriam muitas “falhas” e “rasgos” em suas teorias, porque nenhum conhecimento é perfeito.

Os filósofos são exigentes a ponto de encontrarem as mínimas falhas no pensamento, por isso assumem e reconhecem essas falhas quando elas aparecem. Podemos imaginar essas discordâncias entre os filósofos como grandes “rasgos” nessa enorme trama de saberes e conhecimentos filosóficos, coisa que não acontece com os cientistas, porque eles concordam muito mais uns com os outros. Mas dentro de uma mesma teoria filosófica encontramos uma trama muito firme, feita de “fios” de pensamentos muito fortes, geralmente mais fortes que os de uma teoria científica, muito bem ligados uns com os outros. Por mais que o conjunto da filosofia pareça um conhecimento todo “rasgado” por esses debates, em que cada filósofo tenta “puxar” a verdade para o seu lado, cada filosofia tem sua parte desse saber muito firme e bem-organizada, a trama de pensamentos da teoria de um bom filósofo não se rasga com facilidade.

2 Na verdade, em filosofia, a palavra “idéia” tem um sentido muito preciso, diferente do sentido em que costumamos usá-la no nosso dia-a-dia, mas vamos estudar isso mais adiante. Por enquanto, estaremos usando essa palavra no sentido popular, como as pessoas a usam em geral fora da filosofia.

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3. COMO O FILÓSOFO FORMA ESSA “TRAMA” DE CONHECIMENTOS COM OS “FIOS” DO SEU PENSAMENTO? QUE ASSUNTOS ELE USA PARA TECER ESSA “TRAMA”?

Mesmo formando essa “trama” de conhecimentos teóricos, que carrega muita sabedoria a respeito de assuntos de todos os tipos, a filosofia — justamente por isso, por não tratar de um tipo só de assunto — não pode ser definida só pelo tipo de assunto que estuda. O filósofo estuda de tudo, é difícil encontrar algum assunto que não possa ser estudado direta ou indiretamente por um filósofo, talvez seja até mesmo impossível o máximo que podemos dizer é que, como ele gostaria de estudar profundamente tudo o que existe para ser estudado no universo, e a vida é muito curta para isso, ele tende a escolher estudar coisas mais gerais, que valem para a gente entender uma porção de outras coisas ao mesmo tempo. Muitos filósofos chegaram a tentar definir a filosofia como um estudo dos assuntos mais gerais que seria possível imaginar, assuntos “universais”. Mas os filósofos, como sempre, discordam uns dos outros também em relação a isso, portanto o mais sensato talvez seja não afirmar isso de uma maneira muito rigorosa. De qualquer modo, os filósofos sem duvida nenhuma têm preferido sempre, ao longo da história da humanidade, os assuntos mais gerais e “universais”, que valem para todas as épocas, todos os povos e todas a s situações.

Então, por exemplo, se perguntarmos ao filósofo o que ele pensa da técnica de um jogador de futebol, e conseguimos deixá-lo realmente curioso quanto ao assunto (o que é muito fácil, porque filósofos são criaturas muito curiosas), ele vai começar a pensar na técnica de todos os jogadores do time, depois na de todos os jogadores de todos os times de futebol do mundo de um modo geral, depois vai começar a pensar na técnica de um esportista em geral, e não só na de um jogador de futebol, e finalmente vai começar a fazer para si mesmo perguntas do tipo:

— O que é técnica? Para quê serve uma técnica?— O que é uma atividade esportiva, e qual o significado desse tipo de atividade

para a humanidade?— Qual é foi até hoje o significado e a importância do uso da técnica nas

atividades esportivas, ao longo da história da humanidade?E então ele começará a fazer o caminho contrario, voltando aos poucos para aquiloque havíamos perguntado:

— De que maneira isso tudo se reflete nas técnicas dos esportistas de hoje em geral? E nas técnicas dos jogadores de futebol? E na dos jogadores deste time? E na técnica deste jogador?

Quando o filósofo terminar de responder a todas essas perguntas, teremos uma enorme quantidade de conhecimentos sobre o futebol, os esportes, a história dos esportes na humanidade, a técnica dos esportistas em geral e dos jogadores de futebol, e ate mesmo sobre as técnicas daquele time e daquele jogador, mas certamente o filósofo mostrará muito mais interesse pelos conhecimentos maiores e mais profundos que ele conseguiu levantar do que por esses últimos, que eram a nossa pergunta original.

Geralmente as pessoas têm muito preconceito com relação a essa forma de pensar a respeito das coisas: afinal, só estavam interessadas em saber da técnica daquele jogador, e não de tudo isso. E o filósofo sabe perfeitamente disso, Mas nesse caso, a pessoa não deveria ter perguntado a um filósofo, e sim a um técnico esportivo. A maneira como o filósofo estuda o assunto e muito diferente daquela pela qual um técnico esportivo estuda o mesmo assunto. Podemos perguntar sobre a opinião pessoal do filósofo sobre o assunto, e então ele dará uma resposta simples como a de qualquer pessoa que goste de futebol, ou responderá que não entende muito do assunto. Mas se pedirmos que ele filosofe sobre o assunto, é óbvio que só podemos esperar um estudo de tipo filosófico, que provavelmente passará por questões como as que descrevemos acima.

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O mais provável é que o filósofo não leve o pedido a sério e evite falar a respeito, porque ele sabe muito bem que as pessoas não esperam realmente uma teoria filosófica, e que na verdade elas geralmente não entendem por que o filósofo leva as coisas tão longe e vêem isso com muito preconceito, como se ele estivesse “viajando” nas nuvens e não estivesse com os pés na realidade — o que e uma bobagem atrás da qual as pessoas, na verdade, escondem a sua preguiça de pensar e o seu medo de perceberem como sabem pouco a respeito das coisas que pensam que sabem. Não significa que os filósofos saibam mais a respeito das técnicas de um jogador do que um técnico de futebol, de maneira nenhuma — seria absurdo afirmar isso! o que significa é que a maneira como o filósofo pensa obriga as pessoas a pensarem muito mais do que estão acostumadas, porque ele acaba envolvendo muita coisa em tudo o que estuda, e isso assusta. Por isso a sabedoria dos técnicos, que costuma ser realmente boa e verdadeira, mas e uma sabedoria previsível e bem comportada, que― encontra respostas fáceis e diretas e nos ajuda a entender exatamente o que queremos e nada mais, acaba sendo mais valorizada do que a sabedoria dos filósofos — que e imprevisível e incômoda, porque vai longe demais e nunca sabemos até aonde vai chegar, e nos obriga a enxergar que existemmuitas outras coisas envolvidas, por exemplo na técnica de um jogador de futebol, que nãosão apenas futebol, mas coisas assustadoramente maiores, que têm importância para toda ahumanidade.

As pessoas em geral não compreendem a paixão do filósofo pelo conhecimento e pelodesafio de levar o conhecimento sempre mais longe. Muitas vezes tacham a filosofia defantasia, como se só fosse real aquilo a que já estão acostumadas.

Se ao invés disso deixarmos o preconceito de lado e confiarmos um pouco no filósofo, se realmente nos dispusermos a ouvir e compreender o que ele tem a nos dizer e o caminho que ele está fazendo, acabaremos passando por uma experiência muito interessante: além de terminarmos a conversa com muitos conhecimentos sobre muitos assuntos, estaremos com muitas perguntas novas em nossa cabeça, uma porção de idéias a respeito das quais nunca havíamos pensado antes, e algumas delas atiçando bastante a nossa curiosidade — estaremos com vontade de saber mais a respeito de certos assuntos, ou seja, estaremos pelo menos um pouquinho contaminados pelo paixão do filósofo por aprender e desenvolver a sabedoria.

E uma coisa ainda mais interessante terá acontecido: dai' em diante, toda vez que olharmos para um jogador de futebol em ação, ou para um esportista qualquer pondo em prática a sua técnica, seremos capazes de enxergar nesse jogador ou esportista muito mais do que aquilo que estávamos acostumados a enxergar, Veremos todo um pedaço da história da humanidade e de toda a sabedoria que a humanidade acumulou ao longo da história acontecendo ali, ao vivo, na nossa frente, naquele jogador — veremos naquele jogador toda uma trama de sabedoria filosófica posta em prática, provavelmente sem que o próprio jogador se dê conta de que existe tanta coisa envolvida naquilo que ele está fazendo.

Então virá outro filósofo, reconhecerá uma porção de coisas importantes nessa sabedoria filosófica com que começamos a enxergar a técnica daquele jogador de futebol, mas começará a encontrar também algumas “falhas”, alguns “furos” na trama de pensamento que este primeiro filósofo formou a respeito da importância da técnica para a humanidade, do esporte, da técnica no esporte etc. Mostrará que alguns “fios” de pensamento estão muito fracos, e os arrebentará na nossa frente usando argumentos muito fortes, e começará tudo de novo, repensando o assunto de outro modo...

É assim que os filósofos enxergam as coisas do mundo e é assim que lidam com o pensamento, quando pensam a respeito delas. Tudo para eles aparece envolvido em uma enorme riqueza de conhecimentos que esta ali como um tesouro maravilhoso pronto para ser descoberto. É verdade que misturado a uma porção de coisas menos importantes, mas de qualquer modo, todo esse conhecimento esta la, pronto para ser selecionado, conquistado com muito esforço de critica e

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distribuído para toda a humanidade, ou pelo menos entre seus colegas de filosofia e todos aqueles que compreendem O valor desse tesouro — porque podemos ter a sensação de que os filósofos estão “brigando”, cada um puxando a sabedoria da humanidade para o seu lado, e com isso rasgando essa preciosa trama, mas é uma falsa impressão: na verdade os filósofos são todos apaixonados por essa sabedoria. Mas são apaixonados só pela sabedoria que é feita com “fios” de pensamento realmente fortes, com os pensamentos muito bem ligados uns aos outros. Por isso “puxam” realmente com força essa sabedoria por todos os lados, discordando uns dos outros: o verdadeiro tesouro do conhecimento, para os filósofos, esta naquelas tramas de idéias que forem feitas com pensamentos mais firmes e resistentes.

O filósofo muitas vezes se sente profundamente grato à humanidade por ela ter desenvolvido todo esse maravilhoso tesouro de sabedoria para ele pesquisar, mesmo que esse tesouro venha misturado com muito “pano fraco” de baixa qualidade, que se rasga facilmente. Ele se sente grato também aos colegas filósofos e estudiosos de outras áreas, por estarem sempre ajudando na descoberta de novos tesouros, novas sabedorias. Mas os verdadeiros tesouros — vale a pena repetir — estão aqueles “fios” de pensamento que podem ser puxados à vontade, porque são firmes e resistentes, De que adianta termos um tesouro se ele está todo misturado com coisas que não valem nada, e não conseguimos separar o que é importante do que não tem valor? Nessas condições, e como se não tivéssemos tesouro nenhum!

Se os filósofos são muito exigentes, criticam e “rasgam” os pensamentos uns dos outros, não é por que cada um quer “o seu pedaço” e os outros que “se danem” — pelo contrário: o debate é uma forma de os filósofos trabalharem juntos e colaborarem uns com os outros e com a humanidade, Se debatem e criticam as teorias uns dos outros, não debatem à toa, só por debater, nem criticam à toa, só por criticar. Estão interessados em enriquecer o seu próprio pensamentos e o pensamento humano em geral, e se fazem isso, é apenas para encontrar o verdadeiro tesouro, aquele que deixará todos eles, e toda a humanidade, um pouco mais ricos em sabedoria. O único ponto que complica um pouco as coisas é que esse tesouro não é exatamente um tesouro de respostas certeiras e definitivas para os problemas da humanidade. Mas antes de entendermos isto, ale a pena examinarmos um pouco como é esse “amor” dos filósofos pela sabedoria.

4. O AMOR DOS FILÓSOFOS PELA SABEDORIA

Para compreender como era esse amor pela sabedoria que os filósofos herdaram dos gregos antigos, precisamos entender que os gregos também eram guerreiros e, de certo modo, viviam como piratas dos mares, lutando bravamente para conquistar grandes tesouros ou defender os seus tesouros de outros povos guerreiros. E amavam a sabedoria como um pirata ama o seu tesouro, lutando por esse tesouro. Não gostavam de tesouros falsos e sem valor, e do mesmo modo, seus sábios não gostavam de falsos conhecimentos.

Desconfiavam muito dos tesouros fáceis, um tesouro conquistado sem nenhuma luta, para eles, não tinha realmente o valor de um tesouro, pois sentiam que é quando lutamos por algo, que esse algo se toma valioso para nós. E do mesmo modo — não se sabe bem se a partir de Pitágoras ou Tales — seus sábios começaram a valorizar muito a luta pelo conhecimento. Não bastava mais sair por ai dizendo grandes verdades. Era preciso lutar para provar que essas verdades eram realmente valiosas. E se dedicar a essa luta de todo o coração, apaixonadamente.

Não bastava mais ter sabedoria e mostrar sabedoria, era preciso descobrir que aquela não era uma falsa sabedoria ou uma sabedoria sem nenhum valor e provar isso às pessoas. O filósofo, para ser realmente filósofo, precisava provar o valor das suas descobertas, principalmente para as

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pessoas que estavam “no mesmo barco” que ele, ou seja, para outros filósofos que também estavam buscado o conhecimento. Foi esse desafio que fez nascer a filosofia. Quando um filósofo acha que tem nas mãos um grande tesouro de sabedoria, ele examina esse tesouro de todos os ângulos, de todas as maneiras, para ver se é verdadeiro, e quando esta bastante confiante, lança orgulhosamente esse tesouro para seus colegas de pirataria — os outros filósofos — examinarem também. Ele procura provar que aquela sabedoria que ele trouxe para dividir com os colegas é realmente verdadeira e valiosa, e os colegas vão examina-la também com o mesmo cuidado, com o mesmo carinho e a mesma exigência. Procuram examinar cada mínimo detalhe daqueles conhecimentos para ter certeza de quanto eles valem. Um dos principais trabalhos da filosofia é esse trabalho de examinar a sabedoria humana em cada minimo detalhe é descobrir exatamente o quanto cadaconhecimento é verdadeiro e valioso para a humanidade ou não.

Uma pessoa que acumula uma porção de conhecimentos a respeito das coisas pode se tornar sábia, mas não é um filósofo. Começa a se aproximar da filosofia partir do momento em que ela começa a lutar por uma sabedoria mais verdadeira e valiosa, a partir do momento em que começa a fazer a autocrítica, examinando por si mesma tudo o que pode ser falso ou errado em sua sabedoria, e deixando que outros filósofos a examinem e critiquem também, para melhorar sua própria autocritica, cuidando carinhosamente de cada passo dessa investigação, acompanhando as investigações de seus colegas filósofos e aprendendo a investigar cada vez melhor, e dedicando-se a isso apaixonadamente para errar cada vez menos.

5. A IMPORTÂNCIA DE CUIDARMOS DOS NOSSOS PRÓPRIOS CONHECIMENTOS

É uma coisa muito importante pensarmos nos cuidados que costumamos ter com nós mesmos, e nos cuidados que devíamos, mas não costumamos ter O filosofo é alguém que pratica o conhecimento, e procura praticar cada vez melhor, com muito cuidado para não errar, porque gosta muito de aprender e saber das coisas. Cuidar dos nossos conhecimentos, se dedicar a aprender as coisas, é talvez a forma mais importante de cuidarmos de nos mesmos. Hoje em dia somos muito descuidados com a nossa vida... pode parecer que não, podemos ter a impressão de que cuidamos muito bem de nós mesmos o tempo todo.

Afinal, cuidamos dos prazeres do nosso corpo, comendo coisas gostosas, relaxando, tomando sol na praia, ou uma cervejinha no bar, não é mesmo? Também cuidamos da saúde do nosso corpo, fazendo ginástica, ou procurando comer coisas saudáveis. Ou cuidamos da nossa aparência, do nosso penteado, da nossa roupa... Cuidamos também da nossa mente e dos nossos sentimentos, namorando, cuidando dos nossos parentes e amigos, indo a um psicólogo e fazendo terapia para compreendermos melhor quem nós somos, ou pensando sozinhos a respeito de nós mesmos, do nosso jeito de ser e de como nos tomamos assim.

Cuidamos do nosso futuro, pensando na vida profissional e nos preparando para ela, ou nosaperfeiçoando profissionalmente. Cuidamos até da nossa alma ou do nosso lado espiritual, procurando fazer o bem, tentando descobrir em quê acreditamos além dessas coisas do mundo material a nossa volta, ou seguindo alguma religião.

Há pessoas que não tomam cuidado nem com metade dessas coisas, e vivem bastante mal, vivem a vida de uma maneira meio “estropiada”, “esculhambada”, e só percebem isso muito tarde. Mas muitos fazem quase tudo isso e se sentem satisfeitos com o modo como cuidam de si mesmos. Todos esse cuidados podem ser muito bons para uma pessoa, mas como é que sabemos que estamos cuidando dessas coisas todas da melhor maneira?

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Alguns se acham muito sábios nesse sentido, mas não examinam com cuidado aquilo que acham que sabem. Chegam a dar conselhos aos outros o tempo todo ou até a vender conselhos. Outros simplesmente seguem tudo o que as pessoas “mais sábias” dizem sem raciocinar muito a respeito, ou pegam qualquer informação que circula por ai' como se fosse uma grande verdade, e também não param para examinar com cuidado o assunto. A grande maioria das pessoas faz um pouco disso tudo: colhe uma porção de informações sem pensar no valor que essas informações têm ou não; procura ler ou ouvir o conselho de pessoas que parecem muito “sábias” porque dizem muitas “verdades” sobre a vida, e acredita nessas “verdades” sem pensar; e em alguns momentos dá conselhos “muito sábios” aos outros — sobre o que pensa que sabe, mas nunca parou para pensar a respeito.

Hoje em dia cuidamos muito pouco dos nossos conhecimentos, parece que não percebemos que eles são um tesouro que precisamos avaliar cuidadosamente, que pode ser muito valioso, mas também pode ser falso, ou ter apenas um valor muito pequeno.

Recebemos muitas informações por todos os lados, de outras pessoas, de revistas e jornais, da televisão, da internet, dos livros de auto-ajuda etc., e nos deixamos levar por essas informações que muitas vezes parecem confusas, estranhas, contraditórias ou muito vagas, como se deixassem as coisas apenas “mais ou menos” ditas, e não claramente colocadas em todos os detalhes — mas nem pensamos muito a respeito, apenas seguimos aquela informação porque fazemos uma rápida comparação com outras informações do mesmo tipo e ela pareceu a mais correta.

Parece que temos muitos saberes e informações chegando até nós por todos os lados, mas não praticamos o conhecimento, não cuidamos da nossa capacidade de aprender a respeito da nossa vida, da vida humana em geral, do mundo em que vivemos e da nossa vida no mundo, como seres humanos, E a grande maioria desses saberes e informações que temos na verdade nos ensinam muito pouco sobre essas coisas, quase nada, porque são apenas informações sobre o que aconteceu ou deixou de acontecer no mundo ou saberes técnicos sobre como fazer alguma coisa ligada à nossa vida cotidiana, e são quase sempre “receitas” prontas, algumas vezes boas e úteis, outras vezes bastante enganosas: como realizar um trabalho, como conquistar quem amamos, como resolver um problema do dia-a-dia etc.

6. A FILOSOFIA NÃO É CIÊNCIA, E NÃO PODE SER AVALIADA COMO SE FOSSE.

O que é filosofia, então?Normalmente, quando começamos a ensinar filosofia, falamos muito mais sobre a Grécia

antiga, na época em que a filosofia nasceu (sete séculos antes de Cristo), comparando a filosofia com a religião da época, que era chamada de “mitologia”. Os gregos usavam a religião deles — a mitologia — como uma forma de entender o mundo. Acreditavam em vários deuses ou entidades mágicas, e cada deus ou entidade era uma força da natureza ou então da natureza humana; uma força viva ligada a alguma coisa como a terra, as plantas, os mares, os relâmpagos, a memória, a sabedoria, as palavras etc. Geralmente se começa a explicar o que é a filosofia entrando em muitos detalhes sobre a mitologia grega e de que modo os primeiros filósofos foram desenvolvendo um modo diferente, mais racional, de se pensar sobre as coisas e de se entender o mundo. l\/las não vamos começar por ai'. Vamos saltar diretamente para os dias de hoje e começar fazendo uma comparação entre Filosofia e Ciência.

Por que?Por que hoje estamos muito habituados com a ciência, temos alguma noção do que é ciência,

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e não temos nenhuma do que é filosofia. Por isso tendemos a olhar para a filosofia como quem olha para a ciência, ficamos esperando da Filosofia coisas que não têm nada a ver com ela, e que têm tudo a ver com ciência. Isso forma um entendimento esquisito da filosofia.

A gente não entende do que se trata, e fica achando que é uma coisa ruim, porque estamos avaliando a filosofia como se fosse ciência, como se ela devesse fazer o que a ciência faz, e de maneira científica. Acontece que se nós avaliamos a filosofia como se fosse ciência, ela fica parecendo mesmo uma péssima ciência, mas se nós avaliamos a ciência como se fosse filosofia, a ciência também fica parecendo uma péssima filosofia. São duas atividades intelectuais diferentes, duas formas de pensar diferentes, e confundir uma com a outra não ajuda a entendê-las, só atrapalha.

Não foi sempre assim, nem sempre a filosofia e a ciência estiveram separadas como duas atividades diferentes — na verdade fazem só uns poucos séculos que essa separação começou a acontecer, e ela só ficou realmente forte do século XIX para cá. Nós podemos discutir se essa separação é uma coisa boa ou não, e se a filosofia e a ciência não deviam estar unidas numa atividade só, como antigamente. Mas é preciso reconhecer que hoje as duas atividades se mostram muito diferentes uma da outra. Elas dialogam, trocam idéias, às vezes uma critica a outra, mas só em casos muito específicos aparecem realmente misturadas como se fossem uma atividade só.

Antigamente não era assim: essas duas atividades estavam sempre fundidas em uma só. No começo da filosofia, então, sete séculos antes de Cristo, essa separação não existia, as duas atividades estavam misturadas em uma só, que era muito mais parecida com o que hoje é a filosofia do que com o que hoje é a ciência, então na verdade é como se só existisse a filosofia, e dentro dela, às vezes algum assunto era estudado de uma maneira que parecia um pouquinho mais com a ciência de hoje. A grande novidade que a história nos trouxe foi a ciência como uma atividade diferente e separada da filosofia.

Primeiro foi aparecendo dentro da filosofia uma área que foi sendo chamada de “filosofia natural”, depois, dessa área da filosofia foram surgindo a física, a química e a biologia. As ciências humanas foram nascendo de outras áreas da filosofia. Pode-se dizer que todas as principais ciências de hoje — física, química, biologia, história, geografia, economia, direito etc. — nasceram saindo de dentro da “mãe” filosofia, que estudava um pouco de tudo, e se foram se tomando campos de estudo cada vez mais especializados. Só uma ciência parece ter sido mais antiga ainda do que a filosofia: a matemática. Mas quando a filosofia começou a aparecer, ela “engoliu” uma parte da matemática, e a matemática ficou meio para dentro da filosofia, meio para fora, então existia na antiguidade uma matemática que era meio filosófica, meio só matemática.

O mais importante é entender com toda clareza que hoje, de um modo geral, o que o os cientistas fazem — especialmente aqueles da matemática ou das ciências que estudam a natureza — é muito diferente daquilo que os filósofos fazem, e só em alguns pontos muito específicos essas duas atividades continuam coincidindo uma com a outra. Os estudiosos de ciências humanas — história, direito, sociologia, psicologia etc. — têm um contato bem maior com a filosofia, e o que eles fazem é um pouco mais parecido com aquilo que os filósofos fazem, mas ainda não é filosofia também.

7. POR QUE HOJE CONHECEMOS MAIS A CIÊNCIA DO QUE A FILOSOFIA?

Por que é que conhecemos hoje em dia nós geralmente conhecemos mais a ciência do que a filosofia?

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Conhecemos mais a filosofia do que a ciência porque temos alguns resultados da ciência que são de caráter mais prático ou de caráter tecnológico, temos teorias aplicadas e tecnologias que derivam das ciências puras — principalmente das ciências exatas (matemática) e da natureza (física, química, biologia etc.), mas também das ciências humanas (psicologia, sociologia, história etc.) — e convivemos no nosso dia-a-dia com resultados dessas tecnologias e teorias aplicadas que usamos a todo momento e que ocupam sempre a nossa atenção, principalmente aparelhos tecnológicos que resultam indiretamente da física: telefones celulares ou fixos, carros, ônibus, relógios, caixas registradoras, catracas eletrônicas, aparelhos de TV, de vídeo, de áudio, eletrodomésticos, computadores etc. Ficamos curiosos com a origem dessas coisas, e então as escolas, revistas, programas de TV, sites de internet etc. nos ajudam a entender que tudo isso veio da ciência, e que é importante dar valor a ela.

Vista mais de perto, a ciência não é exatamente como costumamos imaginar: por exemplo não oferece conhecimentos tão absolutamente seguros como imaginamos, e tudo o que ela tem são sempre teorias sobre o que deve ser a verdade, e não verdades. Mesmo assim, consegue oferecer todos esses resultados e nos impressiona bastante quando pensamos nisso.

Temos sempre uma pálida imagem, uma vaga idéia do que é a ciência, de como funciona realmente o trabalho do cientista. Mas temos pelo menos alguma idéia, e a idéia de que esse trabalho tem resultados que podemos sentir na prática, na nossa vida diária.

Com a filosofia não acontece nada disso. Por que aconteceu isso? Por que a ciência começou a gerar todos esses produtos práticos e a ser cada vez mais valorizada, e a filosofia não?

Isso começou no final da Idade Média, com o surgimento do capitalismo. o que é o capitalismo? É uma situação em que toda a economia de uma sociedade, e a vida das pessoas nessa sociedade, giram em tomo de uma acumulação de capital que não acaba nunca. O que é o capital? É o dinheiro, ou então aquilo que pode ser trocado por dinheiro — o crédito, os imóveis que uma empresa tem, a força de trabalho dos funcionários que trabalham nela, tudo isso faz parte do capital da empresa. No capitalismo, pessoas e organizações sentem a necessidade de estarem o tempo todo se esforçando para juntar mais capital — seja para poderem gastar no que é preciso para sobreviver, seja para enriquecer e poder melhorar de condições. Muita coisa na vida das sociedades de hoje depende direta ou indiretamente disso, e já veio começando a depender disso desde o fim da Idade Média.

E ocorre que esses aparelhos tecnológicos com os quais convivemos no dia-a-dia ajudam nas nossas atividades práticas, especialmente naquelas que chamamos de trabalho, e fazem com que elas tenham resultados mais eficazes, mais imediatos e que podem ser medidos e avaliados, e até previstos em geral com bastante precisão. E como é que se produz mais capital? Com trabalho. Graças a todos esses aparelhos tecnológicos, o trabalho rende mais, mais rápido e de aneira fácil de medir e avaliar, e até de prever. É possível calcular custos, fazer orçamentos, fixar preços etc. Por isso, no capitalismo, existe uma valorização muito grande dos aparelhos tecnológicos, das tecnologias e teorias aplicadas, e das ciências que estão por detrás delas.

8. A FILOSOFIA FAZ PENSAR NO SENTIDO DA VIDA.

No capitalismo, todas essas coisas que vêm da ciência têm um impacto muito grande nas nossas vidas diárias, mas é um impacto de um tipo muito muito menos transformador do que parece: é um impacto que não faz a gente sair do sentido normal da nossa vida. Para entendermos isto, vamos falar um pouco sobre uma coisa que pode parecer meio “aérea”, meio fantasiosa, mas

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não é. Vamos falar um pouco sobre o sentido da vida.Na nossa vida, estamos fazendo coisas o tempo todo, estamos sempre agindo, nos movendo

em alguma direção. As coisas que fazemos também têm alguma direção, elas têm algum sentido. Para evitar confusões, é preciso deixar bem claro o que estamos querendo dizer aqui quando dizemos que as nossas ações têm algum “sentido”. Normalmente, quando a gente diz que alguma coisa “faz sentido”, isso não parece ter nada a ver com o que a gente quer dizer quando diz, por exemplo, que uma rua “da mão em tal sentido”. No primeiro caso, estamos querendo dizer que a coisa não é absurda, que ela tem algum significado ou é coerente de alguma maneira. No segundo caso, estamos falando da direção de uma rua, dizendo que nessa rua é permitido que os carros avancem em uma tal direção. Mas aqui, quando dizemos que as nossas ações têm algum “sentido”, estamos misturando de propósito as duas coisas, os dois significados da palavra “sentido”.

Quando agimos, podemos dizer que havia uma certa situação antes, e a nossa ação nosfaz passar para uma outra situação, e esse é o sentido da ação: é uma ação que aponta da primeira situação para a segunda situação. Podemos imaginar até uma seta apontando da primeira situação para a segunda, representando o sentido da ação. É importante saber que quando dizemos que existem coisas “animadas” (vivas) e “inanimadas” (coisas que não são vivas), estamos usando uma palavra que deriva de uma outra muito antiga, do latim, que e a palavra anima. A palavra anima estava ligada à idéia de um sopro que faz as coisas se mexerem, terem movimento. Essa idéia era usada para se falar em um “sopro vital” ou “fôlego vital”, um sopro que existe em certas coisas — por exemplo os animais — e que dá vida a elas, um ar que corre pelo corpo e faz esse corpo estar vivo, respirando.

De qualquer modo, a palavra anima esta ligada à idéia de movimento. Um ar que moveum corpo. E o que e animado (vivo), e aquilo que é movido por esse ar, por essa respiração. Daí vem a expressão “desenho animado”, por exemplo, que quer dizer um desenho que semove como se estivesse vivo.

Então vamos imaginar a vida deste modo: feita de muitos movimentas que nós fazemos, com as nossas ações, em uma direção ou em outra. Vamos tentar imaginar assim desde o movimento que nós fazemos quando vamos até uma porta — movimento que vai no sentida da porta — o que quer dizer apenas que caminhamos naquela direção que é a da porta; até o conjunto de todos os movimentos que fazemos no sentido de dar melhores condições de vida para a nossa família, por exemplo, o que quer dizer que o significado, o que dá coerência para esses movimentos, é que eles servem para isso, para dar essas melhores condições de vida para nossa família.

Vamos pensar esse segundo tipo de “sentido” dos nossos movimentosna vida como se fosse parecido com o primeiro tipo, isto é, como se estivéssemos falando de um movimento que aponta nesse sentida, que é o de dar melhores condições de vida para a família. Pensando desta maneira, podemos representar os dois sentidos com setas que apontam em alguma direção:

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Na nossa vida, estamos sempre fazendo uma porção de movimentos em vários sentidos ao mesmo tempo. Alguns mais importantes para nós, outros menos. Cada um deles puxa nossa vida em uma direção, alguns com muita força, outros tão pouco que nem fazem diferença. Se vou ou não em direção a uma porta, isso pode não fazer diferença nenhuma no conjunto da minha vida, mas se vou ou não na direção de dar melhores condições de vida para minha família, isso faz uma diferença enorme, minha vida acaba sendo puxada nessa direção com muito mais força, e muitos dos outros pequenos sentidos das minhas ações acabam sendo dirigidos também por esse sentido maior.

O conjunto dos sentidos de todas as nossas ações, importantes ou sem nenhuma importância, acaba formando o sentido geral que a nossa vida segue, e que é resultante de todos eles, uma espécie de média. Se a nossa vida é puxada para um lado com certa força, e para outro com outra força, acabamos seguindo por um caminho médio, uma caminho do meio, que é o caminho resultante. E é claro que esse caminho do meio está mais desviado para o lado daquilo que mais puxar a gente. Por exemplo:

Neste diagrama acima, a seta pontilhada é resultante das outras duas, ou seja, é o sentido geral que a vida dessa pessoa realmente está tomando na prática, no final das contas. E o que se pode ver pelas setas é que temos ai' uma pessoa que se dedica muito ao trabalho, e acaba dando um pouco menos de atenção para a família. Talvez até exista algum um modo de uma coisa combinar bem com a outra, de os dois sentidos não servirem de desvio um para o outro, e apontarem numa direção mais próxima, mas não é o que está acontecendo com essa pessoa do diagrama acima. Geralmente nós nem pensamos muito no sentido geral que a nossa vida está tomando.

Vamos sendo puxados para lá e para cá, pela necessidade de sustentar a família, ou pela necessidade de resolver um problema atrás do outro no trabalho, ou então por qualquer outra coisa.

Pois bem: a ciência, atualmente, só tem entrado em contato com a nossa vida através da tecnologia e das técnicas para resolver problemas e tarefas, das teorias aplicadas e principalmente dos aparelhos tecnológicos, que ajudam também a resolver problemas e cumprir tarefas do dia-a-dia. Tudo isso quase sempre tem ajudado muito a acelerar a nossa vida na mesma direção que ela já vinha tomando, mas são coisas que nos ajudam muito pouco, talvez quase nada, a pensar qual é realmente o sentido que queremos dar à nossa vida.

Todas essas coisas que nos ajudam a resolver problemas e cumprir tarefas diárias, tudo isso, vai sempre em uma direção só: a mesma que já estamos segundo, seja ela qual for. E essa direção, desde o final da Idade Média, isto é, desde o inicio do Capitalismo, no fundo tem sido quase sempre

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mais ou menos a mesma para todos os que vivem em sociedades capitalistas: conseguir capital, manter o capital, aumentar o capital — porque no capitalismo, este é o quase único jeito de se conseguir seguir pelo menos um pouquinho em qualquer outra direção que nos interesse.

Mas existem várias maneiras de se cultivar o o pensamento, os sentimentos e o espírito humano em geral. A ciência é só uma delas. A tecnologia e as teorias aplicadas são outra. A técnica é mais uma. Essas têm sido valorizadas, mas existem outras. A religião é uma das poucas formas de cultivar o pensamento, os sentimentos e o espirito humano em geral, que além de ajudarem a pessoa a parar um pouco e enxergar os caminhos que a sua vida está tomando, para refletir sobre isso com senso crítico, continua sendo uma atividade muito valorizada. Mas geralmente, uma religião costuma apresentar para a pessoa um outro caminho que é um só, uma única alternativa, e geralmente critica os caminhos da vida a partir desse ponto de vista sem fazer autocritica. Isso porque o papel das religiões não é exatamente o de fazer as pessoas pensarem criticamente, e talvez não seja correto julgar as religiões em função disso, porque não é isso o que elas pretendem. O forte das religiões é trabalhar com a fé, fazer as pessoas terem fé nessa outra alternativa, e não fazer as pessoas pensarem criticamente. Por isso, uma religião só costuma mostrar interesse em fazer a pessoa pensar criticamente quando essa critica é favorável para a alternativa que ela mesma (a religião) esta oferecendo, e às vezes até tem medo de deixar a pessoa pensar criticamente, como se isso fosse fazer a pessoa perder a fé — o que não é verdade: quando a pessoa pensa criticamente, o que acontece é que ela toma suas decisões com mais consciência e com mais firmeza, mas ao mesmo tempo percebendo o que precisa ser corrigido e melhorado no caminho que ela escolheu.

Qual é o caminho, é coisa que depende da escolha de cada um.A filosofia e a arte também oferecem meios para a pessoa pensar sobre os rumos que está

dando para a vida. Mas fazem isso com muito mais intensidade, porque esse é justamente o papel delas. A arte faz a pessoa experimentar sentimentos e sensação diferentes, e isso faz a pessoa pensar sobre o que está sentindo e experimentando na sua vida diária. A filosofia faz a pessoa raciocinar criticamente a respeito das coisas, experimentando maneiras diferentes de pensar a respeito delas; estudar filosofia ensina a pessoa a pensar em possíveis alternativas comparando-as umas com as outras e avaliando cada uma delas.

De todas as formas de cultivar o pensamento, os sentimentos e o espirito humano em geral, a filosofia e a arte são as que mais permitem a pessoa repensar os caminhos da sua vida por si mesma, sem apontar necessariamente para ela um caminho só como se fosse o melhor.

Porque é justamente esse o sentido da filosofia e da arte, foi nesse sentido que essas duas atividades se desenvolveram entre os seres humanos: são atividades que servem para abrir possibilidades. A arte faz isso trabalhando principalmente com os sentimentos e as sensações. A filosofia, trabalhando principalmente com a razão. Por isso essas duas atividades às vezes dão a sensação de estarem nos colocando fora da realidade: porque estão mesmo, estão fazendo a gente enxergar a nossa realidade de um outro ângulo, que não é esse do qual estamos acostumados a vê-la. Fazem a gente parar um pouco de pensar só nos passos seguintes dentro daquele mesmo caminho que já estamos seguindo, para pensarmos no que podia ser diferente.

É claro que se os caminhos que estamos seguindo em geral é no fundo sempre o mesmo — conseguir capital, manter o capital, juntar mais capital, para conseguirmos pagar os pequenos desvios em direção a outras coisas que queremos — a filosofia e a arte não se encaixam muito bem naquilo que interessa ao capitalismo, então o capitalismo acaba encontrando um meio de isolar ou deturpar essas atividades. A arte é afastada da vida diária e trancada em museus; ou é transformada em ferramenta de marketing, e o seu trabalho com os sentimentos e sensações é direcionado no sentido de tornar produtos atraentes para a venda e o consumo; ou então é transformada em pura diversão para distrair as pessoas e fazê-las esquecerem um pouco dos problemas do dia-a-dia (mas também do maior problema de todos, que e o problema do sentido da vida). E a filosofia é

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transformada em uma espécie de luxo esquisito para gente que gosta de ficar “viajando” com o pensamento por idéias malucas que não têm nada a ver com a realidade. E não é verdade, essa é uma imagem falsa da filosofia.

Examinemos um pouco a situação em termos capitalistas. Vejamos o que se pode medir e avaliar do impacto do aprendizado de filosofia pelas pessoas, em uma sociedade, a filosofia é sim uma atividade que pode ter grande impacto na vida de uma pessoa e na vida das pessoas em geral, em uma sociedade. Um impacto muito mais amplo, mais intenso e mais profundo, aliás, que o dos aparelhos tecnológicos que mexem tanto com a nossa vida. Mas o impacto da filosofia é lento, de longo prazo, e imprevisível Não dá para saber qual será exatamente o resultado do estudo de filosofia na vida de uma pessoa e menos ainda na vida de uma sociedade, se a maioria das pessoas estudar filosofia. Não é possível prever que tipo de impacto será, a única coisa que é possível prever é que as pessoas provavelmente vão pensar mais com as suas próprias cabeças, ter mais senso critico, e ficar menos passivas e conformadas. O impacto pode ser inclusive bastante prejudicial quando se quer que as coisas continuem na mesma, porque uma pessoa com muito senso crítico e que não se conforma com facilidade diante do que acha errado, tende a exigir mudanças.

Para além disto, não é possível nem medir exatamente o grau desse impacto, só se sabe que ele geralmente ocorre — embora é claro que também tenha gente que nunca se deixa atingir pela filosofia, e que passa por esse estudo em branco, como acontece com qualquer outra matéria que se estuda. Em suma: do ponto de vista capitalista, estimular as pessoas a estudarem filosofia é um investimento de altíssimo risco. Em geral, nos dias de hoje, em cada cinqüenta pessoas que estudam filosofia porque são obrigadas a isso, pode-se dizer que umas cinco, no futuro, acabam sentindo uma diferença realmente considerável em suas vidas. Na verdade e um percentual bastante alto, e quem lida com educação sabe disto, Entre as pessoas que se interessam e começam a estudar filosofia por conta própria, só para experimentar e sem serem obrigadas a isso, parece que o percentual do impacto disso na vida delas tende a subir enormemente, e muito poucas pessoas que fazem isso acabam mais tarde esquecendo do que estudaram e deixando isso de lado.

Mas vivemos em tempo de capitalismo, e a filosofia está fora de moda. Hoje em dia, quando alguém diz que estuda filosofia, as pessoas ficam admiradas: “Oh! Filosofia!”. Acham mesmo admirável, como se fosse uma coisa muito difícil e grandiosa, mas admirável desde que os estudos filosóficos fiquem bem longe da vida no dia-a-dia, como se fossem pinturas penduradas em uma parede de algum museu bem velho. Quando o filósofo se mete a pensar a respeito da vida, as pessoas ficam perturbadas, e logo querem fugir para as tarefas cotidianas e os pequenos problemas do dia-a-dia. No melhor dos casos, querem exigir que a filosofia se comporte como a ciência: que ela produza resultados que sirvam para resolvermos melhor os problemas e cumprirmos melhor as tarefas da vida diária, isto é, para seguirmos melhor no mesmo caminho que já estamos seguindo, sem precisarmos pensar muito a respeito. Mas este não é o papel da filosofia, querer que a filosofia faça isso, é não querer filosofia.

A filosofia incomoda porque é parece uma atividade preguiçosa, as pessoas acham que têm mais o que fazer do que ficarem pensando na vida. Mas o fato e que as pessoas têm preguiça de serem filosoficamente preguiçosas, porque têm preguiça — e na verdade, mais do que preguiça, muitas vezes têm até um pouco de medo — de pensar. E que essa tal “preguiça” filosófica na verdade é extremamente trabalhosa: exige um grande e constante esforço do pensamento, e não oferece nada pronto, não oferece nenhuma resposta segura e definitiva para nada: obriga a gente a escolher os nossos próprios caminhos e a construir, com o nosso próprio raciocínio, as nossas próprias decisões e nossa própria segurança a respeito dessas decisões, que às vezes podem mexer com toda a nossa vida.

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9. A ESTRUTURA DA FILOSOFLA É DIFERENTE DA ESTRUTURA DA CIÊNCIA.

Quando comparamos a estrutura da Ciência como um todo, com todas as suas teorias, com a estrutura da Filosofia como um todo, também com todas as suas teorias, podemos levantar um diagrama para representar essa comparação, que seria mais ou menos assim:

Nesse diagrama, os círculos representam teorias coerentes e bem-estruturadas e as manchas de forma menos simétrica e definida são regiões com pontos de acordo entre os pesquisadores, mas acordos que não chegam a formar uma teoria. Quanto mais escuros o círculos e manchas, mais gente no conjunto dos pesquisadores dessa área está de acordo com a teoria ou participando dos acordos que fazem parte da mancha. As setas (não importa a cor) representam os desacordos, as discordâncias. O que esse diagrama quer mostrar é o seguinte: nas ciências exatas, como a Matemática, e nas ciências que estudam a natureza, costuma existir uma grande teoria com a qual quase todos os pesquisadores da área concordam. É o que se chama de “teoria standard”, ou “teoria padrão”. Por exemplo a teoria do átomo: é difícil encontrar químicos que discordem que todas as substâncias químicas são feitas de átomos e moléculas formadas por esses átomos. Em uma ciência que estuda os fenômenos da natureza, podem existir teorias que discordam dessa teoria geral, mas costumam ser poucas e pequenas. Para crescerem e ficarem fortes, essas pequenas teorias discordantes tentam conseguir a aceitação e a concordância de mais gente na área. Se nenhum outro cientista da área concorda com uma teoria, ela não e valorizada, pouca gente dá importância para ela.

Para conseguir que outros cientistas concordem com uma teoria nova e muito diferente, um cientista precisa seguir certos critérios de validação quando constrói essa teoria. Precisa seguir certas regras que são aceitas por toda a comunidade dos cientistas dessa área, regras que determinam como uma boa teoria deve ser construída. Em geral, e preciso que a teoria passe por experimentos em laboratório que sejam muito bem controlados e examinados, e por cálculos lógicos e matemáticos que mostrem se o cientista está raciocinando direito quando faz previsões ou quando

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tira suas conclusões a partir desses experimentos. Os outros cientistas vão checar com muito cuidado se ele fez tudo direito antes de decidirem se concordam com sua teoria ou não. Mas a teoria só passa a ser considerada válida depois que foi checada e que a comunidade dos cientistas da área passou a concordar com ela, ou pelo menos a concordar que ela tem boas chances de ser verdadeira.

Quando vamos passando do campo das ciências exatas e ciências da natureza para o campo das ciências humanas — aquelas que estudam fenômenos ligados aos seres humanos e à sua forma de pensar, sentir, viver e conviver uns com os outros — percebemos que as ciências humanas já se estruturam de uma maneira um pouco diferente: dificilmente existe uma teoria só com a qual todos os estudiosos de uma mesma área de humanas, ou pelo menos a maioria deles, concorde. Em geral existem algumas grandes teorias igualmente importantes, mas que não concordam muito umas com as outras, e os estudiosos se dividem, alguns preferem uma delas, outros preferem outra. Continuam existindo muitos pontos de acordo entre essas teorias, mas eles já não são tão sólidos e seguros, e não chegam a se articular de maneira coerente e a formar uma “teoria padrão” para todos os estudiosos da área. Então, como essas grandes teorias não concordam umas com as outras, os debates começam a se intensificar. Em ciências humanas há muito mais discordância, e discordâncias muito mais profundas, do que nas ciências exatas ou naturais. Por isso também há muito mais debate nas áreas de humanas, e muito menos informações que são consideradas inquestionáveis. Existe mais espaço para questionar e discutir as coisas, mas também menos certezas e menos segurança.

Pelo diagrama, pode-se notar que a estrutura das ciências humanas parece estar no meio do caminho entre a estrutura das ciências exatas e naturais e a estrutura da filosofia. Então, comparando as ciências exatas e naturais com as ciências humanas, fica um pouco mais fácil entender a filosofia: ela tem uma estrutura que se parece bem mais com a das ciências humanas, e tem mais ou menos as mesmas diferenças em relação à estrutura das ciências exatas e naturais. Só que na filosofia, essas diferenças aparecem em um grau muito mais alto, as diferenças são muito mais radicais.

Em filosofia, os pontos de acordo existem, mas são poucos e muito vagos, e nem sempre parecem muito importantes. Não existe nenhuma teoria padrão que todos aceitam, e pelo contrário, existem muitas e muitas grandes teorias — na verdade uma enorme quantidade delas — todas muito importantes, e que não concordam em quase nada umas com as outras. O que se destaca e aparece mais são as discordâncias entre as teorias. Há sempre muitas discordâncias e muito profundas entre elas. O clima normal da filosofia é o de um debate interminável entre as teorias.

A filosofia se estrutura, então, como se fosse uma enorme rede de debates que vão se desenvolvendo ao longo da história, um verdadeiro campo de batalhas intelectuais. Mas o que a faz especialmente diferente das ciências, e que uma teoria filosófica não precisa ser aceita pela comunidade dos filósofos para ser considerada válida. Para ser valorizada, ela não precisa que a maioria dos filósofos concorde com ela, nem mesmo que concordem que ela tem muita chance de ser verdadeira. Existem filosofias para as quais o fato de uma teoria ser “verdadeira” ou não tem a menor importância3, porque o que um filosofia procura não é necessariamente isto, embora possa também procurar isso.

3 Por exemplo: a filosofia de um pensador do século XIX (e considerado bastante atual) chamado Nietzsche, considera a própria vontade de se encontrar uma verdade como algo que precisa ser criticado e diz que o papel da filosofia não e o de buscar verdades, mas repensar os valores morais. E existe já desde a antiguidade uma filosofia chamada “ceticismo pirrônico” que se dedica a tentar “curar” filósofos que estejam obcecados por uma mania de encontrar verdades.

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10. TANTO A FILOSOFIA QUANTO A CIÉNCIA SÃO FORMAS DE PENSAMENTO TEÓRICO, E NÃO CONJUNTOS DE OPINIÕES: O QUE DIZEM É FUNDAMENTADO OU APOIADO Em CRITÉRIOS DE VALIDAÇÃO.

É importante notar que uma teoria — científica ou filosófica — não é apenas um conjunto de Opiniões. Ao invés de opiniões, as teorias apresentam teses, e a grande diferença entre uma opinião e uma tese, é que uma tese só pode ser afirmada com base em algum fundamento, alguma razão que justifique o que a tese esta afirmando, ou então com base em algum critério de validação (sendo que um critério de validação é uma regra que determina o que é preciso para que uma tese seja considerada válida). Em Física, por exemplo — uma das ciências mais valorizadas hoje em dia — uma teoria só e considerada válida se as suas teses são apoiadas em experimentos de laboratório realizados segundo certas normas de procedimento muito rigorosas, e em cálculos lógicos e matemáticos que asseguram que os raciocínios do cientista estão corretos quando ele propõe que deve ser feita uma certa experiência, ou quando tira conclusões dessa experiência, ou quando extrai conclusões e previsões a partir da teoria.

Em filosofia os critérios de validação são muito diferentes — e são variáveis, variam de filósofo para filósofo — mas de qualquer modo, uma tese levantada em uma teoria filosófica precisa sempre estar fundamentada em argumentos, que podem ser do tipo mais variado. Um filósofo pode usar como argumento, por exemplo, o experimento de laboratório que foi realizado por um cientista. Ou pode usar como argumento uma série de exemplos daquilo que está afirmando. Ou pode usar só o raciocínio Ou pode usar o que já foi descoberto ou o que vai sendo observado pelos historiadores, pelos sociólogos, pelos antropólogos, pelos economistas, pelos juristas, pelos psicólogos etc. Ou pode apoiar a sua tese na experiência cotidiana das pessoas em geral, naquilo que elas vivenciam diariamente ou no modo como se comportam. As opções são muitas e muito diversificadas. Mas cada filosofia tem suas próprias regras a respeito de como deve lidar com esses argumentos. Por isso é difícil dizer quais são os critérios de validação da filosofia, isto é, quais são as regras que fazem com que uma teoria filosófica seja considerada válida. É difícil porque os filósofos não concordam nem mesmo em relação a isso, e cada filosofia tem os seus próprios critérios de validação, a sua própria proposta a respeito de como se deve lidar com os argumentos.

Se cada filósofo e cada filosofia tem as suas próprias regras, os seus próprios critérios de validação, como é que se pode dizer que isto é um “critério”, uma “regra” que precisa ser seguida? Em outras palavras, se cada filósofo faz as suas próprias regras de pensamento, como é que isto pode servir para validar uma teoria? Como é que isto pode servir, afinal, para que os outros pesquisadores da comunidade dos filósofos — que têm cada um os seus próprios critérios — aceitem uma teoria como válida?

Acontece que por detrás desses critérios tão variados que existem na filosofia, acabaram se assentando, ao longo da história, alguns costumes que funcionam na prática — ou pelo menos desde a antiguidade até os dias de hoje têm funcionado — como se fossem critérios gerais, bem abertos e mais ou menos seguidos por todos os filósofos, e que têm levado a comunidade filosófica a valorizar mais certos tipos de teorias do que outros, e a considerar certas teorias como inválidas, principalmente quando são teorias que se comportam como se fossem meras opiniões, sem oferecerem bons argumentos para aquilo que afirmam. Uma dessas “regras” gerais às quais os filósofos foram se acostumando, então, é justamente a de que uma teoria precisa ser realmente teoria, e não só opinião, isto é, suas teses precisam estar fundamentadas, e os filósofos consideram esses fundamentos como “argumentos” que sustentam aquelas teses.

Mas como cada filósofo segue suas próprias regras quando constrói esses argumentos, a comunidade filosófica, quando faz o exame critico de uma teoria para saber se ela é valida ou não,

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foi se acostumando a examinar cada teoria a partir de dois pontos de vista diferentes: um ponto de vista que é “externo” à teoria examinada e um ponto de vista que é “interno” a ela. Um filósofo, digamos por exemplo um filósofo “A”, pode (e deve) examinar a teoria de um outro filósofo “B” a partir de critérios que são os seus, e que não são os do próprio “B” — portanto deve examinar a teoria de “B” a partir de um ponto de vista externo a teoria “B”. Mas também não pode deixar de maneira de nenhuma de examinar a teoria de “B” a partir dos próprios critérios que “B” escolheu — isto é, examinando se a teoria de “B” segue mesmo corretamente as regras que o próprio filósofo “B” escolheu seguir, o que significa examinar a teoria de “B” a partir de dentro, a partir do próprio modo como ela raciocina, fazendo uma crítica “interna” a ela. Essa critica “interna” é sempre muito importante, e é dela que acaba surgindo uma espécie de regra ou critério geral que, na prática, os filósofos se acostumaram a usar sempre: o critério da coerência. Uma teoria boa filosófica precisa ser coerente consigo mesma para ser considerada válida.

Essas duas regras gerais às quais os filósofos se acostumaram ao longo da história — que cada tese precisa ter argumentos (e é claro que precisam ser bons argumentos), e que cada teoria precisa ser de algum modo coerente consigo mesma, estão muito intimamente ligados àquela estrutura geral da filosofia representada no Diagrama nº 4. A filosofia se estrutura como uma grande rede de debates que não terminam nunca, então cada teoria precisa estar sempre resistindo às críticas de outras teorias, para isso, precisa se mostrar coerente e apresentar sempre bons argumentos de defesa contra qualquer critica. Se uma teoria não chega a apresentar argumentos para alguma das coisas que está afirmando, cedo ou tarde será cobrada nesse sentido, e terá que apresentar esses argumentos. Se não apresenta-los, ou se os argumentos que apresentar forem muito fracos e fáceis de rebater com contra argumentos, aquela afirmação provavelmente passará a ser considerada pela comunidade dos filósofos como um ponto fraco nessa teoria.

Isso quer dizer que uma teoria precisa ter boas explicações para tudo aquilo que ela for afirmando, e afirmar ao mesmo tempo uma coisa e o contrário dela é algo muito difícil de se explicar e justificar com argumentos, por isso as teorias filosóficas costumam tentar evitar contradições, costumam tentar ser tão coerentes quanto for possível. Se a contradição que a teoria apresenta atinge os próprios critérios de validação que ela escolheu, pode-se considerar que neste caso é uma contradição muito grave. Afinal, como é que alguém pode dizer que uma teoria só é válida se seguir as regras “x”, “y” e “z”, se ela própria não segue essas regras? Justificar uma contradição dessas é quase impossível, então esse é o tipo de contradição que as teorias filosóficas mais tentam evitar, e também é o tipo de contradição que elas mais procuram nas teorias rivais quando tentam derruba-las. Uma teoria que apresente muitas contradições ou contradições muito graves, acaba tendo mais dificuldades para se defender com argumentos, por isso se costuma considerar as contradições de uma teoria também como pontos fracos dessa teoria.

Uma teoria com muitos pontos fracos ou com pontos fracos muito graves, é uma teoria fraca, de pouco valor. E se for muito fraca, a comunidade dos filósofos acaba considerando que a quela teoria não é válida como filosofia afinal, e que ela é, no máximo, um mero conjunto de opiniões. Quando um filósofo critica uma teoria, então, geralmente ele tenta mostrar em que ponto essa teoria fica sem argumentos para se sustentar, ou então em que ponto ela esta sendo contraditória.

Uma teoria filosófica, então, tende a ser considerada mais forte e a ser mais valorizada na medida em que seja coerente ou bem-fundamentada em seus argumentos, e não tenha muitos pontos fracos nem pontos fracos muito graves. Mas só isto não é suficiente, não basta a teoria ser coerente consigo mesma e bem—fundamentada. Além disso, para ser considerada válida e ser valorizada, uma teoria filosófica precisa falar sobre algo que seja considerado importante e de interesse público no sentido mais amplo possível, no limite, algo que seja do interesse universal de todos os seres

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humanos. Ou então pelo menos de algo que seja do interesse da própria comunidade dos filósofos, como por exemplo uma teoria sobre como estudar a história da própria filosofia — ou então, por exemplo, uma teoria sobre como entender e explicar com clareza para as pessoas a questão dos critérios de validação em filosofia, porque explicar isto com clareza, na verdade, é uma das questões mais difíceis que qualquer filósofo pode se meter a enfrentar (e é um pouco o que o autor deste texto está tentando fazer neste exato momento).

De qualquer modo, é importante saber que, em filosofia, uma teoria pode ser considerada perfeitamente válida e pode até ser extremamente valorizada mesmo que nenhum outro filósofo concorde com ela, a não ser aquele que a criou. Basta que ela mostre que existe algo importante e que precisa ser pensado, e provoque ou estimule as pessoas a pensarem no assunto; e que ela resista bem no debate xi maioria das criticas — isto é, que ela se mostre coerente e/ou muito bem argumentada . Uma filosofia é considerada sem validade ou de baixo valor quando não traz nada de importante nem ajuda a pensar em nada de importante, ou então quando se mostra incoerente ou não consegue achar argumentos para se defender, e por isso não resiste às criticas dos outros filósofos, sendo derrubada facilmente no debate. Uma filosofia que não da atenção a essas regras gerais, dificilmente consegue resistir aos debates neste verdadeiro campo de batalhas intelectuais que a comunidade dos filósofos cultiva, e se não resiste, ela não dura muito tempo, e logo acaba sendo ignorada e esquecida.

Mas é fundamental perceber o quanto isto é diferente do modo como a ciência decide se uma teoria é “ultrapassada”, Em filosofia, quando uma teoria não é válida, é porque não conseguiu atingir um mínimo de qualidade exigido para que ela sobrevivesse e fosse valorizada nos debates da comunidade filosófica. Mas nada impede que mais tarde alguém recupere aquela filosofia esquecida e dê a ela novos argumentos, tornando-a mais forte e mais válida, e colocando—a de novo em cena nos debates.

Outra coisa muito importante saber o seguinte: os debates filosóficos geralmente não são, como se poderia imaginar, encontros dinâmicos e emocionantes entre os filósofos, que acontecem ao vivo e diante de um público, como alguma espécie de show intelectual. Nada disso: filósofos costumam ser pensadores muito críticos e muito auto críticos, muito metódicos, precisos e meticulosos, e embora existam aqueles que gostam também desse tipo de debate ao vivo (como por exemplo o autor deste texto), é preciso entender que esse tipo de debate não é o mais adequado para o desenvolvimento cuidadoso das teorias, e serve no máximo como um complemento “mais leve” para o trabalho do filósofo.

O exame critico cuidadoso de uma teoria filosófica não pode ser realizado só em debates ao vivo porque é algo que pode levar anos, às vezes décadas, ou mesmo séculos de trabalho dedicado e detalhado do filósofo que está fazendo essa critica e de seus seguidores depois que ele morre. Esses debates, então, vão acontecendo muito devagar e cuidadosamente, a longo prazo, principalmente através de publicações escritas. Um filósofo escreve e publica um artigo ou um livro; depois de alguns anos estudando cuidadosamente esse artigo ou então algum capitulo (ou mesmo um único parágrafo) desse texto, um outro filósofo publica os primeiros passos de uma critica a ele, então o filósofo que havia escrito aquele primeiro artigo ou livro — ou então algum seguidor da sua filosofia — publica uma resposta, com argumentos de defesa contra aqueles primeiros passos de crítica, e assim por diante. As criticas vão se detalhando e se aprofundando, os argumentos de defesa também, e assim o debate vai se desenvolvendo.

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11. SE EM TODO O MUNDO O CAPITALISMO TENDE A ISOLAR A FILOSOFIA, NO BRASIL A DITADURA FEZ A FILOSOFIA SE ISOLAR AINDA MAIS DA REALIDADE, MAS ISSO JÁ ESTÁ MUDANDO.

Repetindo, então: uma filosofia é valorizada quando mostra que existe uma coisa importante que precisa ser pensada, quando faz isso de maneira coerente, e quando provoca ou estimula as pessoas pensarem nisso. Esse assunto importante deve ser, de preferência, algo que seja do interesse público no sentido mais amplo possível, e no limite algo do interesse universal de todos os seres humanos. Mas uma filosofia também pode ser valorizada se pensar sobre assuntos mais técnicos de filosofia, que são só do interesse dos próprios filósofos, porque isto não deixa de ser uma contribuição importante para que, depois, outras filosofias possam se apoiar nesta e trazer afinal algum assunto importante pare se pensar.

O problema é que quando a filosofia de um pais começa a se dedicar muito só aos problemas que são do interesse dos próprios filósofos, e deixa de tratar de outros assuntos; quando esses estudos mais técnicos de filosofia se fecham neles próprios e não ajudam a pensar em assuntos de interesse mais amplo, a filosofia acaba contribuindo com o seu próprio isolamento pelo capitalismo, porque as pessoas que não são da área de filosofia começam a perder ainda mais o interesse, e na verdade começam a ter até uma boa razão para perderem o interesse — já que neste caso a filosofia só está pensando no que interessa aos próprios filósofos. Infelizmente, esse tipo de auto-isolamento da filosofia às vezes acontece.

No Brasil a filosofia passou por uma fase assim, e agora parece que aos poucos está se abrindo para pensar a respeito da realidade. o que aconteceu aqui foi que passamos por uma ditadura, e isso complicou as coisas para os filósofos. Na ditadura, o governo excluiu a filosofia de todos os cursos. lsso porque uma ditadura não tem mesmo nenhum interesse em que as pessoas pensem muito criticamente a respeito das coisas. Então, para sobreviver, os filósofos do país passaram a se fechar em problemas de história da filosofia e outros problemas técnicos, que eram só do interesse da própria filosofia. Assim pareciam mais inofensivos. Mas se isolaram tanto, que aos poucos começaram até a acreditar que a melhor filosofia que se podia fazer era aquela que só tratasse de problemas técnicos da própria filosofia. Alguns estudiosos de filosofia chegavam a achar que quem tentasse fazer outra coisa só podia ser alguma espécie de charlatão, de falso filósofo, como se só fosse possível filosofar sobre a própria filosofia.

Com isto, a ditadura parou de se preocupar tanto com os filósofos do pais, afinal, se eles não diziam mais nada a respeito da realidade, não iam promover nenhuma critica contra o governo. Para sermos justos com os filósofos dessa geração, é importante lembrar que nessa época, quem falasse muito sobre a realidade do pais corria sempre o risco de ser preso, torturado e morto pelo governo. Só os poucos e raros filósofos de direita, que concordavam com a ditadura, conseguiam espaço para dizerem o que quisessem — porque não queriam mesmo dizer nada contra o governo. Para os que eram de esquerda e contra a ditadura (que eram a grande maioria dos filósofos), o único jeito de poder falar sobre a realidade do pais era falar de qualquer coisa desde que não fosse sobre politica, e quando um filósofo de esquerda fazia isso, quando começava a discutir problemas da realidade brasileira, mas não tocava muito nos assuntos políticos, era tratado como se fosse uma espécie de traidor. Parece que os filósofos brasileiros na época achavam que era melhor isolar a filosofia e não falar da realidade do pais, do que falar mas não dizer nada sobre a ditadura.

Quem falava sobre a realidade sem falar de politica, então, se não era um “traidor”, acabava sendo tratado como uma espécie de charlatão, já que os filósofos do Brasil estavam acreditando cada vez mais que o modo correto de se fazer filosofia era mesmo ficar discutindo assuntos técnicos que eram do interesse só deles próprios — e que não incomodavam a ditadura. Quem era de

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esquerda e contra a ditadura, mas fugia dessa regra, não tinha muita chance de ter a sua teoria valorizada no país: ou era um charlatão porque ficava tentando filosofar sobre a realidade e isso não era jeito de se fazer filosofia; ou era considerado “de direita” e tratado como se fosse a favor da ditadura; ou então era considerado um covarde e um traidor, porque falava sobre a realidade brasileira mas não falava de política. Ou, no melhor dos casos, era um candidato a herói morto. É preciso entender que uma ditadura é sempre uma situação difícil para filósofos.

De qualquer modo, uma teoria filosófica não é uma teoria de muito valor se ela só fala sobre problemas que são do interesse particular de um grupo de pessoas. Se ela fala sobre problemas que são interesse de todos os brasileiros, por exemplo, podemos dizer que esses problemas são de interesse público para os brasileiros, mas se não forem também do interesse de quem não é brasileiro, essa teoria filosófica acaba não sendo tão valorizada assim na comunidade dos filósofos.É claro que isso não é desculpa para um filósofo ficar pensando só sobre problemas tão gerais que parecem de interesse universal de todos os seres humanos, mas que na verdade não têm nada a ver com a realidade especifica do pais onde vivem. É importante que os problemas gerais sirvam também para se pensar a respeito de questões particulares. Talvez nem todos os filósofos concordem com isto. Há filósofos que acham que a filosofia não tem que tratar de nenhum assunto que não seja de interesse universal, e que não dão a mínima se pensar nesses assuntos ajuda ou não a pensar mais profundamente nos assuntos mais particulares. Mas quando a filosofia de um pais faz isso, quando ela se dedica demais só aos assuntos gerais sem ajudar as pessoas a usarem isso para pensarem melhor em seus problemas particulares, ela também acaba contribuindo com o isolamento que o capitalismo promove, acaba se isolando da vida das pessoas, como aquelas obras de arte que são de uma beleza grandiosa, mas que ficam trancadas em museus, são vistas por pouca gente, e não afetam a vida de quase ninguém. No Brasil o que aconteceu não foi isso. O isolamento da filosofia,aqui, foi de outro tipo: foi um isolamento voltado para assuntos técnicos da própria filosofia.

Felizmente, a situação está mudando, grande parte dos filósofos e professores de filosofia do país já esta atenta ao problema e procurando caminhos para uma filosofia mais conectada com a realidade mais imediata ao nosso redor — o que não quer dizer de maneira nenhuma deixar de lado o estudo cuidadoso e aprofundado dos textos clássicos de outras épocas, pois isto seria como jogar o bebê no ralo junto com a água do banho, ou cortar os dedos só para poder tirar os anéis.

A filosofia, no Brasil, tem andado muito “presa” ao exame interno da coerência das teorias mais importantes que foram desenvolvidas desde a antiguidade, Este exame “interno” das teorias, como como já vimos, é algo realmente fundamental e que ajuda a aumentar a qualidade de todo o conjunto da produção filosófica, de tudo aquilo que os filósofos dizem, escrevem e publicam. Mas por outro lado, o exame critico “externo” das teorias, isto é, a tomada de posição dos filósofos, pensando com suas próprias cabeças a respeito daquilo que está sendo dito nas teorias com as quais não concordam, também é uma coisa extremamente importante, e que no Brasil, até agora, estava sendo esquecida. É importante saber que a filosofia costuma ser chamada também de “livre-pensamento” e os filósofos de “livres-pensadores”. Isso porque uma das propostas fundamentais da atividade filosófica é que as pessoas que a praticam consigam pensar livremente, com as suas próprias cabeças e com muito senso critico, a respeito das coisas — e não apenas seguir o que está sendo dito por tal teoria ou por tal outra.

Lembrar que a filosofia não é apenas a leitura cuidadosa de textos importantes detectando sua coerência e seus pontos de incoerência, mas que ela também é uma forma de livre pensamento — uma maneira independente e ao mesmo tempo responsável de se raciocinar a respeito das coisas — é algo que dá mais espaço para uma filosofia realmente interessada em discutir os problemas da realidade ao nosso redor. A filosofia no Brasil parece estar recomeçando a caminhar nessa direção, depois do enorme estrago promovido pela ditadura militar, mas está recomeçando, por enquanto, ainda bem devagar, engatinhando.

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12. O QUE SÃO PROBLEMAS FILOSÓFICOS?

Realmente, os problemas filosóficos parece que não encontram nunca — ou pelo menos nunca encontraram até hoje e não parece que vão encontrar — alguma solução definitiva. Mas se olhamos para a filosofia procurando nela respostas mais definitivas e que parecem inquestionáveis, como aquelas da ciência, acabamos não entendendo direito o que é filosofia, porque para a filosofia, responder aos problemas realmente não e o mais importante. Muito mais importante, por exemplo, é conseguir fazer as pessoas exercitarem o seu pensamento, fazer as pessoas pensarem realmente, e a fundo, a respeito desses problemas.

É importante, então, entender que problemas são esses com os quais a filosofia lida, afinal. A filosofia realmente exercita a nossa mente, mas não apenas porque é mais exigente do que o normal quando examina o modo como ligamos os pensamentos uns aos outros formando teorias, por exemplo para responder a um problema. Ela exercita a nossa mente inclusive porque costuma trabalhar com problemas muito maiores e mais complicados do que aqueles aos quais estamos acostumados.

Os problemas filosóficos são problemas de interesse público o mais amplo possível, no limite poderiam chegar a ser problemas de interesse universal. Por exemplo, um problema que é do interesse de todos os brasileiros, é um problema de interesse público para quem é do Brasil, mas para quem não é brasileiro, ele passa a ser um problema de interesse privado só dos brasileiros. E se for um problema do interesse de todos os cidadãos do mundo? Aí podemos dizer que já é um problema bem mais filosófico, mas algum filósofo ainda poderia reclamar do seguinte: e os cidadãos do passado, que já morreram há séculos? E os do futuro, que ainda não nasceram? Se o problema só é do interesse de quem está vivo hoje, é de interesse público para essas pessoas, mas visto de outro ângulo, é do interesse privado só dos que estão vivos hoje. É claro que é mais importante pensar no que interessa às gerações do futuro do que no que interessava às gerações do passado, mas uma coisa pode ajudar a entender melhor a outra, e além disto, o que está em jogo aqui não é exatamente se o problema é do interesse deste grupo ou daquele, e sim se o problema pode ser considerado filosófico ou não. É muito difícil traçar uma linha precisa e exata do ponto em que um problema passa a ser legitimamente filosófico, mas já se pode perceber que isto dependemuito da amplidão do problema.

Uma maneira mais fácil de resolver isto é dizer que os problemas filosóficos são “universais”, mas isto envolve uma complicadíssima discussão filosófica, porque é possível até questionar se existem de fato problemas que sejam absolutamente “universais”. Além disto, o que foi dito nesta apostila até aqui foi que deveriam ser problemas de interesse universal, e não necessariamente problemas universais. Quando se fala em problemas que são universais — e não só em problemas que interessam universalmente a todos, o que está em jogo não é só se o problema diz respeito ao interesse de muita gente, mas quantos problemas particulares estão implicados ou embutidos nele, o que é muito difícil de se avaliar. Um problema como “de que modo nasceu e foi se desenvolvendo este pé de feijão?”, é um problema particular, mas perguntar “de que modo nascem e se desenvolvem os pés de feijão em geral? ou mesmo “de que modo nascem e se desenvolvem as plantas” ainda não são problemas “universais” no sentido mais filosófico do termo,

Para aceitar um problema como realmente “universal”, um filósofo provavelmente exigiria algo como “de que modo nascem e se desenvolvem as coisas, sejam elas quais forem?”. Dizer que os problemas da filosofia são “universais”, é mergulhar de cabeça em um debate filosófico muito delicado. Para evitar dificuldades é que estamos falando aqui apenas de problemas que sejam do

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interesse universal de todos, e mesmo assim, evitando a noção de que sejam necessariamente “universais”: digamos ao invés disto que são problemas muito amplos e também de interessepúblico no sentido mais amplo possível.

O importante é entender que cada um desses problemas gerais tratados pela filosofia está ligado a uma enorme quantidade dos problemas particulares com os quais lidamos no nosso dia-a-dia, de modo que pensar nesses problemas gerais nos leva pensar também nesses problemas particulares, mas a partir de um outro ângulo: passamos a enxergar coisas muito maiores que estão por detrás desses problemas particulares, e que ligam esses problemas uns com os outros de maneiras que às vezem não imaginávamos e que podem nos surpreender.

13. E POR QUE OS FILÓSOFOS SÃO CHAMADOS DE “LIVRES·PENSADORES” SE O PENSAMENTO DELES PARECE PRESO A PROELEMAS QUE PODEM NÃO SER SOLUCIONADOS NUNCA?

Para entender melhor como um filósofo lida com seus problemas filosóficos, pode ser útil começar comparando a atividade do filósofo com a de um administrador. Os problemas que um administrador precisa resolver são problemas que estão fazendo sua organização funcionar mal, ou problemas que precisam ser resolvidos para que a organização se mantenha e continue funcionando bem, ou ainda problemas que precisam ser resolvidos para que ele possa realizar um novo empreendimento ou projeto na organização, que de algum modo pode torná—la melhor — e este último tipo de problemas é certamente o mais interessante, ou pelo menos é o que provavelmente mais chamaria a atenção de um filósofo se ele observasse o trabalho de um administrador. É que um filósofo também tem que resolver todos esses tipos de problemas, mas principalmente os do último tipo. Só que a “organização” que ele administra e tenta tornar sempre melhor não e feita de pessoas e recursos materiais e financeiros: é feita de pensamentos. Seus pensamentos precisam estar muito bem organizados para chegarem a formar uma teoria filosófica, e ele vai procurar resolver todos os problemas necessários para corrigir o que esta funcionando mal em sua teoria, para manter a teoria funcionando bem ou então — e principalmente, porque é o mais importante — para melhorar sua teoria ou para realizar um novo projeto ou empreendimento filosófico.

Mas existe uma diferença fundamental: como o filósofo trabalha com a organização de pensamentos, especialmente aqueles que formam a sua própria teoria filosófica e as de outros filósofos, e não com a organização de situações concretas e praticas que envolvem recursos humanos, financeiros e materiais, todos os problemas filosóficos são criados pelo próprio filósofo ou pelos colegas filósofos que debatem com ele — ou pelo menos recriados a partir de problemas extra filosóficos que já existem por aí, na realidade ao nosso redor — e portanto não são problemas colocados por uma realidade prática que exige a solução desses problemas. Não são exatamente os mesmos problemas com os quais lidamos no dia-a-dia: são outros tipos de problemas ou então uma outra versão desses mesmos problemas, uma versãofilosófica deles.

No final das contas, pode-se dizer que os filósofos criam seus próprios problemas livremente a partir do que observam na realidade e do que consideram importante de se pensar a respeito. Eles escolhem livremente os problemas que acham os mais interessantes para serem resolvidos. Para usarmos uma expressão mais comum entre os filósofos, podemos dizer que eles “constroem” os seus próprios problemas. Se quisermos continuar com a comparação entre filósofos e administradores, daqueles diferentes tipos de problemas que o administrador costuma resolver, só um se aproxima então dessa liberdade do filósofo: o tipo de problemas que ele tem de enfrentar

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quando decide melhorar sua teoria ou então realizar um novo projeto ou empreendimento que ele próprio idealizou, porque ai', de certo modo, o administrador também está criando seus próprios problemas, está escolhendo resolver certos problemas porque considera a idéia interessante, acha que é um bom caminho pelo qual pode melhorar sua teoria, e esses problemas estão envolvidos nessa idéia interessante ou nesse caminho de melhoramentos que pretende promover na sua teoria. No caso do novo projeto filosófico, dos novos pensamentos teóricos a serem construídos e acrescentados à teoria, o livre-pensamento do filósofo fica mais claro ainda do que no caso em que procura só deixar sua teoria melhor, porque fica claro o trabalho de criação ou construção de algo novo, trabalho no qual ele precisa fazer muitas escolhas, tomar muitas decisões teóricas. Mas mesmo na situação em que o administrador está às voltas com um novo projeto que ele mesmo idealizou, e parece estar pensando quase com tanta liberdade quanto o filósofo, existe uma outra diferença fundamental entre eles: os problemas criados ou escolhidos pelo administrador, porque estão envolvidos em uma idéia que ele quer realizar, envolvem a mesma realidade concreta e pratica de seus outros problemas. Envolvem o modo como ele relaciona e organiza recursos humanos, materiais e financeiros e o modo como esses recursos reagem a ação dele — e o controle sobre essas reações às vezes pode ser muito difícil. Além disso, a idéia do administrador será realizada em um certo contexto politico, econômico, social, cultural etc. Existem condições de mercado a serem examinadas, por exemplo. E o administrador não tem muito domínio sobre esse contexto, sua idéia estará limitada ao que é possível ser realizado nesse contexto.

O filósofo parece ter um domínio muito maior sobre sua “organização” — afinal, ela é feita de seus próprios pensamentos, e não de recursos humanos, materiais e financeiros que podem ser muito diferentes do que ele gostaria que fossem. Sabemos que nossos pensamentos também não são completamente dominados por nós. Muitas vezes pensamos coisas que não gostaríamos de pensar, mas não podemos evitar — e o filósofo não está livre disso, ele também não domina absolutamente todos os seus pensamentos. Mas o administrador, além desses pensamentos que nem sempre dominamos, tem que lidar também com recursos reais que não vão simplesmente se ajustar ao seu pensamento apenas pela força do pensamento.

Com tudo isso pode parecer que os problemas do administrador são mais difíceis, afinal, envolvem coisas sobre as quais se tem menos controle, e que geram dificuldades das quais não podemos escapar, e que somos obrigados a enfrentar. Ficamos com a impressão de que o filósofo não precisa enfrentar tantas dificuldades, ele não tem a necessidade de enfrentar essas dificuldades para organizar seus pensan1entos. O problema é que existe um “furo” grave nessa linha de raciocínio, quando raciocinamos deste modo, o “fio” dos nossos pensamentos está um pouco frouxo e fácil de partir, porque é fácil fazer a seguinte crítica quem disse que o filósofo quer “escapar dos problemas”? Quem disse que o filósofo não quer “enfrentar tantas dificuldades”?

O furo na linha de raciocínio pela qual achamos que as dificuldades que um administrador enfrenta são maiores do que aquelas que o filósofo enfrenta, porque são — ou parecem ser — mais “reais”, é o seguinte: estamos acostumados a ligar a idéia de problema a idéia de algo “ruim” que precisa ser evitado, conseqüentemente, tratamos um problema como algo que só deve ser enfrentado e resolvido quando é necessário, ou seja, quando não podemos escapar disso, porque sem resolver esse problema não atingiremos nosso objetivo.

Acontece que para o filósofo, um “problema” não é necessariamente uma coisa “ruim” — muito pelo contrário: na maioria dos casos, não há nada que um filósofo valorize mais do que um bom problema.

Vale a pena fazermos, aqui, uma comparação entre as maneiras como o administrador e o filósofo lidam com seus problemas quando estão trabalhando. Em primeiro lugar, o administrador tem um objetivo a realizar, e para isso precisa primeiro resolver certos problemas (e também pode imaginar desde já alguns problemas que surgirão assim que o objetivo estiver realizado), mas o que

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interessa para ele é realizar seus objetivos, os problemas aparecem para ele como barreiras no caminho dessa realização. Ele precisa contornar, superar ou derrubar essas barreiras.

O filósofo não precisa resolver seus problemas para poder depois realizar seu objetivo, porque o objetivo do filósofo é, justamente, resolver os seus problemas filosóficos, e nada mais do que isso — e veremos que isso acaba se tornando uma tarefa enorme. Além disto, como já vimos, pode ser que o filósofo nem mesmo se interesse em resolver esses problemas, e que o seu objetivo seja apenas construir o problema de maneira a mostrar o que ele tem de interessante, importante e desafiador, por exemplo apresentando-o como um problema atraente, provocativo ou estimulante para o pensamento. E preciso entender que, para o filósofo, os problemas não são barreiras no caminho para a realização do objetivo, eles são o próprio caminho — e mesmo quando o filósofo quer solucioná-los, os próprios problen1as podem ser considerados como parte do objetivo, porque se o objetivo é solucionar os problemas, isso significa que só existe o objetivo porque existem os problemas. Alguns filósofos poderiam dizer que o problema filosófico e o objetivo do filósofo são as duas faces de uma mesma moeda, porque o único objetivo do filosofo, quando procura por respostas é solucionar o problema que ele mesmo construiu, ou transformá-lo de problema comum em problema filosófico.

Podemos perceber, então, que da mesma maneira como um administrador determina seus objetivos para poder administrar, o filósofo determina seus próprios problemas filosóficos para poder trabalhar, e o trabalho do filósofo pode ser apenas esse, mas se for mais do que isto e ele estiver em busca de soluções, seu trabalho será justamente resolver esses problemas que ele próprio construiu. Como se avalia o trabalho de um administrador? Entre outras coisas, o administrador precisa realizar bem os seus objetivos na organização. Mas isso só torna o seu trabalho realmente valioso se ele tiver bons objetivos para realizar um bom trabalho, ou seu trabalho não terá muito valor: de que adianta ele realizar com perfeição uma coisa que não tem a menor importância? E de que maneira um administrador avalia o quanto um objetivo é realmente bom? — Imaginem o Gerente Estadual de uma grande indústria automobilística apresentando orgulhosamente ao Diretor Nacional da empresa o seu projeto de como organizar as meias coloridas e brancas em uma gaveta, na sala onde os funcionários vestem seus uniformes! Qual a importância desse projeto para a organização? Estamos falando de uma indústria automobilística, não de uma loja de meias! Da mesma maneira, o filósofo precisa ter bons problemas para solucionar.

l4. MAS COMO O FILÓSOFO AVALIA O QUE É UM BOM PROBLEMA FILOSÓFICO?

Grosso modo, podemos dizer que quanto mais difícil o problema filosófico, mais valor terá o trabalho do filósofo para elaborá—lo de maneira simples e clara, ou para solucionar esse problema se for o caso — desde que seja também um problema importante para a humanidade ou para a filosofia em geral. Podemos dizer que duas coisas, então, servem como critério para avaliarmos o quanto um problema filosófico é realmente bom: o tamanho do desafio que o problema oferece — ou seja, o quanto é um problema difícil de ser resolvido — e a importância desse problema para a humanidade ou para os outros filósofos.

Do mesmo modo como um administrador, o filósofo não pode trabalhar com um problema que só interessa ou só tem valor para ele e para mais ninguém. Mas enquanto o administrador precisa trabalhar com objetivos que interessam apenas para a sua organização — formada por um conjunto especifico de recursos humanos, materiais e financeiros — o filósofo precisa trabalhar

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com objetivos que interessem não só à sua própria “organização" — feita de pensamentos — mas a toda a humanidade; ou pelo menos precisa trabalhar com problemas que interessem também às outras organizações de pensamentos, organizações concorrentes, que são as outras teorias filosóficas — ou seja, ao mesmo tempo que sua teoria “concorre” com outras teorias filosóficas, o filósofo precisa estabelecer objetivos que interessem a seus concorrentes e não só a ele próprio. Em outras palavras, sempre que encontra um problema filosófico interessante, o filósofo não pode guardar isso para si mesmo, ou não estará fazendo filosofia. Só estará realmente praticando filosofia quando colocar esse problema publicamente para todos os outros filósofos que se interessem poderem pensar a respeito também. E quando os filósofos avaliam que o problema é realmente bom, então, por uma questão moral, de lealdade, eles procuram sempre reconhecer publicamentequem foi que lançou pela primeira vez o grande problema.

Assim, o trabalho dos filósofos é valorizado não apenas quando resolve grandes problemas, mas também quando encontra grandes problemas para serem resolvidos, mesmo que esses filósofos cheguem a uma solução extremamente simples para aquele problema tão difícil — e muitos filósofos gostam de soluções simples. O que importa, nessa avaliação que os filósofos fazem dos problemas e soluções, é que seja um problema difícil e importante para a humanidade ou pelo menos para os filósofos em geral, e que a solução, se for o caso de encontrar uma, seja boa, lembrando que às vezes as soluções simples são as mais valorizadas, mas nem sempre. Geralmente não importa tanto se é uma solução complicada ou simples, desde que resolva bem o problema.

Portanto, como se vê, a liberdade do filósofo para decidir quais são os problemas que irá tentar solucionar não significa que ele irá procurar os problemas mais fáceis: pelo contrário, o filósofo provavelmente vai procurar e escolher como seu problema filosófico justamente o problema mais difícil e mais importante que conseguir encontrar.

15. O RISCO QUE A FILOSOFIA CORRE DE PERDER DE VISTA A REALIDADE

É possível levantar então pelo menos três critérios gerais que os filósofos usam para decidirem se uma teoria filosófica é válida e qual o valor dela: l") uma teoria é válida e tem valor na medida em que seja coerente e siga os seus próprios critérios de validação mais particulares sem se contradizer; 2°) uma teoria é válida e tem valor na medida em que traga alguma discussão importante, na medida em que mostre que é importante pensar sobre um assunto que não tem sido pensado o suficiente, e provoque ou estimule as pessoas a pensarem nesse assunto; e 3") uma teoria é válida e tem valor na medida em que possa ser defendida com bons argumentos, e resista a criticas dos outros filósofos, e portanto na medida em que vá sobrevivendo e se mantendo firme nos debates com outras teorias que não concordam com ela. Além disto, uma teoria filosófica também é valida e tem valor se ela oferece algo de útil para o trabalho dos próprios filósofos.

Observando o que foi dito até aqui, é possível apontar dois riscos que a filosofia corre de acabar se isolando da vida das pessoas: o risco de se isolar em assuntos técnicos de filosofia, que só são do interesse dos próprios filósofos; e o risco de se isolar em assuntos gerais e abstratos sem chegar a ligar ou mostrar o caminho para que as pessoas liguem esses assuntos aos assuntos mais particulares que dizem respeito à vida delas.

Nem sempre é fácil para um filósofo escapar desses dois riscos, especialmente quando esta filosofando em um país no qual as pessoas estão pouco acostumadas à filosofia e seus próprios colegas filósofos estão acostumados a fazerem uma filosofia isolada da vida.

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16. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — A) PROGRESSO X ATUALIZAÇÕES

Uma primeira diferença entre filosofia e ciência que é possível observar é que em ciência há coisas que não são discutidas, e em filosofia, tudo pode ser questionado, tudo pode ser discutido. É claro que o filósofo geralmente não vai discutir o que já é óbvio e evidente ou sair defendendo á toa uma idéia completamente absurda. Mas mesmo isso é possível que precise ser discutido: se um filósofo provar com bons argumentos que é preciso discutir se existe mesmo um chão debaixo dos nossos pés, a filosofia vai começar a discutir isso, e vai analisar até mesmo a idéia absurda de que talvez não exista um chão debaixo dos nossos pés.

A ciência deixa de discutir certas coisas por razões de ordem prática, para poder avançar nos seus conhecimentos. Uma ciência não discute, por exemplo, qual e a sua finalidade ou quais são os seus objetos de estudo, e geralmente não discute nem quais são os seus métodos: tudo isso já está decidido, ela só procura seguir a sua finalidade e estudar os seus objetos de estudo pondo em prática os seus métodos. Quem vai realmente discutir tudo isso é a filosofia — na verdade uma área especifica da filosofia chamada “filosofia da ciência”. Se a ciência ficasse discutindo a todo momento essas coisas, não conseguiria ir para a frente. E essa é uma outra diferença entre ciência e filosofia: a filosofia pode discutir até mesmo O que é a filosofia — porque ela não avança do mesmo modo que a ciência. Em ciência existe o que chamamos de “progresso”. Em filosofia não faz absolutamente o menor sentido falar em “progresso” como esse que ocorre na ciência. A filosofia não “progride” ou “evolui" como a ciência, ela só se atualiza.

Em ciência, as teorias antigas muitas vezes são consideradas “ultrapassadas”, ou então de algum modo as teorias mais novas são consideradas “melhores” que as mais antigas. Em filosofia isto não existe. Em ciência a teoria mais nova é considerada melhor geral mente por uma dessas duas razões: ou porque ela incorpora a teoria mais antiga como uma parte sua e vai mais longe do que ela, ou porque mostra que a teoria mais antiga estava errada e precisa ser abandonada. Além disso, a ciência também progride quando os cientistas se aprofundam mais em algum detalhe que, até agora, a teoria só havia tratado de maneira superficial ou incompleta, portanto quando uma teoria que já existe é completada, aumentada ouaperfeiçoada.

A diferença entre esse progresso e o que acontece na filosofia fica mais clara principalmente quando pensamos nas teorias que vão sendo abandonadas na ciência, porque ficaram ultrapassadas. A ciência não usa mais as teorias antigas que foram “ultrapassadas”, não aceita mais as explicações que essas teorias oferecem. Em filosofia, pelo contrário, absolutamente nenhuma teoria que algum dia foi considerada válida pode ser considerada “ultrapassada” de maneira definitiva, nenhuma teoria pode ser abandonada de uma vez para sempre como se não valesse mais e nunca mais fosse voltar a valer. Mesmo uma teoria de sete séculos antes de Cristo, que foi quando a filosofia nasceu, pode continuar perfeitamente valida e ser retomada pelos filósofos de outras épocas. No fundo, quando estudamos uma teoria filosófica de sete séculos antes de Cristo estamos estudando uma teoria absolutamente atual, e que pode ser usada para pensar problemas de hoje.

Por exemplo, o filósofo Vilém Flusser, que viveu na nossa época e faleceu num acidente de carro, usou, além de várias outras teorias, um pouco da teoria de Platão para pensar a respeito das comunicações através da Internet do modo como elas iriam afetar asnossas vidas no mundo todo (quando ele ainda era vivo, essas comunicações eram chamadas

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de “telemática”, e eram apenas um experimento realizado por alguns laboratórios de informática, Flusser previu que isso se espalharia e seria usado por todo mundo). Flusser tinha sua própria teoria, mas poderia ter usado a teoria de Platão quase inteira, se quisesse, e não só uma parte dela, porque a teoria de Platão é muito boa para se pensar em questões da nossa era de “realidades virtuais”. A noção de “realidade virtual”, por incrível que pareça, cabe muito bem na filosofia de Platão (de cinco séculos antes de Cristo).

17. AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE CIÊNCIA E FILOSOFIA — B) SOLUÇÕES E TEORIAS DESPERSONALIZADAS E ESPECÍFICAS X PROBLEMAS E ABORDAGENS QUE FORMAM TEORIAS GERAIS E PERSONALIZADAS

Essa possibilidade de atualização das teorias filosóficas acontece principalmente porque a ciência está preocupada, acima de tudo, com solucionar problemas, então os cientistas procuram a teoria que solucione melhor mais problemas; mas em filosofia, quando estudamos uma teoria do passado, percebemos que ela não precisa usada só para pensar problemas do passado: ela pode ser usada também para pensarmos em outros problemas que não são aqueles para os quais ela foi pensada originalmente.

Com pouquíssimas alterações, uma teoria do passado pode ser adaptada para ser usada no estudo de um problema dos dias de hoje, sem que seja preciso mexer em nada do que é o mais importante nessa teoria. o que pode ficar ultrapassado não é realmente nada de muito importante naquela filosofia, são apenas alguns detalhes. Na verdade o que pode ficar ultrapassado são principalmente algumas das respostas que uma filosofia oferece para certos problemas, mas uma teoria filosófica, ao contrário das teorias científicas, não dá tanta importância assim para as respostas. Muito mais importante do que as repostas são os problemas, e talvez ainda mais a maneira como o filósofo raciocina quando formula esses problemas e quando procura uma resposta para eles. Essa maneira de raciocinar é que continua válida e pode ser adaptada para novos problemas, trazendo novas respostas que sejam atuais.

Quando se estuda uma teoria filosófica, é preciso acima de tudo entender quais é a sua maneira de raciocinar; e para isso, é preciso estudar com muita atenção os problemas originais que essa filosofia estudou quando foi criada, e os caminhos que seguiu a partir desses problemas até chegar em suas respostas. Cada filosofia tem a sua própria maneira de raciocinar; que é diferente daquela que é praticada pelas outras filosofias. Essa maneira de raciocinar que é típica de cada filosofia é o que chamamos de abordagem filosófica. Cada filosofia tem a sua própria abordagem filosófica, o que quer dizer que cada filosofia acessa seus assuntos, cada filosofia chega até eles de uma maneira diferente e que é só sua. Pode—se dizer também que a abordagem de uma filosofia, esse modo ou caminho pelo qual essa filosofia acessa os seus assuntos, ou em outras palavras esse modo de raciocinar que é próprio de uma filosofia e que a diferencia das outras, é o “ângulo” ou “ponto de vista” pelo qual cada teoria “encara” ou examina os seus assuntos.

Para se ter uma idéia de até que ponto em filosofia as respostas não são tão importantes quanto os problemas e a abordagem (ou modo de raciocinar), basta dizer que há teorias filosóficas que não se preocupam com “respostas” para o que quer que seja, e existe até uma filosofia bastante fone, com uma tradição que vem desde a antiguidade até os dias de hoje, que não quer encontrar resposta nenhuma, e procura inclusive evitar que outras filosofias encontrem respostas: essa filosofia se chama “ceticismo”, e funciona como se fosse uma espécie de “terapia” que fica tentando

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curar os outros filósofos da “mania” de buscarem uma verdade absoluta e definitiva.Mas até a maneira como a filosofia trata as respostas que da para os problemas já é um

pouco diferente da maneira como a ciência faz isso. O que faz essa diferença acontecer é principalmente o fato de que as teorias científicas são despersonalizadas, elas não têm cada uma a sua própria abordagem, não seguem cada uma um estilo de raciocínio que é só seu: todos os cientistas da Física seguem uma mesma e única abordagem, que é a abordagem da Física, todos os cientistas químicos seguem a abordagem da Química, e assim por diante. A maneira própria de abordar os assuntos que é utilizada pelo criador da teoria não interessa, e na verdade ele geralmente não segue nenhuma abordagem particular que seja só dele e dos “seguidores” da teoria dele: o que ele segue é só a mesma abordagem geral que todos os cientistas da sua área também seguem.

Em filosofia, pelo contrário, cada teoria (e cada filósofo que cria uma teoria) tem a suaprópria abordagem, que é usada também pelos seguidores dessa teoria e as abordagens são muito diferentes umas das outras, entrando em conflito o tempo todo — o que faz parte dos debates filosóficos que vão acontecendo ao longo da história. De maneira bem simplificada, pode-se dizer que o cientista e o filósofo raciocinam mais ou menos assim:

O cientista parte de algum problema, algo que ele quer entender ou solucionar e que pode ser colocado na forma de uma pergunta, e por uma série de procedimentos passa daí para a resposta ou solução. E claro que esse problema só aparece para o cientista do modo como aparece, justamente porque o cientista olha para o mundo como um cientista, isto é, segundo a abordagem que é típica da ciência na qual ele atua. Mas para atuar como cientista, ele não precisa questionar ou discutir essa abordagem geral que ele e todos os seus colegas da mesma ciência usam: só precisa conhecer essa abordagem suficientemente bem para poder verificar se ela está sendo usada

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corretamente ou não. A abordagem geral que e usada em uma ciência não tem o estilo próprio de ninguém, as teorias que são produzidas a partir dessa abordagem geral também não têm: elas são — ou pelo menos tentam ser na medida do possível — teorias despersonalizadas, sem o estilo próprio de nenhum cientista em particular.

Cada filósofo que cria uma teoria para mostrar ou solucionar um problema, pelo contrário, parte de uma abordagem que é só dele, e por causa dessa abordagem, vai construir problemas que também seguem o mesmo estilo da sua filosofia; e as respostas que vai encontrar para esses problemas também serão personalizadas, seguirão o mesmo estilo de pensamento, a mesma abordagem que ele desenvolveu. Um filósofo pode ser seguidor de outro, pode apenas fazer diferentes aplicações da abordagem teórica que um outro desenvolveu, ou então apenas promover algumas pequenas correções nessa abordagem; mas e preciso lembrar que a filosofia procura sempre estimular as pessoas a pensarem com as suas próprias cabeças, e que isto, então, é sempre muito valorizado na comunidade filosófica — lembrando disto, fica fácil entender por que quase todos os pensadores que são considerados realmente grandes filósofos (e são muitos, há uma quantidade enorme deles) são aqueles que, a partir de tudo o que leram e estudaram das abordagens de outros filósofos, acabaram desenvolvendo alguma nova abordagem, algum novo estilo de pensamento.

Quando examinamos um assunto a partir da abordagem de um filósofo, podem surgir problemas que não pareciam existir antes, ou então certos problemas que já percebíamos que estavam envolvidos nesse assunto podem parecer mais difíceis, ou mais fáceis, ou até desaparecer. Quando trocamos essa a abordagem pela de outro filósofo, tudo pode mudar: um problema que era difícil a partir da abordagem anterior pode passar a ser mais fácil ou vice- versa. Quando já temos um problema e o encaramos a partir da abordagem de um filósofo ou a partir da abordagem de outro, isso também acontece. Uma certa abordagem filosófica, um certo modo de encarar um problema que já percebemos, pode fazer as respostas que já estávamos imaginando parecerem inúteis, ou pode ajudar a imaginarmos novas respostas para o problema. seja quando queremos resolver, seja quando queremos construir um problema, há sempre abordagens filosóficas que são muito úteis para chegarmos a certos tipos de problemas e respostas, mas que não ajudam muito para chegarmos problemas ou respostas de outros tipos.

O estudo de filosofia ensina muito bem como lidar com diferentes abordagens e verificar qual é mais útil em cada caso para aquilo que pretendemos. Mas como em filosofia é preciso ser coerente, não se troca de abordagem a qualquer hora sem mais nem menos, e todo esse aprendizado é utilizado principalmente para avaliar quais são as teorias que estão lidando melhor com aquele assunto abordado, e o que precisamos fazer para corrigir ou melhorar a filosofia que preferimos, se ela não se mostra tão boa para um determinado tipo de assunto.

Uma boa comparação, que pode ajudar a entender isto, é imaginar um juiz em um processo legal: uma mesma situação vai ser apresentada a ele a partir de duas abordagens diferentes — a do acusador e a do defensor do réu que está sendo julgado — e ele vai ter que avaliar as duas e decidir qual é a melhor, ou a mais correta, neste caso. Cada uma dessas duas abordagens pode encarar a mesma situação de maneiras completamente diferentes, dando a sua própria versão da história. E a história pode mudar completamente de cara de uma abordagem para a outra. Em filosofia, as coisas acontecem mais ou menos desse mesmo modo. Só que já não são só duas abordagens opostas em cada caso, mas uma multidão de abordagens muito diferentes que não concordam umas com as outras.

As respostas que as diferentes filosofias oferecem para cada problema também acabam tendo o estilo personalizado da filosofia que as apresenta, coisa que não acontece na ciência. Mas além disto, existe uma outra diferença muito importante entre as respostas que a filosofia oferece e as que a ciência oferece: o principal, em uma resposta teórica que é formulada para um problema —

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e isto tanto na ciência quanto na filosofia — é sempre uma tese, que é alguma coisa que o teórico afirma apoiando essa afirmação em fundamentos ou critérios de validação, conforme já vimos, e em filosofia, esses apoios costumam ser chamados de “argumentos”, como também já vimos.

Mas existem basicamente dois tipos de teses (ou afirmações) que um teórico pode fazer, e a ciência quase sempre só lida com o primeiro desses dois tipos de teses (ou afirmações), enquanto a filosofia lida muito com os dois tipos. O primeiro tipo são afirmações sobre os fatos, isto é, afirmações sobre como (ou o que) as coisas são (ou não são). O segundo tipo são afirmações que avaliam os fatos, que dizem se eles são como deveriam ser ou não: são afirmações sobre como é bom que as coisas sejam (ou não sejam), ou como seria bom que as coisas fossem (ou não fossem).

As ciências em geral lidam bem pouco com esse segundo tipo de afirmações — no máximo lidam com avaliações de eficácia, quando são ciências aplicada, porque neste caso avaliam se alguma coisa funciona com eficácia ou não.

Mas dificilmente chegam por exemplo a avaliar se alguma coisa é correta ou incorreta do ponto de vista moral, ou a avaliar em que medida alguma coisa é bela ou feia. A filosofia, pelo contrário, sempre coloca em suas teorias (e lança para o debate na comunidade filosófica) muitas afirmações (teses) dos dois tipos.

O último ponto a observar, para encerrarmos finalmente a questão das diferenças entre filosofia e ciência, é que a filosofia não tem especialidades no mesmo sentido que a ciência. o cientista, para poder estudar a fundo um assunto, se especializa nesse assunto, e em geral nem precisa mais se aprofundar muito em assuntos que estão fora da sua especialidade. Isto está ligado também ao fato de que uma ciência costuma ser definida principalmente pelo seu objeto de estudo ou campo de pesquisas, justamente porque ela se especializa em estudar esse objeto ou em pesquisar esse campo, e evita avançar para outros objetos de estudo ou para outros campos que estão fora da sua especialidade. Então, se queremos saber o que é a Química, ou o que é a Biologia, por exemplo, podemos perguntar: o que a Química estuda? O que a Biologia estuda? — e a resposta vai ajudar a entender o que são estas ciências. Mas em filosofia esse tipo de pergunta não funciona.Se perguntarmos o que a filosofia estuda?, a resposta pode acabar sendo: Tudo — a filosofia pode estudar qualquer problema, desde que seja devidamente transformado em um problema de nível filosófico, isto é, desde que busquemos o que existe de mais geral pressuposto (“embutido”) no fundo desse problema, conforme já vimos. Só que esse tipo de resposta não ajuda muito a entender o que e a filosofia. O melhor modo de entender essa atividade não é perguntar o que ela estuda, mas sim de que modo ela estuda as coisas. A filosofia, muito mais do que um conjunto de “respostas” teóricas para problemas, é um tipo de prática intelectual, e o melhor modo de compreendê-la e perguntar de que maneira se pratica isso, ou em outras palavras, tentar entender como e que o filósofo pensa a respeito das coisas, afinal de contas. É isto o que este texto tenta mais ou menos esclarecer — o não é muito fácil.

BIBLIOGRAFIA

OBS.: estes são os principais livros examinados para a formação das idéiascontidas neste texto. Na maioria, são livros de introdução á filosofia para quemnão é da área mesmo, mas alguns, um pouco mais difíceis , forma feitos paraestudantes da própria área de filosofia (os que estão assinalados com “*”) eoutros são realmente textos filosóficos e de leitura bem mais difícil (os queestão assinalados com “**”).

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