"O Evangelho Não Destroi Cuturas"

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“O Evangelho não destrói culturas”. A Missão Transcultural Batista entre os índios Xerente do Tocantins. Patrícia Costa Grigório * Localizados no município de Tocantínia (TO), a 70km da capital, Palmas, entre os rios Tocantins e do Sono, os índios da etnia Xerente são classificados como Jês Centrais, juntamente com os Xavante e Xakriabá. Vivendo nas terras indígenas Xerente e Funil, estão distribuídos em trinta e quatro aldeias e nas cidades de Tocantínia e Miracema do Tocantins (SCHOEDER: 2010). Apesar das relações estabelecidas entre Xerente e grupos católicos ao longo de sua história de contato com a sociedade circundante, do envolvimento dos indígenas com algumas influências da religiosidade católica (SILVA, 2012) e da atuação das equipes do CIMI que realizam diversas atividades socioculturais, poucos índios desta etnia declaram-se católicos. Este fato deve-se, em grande parte, ao papel desempenhado pela Missão Batista entre os Xerente, iniciada de maneira esporádica a partir de 1936 e que se consolidou a partir de 1950 com a chegada da missionária Anna Muller, da Missão Novas Tribos do Brasil. 1 Hoje, a missão está vinculada à Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira, 2 que a partir de 1982 formalizou sua atuação entre os Xerente junto à FUNAI (Fundação Nacional do Índio). * Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. 1 Agência missionária indenominacional, fundada em 1953, tendo como presidente Luiz Monteiro da Cruz. O trabalho da missão começou em 1946 com a chegada ao Brasil dos primeiros missionários da New Tribes Missions dos Estados Unidos a Guarajá-Mirim (RO) com o objetivo de evangelizar os índios Macurapi. Os primeiros índios a receberem missionários foram os Karajá (divisa dos estados do Tocantins e Mato Grosso), Pacaas Novos (Rondônia), Apinajé (Tocantins) e Galibi (Pará). Atualmente, a Missão Novas Tribos do Brasil atua entre 47 etnias das 340 existentes no país. Além do trabalho de evangelização e estabelecimento de igrejas indígenas, a Missão Novas Tribos atua nas áreas de assistência social como saúde, educação e desenvolvimento comunitário. Site Missão Novas Tribos no Brasil – http://novastribosdobrasil.org.br/ . Acesso em 27/08/2013. 2 Agência missionária pertencente à Igreja Batista. Criada em 1907 durante a Primeira Assembleia da Convenção Batista Brasileira ocorrida na cidade de Salvador. O objetivo da agência é o de “unir todas as forças batistas do Brasil, em uma organização nacional maior, para o desenvolvimento e eficácia da pregação do Evangelho de Jesus Cristo”. Sua proposta está baseada no projeto de alcançar grande parte da população brasileira, incluindo os grupos indígenas, plantando novas igrejas, líderes locais e formando novos missionários. A Junta de Missões Nacionais da Igreja Batista atua entre 17 etnias indígenas diferentes e, além da evangelização destes povos, fornece auxílio nas

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Este texto tem como objeto realizar alguns apontamentos acerca do processo de traduçãocultural da mensagem evangélica para cultura indígena apresentado no documento "O Evangelhonão destrói culturas", uma conferência proferida pelo missionário Rinaldo de Mattos na TerceiraIgreja Batista de Brasília. Seu discurso tem por objetivo provar que, apesar das críticasdirecionadas ao trabalho de evangelização dos índios no Brasil sob a justificativa de que “osmissionários destroem a cultura, o Evangelho destrói a cultura, o cristianismo destrói a cultura”(MATTOS, 2008), a disseminação da mensagem evangélica pelas missões transculturais nãointerfere na cultura indígena e nem na identidade étnica dos indivíduos.

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  • O Evangelho no destri culturas. A Misso Transcultural Batista entre os ndios Xerente do Tocantins.

    Patrcia Costa Grigrio*

    Localizados no municpio de Tocantnia (TO), a 70km da capital, Palmas, entre os rios Tocantins e do Sono, os ndios da etnia Xerente so classificados como Js Centrais, juntamente com os Xavante e Xakriab. Vivendo nas terras indgenas Xerente e Funil, esto distribudos em

    trinta e quatro aldeias e nas cidades de Tocantnia e Miracema do Tocantins (SCHOEDER: 2010). Apesar das relaes estabelecidas entre Xerente e grupos catlicos ao longo de sua histria de contato com a sociedade circundante, do envolvimento dos indgenas com algumas influncias da religiosidade catlica (SILVA, 2012) e da atuao das equipes do CIMI que realizam diversas atividades socioculturais, poucos ndios desta etnia declaram-se catlicos.

    Este fato deve-se, em grande parte, ao papel desempenhado pela Misso Batista entre os Xerente, iniciada de maneira espordica a partir de 1936 e que se consolidou a partir de 1950 com a chegada da missionria Anna Muller, da Misso Novas Tribos do Brasil.1 Hoje, a misso est vinculada Junta de Misses Nacionais da Conveno Batista Brasileira, 2 que a partir de 1982 formalizou sua atuao entre os Xerente junto FUNAI (Fundao Nacional do ndio).

    * Doutoranda em Histria no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense.

    1 Agncia missionria indenominacional, fundada em 1953, tendo como presidente Luiz Monteiro da Cruz. O

    trabalho da misso comeou em 1946 com a chegada ao Brasil dos primeiros missionrios da New Tribes Missions dos Estados Unidos a Guaraj-Mirim (RO) com o objetivo de evangelizar os ndios Macurapi. Os primeiros ndios a receberem missionrios foram os Karaj (divisa dos estados do Tocantins e Mato Grosso), Pacaas Novos (Rondnia), Apinaj (Tocantins) e Galibi (Par). Atualmente, a Misso Novas Tribos do Brasil atua entre 47 etnias das 340 existentes no pas. Alm do trabalho de evangelizao e estabelecimento de igrejas indgenas, a Misso Novas Tribos atua nas reas de assistncia social como sade, educao e desenvolvimento comunitrio. Site Misso Novas Tribos no Brasil http://novastribosdobrasil.org.br/. Acesso em 27/08/2013.

    2 Agncia missionria pertencente Igreja Batista. Criada em 1907 durante a Primeira Assembleia da Conveno

    Batista Brasileira ocorrida na cidade de Salvador. O objetivo da agncia o de unir todas as foras batistas do Brasil, em uma organizao nacional maior, para o desenvolvimento e eficcia da pregao do Evangelho de Jesus Cristo. Sua proposta est baseada no projeto de alcanar grande parte da populao brasileira, incluindo os grupos indgenas, plantando novas igrejas, lderes locais e formando novos missionrios. A Junta de Misses Nacionais da Igreja Batista atua entre 17 etnias indgenas diferentes e, alm da evangelizao destes povos, fornece auxlio nas

  • Ao longo dos ltimos cinquenta anos, a Misso Batista entre os Xerente est ligada atuao e presena dos missionrios Guenther Carlos Krieger e Rinaldo de Mattos. Estes pastores substituram os antigos missionrios batistas aps terem concludo cursos de lingustica realizados pelo SIL (Summer Institute of Linguistics, hoje denominado no Brasil, de Sociedade Nacional de Lingustica) e estiveram vinculados Misso Novas Tribos do Brasil, que encerrou suas atividades entre os Xerente, em 1988. Atualmente, existem dois ncleos de crentes batistas entre os Xerente, localizados nas aldeias Porteira e Salto. Cada igreja tem seu prprio dirigente indgena e realiza seus prprios cultos. Outros ncleos de crentes indgenas e suas

    igrejas se desfizeram os das aldeias Brejo Comprido, Cabeceira da gua Fria, Brejinho e Rio do Sono e seus integrantes ficaram dispersos.

    Estes missionrios inauguraram a presena de um novo tipo de atuao religiosa entre os ndios iniciando um processo de alfabetizao e escolarizao com a produo de materiais didticos na lngua materna e preparo dos primeiros professores indgenas. Seguindo as

    orientaes tericas e metodolgicas do SIL, centrada na estreita relao entre educao escolar e evangelizao, os missionrios produziram diversas obras na lngua Akwe (lngua materna dos Xerente) como os trabalhos feitos pelo pastor Guenther em conjunto sua esposa, Wanda Braidott.

    Caracterizada como uma misso transcultural, o maior objetivo dos missionrios batistas que atuam entre os ndios Xerente decifrar a cultura e a lngua indgena possibilitando uma traduo adequada da Bblia e dos conceitos cristos, gerando condies para a converso dos ndios. Ronaldo de Almeida define as misses transculturais como sendo aquelas formuladas em seminrios evanglicos nas quais so ensinadas antropologia e lingustica, alm de conhecimentos tcnicos como de enfermagem e pedagogia, que facilitam a entrada dos missionrios entre os ndios. A transculturao missionria passa pela traduo cultural da

    religio evanglica para a cultura indgena e para essas misses povo, cultura e lngua so entendidos como equivalentes e sua misso difundir o Evangelho visando no a quantidade de

    pessoas, mas a variedade cultural e lingustica (ALMEIDA, 2006:280).

    reas de sade e educao. Site da Junta de Misses Nacionais http://www.missoesnacionais.org.br/index.asp. Acesso em 27/08/2013.

  • Este texto tem como objeto realizar alguns apontamentos acerca do processo de traduo cultural da mensagem evanglica para cultura indgena apresentado no documento "O Evangelho no destri culturas", uma conferncia proferida pelo missionrio Rinaldo de Mattos na Terceira Igreja Batista de Braslia. Seu discurso tem por objetivo provar que, apesar das crticas direcionadas ao trabalho de evangelizao dos ndios no Brasil sob a justificativa de que os missionrios destroem a cultura, o Evangelho destri a cultura, o cristianismo destri a cultura (MATTOS, 2008), a disseminao da mensagem evanglica pelas misses transculturais no interfere na cultura indgena e nem na identidade tnica dos indivduos.

    O Evangelho no destri culturas

    A expanso das aes missionrias evanglicas entre os ndios, que vem conquistando diversos espaos antes ocupados pela Igreja Catlica, tem sido por vezes alvos de crticas de antroplogos e agncias governamentais, que acusam essas misses de interferirem e provocarem modificaes na cultura indgena. A conferncia proferida pelo pastor Rinaldo de

    Mattos, que tem por objetivo provar que quando se propaga o verdadeiro Evangelho entre as populaes indgenas, a cultura autctone no atingida de maneira negativa j que a mensagem evanglica valoriza todas as formas de cultura.3

    Os argumentos utilizados pelo missionrio para rebater as crticas e comprovar sua tese passam pela via tanto religiosa como cientfica. A cincia linguistica uma ferramenta bastante utilizada pelos missionrios transculturais com o objetivo de conferir cientificidade traduo da Bblia para a lngua nativa. Alm disso, as agncias missionrias oferecem cursos de Antropologia aos missionrios, que utilizada como um instrumento de aferio cultural, sendo o principal objetivo estabelecer uma ponte entre esta e a Missiologia, conciliando os temas

    3 Em sua fala, o missionrio identifica a existncia de outros Evangelhos - desfigurados, at esdrxulos - que

    destroem culturas, agridem a integridade da pessoa humana. A distino entre Evangelho verdadeiro e falso est provavelmente relacionada s disputas existentes entre as correntes evanglicas pela converso dos ndios. No caso dos Xerente, aps anos de atuao da misso batista, uma outra igreja protestante de carter pentecostal a Congregao Crist do Brasil - estabeleceu templos nas aldeias e tem conquistado um significativo nmero de fiis entre os ndios desta etnia. Esta situao tem causado desconforto entre os missionrios batistas, que relacionam a ao desta igreja s alteraes ocorridas na organizao faccional dos Xerente.

  • da antropologia como instrumentos que visam expor um Evangelho fundamentado biblicamente, de forma comunicvel, compreensvel e aplicvel em um determinado contexto cultural (LIDRIO: s.d, 13).

    O ensino padro da antropologia oferecido aos missionrios entende a cultura como articulao de cinco dimenses da vida social: o controle da natureza para suprir as necessidades materiais; a cultura material como manifestao artstica e/ou expresso religiosa de um povo; a existncia dessa sociedade produtora em funo da organizao das relaes sociais incorporadas na tradio de um grupo, como as famlias e a poltica; a maneira como o homem se comporta

    frente a um cdigo moral e o entendimento dos mitos como expresso oral de um universo sobrenatural e dos ritos como uma via de acesso cosmoviso indgena (ALMEIDA: 2004, 41-42).

    O primeiro argumento para validar a tese proposta pelo missionrio na sua conferncia tem carter religioso: o Evangelho foi justamente projetado por Deus para ser uma beno a todas as famlias da Terra (MATTOS:2008). Est no livro de Gnesis como tambm nas cartas aos Glatas. uma profecia bblica. E se ele foi projetado para ser uma beno, no tem como o Evangelho destruir culturas, agredir culturas, aviltar culturas. Porque ele foi projetado desde o inicio para ser uma beno a todas as culturas, a todos os povos do mundo, a todas as lnguas, a todas as naes (MATTOS:2008).

    A misso transcultural trabalha com a existncia de um contedo universal que se manifesta de maneira explcita ou implcita em qualquer cultura. Dentro deste contexto, o segundo argumento parte do princpio de que o Evangelho bblico considerado de natureza supracultural e atemporal, est acima de toda e qualquer cultura j que lida com experincias, necessidades, expresses humanas que so universais e que fazem parte da estrutura do ser

    humano em todas as culturas, em todos os lugares (MATTOS:2008). Entre as necessidades humanas, alm das fsicas e biolgicas, est a busca do transcendental, a busca de um sentido

    para a vida que tambm fenmeno universal de cultura (MATTOS:2008). Por este motivo, ele vivel e comunicvel para todos os homens em todas as culturas, em todas as pocas.

    O terceiro argumento que contribui para a comprovao de que a pregao do Evangelho no destri a cultura receptora a sua transculturalidade, a sua versatilidade de passar de uma

  • cultura para outra sem perder o seu significado (MATTOS:2008). Segundo o missionrio, o texto das Escrituras Sagradas possui duas configuraes: a configurao primria que trata dos valores do Reino de Deus, aplicando-se a todos os povos da Terra (MATTOS:2008) e a configurao secundria que est relacionada s realidades humanas, aplicando-se somente aquele povo especfico onde o Evangelho foi anunciado e, no caso, escrito. Na sua configurao primria, ele imutvel, inegocivel, est imbudo de uma teologia que no pode ser substituda. Na sua configurao secundria, por estar relacionado aos costumes de um povo, de um determinado tempo, ele cambivel e pode ser substitudo sem prejuzo de significado.

    Seguindo esses pressupostos, a traduo da mensagem bblica para os ndios passa por uma adaptao cultural, que pegar o texto bblico, que est envolvo em uma outra cultura e passar seu significado para a cultura para qual se pretende transmitir a mensagem. o que se chama de traduo dinmica, onde o que se pretende traduzir o significado da mensagem, tarefa que a traduo literal no capaz de fazer. Segundo o pastor Rinaldo de Mattos, para uma

    boa traduo da Bblia e transmisso da mensagem crist para a cultura e lngua indgena, a tarefa do missionrio reinterpretar a cosmologia indgena e desculturalizar o evangelho da matriz

    judaico-crist. E para realizar esse tipo de trabalho se faz necessrio uma vivncia contnua nas sociedades indgenas e uma imerso na cultura local visando um conhecimento que viabilize a melhor traduo do universo cristo.

    Ento, primeiro vamos pegar aquela expresso to conhecida nossa: Jesus o bom pastor. (...) Mas essa figura Jesus, o bom pastor foi tirada da vida pastoril do povo judaico. Se voc est trabalhando numa tribo indgena que eles nunca viram uma ovelha, so povos caadores e coletores de vveres... Os Xerente, por exemplo, se voc fala de vaca, de ovelha, de bode e de cabrito, voc est falando daquelas espcies de animais que foram l levados pelos invasores, pelos criadores e espantaram a caa que do ndio, de propriedade do ndio. De modo que o ndio Xerente tem uma averso bem grande contra a vaca. Todos os termos dados para vaca l so termos pejorativos. Ento, chegando l dizendo que Jesus o bom pastor no disse nada. Agora, o que este texto est dizendo na sua configurao primria: este texto est dizendo que Jesus aquele que cuida de ns. Isso voc pode traduzir em toda a cultura do mundo. Jesus aquele que cuida de ns no existe lngua no mundo onde voc no possa traduzir isso (MATTOS:2008).

    Seguindo essa mesma lgica, diversas mensagens bblicas sofreram adaptao cultural de modo que a mensagem que se pretendia transmitir fizessem sentido para os Xerente. Desta

  • maneira, o termo Jesus rei foi traduzido para Jesus o cacique, Jesus o tuxaua, Jesus o uaumorubixaba; Jesus senhor para Jesus aquele que d as ordens e ns somos aqueles que obedecem; o crente soldado para o crente guerreiro; a palavra de Deus como espada para a palavra de Deus como flecha; A candeia no pode ser posta debaixo do alqueire para a palavra de Deus no pode ser escondida debaixo da cuia. Desta maneira, fez-se a adaptao cultural: transmitindo o significado do Evangelho sem agredir a cultura (MATTOS:2008).

    A misso transcultural parte do pressuposto de que toda sociedade acredita em um ser superior a quem devem temer e adorar assim como na existncia de um contedo universal que se

    manifesta de maneira explcita em qualquer cultura. Desta premissa, parte um dos mais fortes argumentos utilizados pelo missionrio para comprovar a tese de que o Evangelho no destri as

    culturas indgenas: que na sua prpria cultura os povos esto clamando pelo Evangelho (MATTOS:2008). Para atender esse clamor, faz-se necessrio um profundo conhecimento da cultura nativa para encontrar nela a ideia de Deus e o que se denomina analogias de redeno.

    No caso dos ndios Xerente, os sinais da cultura que possibilitaram ao missionrio identificar as analogias de redeno a partir da qual se poderiam transmitir a mensagem evanglica foram localizados nos mitos Xerente, especialmente, na lenda da morte e a na lenda das viagens para o cu. Foi a partir da anlise destas duas lendas que os missionrios batistas estabeleceram relaes entre o universo mtico indgena e o universo cristo promovendo uma sobreposio de cosmologias.

    A analogia de redeno localizada na cultura Xerente foi denominada messianismo existencial Xerente pelo missionrio Rinaldo de Mattos, um tipo especial de messianismo que diferente da definio antropolgica - que o identifica como um movimento histrico de carter religioso vivido por um determinado grupo e localizado num determinado tempo e espao -

    possui uma configurao mais universal e est embutido na prpria cultura de qualquer povo. Esse messianismo existencial porque,

    (...) mesmo no se expressando em movimentos surgidos no tempo e no espao, ele faz parte da crena de cada povo, determina a sua viso de mundo, sua filosofia de vida, sua ndole, seu comportamento, e exteriorizado, ainda que sutilmente, nos momentos apropriados, de modo absolutamente observvel (MATTOS, 2009).

  • A lenda da morte conta que Bd o Sol tambm conhecido por Waptokwa Zawre (nosso pai grande), vivia na Terra no incio dos tempos. Ele andava acompanhado por seu amigo Wair a Lua. Um dia, Bd perguntou a Wair como fariam para estabelecer o destino de seus filhos, o povo Xerente. E ele mesmo explicou como fariam: pegou um talo de buriti e jogou na gua. O talo submergiu e Bd disse: - assim que vai ser com nossos filhos: eles vo morrer, mas vo tornar a viver. Mas Wair, o Lua, discordou e disse: - No, assim no presta. Porque nossos filhos vo morrer, a eles vo tornar a viver, a a Terra vai ficar cheia de gente e a caa no vai dar para todo mundo e o que vai acontecer? Eles vo comer uns aos outros. Ento melhor assim... E pegou uma pedra e jogou na gua, a pedra afundou e no voltou a submergir.

    Essa lenda, segundo o missionrio explica o carter fatalista dos Xerente: jogou a pedra, a pedra ficou, a gente morre, no volta mais, no existe a reedio, no existe resgate, no tem como solucionar.

    Morreu e acabou. por isso que quando morre um ndio choram com um lamento triste e cortante (MATTOS:2008). E nesta parte, ele identifica a primeira analogia de redeno da cultura Xerente que a aspirao pela vida eterna, para vencer a morte, viver para sempre (MATTOS:2008).

    A lenda das viagens para o cu conta que Bd e Wair, aps passarem um tempo sobre a Terra dando aos ndios tudo o que eles precisavam, resolveram ir embora. Chamaram os Xerente para comunicarem a deciso e entoando o cntico da subida se instalaram na borda celeste. Passado um tempo, os ndios se sentiram saudosos de seu deus e saram em caravana para visit-lo. Chegaram ento ao que eles chamam de p do cu na linha do horizonte - e esperando o sol nascer, subiram com ele. Passaram muitos dias conversando, matando as saudades e voltaram. Depois desta caravana, muitas outras se seguiram. Um dia, quando uma caravana retornava

    Terra, Bd deu a ordem: - Quando descerem, no olhem para trs. Mas, assim que tocaram os ps na terra, todos os ndios olharam para trs. Ento, o sol se afastou indo nascer alm do oceano. Como os Xerente no sabiam fazer canoas, ficaram impossibilitados de alcanarem o p do cu e nunca mais puderam estar com Bd.

    A identificao do messianismo existencial Xerente pelo missionrio no se deu pela audio, registro e traduo das lendas, mas atravs da observao da reao dos ndios nos momentos em que estas lendas eram contadas pelos ancios. Em todas as ocasies quando as

  • lendas eram contadas, uma mulher Xerente interrompia a histria. No caso da lenda da morte, toda vez que o narrador chegava na parte em que a Lua pegou a pedra e jogou na gua, uma mulher Xerente interrompia e questionava:

    Ah, porque que foi jogar aquela pedra? Se no tivessem jogado aquela pedra at hoje ns estvamos vendo aqui os nossos parentes que morreram! Se no tivesse jogado aquela pedra, quando um parente nosso morre a gente no precisava chorar muito, porque logo ele ia voltar outra vez!(MATTOS:2008).

    E nas ocasies quem se narrava a lenda das viagens para o cu, a interrupo sempre ocorria quando a histria chegava no ponto em que os ndios haviam desobedecido a ordem de Bd e olhado para trs. Uma vez, uma mulher Xerente, ao interromper o ancio, exclamou em portugus: - Eita, mas ndio besta! No sei porque que foi olhar para trs! Se no tivessem olhado para trs at hoje ns estava subindo l para visitar nosso pai grande!(MATTOS:2008).

    Essas interrupes forneceram subsdios para a identificao do messianismo existencial

    Xerente - caracterizado como aquele sentimento que

    no queria que as coisas fossem daquele jeito, queriam que fosse como era primeiro, queriam voltar para o paraso, queriam voltar para a era mitolgica quando Deus estava aqui. (...) O anseio pela vida eterna, o anseio pela ressurreio, o anseio pela comunho com Deus, o anseio pelo transcendental (MATTOS:2008).

    Esta identificao, por sua vez, possibilitou no somente o estabelecimento de relaes entre a cosmologia crist e indgena como tambm a definio de uma mensagem evanglica - a promessa crist de vida eterna - que melhor pudesse atender aquilo para que para os missionrios entendiam que so os maiores anseios e necessidades daquela comunidade indgena. Por esse motivo, para o missionrio a mensagem evanglica pregada entre os Xerente que diz que Jesus

    o ressuscitador no aliengena, no uma novidade para a cultura indgena, ela uma resposta para os anseios que esto a no prprio corao deles (MATTOS:2008). Por este motivo, os ndios foram capazes de compreender, interiorizar e reproduzir a mensagem. E eles s puderam compreender e aceitar porque no trabalho missionrio no h a substituio de uma cultura por outra, mas uma reformulao.

  • Quando o pastor Gunther estava traduzindo o Novo Testamento para o Xerente, ns ficamos muito, discutimos muito se amos usar para Deus o termo Waptokwa Zawre, que o termo que eles usam l para Deus. Mas o termo para pai tambm e para qualquer pessoa dignatria, que prestou um bom servio para a comunidade eles chamam de Waptokwa Zawre. Waptokwa Zawre vem do verbo pto, que gerar. Quando voc planta uma semente, quando ela brota, ela fez pto. Wa, primeira pessoa possessivo. Waptokwa, kwa instrumentalizador humano, tipo salvar- salvador, remar-remador. Ento, Waptokwa aquele que nos gerou, aquele que nos criou. E Waptokwa Zawre grande referncia a Deus. A gente pensou: - Mas agora, o que a gente vai fazer? Quando a gente falar de Deus vai deixar a mente deles ir naquele Waptokwa Zawre, naquele Bd das lendas? No incio, parecia para ns que era mal, n? Mas ns descobrimos que atravs do processo de reformulao, os nossos crentes, os nossos lideres, pregadores do Evangelho l, eles associaram as duas coisas que ficaram com a idia de que Deus esteve aqui no mundo e queria bem o povo Xerente. Depois ele subiu e est l, agora ele sabe que vai voltar. Ento eles comearam a reformular e comearam a aumentar e crescer a idia de Waptokwa Zawre (MATTOS:2008).

    Este argumento encerra e fecha o argumento utilizado pelo missionrio Rinaldo para comprovar que a transmisso do Evangelho cristo no destri a cultura autctone. O missionrio reconhece que o Evangelho de alguma forma muda a cultura. Mas muda dentro de um processo de reformulao que um processo reconhecido pela prpria Antropologia (MATTOS:2008). Os ndios, ao receberem a mensagem crist estabelecem relaes com seu conhecimento do mundo e sua cosmologia reformulando e readaptando esta mensagem, assim como fizeram com a correspondncia entre Waptokwa Zawre e o Deus cristo e a introduo de Jesus dentro da cosmologia indgena, sendo aquele ator capaz modificar sua concepo fatalista

    sobre a morte. A utilizao da cultura indgena e o reconhecimento de que os ndios possuem um conhecimento que no deve ser descartado no processo de traduo da mensagem evanglica

    demonstram que h uma valorizao desta pelas misses transculturais.

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