O esteticismo e as representações sádicas no parnasianismo brasileiro

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    O ESTETICISMO E AS REPRESENTAES SDICASNO PARNASIANISMO BRASILEIRO

    Aline Pereira (UERJ)[email protected]

    O parnasianismo brasileiro, proeminente da dcada de 1880at o advento modernista, apresentou aspectos diversos, mescladoscom as escolas de transio francesas, sobre as quais incide a ten-dncia esteticista do fin de scicle. Os nossos parnasianos explora-

    ram os efeitos da criao artstica, como seus contemporneos deca-dentistas e simbolistas na Frana, exaltando os valores estticos. ParaAfrnio Coutinho (1995, p. 179), o Parnasianismo foi um dos gran-des movimentos da literatura brasileira. O autor associa o amorparnasiano forma ao esprito de preciso e objetividade cientfica(Ibidem, p. 186) que coincidiu com o advento da civilizao bur-guesa, democrtica, industrial e mecnica (Ibidem, p. 181). Contu-do, a postura parnasiana de oposio cultural, pois ela rompe comos fundamentos poticos da burguesia. E justamente aps a defini-o do movimento antirromntico no esprito e na forma dos parna-sianos franceses, afirma Manuel Bandeira (p. 91), que o Parnasia-nismo se cristaliza entre ns.

    Entretanto, a complexidade das manifestaes nomeadas par-nasianas na literatura brasileira sublinhada por um contexto socialpeculiar, comparado realidade europeia, como assinala FernandoCerisara Gil. Parece estar longe no Brasil do final do sculo XIX, apossibilidade de os nossos poetas poderem articular um discursopotico [com envergadura crtica antiburguesa], uma vez que no

    havia condies histricas. (GIL, 2006, p. 31) Assim, para CerisaraGil, ainda que exista uma reproduo do sentimento de repdio ba-nalizao do mundo burgus, o sustentculo da relao do poeta [degerao parnasiana no Brasil] com o pblico virtual [antiburgus] o seu desejo de se ver diferenciado da incultura, da misria e doatraso geral do pas (Ibidem, p. 32) e, uma vez incorporado tradi-o literria ocidental, o poeta parnasiano-simbolista brasileiro sedepara com o carter deficitrio da cultura e da literatura brasileirasna confrontao sempre presente com as literaturas-modelo dos pa-

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    ses centrais da Europa. Como forma compensatria a essa situao,ele vai dispor do expediente do bom gosto, das belas letras, do culto

    do belo, da arte pela arte (Ibidem, p. 33).O leitor da poesia parnasiana, sustenta Cerisara Gil, o pr-

    prio poeta deslocado para uma interlocuo predominantemente in-tramuros literrios (GIL, 2006, p. 34). Pertencente a uma supostaaristocracia intelectual, este poeta expressaria de maneira sdica arejeio ao atraso do pas e o afastamento entre os poetas eruditos(todos situados num mesmo plano) e as massas incultas.

    Dessa forma, o parnasianismo brasileiro no privilegia apenasa beleza ideal que acompanha os mitos da Grcia antiga, mas tam-bm as imagens de agonia, os quadros macabros, as perverses, o e-rotismo sdico, afemme fatale baudelairiana, a explorao da belezamisteriosa, as imagens da nevrose e do tmulo, o gosto pelo si-mulacro, em que figuram a carne decomposta, a clausura, a asfi-xia, o pesadelo, o fantasmagrico. Na escultura laboriosa da formaverbal e na perseguio do belo correto, imperceptvel s lentes damquina, a fantasia muitas vezes ganha espao na explorao da be-leza horrvel, resultado da elaborao e do clculo. De uma formasofisticada, o sensualismo cruel faz o amor assemelhar-se a um mar-trio e, assim, o espectro da paixo criminosa da mulher fatal bau-delairiana incrementa o tom das variaes sdicas na poesia brasilei-ra no fim do sculo XIX.

    O presente trabalho se destina descrio das modalidades derepresentao sdica no parnasianismo brasileiro, inserindo-o nocontexto de entrecruzamento estilstico observado nas ltimas dca-das do sculo XIX. A relao da esttica baudelairiana com o sadis-mo indica uma das muitas influncias que estimularam o iderio par-

    nasiano, a partir das imagens que mostram o homem entregue a suaperversidade natural. Dentre os nossos parnasianos, Alberto de Oli-veira, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Tefilo Dias, Valentim Ma-galhes e outros apresentam referncias ao esteta tutelar da moderni-dade, Charles Baudelaire, cuja obra atravessada por um erotismocruel que a aproxima do pensamento de Sade. Desse modo, a viola-o dos tabus, os jogos de contraste e o repdio natureza apontampara um esteticismo radical na poesia brasileira.

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    A respeito do prazer em fazer ou ver sofrer outrem, falamoshoje de sadismo, mas foi para demonstrar como o gosto pela cruel-

    dade est enraizado na natureza humana que Sade celebrou o despre-zo pelo corpo alheio (ECO, 2007, p. 227). Para exemplificar comoSade propugnava a prtica da violncia tambm como provocaofilosfica (idem), Umberto Eco extrai um fragmento de Justine ouas desventuras da virtude (1971): Acaso as nossas praas pblicasno ficam cheias cada vez que se assassina algum na letra da lei?(SADE apud ECO, 2007, p. 228). A obra de Sade , segundo Camil-le Paglia (1992, p.14), uma abrangente crtica satrica a Rousseauque, por sua vez, rejeitara a ideia de que o homem j nasce com umatendncia perversa. Como s ele, o marqus de Sade (1740-1814),teve a audcia de advogar a favor do vcio, e se as suas prefernciaseram, segundo o prprio, um dado da natureza, elas constituam, por-tanto, um direito com base tica. Assim, de sua classe privilegiada, omarqus afrontou sorrindo os tabus e preconceitos democrticos, a-costumado ao gozo herldico de poder manipular os comuns. Utili-zando-se da lgica com ironia, Sade tenta mostrar, como toda a lite-ratura libertina precedente, que o percurso das vtimas o de um a-prendizado acerca da moral. No texto A cultura libertina e a figurade Sade, Guaracy Arajo afirma que

    O livre-pensador ou libertino associa-se ao uso de uma razo forte.Considera-se purificado de falsas certezas por uma espcie de poder pos-to na razo, naturalmente dada a alguns, e que no necessita de maioresexplicaes. Ou seja, o livre-pensador no libertrio, no se prope aum telos de mudana poltica; ele mais voltado pra trs (SALLES,2007, p. 79).

    Com efeito, a literatura sadeana subversiva, porque inter-fere na base do pensamento burgus, debochando dos sistemas filo-sficos, da investigao racional e mesmo da razo. Porque Sade en-

    cara a profanao do poder da natureza como uma forma de contro-lar aquela que nos submete a sua lei, o crime passa a ser uma via deconhecimento, uma experincia superior. Insinuando-se a oposiohomem/natureza, o conflito entre criao e destruio so duas mo-edas da mesma face, ou melhor, dois modos de contemplar a mesmaface (Ibidem, p. 90). Assim, a valorizao sadeana da perverso simultaneamente individualizante (pela teoria da organizao inter-na) e desindividualizante (pois reconduz o indivduo a mais pura na-

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    turalidade) (Idem), o que se resolve pela apatia e pela ausncia deremorso.

    As representaes do sadismo no verso parnasiano nacionalremetem, como j foi citado, a um dos precursores do Parnasianismo(bem como do Decadentismo e do Simbolismo), Charles Baudelaire(1821-1867), vinculado a um sistema literrio mundial e postonum espao comum aos poetas brasileiros, o Parnaso, morada sim-blica dos poetas (COUTINHO, 1995, p. 191). Ao cultivar o pra-zer aristocrtico de desagradar (BAUDELAIRE, Escritos ntimos),o amigo e admirador do pai do esteticismo francs, Thophile Gauti-er, exerceu profunda influncia sobre a literatura ocidental moderna,

    sugerindo temas sdicos, como a misoginia, o homoerotismo, o vo-yeurismo, a morbidez, a decomposio. Devotado premissa esteti-cista de Gautier, segundo a qual a moral burguesa na arte era algoque impedia a manifestao legtima do Belo, Charles Baudelaireserve-se da anormalidade para combater o banal. O poeta reconhecena prpria poesia uma fonte de instrumentos para torturar o leitor. I-ronicamente, quando da publicao deAs flores do Mal, os poemassatnicos ou aqueles pelos quais passava um tom macabro, agradan-do ou no, foram os que mais chamaram a ateno do pblico (A-

    MARAL, apud GAUTIER, 2001, p. 17), reforando a crtica deGautier: Senhores pregadores, o que fareis sem o vcio? J amanhver-vos-eis reduzidos a pedir esmolas se hoje dssemos todos paravirtuosos (GAUTIER, p. 07, 1875). Baudelaire reproduz esse pen-samento de maneira mais agressiva:

    (...) todos os jornais no passam de um amontoado de horrores. Guerras,crimes, roubos, atentados ao pudor, torturas, crimes pblicos e crimesparticulares enfim, o delrio de uma crueldade universal. (...) E comesse repugnante aperitivo que o homem civilizado toma todos os dias oseu caf da manh. Tudo neste mundo transpira crime: o jornal, a mura-

    lha e a face do homem. (BAUDELAIRE, 1995, p. 548)

    A afinidade entre Baudelaire e as teorias do Marqus de Sadetornam-se ainda mais claras quando o primeiro declara a existnciade certo prazer em ser simultaneamente o carrasco e a vtima(BAUDELAIRE, 1995, p. 524) ou fala sobre o prazer natural dedestruir, um gosto legtimo, se tudo o que natural legtimo (I-bidem, p. 526), revelando-se plenamente: Deve-se castigar o que seama. (...) Isso implica, porm, a dor de desprezar o que se ama (Ibi-dem, p. 545). De acordo com Ivan Junqueira (BAUDELAIRE, 2006,

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    p. 98-9), o poeta fora condenado conscincia do Mal, insinuandona temtica do tdio os vcios da alma humana. Tendo absorvido al-

    gumas noes sobre a autonomia da poesia moderna em relao moral, como as desenvolvidas por Edgar Allan Poe no Poetic princi-ple, traduzido pelo prprio Baudelaire, e outras da teoria da arte pe-la arte de Gautier, a quem dedicouAs flores do mal, o poeta maldi-to expressa um verdadeiro horror realidade burguesa, tornando-seinimigo dos valores do homem mdio. Como em Poe, um dos polosda questo esttica baudelairiana a sua repulsa a tudo o que for na-tural, provocando assim a necessidade do artifcio. Segundo IvanJunqueira (BAUDELAIRE, 2006, p. 64-5), o escritor francs percebea natureza corrompida por si mesma, de maneira que o natural setorna abominvel, incluindo a mulher, amoral e monstruosa. O a-mor para Baudelaire ser sempre uma imagem do terrvel convvio,s vezes na alma de uma mesma pessoa, entre o carrasco e o algoz(Ibidem, p. 91). Desse modo, Baudelaire antecipa os temas e o pro-cesso esttico da poesia moderna, como enfatiza Ivan Junqueira (Ibi-dem, p. 78), chegando ao Brasil durante o predomnio parnasiano emnossas letras. Assim, a exaltao do anormal teve relevo na poesiabrasileira em um perodo de transformaes numa sociedade que deagrria, latifundiria, escravocrata, aristocrtica, passava [...] parauma civilizao burguesa e urbana (COUTINHO, 1995, p. 195),quando a nossa potica tendeu a substancializar o belo artstico, semexcluir a os estados anormais, os desvios, a perversidade, conside-rando o artificialismo um princpio, e algumas vezes flertando com amaldio.

    Entre os principais introdutores do Parnasianismo no Brasil,est o poeta Tefilo Dias, que foi um dos primeiros tradutores deBaudelaire em nossa literatura. A traduo do poema O Espectro

    mostra como o esteticismo sdico de Baudelaire se apresentou emnossas letras.

    (...) Sobre a tua atraente formosura,E a tua bela mocidade em flor,Como os outros, mulher, pela ternura,Eu quero dominar pelo terror!

    Os versos exaltam a volpia do martrio, numa atmosfera vampirescae com um voyeurismo latente. O esteta procura atingir o belo subli-me, e o mal consiste em uma possibilidade de escapar do vulgar, do

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    mundo banalizado. De modo semelhante ao pensamento de Sade, apoesia de Baudelaire reconhece, segundo Hugo Friedrich (1991, p.

    48), uma espcie de coao no mal, que deve ser obedecida. Assim,o vampiro, que frio e perverso, uma das personas baudelairianas.Podemos observar o influxo de Baudelaire nos versos do soneto A-dormecida, de Carvalho Jnior:

    Aos flancos de teu leito, abutres esfaimados,Meus instintos sutis negrejam fileirados,Bem como os urubus em torno da carnia.

    E a algolagnia se materializa no soneto Tortura, de Valentim Maga-lhes:

    Ante a mesquita dureos minaretesAoitam dois telingas a traidora;As vergastas, sutis como floretes,Sibilam sobre a carne tentadora.

    vibrao das varas estremecemSeus nveos membros firmes delicados,E, nos espasmos do sofrer, parecemDas contores do gozo eletrizados.

    Geme aos galopes, que as carnes lhe retalham,

    E aberta a rsea boca, os olhos belosProlas vertem, que seu peito orvalham;

    Dobram-se as curvas, soltam-se os cabelos,E do alvo colo, amargurado e exangue, Como esparsos rubis goteja o sangue.

    O voyeurismo sdico da voz potica implica no olho tira-no, do qual nos fala Camille Paglia (1992, p. 386-8), o olho que su-foca com seus excessos de percepo, e que tem uma incandes-cncia ertica e agressiva: Ver possuir; ser visto ser violado.Essa crueldade do esprito analtico utilizada, com prazer, contraesse mesmo esprito est, entre muitos outros, no soneto No circo,de Raimundo Correia.

    Abria o circo a arena iluminadaDo povo s grossas vagas tumultuosas;Fervia tudo em pompa; a variadaCor das vestes, as rendas preciosas,

    O verde, o azul, as sedas, os lavoresDos luzentes metais da cor do dia;

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    Mas nesta febre mltipla de cores,Somente a cor vermelha no se via;

    Em aplausos a turba se desata,Surge em pleno espetculo o acrobata,Pula, e na corda bamba se ajoelha;

    Arqueia o corpo; a corda estala e ringe;Ele cai, parte o crnio, e o solo tingeA cor que no se via, a cor vermelha.

    Jos Guilherme Merquior (1996, p. 147-8) assinala que o par-nasianismo no Brasil ocorreu num perodo marcado pela inquietaodas massas urbanas, no qual as classes mdias se empenhavam para

    ascender socialmente. Nesse contexto, como afirma Merquior (Ibi-dem, p. 149), ser parnasiano equivalia a uma espcie de braso. As-cendendo socialmente pelo domnio das tcnicas de expresso, o es-critor esposava sem saber valores hidalguistas (Ibidem, p. 150). Atendncia classicizante dos parnasianos, em oposio aos romnti-cos, evidencia um desejo de diferenciao por parte dos primeiros,atravs da erudio que lhes conferia o status intelectual de aristocra-ta. O discurso do imortal Francisco Castro, em 1898, refora tal pen-samento: A vulgaridade no vai com o esprito literrio; so entida-

    des contrapostas; ele um esprito aristocrtico por excelncia(CASTRO in GIL, 2006, p. 54). Em alguns casos, a confuso entre oindivduo e a suapersona, o dndi ideolgico, culminava num esteti-cismo radical. A teoria do Belo, a amoralidade da arte e a ideia desua inutilidade superam os resqucios romnticos dos nossos parnasi-anos, que assimilaram a convico de que a arte no deveria ser in-fluenciada por nenhuma corrente filosfica, poltica, social ou religi-osa. Como recomendado por Gautier, a arte poderia respeitar somen-te as exigncias estilsticas.

    No h nada de verdadeiramente belo que possa servir a alguma coi-sa; tudo o que til feio, porque a expresso de alguma necessidade,e aquelas dos homens so ignbeis e repugnantes, como sua pobre e en-ferma natureza. O lugar mais til de uma casa so as latrinas (GAUTI-ER, apudCOUTINHO, p. 182).

    Para Baudelaire, o culto do artifcio se estabelecia com a pre-ponderncia do artstico sobre o natural. Enquanto literatura eramvetados os desgnios que estivessem fora dela, a substncia cotidianadeixava de ser um assunto da poesia, e a experincia potica somente

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    poderia ocorrer distante dos homens e da realidade, rebaixada, en-gendrada por eles (GIL, 2006, p. 59). Cerisara Gil tenta esclarecer

    como as determinantes sociais constituram um modo de fazer poesiacomo um trabalho no desvinculado da presena e atuao da for-ma-mercadoria (...) do ponto de vista do prprio horizonte ideolgicocapitalista e moderno: o outro transformado e concebido em propri-edade, em coisa (Ibidem, p. 64). Essa nova concepo do fazer po-tico, intrnseca a um carter fetichista, alimenta a supervalorizaoda natureza potica. Assim, na poesia brasileira, o parnasiano muitasvezes exprime a sua alma impotente de escravo, imposto ao trabalho,e um trabalho que visto, pela sociedade, como improdutivo, demodo que a prpria forma como tal poeta enxerga a sua relao coma sociedade adquire uma conotao sdica, ora passiva, ora ativa.

    Podemos citar como exemplo de sadismo no parnasianismobrasileiroAntropofagia, de Carvalho Jnior,

    (...) Instintos canibais refervem-me no peitoComo a besta feroz a dilatar as ventasMede a presa infeliz por dar-lhe o bote a jeito.

    Aqui tambm no h a vivncia do orgnico, e o objeto visto comopresa, aproximando-se da concepo amorosa de Baudelaire, de a-mor como tortura, que o poeta brasileiro manifesta pelo sadismo ati-vo. Tambm vemos essa concepo inegavelmente contida no soneto

    Desdns, de Raimundo Correia, mas agora, com a presena da mu-lher fatal, o sadismo passivo.

    Realam no marfim da ventarolaAs tuas unhas de coral felinasGarras com que, a sorrir, tu me assassinas,Bela e feroz... O sndalo se evola;

    O ar cheiroso em redor se desenrola;Pulsam os seios, arfam as narinas...Sobre o espaldar de seda o torso inclinasNuma indolncia mrbida, espanhola...

    Como eu sou infeliz! Como sangrentaEssa mo impiedosa que me arrancaa vida aos poucos, nessa morte lenta!

    Essa mo de fidalga fina e branca;Essa mo, que me atrai e me afugenta,Que eu afago, que eu beijo, e que me espanca!

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    A perverso tambm se apresenta emMessalina, de Olavo Bi-lac:

    Vejo-te bela, esttua da loucura!Erguendo no ar a mo nervosa e fina,Tinta de sangue, que um punhal segura.

    O esplendor orgistico, num cenrio composto por luxo eperdio, recordando um passado que j no existe constante noparnasianismo brasileiro. Desse modo, o poema permite a fuga parauma poca de liberdade ertica. Alm disso, os versos mostram umtempo de uma memria imaginada, uma realidade artificial. A Alvo-rada do Amor, outro poema de Bilac, aproxima-se de Baudelaire e

    de Sade:Abenoo o teu crime, acolho o teu desgosto,(...) V! Tudo nos repele! A toda criaoSacode o mesmo horror e a mesma indignao...(...) Vamos! que importa Deus? (...)Arda em chamas o cho; rasguem-te a pele os ramos;Morda-te o corpo o sol (...)A Natureza s tu,Agora que s mulher, agora que pecaste!

    O sadismo observado na literatura parnasiana relaciona-se

    tambm com a petrificao do desejo, a manipulao do objeto, da aconstncia do voyeurismo no verso parnasiano. Dentre os traos par-nasianos, a mineralizao dos objetos, e a descrio de apetites sexu-ais muito intensos, entretanto marmorizados, o que no deixa de es-tar relacionado com a frieza, o ideal de impassibilidade, de raciona-lismo. Em Esttua, de Tefilo Dias, possvel observar esse conge-lamento do desejo ertico: Em mudo turbilho de imveis beijos.

    A partir de uma cena, de um instante congelado, Alberto de

    Oliveira compe Ironia, cujos versos emblemticos mostram umavidraa partida ao meio e sobre ela o efeito provocado pela luz dosol. O vidro,

    sem que algum lhe oua um gemidoOu o sofrer recndito lhe veja,Mudo, irnico, frio e incompreendido,Cortando anavalhado a luz que o beija,Parece estar-se a rir de estar ferido.

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    Segundo Brito Broca (2005, p. 63), Alberto de Oliveira costumavarecitar o conto sdico de Edgar Allan Poe, O gato preto.

    Olavo Bilac, o mais celebrado poeta do parnasianismo brasi-leiro, evidencia o sadismo em muitos sonetos, dentre os quais Peca-dor(1865-1918):

    (...)Fecha a vergonha e as lgrimas consigo...E, o corao mordendo impenitente,E, o corao rasgando castigado,

    Aceita a enormidade do castigo,Com a mesma face com que antigamente

    Aceitava a delcia do pecado.Assim, considerando-se a pluralidade ideolgica e esttica no

    Ocidente do final do sculo XIX, possvel perceber no verso parna-siano nacional, a conscincia de uma realidade intransponvel, que tambm a conscincia do abismo da alma, culminando no sadismo,segundo o qual o homem vtima e carrasco de si mesmo, pois estsubmetido natureza. Este breve trabalho no teve a pretenso deanalisar a manifestao do sadismo no verso parnasiano brasileiro,mas buscou descrever alguns exemplos que apontam para o esteti-cismo e a perversidade na poesia finissecular de nosso pas.

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