O estranhamento e as imagens em movimento

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O estranhamento e as imagens em movimento Márcio Otávio Ferreira Pereira No texto ‘ Passagens da fotografia’ Antonio Fatorelli faz menção a “certos procedimentos de deslocamentos que encontram-se sistematicamente associados à intenção de criar um estranhamento”. Essa intenção de criar um estranhamento faz parte de um procedimento estético típico das vanguardas do século XX, que buscavam com isso deslocar e questionar valores e ideais burgueses da época. Um outro autor chamado Viktor Borisovich Chklovski, membro do grupo dos formalistas russos também escreveu sobre a ideia de estranhamento em seu texto ‘Arte como Procedimento’. Neste texto ele afirma que é a partir do estranhamento, ou seja, da singularização ou da desfamiliarização que a arte devolve a sensação de vida, para sentir e experimentar os objetos. Nos parágrafos abaixo apresento uma seleção de vídeos produzidos por artistas que ativam este conceito de estranhamento, proporcionando outras formas de percepção e sensibilidade através do objeto artístico: Luis Buñuel e Salvador Dali no filme Um cão andaluz, de 1928, se utilizam do universo onírico para gerar esta sensação de estranhamento. Através dos sonhos todas as nossas referências à normalidade podem ser distorcidas ou alteradas. Existe nas imagens apresentadas uma tensão, na qual tudo se torna imprevisível, objetos e ações cotidianas se tornam estranhos, como aquela cena onde uma multiplicidade de formigas começam a surgir da palma da mão do personagem. Outra obra que lida com esse conceito é O ballet Mecânico de Fernad Leger. Este vídeo, produzido em 1924, trabalha com alternâncias rápidas de formas geométricas e algumas imagens de partes do corpo humano, sugerindo esta ideia de um ballet mecânico, composto pela mistura de partes orgânicas e não orgânicas. Para o artista a beleza das coisas estaria exatamente nesta justaposição ordenada destes elementos contrastantes, mas que ao olhar de um expectador comum gera um estranhamento grande. A terceira obra apresentada é também um vídeo, produzido pelo artista Man Ray em 1923, chamado O retorno à razão. Neste vídeo, Man Ray se utiliza da técnica do fotograma sensibilizado através de elementos do cotidiano como sal, pimenta, alfinete e tachinhas e cria posteriormente uma montagem aleatória e desconexa, intercalando com outras sequências de filmagem tradicional. Através deste procedimento observamos no resultado final da montagem uma sensação muito forte de estranhamento ao assistir a sequência do vídeo. Outro artista que também se utiliza deste procedimento da montagem para gerar uma sensação de estranhamento em seus expectadores é o cineasta Dziga Vertov. Em seu filme de 1929, Um homem com uma câmera ele organiza as imagens por oposição de planos, com o

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O estranhamento e as imagens em movimento

Márcio Otávio Ferreira Pereira

No texto ‘ Passagens da fotografia’ Antonio Fatorelli faz menção a “certos procedimentos de

deslocamentos que encontram-se sistematicamente associados à intenção de criar um

estranhamento”. Essa intenção de criar um estranhamento faz parte de um procedimento

estético típico das vanguardas do século XX, que buscavam com isso deslocar e questionar

valores e ideais burgueses da época.

Um outro autor chamado Viktor Borisovich Chklovski, membro do grupo dos formalistas russos

também escreveu sobre a ideia de estranhamento em seu texto ‘Arte como Procedimento’.

Neste texto ele afirma que é a partir do estranhamento, ou seja, da singularização ou da

desfamiliarização que a arte devolve a sensação de vida, para sentir e experimentar os objetos.

Nos parágrafos abaixo apresento uma seleção de vídeos produzidos por artistas que ativam

este conceito de estranhamento, proporcionando outras formas de percepção e sensibilidade

através do objeto artístico:

Luis Buñuel e Salvador Dali no filme Um cão andaluz, de 1928, se utilizam do universo onírico

para gerar esta sensação de estranhamento. Através dos sonhos todas as nossas referências à

normalidade podem ser distorcidas ou alteradas. Existe nas imagens apresentadas uma

tensão, na qual tudo se torna imprevisível, objetos e ações cotidianas se tornam estranhos,

como aquela cena onde uma multiplicidade de formigas começam a surgir da palma da mão

do personagem.

Outra obra que lida com esse conceito é O ballet Mecânico de Fernad Leger. Este vídeo,

produzido em 1924, trabalha com alternâncias rápidas de formas geométricas e algumas

imagens de partes do corpo humano, sugerindo esta ideia de um ballet mecânico, composto

pela mistura de partes orgânicas e não orgânicas. Para o artista a beleza das coisas estaria

exatamente nesta justaposição ordenada destes elementos contrastantes, mas que ao olhar

de um expectador comum gera um estranhamento grande.

A terceira obra apresentada é também um vídeo, produzido pelo artista Man Ray em 1923,

chamado O retorno à razão. Neste vídeo, Man Ray se utiliza da técnica do fotograma

sensibilizado através de elementos do cotidiano como sal, pimenta, alfinete e tachinhas e cria

posteriormente uma montagem aleatória e desconexa, intercalando com outras sequências de

filmagem tradicional. Através deste procedimento observamos no resultado final da

montagem uma sensação muito forte de estranhamento ao assistir a sequência do vídeo.

Outro artista que também se utiliza deste procedimento da montagem para gerar uma

sensação de estranhamento em seus expectadores é o cineasta Dziga Vertov. Em seu filme de

1929, Um homem com uma câmera ele organiza as imagens por oposição de planos, com o

propósito de evidenciar a observação de imagens contrastadas e simultâneas, elementos em si

suficientes para ativar a ideia de estranheza em seu trabalho.

E, por último, cito aqui o filme de Robert Wiene, chamado O gabinete do Dr. Caligari,

produzido em 1919. Wiene, artista pertencente ao grupo de cineastas expressionistas

alemães, propunham, através das imagens, ambientes carregados de angústia, que

evidenciariam o drama da solidão humana e do estranhamento com o mundo.

Referências:

FATORELLI, Antônio. Passagens da Fotografia. Senac. Rio de Janeiro, RJ, 2005.

CHKLOVISKY, Viktor. “A arte como procedimento” in Teoria da literatura: os formalistas

russos, Porto Alegre, Globo, 1976. 39-56