O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANÇA EM HOBBES

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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Emerson Ferreira da Rocha O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANÇA EM HOBBES São Paulo 2010

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  • UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU

    Emerson Ferreira da Rocha

    O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES

    So Paulo 2010

  • 2

    UNIVERSIDADE SO JUDAS TADEU

    Emerson Ferreira da Rocha

    O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade So Judas Tadeu USJT, sob a orientao do Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva.

  • 3

    Rocha, Emerson Ferreira da

    O estado de natureza: medo e esperana em Hobbes / Emerson Ferreira da

    Rocha. - So Paulo, 2010.

    99 f. ; 30 cm

    Orientador: Paulo Jonas de Lima Piva

    Dissertao (mestrado) Universidade So Judas Tadeu, So Paulo, 2010.

    1. Hobbes, Thomas, 1588-1679 - Crtica e interpretao. 2.

    Natureza humana. I. Piva, Paulo Jonas de Lima. II. Universidade

    So Judas Tadeu, Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em

    Filosofia. III. Ttulo

    CDD 192

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    FOLHA DE APROVAO EMERSON FERREIRA DA ROCHA

    O ESTADO DE NATUREZA: MEDO E ESPERANA EM HOBBES

    Dissertao apresentada ao Programa Ps-Graduao para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia na Universidade So Judas Tadeu - USJT.

    So Paulo, 09 de agosto de 2010.

    Orientador:

    _____________________

    Prof. Dr. Paulo Jonas de Lima Piva

    Universidade So Judas Tadeu

    Examinador:

    ______________________

    Prof. Dr. Floriano Jonas Cesar

    Universidade So Judas Tadeu

    Examinadora:

    ______________________

    Profa. Dra. Eunice Ostrensky

    Universidade de So Paulo- USP

  • 5

    DEDICATRIA

    aos meus pais, que, muito cedo, deixaram o serto nordestino para construir uma vida na cidade grande; e minha noiva e futura esposa Denize Donato, a qual,

    com todo amor, me ajudou nos momentos difceis deste trabalho.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    coordenao e ao corpo docente da Universidade So Judas - USJT, em especial ao professor Dr. Paulo Jonas Lima Piva, que, com enorme pacincia, ajudou-me; minha famlia e noiva pela ajuda prestada; e aos meus amigos, em especial, a Leandro Lopes e Juliana Moura.

  • 7

    RESUMO

    O propsito principal deste trabalho tratar do estado de natureza em

    Thomas Hobbes (1588-1679), mais exatamente, promover uma reflexo sobre o

    papel das paixes humanas nessa situao, na qual o Estado inexiste, em

    especial, o papel do medo e da esperana. Para tal empreendimento, tomaremos

    por base sobretudo o Leviat (1651), obra mais desenvolvida e pertencente fase

    de maturidade do filsofo. Faremos isso em trs momentos. Num primeiro

    momento, apresentaremos as paixes humanas e a sua origem de acordo com o

    nosso autor. Em seguida, passaremos a expor como as paixes agem entre os

    homens durante o estado de natureza. Finalmente, abordaremos o tema da

    passagem dos homens do estado de natureza para o estado civil e como essas

    paixes impulsionam tal passagem.

    Palavras chave: estado de natureza- paixes esperana medo.

  • 8

    ABSTRACT

    The main purpose of this study is to address the state of nature, Thomas Hobbes (1588-1679), more exactly, to promote reflection on the role of human passions in this situation, in which the state does not exist, in particular the role of fear and hope. For this undertaking, we shall mainly based on the Leviathan (1651), a work further developed and owned by the maturity of the philosopher. We will do this in three stages. At first, we present the human passions and their origin according to our author. Then we will expose how the passions of men act during the state of nature. Finally, we discuss the theme of the passage of men from the state of nature to the marital status and how those passions drive this transition.

    Keywords: state of nature- passions - hope - fear.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO..........................................................................................................p. 10

    CAPTULO 1 O homem que deseja: Hobbes e as paixes...............................................................p. 18 CAPTULO 2 O homem que deseja: as paixes entre os homens....................................................p. 40 CAPTULO 3 Razo e esperana: as paixes no estado civil...........................................................p. 67 Concluso..................................................................................................................p. 96 Bibliografia....................................................................................................................p. 98

  • 10

    INTRODUO

    Thomas Hobbes figura entre os mais importantes filsofos da histria da

    filosofia poltica. Nasceu em 1588, na Inglaterra, em Malmesburg, durante o ano

    da incrvel armada, que foi uma esquadra reunida pelo rei Filipe II, rei da

    Espanha, em 1588, na tentativa de pr fim sua guerra contra a Inglaterra. Esta

    batalha foi a maior batalha da Guerra Anglo-Espanhola e consolidou a tentativa de

    Filipe II se impor no domnio dos mares. Hobbes tambm viveu durante o

    conturbado perodo da guerra civil inglesa. Segundo Julio Bernardes, no seu livro

    de introduo ao pensamento do filsofo, o perodo histrico no qual viveu

    Hobbes marcado por contendas ideolgicas, conflitos polticos e religiosos e

    pelas recentes descobertas de novos continentes 1. Os escritos do nosso autor

    sero profundamente marcados por esses conflitos. O filsofo viveu at 1679.

    Hobbes fora um aluno brilhante e a sua facilidade com as letras rendeu-lhe

    alguns trabalhos na rea de traduo. Essa habilidade para traduzir textos antigos

    era extremamente valorizada na poca em que viveu, tanto que, em 1629, ele

    publica uma traduo da Guerra do Peloponeso, de Tucdides.

    O filsofo tambm trabalhou durante muitos anos para a famlia Cavendish,

    com quem esteve ligado, mesmo que indiretamente, por toda a sua vida. A famlia

    Cavendish, vale dizer, era uma das famlias aristocrticas mais ricas e influentes

    na Inglaterra desde o sculo XVI. Nosso autor foi nomeado, em 1608, preceptor

    do filho de Willian Cavendish, primeiro conde de Devonshire. O trabalho na casa

    dos Cavendish rendeu a Hobbes o contato com muitas pessoas influentes do

    mundo poltico e acadmico, dentre elas, personalidades como cardeais de Roma

    e personalidades de Genebra. Em 1634, por exemplo, Hobbes encontrar-se com

    Galileu numa viagem. Esses encontros foram possibilitados nas trs primeiras

    viagens de Hobbes com o filho do conde. O prprio Hobbes, na carta dedicatria

    1 Bernardes. Julio. Hobbes & A Liberdade. p. 08. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 2002.

  • 11

    do De Cive (1642), cujo livro foi dedicado ao conde William de Devonshire,

    reconhece a importncia e a influncia dessa famlia nos seus estudos. Vejamos:

    Por conseguinte, ofereo este livro em primeiro lugar, no ao

    favor de vossa senhoria, mas a vossa censura. (...). Vossa senhoria h

    de aceit-lo como penhor de minha gratido, pois que os meios de estudo

    que sua bondade me proporcionou eu consagrei a procurar merecer o

    seu favor 2.

    Alm do contato do filsofo com o ambiente dessas personalidades, o

    contato com as mudanas provocadas pela nova cincia tambm foi

    determinante na sua formao. A esse respeito, Bernardes afirma: Pode-se dizer

    que duas coisas mudaram definitivamente a vida intelectual de Thomas Hobbes: o

    espanto com as verdades a priori da geometria de Euclides e a fsica de Galileu 3.

    J Renato Janine Ribeiro, na introduo da edio brasileira do De Cive,

    afirma que devemos salientar esse enamoramento de Hobbes pela cincia dos

    corpos4. Alis, o prprio Hobbes confirma que, ao terminar o Leviat em 1651, ele

    ficara feliz em poder voltar para as suas especulaes iniciais sobre os corpos

    naturais. Na verdade, ainda segundo Janine Ribeiro, as questes polticas da

    Inglaterra, especialmente as ocorridas entre os 1625 e 1649, e os conflitos

    internos, fizeram Hobbes adiantar-se na publicao dos seus estudos sobre a

    poltica5. Janine Ribeiro continua:

    Hobbes planejava escrever a sua obra em trs etapas. A

    primeira se voltaria para o exame dos corpos; seria sua fsica. Na

    segunda, consideraria, dentre os corpos, em particular o dos homens o

    2 Hobbes, Thomas. De Cive. p. 3. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2002.

    3 Bernardes, Julio. Hobbes & A Liberdade. p. 12.

    4 Cf. Ribeiro, Renato Janine. In. De Cive. p. 21.

    5 Cf. Idem. p. 22.

  • 12

    que em linguagem de hoje chamaramos sua psicologia. Na terceira,

    finalmente estudaria os homens enquanto cidados: a poltica 6.

    Com o Renascimento, carreiras como a escolhida por Hobbes, isto , ser

    preceptor do filho de um conde e tradutor de textos clssicos, eram extremamente

    valorizadas. Para os renascentistas, conhecer os clssicos era um meio de formar

    homens que pudessem, mediante a poltica, melhorar a vida social. A retomada da

    literatura clssica, como a de Ccero, por exemplo, podia fazer do homem

    moderno um cidado mais atuante na transformao do seu meio social. Vejamos

    como Richard Tuck, na introduo do Leviat, apresenta esse contato dos

    renascentistas com Ccero:

    O objetivo do conhecimento dos clssicos era equipar um

    homem para o tipo de servio pblico que heris como Ccero haviam

    desempenhado: o melhor modo de vida (acreditavam eles) era a do

    cidado ativo e comprometido, lutando pela liberdade da repblica ou

    usando as suas habilidades oratrias para convencer outros cidados a

    lutar com ele 7.

    Esse ideal presente na poltica ciceroniana ser por Hobbes abandonada,

    trocando-o pelo pensamento de Tcito. No foi s Hobbes que comeou a

    abandonar Ccero; muitos intelectuais da poca fizeram o mesmo, como nos diz o

    mesmo Tuck: No lugar de Ccero, liam (e escreviam como) Tcito, o historiador

    dos primrdios do imprio romano 8. Nos escritos de Tcito a poltica aparece

    como domnio da corrupo e da traio e a noo de manipulao dos

    governados est mais presente:

    a ideia que a tradio de Tcito tinha dos agentes humanos era

    precisamente de que estavam abertos manipulao causal de um tipo

    6Ribeiro, Renato. P.22.

    7 Tuck, Richard. In. Hobbes, Thomas. Leviat. p.15. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2003.

    8 Ibidem

  • 13

    mais ou menos fidedigno, e a filosofia de Hobbes em relao a essa rea

    incorporou as ideias dessa tradio 9.

    Outra referncia importante para a formao intelectual de Hobbes foi

    Francis Bacon, que era amigo dos seus patres e algum por quem eles nutriam

    grande respeito e admirao.

    Feitas essas rpidas consideraes sobre a vida do nosso autor, que

    mostram o quanto Hobbes estava envolvido com o seu tempo, avancemos agora

    para o foco deste trabalho.

    O ponto central desse trabalho o estudo da concepo hobbesiana das

    paixes humanas e a sua vivncia pelo homem, primeiro, durante o estado de

    natureza, em seguida, no estado civil. Para isso, priorizaremos as reflexes de

    Hobbes sobre o assunto contidas no Leviat, de 1651, sua obra mais acabada.

    Recorreremos ao De Cive, de 1642, quando necessrio. Em suma, o que nos

    importa aqui percorrer o itinerrio do pensamento hobbesiano sobre as paixes,

    comeando pelas manifestaes destas no estado de natureza, em seguida, no

    processo de passagem do estado de natureza para o estado civil, e, por fim, no

    estado civil.

    Num primeiro momento, iremos nos concentrar na investigao do filsofo

    sobre a origem das paixes. Para tal, tomaremos como ponto de apoio o captulo

    6 do Leviat, no qual Hobbes trata exatamente da origem das paixes.

    Neste primeiro captulo trataremos das paixes no estado de natureza, da

    sua origem e definio, portanto, lanaremos os fundamentos conceituais do

    pensamento hobbesiano a respeito. Noes como movimento, desejo e averso

    sero de importncia estratgica para a compreenso do processo no qual as

    paixes efetivam-se como o motor dos homens durante as suas vidas,

    influenciando principalmente suas escolhas.

    Embora o Leviat seja a obra capital do nosso trabalho, comecemos

    analisando o De Cive, o qual, de certa forma, no s retomado no Leviat,

    9 Tuck, Richard. In. Leviat. p. XXIX.

  • 14

    como, sobretudo, ousaramos dizer, aprimorado e transformado na prpria obra

    Leviat.

    O De Cive est dividido em trs partes: Liberdade, Domnio e Religio. Na

    primeira parte, com quatro captulos, Hobbes trata das questes relativas

    condio humana fora da sociedade civil e tambm das leis de natureza. Na

    segunda parte, Hobbes desenvolve os temas concernentes ao governo civil. Por

    fim, a ltima parte ocupa-se da relao entre a obedincia ao soberano e a

    obedincia a Deus. As reflexes que mais nos interessam so as da primeira e

    segunda parte. Quando necessrio, recorreremos aos captulos dedicados

    religio. O Leviat, por outro lado, est dividido em quatro partes: Do Homem, Da

    Repblica, Da Repblica crist e do Reino das trevas. Interessa-nos

    especificamente a primeira e a segunda parte, mais exatamente os captulos VI,

    XIII, XIV, XVI e XVII.

    Um aspecto que merece destaque o quanto Hobbes tenta transmitir de

    maneira clara as suas ideias para os seus leitores. Como j salientamos, uma

    chave de leitura para a compreenso do pensamento poltico hobbesiano o

    contexto histrico dentro do qual suas idias foram geradas, ou seja, distrbios

    sociais e a crise de autoridade vivida na Inglaterra no perodo da guerra civil

    (1642-1649). O prprio Hobbes cita no De Cive que no h guerra travada com

    tanta ferocidade como aquelas travadas pelos grupos de uma mesma cidade, ou

    seja, a guerra civil10.

    No nosso caso, o contexto histrico no ser o mais importante. Na

    verdade, pretendemos tom-lo apenas como pano de fundo para salientar

    algumas questes do pensamento do nosso autor. Sendo assim, no iremos nos

    aprofundar em mincias histricas do perodo no qual viveu Hobbes. Mas,

    evidentemente, no relegamos a importncia dos fatos histricos presentes nos

    sculos XVII para a vida do nosso autor.

    10

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30. Editora Martins fontes. So Paulo, 2002.

  • 15

    No segundo captulo, iremos mostrar como se efetivam as paixes entre os

    homens. Se, no primeiro captulo, faremos uma anlise da gnese das paixes, no

    segundo captulo iremos mostrar como as paixes influenciam o agir humano.

    Num primeiro momento, abordaremos a questo do medo que os homens

    vivenciam no estado de natureza e o quanto este sentimento leva os homens

    antecipao no uso da violncia. Acuados pelo medo de serem atacados no

    estado pr-social, onde no existe nenhuma regra e todos os homens tm direito a

    todas as coisas, o indivduo, movido pelo instinto de autopreservao, ataca antes.

    Depois, passaremos anlise do desejo de glria que h nos homens, do

    quanto esse desejo de precedncia pode ampliar as tenses existentes no estado

    de natureza. Em seguida, discorreremos sobre a lgica do homem hobbesiano, o

    qual age sempre em benefcio prprio. Ou seja, iremos tratar do desejo que h

    nos homens de tirar proveito, em seu prprio benefcio, de todas as coisas. E,

    neste caso, como essa lgica egosta no estado de natureza os conduz a um

    estado permanente de conflitos.

    Finalmente, passaremos a expor como na raiz da sada dos homens do

    estado pr-social para o estado civil esto as paixes do medo e da esperana.

    Nestas duas paixes residiria a fora que move os homens na direo do pacto

    social. Em outras palavras, sero o medo da morte violenta e a expectativa que os

    homens possuem de uma vida longa e em segurana que os levaro a buscar um

    acordo de paz.

    J no terceiro captulo entraremos no debate em torno da dinmica das

    paixes e suas conseqncias entre os homens durante o estado civil. Ou seja,

    esse captulo vai mostrar como as paixes continuam atuantes mesmo depois do

    estabelecimento do pacto e da coero com a consolidao do Estado. Contudo,

    antes vamos discorrer sobre alguns aspectos que envolvem o pacto social.

    Primeiramente, vamos tratar das leis de natureza. O objetivo entrar nas mincias

    do trecho do Leviat que consideramos, seno o mais importante, certamente um

    dos mais importantes, a saber:

  • 16

    Que todo homem concorde, quando os outros tambm o faam,

    e na medida em que tal considere necessrio para a paz e para defesa

    de si mesmo, em resignar o seu direito a todas as coisas, contentando-

    se, em relao aos outros homens, com a mesma liberdade que aos

    outros homens permite em relao a si mesmo 11

    .

    Nesse sentido, ao abordarmos o pacto social, trataremos de assuntos como

    as condies para o acordo, a busca da paz, o direito natural de todos a todas as

    coisas, e, por fim, a questo da liberdade.

    No que tange s condies para que o pacto social acontea,

    discorreremos sobre o quanto o Estado importante para garantir o pleno

    cumprimento do contrato que h entre os homens. Em outras palavras, o Estado

    que dar aos homens as garantias necessrias para que o acordo se realize.

    Posteriormente, nos debruaremos sobre a busca da paz como marca

    registrada da poltica de Hobbes. E ainda, que para se viver em paz e em

    segurana preciso a presena forte do Estado.

    O captulo ainda tratar de outro dois aspectos do pacto social: a alienao

    do direito que os homens tm a todas as coisas e as consequncias do pacto

    social, dentre elas a instituio do Estado como obstculo a determinadas aes

    humanas.

    Ainda no captulo 3, empreenderemos o debate sobre a relao entre lei de

    natureza e razo em Hobbes. Para tal, iremos nos apoiar na ideia de que Hobbes

    nos traz uma nova noo de razo. Contrariando os antigos clssicos que

    colocavam a razo como elemento superior aos demais apetites, ele apresenta

    uma razo calculadora e que tambm seria muito influenciada por fatores

    externos.

    Finalmente, concluiremos o captulo 3 na perspectiva de que Hobbes tinha

    como projeto intelectual fazer da filosofia poltica uma cincia capaz de conduzir

    os homens paz, a grande esperana, alis, dos homens do seu tempo. Cabe

    11

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 113.

  • 17

    ressaltar que Hobbes pretendeu ser o fundador de uma cincia poltica to precisa

    quanto a geometria.

    Ser o fundador de uma nova cincia poltica implica deixar de lado todo um

    passado especulativo do pensamento poltico, o qual muitas vezes Hobbes far

    questo de critic-lo. No difcil encontrarmos nos textos de Hobbes passagens

    que falem abertamente que os homens que pensaram a poltica at ele ou nada

    sabiam ou estava tratando a natureza humana muito superficialmente 12.

    Hobbes, no pretendia ser apenas o fundador de uma nova cincia poltica;

    ele tambm queria deixar essa cincia profundamente alicerada, o que a tornaria

    praticamente irrefutvel. Para isso fez do rigor da matemtica o mtodo do seu

    projeto:

    O importante em sua obra porm foi trazer o mtodo dito

    galilaico o que consistia em resolver o objeto dado em seus elementos

    constituintes, para depois comp-lo novamente em sua complexidade-

    para a considerao da poltica. Pretendeu com isso, tornar a poltica

    uma cincia (...), e sobretudo faz-la irrefutvel 13

    Mesmo correndo o risco do clich, impossvel no encontrar no

    pensamento poltico de Hobbes elementos vivos e ainda atuais, alguns deles

    tratados a seguir.

    12

    Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 26. 13

    Cf. Ribeiro, Renato Janine. In. Apresentao. De Cive. p. 23.

  • 18

    CAPTULO 1

    O HOMEM QUE DESEJA: HOBBES E AS PAIXES

    Na primeira parte do Leviat, Hobbes ocupa-se do homem, ou seja, faz

    uma anlise dos aspectos principais que compem a natureza humana. Conhecer

    em detalhes a natureza humana, sua essncia, e, por conseguinte, a condio

    humana num hipottico estado pr-social e pr-poltico.

    J na introduo da obra, Hobbes assim define a vida: Pois, considerando

    que a vida no passa de um movimento dos membros, cujo incio ocorre em

    alguma parte interna, por que no poderamos dizer que todos os autmatos

    possuem uma vida artificial? 14. Para ele, corao, nervos e juntas seriam

    anlogas s molas, cordas e rodas; todas estas particularidades do corpo humano

    lhe imprimiriam o movimento, esta, uma idia chave para compreender o

    pensamento hobbesiano15.

    O filsofo compara o corpo natural do homem ao Estado, este, um corpo

    artificial. Seguindo o raciocnio do autor na introduo do Leviat, o corpo humano

    comparado ao corpo poltico, ou seja, ao corpo social. Na viso de Hobbes, o

    Estado seria o homem artificial e o principal objetivo deste deve ser garantir

    proteo e defesa ao corpo natural daqueles que juntos formam esse corpo

    artificial, ou seja, os sditos. Segundo nosso autor, a alma artificial a soberania,

    pois ele entende que a soberania que d vitalidade a todas as partes do corpo:

    a soberania uma alma artificial, pois d vida e movimento ao corpo inteiro 16.

    14

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 11. Ed. Martins fontes. So Paulo, 2003. 15

    Cf. Idem. p. 11 16

    Idem. p. 11.

  • 19

    Magistrados e funcionrios seriam as juntas desse corpo; a funo dos nervos

    seria promover a recompensa e os castigos; a riqueza e a prosperidade

    corresponderiam fora; os conselheiros seriam a memria do corpo; as leis, a

    vontade, a equidade e a razo17. J a concrdia corresponderia ao que no corpo

    a sade; a sedio, por sua vez, seria a doena. Por fim, a guerra concebida

    como a morte do corpo social18. Em seguida, Hobbes refere-se ao pacto social,

    que seria aquele momento em que cada homem aliena o seu direito a todas as

    coisas para um soberano, que leva ao nascimento do Estado. Para tal, Hobbes

    compara a instituio do Estado criao do homem encontrada no livro bblico

    do Gnesis. De acordo com o nosso autor, o pacto assemelha-se ao Fiat

    (Faamos) de Deus quando este criou o homem19.

    Aps esta breve apresentao da descrio hobbesiana do homem contida

    na introduo do Leviat, a questo que devemos pensar : at onde essa

    explicao do homem serve como base para fundamentar a sua teoria poltica?

    Ou seja, at que ponto a anlise que Hobbes faz das paixes determinante para

    as concluses a que ele chegou posteriormente no campo da poltica? E ainda,

    qual a fora que teriam as paixes na passagem de um estado pr-social para o

    estado civil? Mais: as paixes so a fora motriz que impulsiona os homens a

    fazer o pacto social?

    Nesse sentido, mais indagaes se colocam: o que a natureza humana e

    como se articulam as paixes no seio da teoria de Hobbes sobre a poltica? Qual

    seria a importncia do estudo das paixes para chegarmos ao cerne do

    pensamento do nosso autor?

    Sobre o estudo das paixes, a propsito, escreve Maria Isabel Limongi:

    Desta cincia das paixes ou, se no dela, pelo menos da experincia das

    paixes se retiram, por sua vez, os princpios da cincia civil 20.

    17

    Cf. Idem 12. 18

    Idem. p. 11. 19

    Idem. p. 11. 20

    Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. Edies Loyola. So Paulo, 2009. p. 36.

  • 20

    Vejamos ento como no estado de natureza as paixes se originam e se

    manifestam em cada indivduo, sobretudo pelo estudo do captulo VI do Leviat,

    intitulado da Da origem interna dos movimentos voluntrios vulgarmente

    chamados PAIXES, e da linguagem que os exprime. Na verdade, Hobbes, ao

    analisar as paixes, vai ater-se mais a um juzo de fato do que de valor. Em outras

    palavras, ele est mais preocupado em descrever as paixes do que propriamente

    julg-las como boas ou ruins. Primeiramente, ele faz um levantamento daquilo que

    a natureza humana . Vamos a ele.

    O autor do Leviat, no captulo seis, destaca a origem das paixes e como

    elas so expressas mediante a linguagem. Primeiramente, Hobbes distingue os

    tipos de movimentos. No seu entender, h dois tipos de movimentos fsicos: um

    vital e outro voluntrio. O vital, que tambm poderamos cham-los de

    involuntrios, so aqueles que encontramos na circulao do sangue, nos

    batimentos cardacos, nos processos respiratrios e digestivos. J o movimento

    voluntrio seria uma resposta a aquilo que primeiramente passa pela imaginao,

    em ltima instncia, pelo crivo da razo: O outro tipo de movimento dos animais,

    tambm chamamos movimentos voluntrios, como o andar, o falar, mover

    qualquer dos membros, da maneira como primeiro imaginamos em nossa mente

    21. Para Hobbes, o movimento seria a causa primordial das aes humanas. Em

    breves palavras vamos situar a teoria hobbesiana das paixes em relao sua

    concepo de movimento, que ser permeada pelos elementos da fsica do sculo

    XVII.

    Em linhas gerais, poderamos afirmar que a viso que Hobbes tem da

    natureza e dos corpos uma viso mecanicista. Sem entrar na complexidade e no

    mrito da questo, limitamo-nos a dizer a respeito que Hobbes deixa de lado a

    viso teleolgica de natureza, segundo a qual todos os corpos dirigiam-se para um

    fim determinado, e passa para viso mecnica e causal, segundo a qual os corpos

    21

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 46.

  • 21

    dirigem-se para um fim no determinado, mas almejado. Observemos a mudana

    de paradigma na questo do movimento contrapondo muito rapidamente Hobbes

    e Aristteles.

    De acordo com Iara Frateschi, ao estudarmos Aristteles, um dos alvos

    privilegiados da filosofia poltica de Hobbes, que encarna perfeitamente essa viso

    teleolgica, podemos chegar seguinte concluso: Para Aristteles, o movimento

    natural teleolgico, causado pela tendncia natural do corpo a obter a sua

    completude, a atualizar a sua essncia 22. Em Hobbes, a ideia de movimento

    apenas mudana de lugar, indiferente a qualquer processo teleolgico: os homens

    se movem no na direo da atualizao do que so potencialmente, mas na

    direo dos benefcios almejados, exclusivamente por efeito de causas eficientes

    23.

    Podemos perceber que o pensamento do filsofo sobre a origem dos

    movimentos, ou seja, sobre a sua causa, tem uma forte relao com a fsica. Na

    verdade, o que Hobbes faz com a sua teoria sobre o movimento dos corpos uma

    fsica do movimento. Ele comea o captulo II do Leviat, no qual trata do tema da

    imaginao, com as seguintes palavras: Nenhum homem duvida da verdade da

    seguinte afirmao: quando uma coisa est em repouso, permanecer sempre em

    repouso, a no ser que algo a coloque em movimento24. O movimento dos corpos

    seria ento o resultado de uma ao causal eficiente que, no limite, tende a faz-

    los movimentarem-se ao infinito caso no haja uma fora contrria que os faa

    parar.

    Dessa reflexo sobre o movimento dos corpos podemos levantar algumas

    questes: seria o homem, na concepo hobbesiana, um corpo descontrolado?

    Por isso a necessidade de um poder, no caso o do Estado, para dar-lhe uma

    conteno e direo? Em outras palavras, a funo deste Estado seria disciplinar

    22

    Frateschi, Iara A. A fsica da poltica: Hobbes contra Aristteles. Ed. Unicamp. Campinas-SP, 2008 p. 62. 23

    Idem. p. 62. 24

    Thomas, Hobbes. Leviat. p. 17

  • 22

    os apetites humanos, dos quais falaremos com mais detalhes adiante, para uma

    direo que os faa sair do estado de guerra perptua para o estado social?

    Surge, nesse caso, outra questo pertinente s consequncias promovidas

    pelo novo modelo de movimento sustentado por Hobbes: a questo da liberdade,

    mais precisamente, da liberdade entendida como livre-arbtrio. Se os movimentos

    dos corpos so infinitos, conseqentemente, Hobbes tambm entender a

    liberdade, como ausncia de obstculos ao movimento, como infinita. E

    exatamente o que se percebe na prpria definio de liberdade dada pelo nosso

    autor:

    Por LIBERDADE entende-se, conforme significao prpria da

    palavra, a ausncia de impedimentos externos, impedimentos que muitas

    vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas

    no podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o

    julgamento e poder que lhe reste25

    .

    Para Hobbes, toda relao de movimento pressupe outro corpo que aja

    sobre aquele corpo em repouso ou em movimento26. Toda a fsica do movimento,

    em Hobbes, ser marcada pelos corpos que so capazes de agir ou padecer

    diante da ao de outro corpo, ou seja, de um obstculo que se coloque como

    fora contrria ao movimento desses corpos.

    Voltando, a propsito, ao texto do Leviat, aps breve pausa para tratamos

    da questo do movimento, Hobbes, para tratar do desejo e da averso, comea

    falando de esforo. Segundo ele, quando um esforo efetiva-se na direo de um

    objeto, a isso damos o nome de desejo ou apetite. Caso esse movimento seja

    contrrio ao objeto, o nome que dado averso: As palavras apetite e

    averso vm do latim e ambas designam movimentos, um de aproximao e o

    outro de afastamento 27. Interessante perceber que Hobbes, quando trata das

    25

    Idem. p. 112. 26

    Cf. Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 40 27

    Hobbes, Leviat. p. 47

  • 23

    paixes, prefere falar de movimento. Maria Isabel Limongi d-nos uma

    contribuio importante sobre o assunto ao afirmar o seguinte: A paixo parece

    no ser seno o nome que normalmente se d ao que Hobbes prefere, no entanto

    conceitualizar em termos de movimento 28. Na verdade, o que Hobbes diz que,

    o que normalmente as pessoas chamam de paixo o nome vulgar que se utiliza

    para movimentos da mente 29. O prprio ttulo do captulo 6 do Leviat, alis, d-

    nos clareza a respeito do assunto: Da origem interna dos movimentos voluntrios

    vulgarmente chamados paixes; e da linguagem que os exprime 30

    Lemos no Leviat que o prprio homem quem determina o que bom ou

    mal com base nesse critrio de desejo e averso. Segundo ele, seja qual for o

    objeto do apetite ou do desejo de qualquer homem, esse objeto aquele que cada

    um chama de bom; ao objeto do seu dio e averso chama de mau31. As ideias

    de amor e dio tambm esto relacionadas s coisas que os homens desejam

    perto ou longe deles: Aquilo que os homens desejam se diz tambm que AMAM,

    e que ODEIAM aquelas coisas que sentem averso 32.

    Na verdade, o critrio para dizer o que bom ou ruim subjetivo, no

    sendo a moral, portanto, um conhecimento objetivo: descrio sobre bom ou

    mal so projees de nossas sensaes internas sobre o mundo externo, assim

    como vermelho e verde33. Estaria ento o homem hobbesiano agindo sempre

    em benefcio prprio uma vez que o critrio do que bom ou mal determinado

    pelo desejo ou pela averso que tem de determinadas coisas?

    Sobre essa questo do benefcio prprio, no podemos esquecer que, para

    Hobbes, o comportamento humano determinado, principal e primeiramente, por

    uma tendncia natural e no por imperativos irredutivelmente morais 34. Segundo

    Richard Tuck, o fundamento da moral hobbesiana est na autopreservao, ou

    28

    Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 37. 29

    Cf. Idem. p. 36 30

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 46 31

    Thomas, Hobbes. Leviat. p. 48. 32

    Idem. p. 47 33

    Richard, Tuck. In. Apresentao do Leviat. p. 29. 34

    Frateschi, Iara. A fsica da poltica: Hobbes contra Aristteles. p. 72.

  • 24

    seja, os homens fogem daquilo que possa causar-lhes dor, sofrimento e,

    consequentemente, a morte. A manuteno da vida, nesse caso, seria um valor

    absoluto de todos os indivduos. Vejamos em linhas gerais como Tuck entra nesse

    debate dos fundamentos da moral em Hobbes.

    No entender de Tuck, Hobbes concebeu uma filosofia para resolver os

    problemas do seu tempo. O filsofo nutria uma ambio utpica35 de pensar a

    filosofia em termos prticos. Entre tantas questes prticas pensadas por Hobbes

    est a de como encontrar um padro objetivo para definir o que certo ou

    errado36. Para afirmar que o fundamento da moral, isto , de um saber que ajude o

    homem a escolher entre o bom e o ruim, est na autopreservao, Tuck diz que o

    desejo fundamental de se preservar da morte o nico desejo destitudo de um

    componente cognitivo fundamental37. Dito de outro modo, nas palavras do

    prprio Tuck:

    As paixes que aparentemente nos movem tm na maioria dos

    casos um componente cognitivo fundamental de modo que, por

    exemplo, a alegria provm da imaginao do prprio poder e capacidade

    de um homem, ao passo que a tristeza se deve convico de falta de

    poder38

    .

    Tuck continua: O nico desejo destitudo de contedo cognitivo o desejo

    fundamental de preservar se preservar da morte 39. Como podemos perceber, o

    fim ltimo que movimenta os homens o de preservar a sua prpria existncia,

    como dir mais tarde Hobbes: No pois absurdo, nem repreensvel, nem

    contrrio aos ditames da verdadeira razo , que algum use todo o seu esforo

    35

    Richard, Tuck. Tuck. In. Apresentao. Leviat. p. 29. 36

    Idem. p. 29. 37

    Idem. p. 31 38

    Idem. p. 31 39

    Idem. p.31

  • 25

    para preservar e defender seu corpo e seus membros da morte e dos sofrimentos

    40.

    A linguagem tambm de fundamental importncia para definir o que seria

    o bem e o mal, pois por meio dela que o homem diz o que considera prazeroso e

    proveitoso ou recusa aquilo que causa desprazer e lhe nocivo. Para concluir

    essa anlise sobre os fundamentos da moral em Hobbes, lembremo-nos que as

    noes de justo ou injusto s existem no estado social, ou seja, no estado de

    natureza os homens no podem falar em injustia; seriam, portanto, convenes.

    Aps falar de desejo e da averso no captulo VI do Leviat, Hobbes

    envereda por uma longa descrio das paixes humanas: medo, alegria, tristeza,

    dor, sofrimento, entre outras. Mas antes de comear a descrever cada uma delas,

    o filsofo trata do problema da linguagem. Ele afirma que pela linguagem que o

    homem expressa o que para ele bom ou ruim.

    Para prosseguirmos com a anlise desse captulo seis, julgamos

    interessante valorizarmos mais essa relao entre linguagem e paixes humanas.

    Para tal, o livro Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes, de

    Ismar Dias Matos, pode nos ajudar nesse debate. O autor discute alguns aspectos

    importantes do problema da linguagem em Hobbes, a saber, a linguagem como

    identificao do humano e a linguagem como instrumento poltico.

    Segundo Matos, em sua anlise do captulo 6 do Leviat, o que diferencia

    essencialmente os homens dos animais o uso da linguagem, uma vez que

    ambos obedecem ao critrio das sensaes, ou seja, as noes de prazer e

    desprazer so levadas em considerao por eles no momento em que fazem as

    sua escolhas41. Neste caso, o que haveria no Leviat um processo de

    hominizao, pois Hobbes, segundo Matos, tenta mostra que o homem loquens

    transformado no homo faber, ou seja, naquele que capaz de construir a paz,

    40

    Thomas, Hobbes. De Cive. Ed. Martins Fontes. So Paulo, 2002. p. 31. 41

    Cf. Matos, Ismar D. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. Ed. AnnaBlume. So Paulo, 2007. p. 58.

  • 26

    de sair do estado de natureza para a vida em sociedade42. Em outras palavras,

    nenhum outro animal teria essa capacidade.

    Vejamos essa relao entre homem, linguagem e construo da paz nas

    palavras do prprio Matos: Pela palavra o homem capaz de comunicar aos

    demais homens o desejo de construir a paz, de criar um ambiente mais propcio

    para a vida se desenvolver43. Essa relao entre linguagem, objeto e semelhante

    importante no processo de entendimento das paixes, pois o homem procura,

    por meio da linguagem, comunicar-se e dizer o que so os objetos aos outros e,

    neste caso, se lhe so benficos ou danosos.

    Sendo assim, seria intil ao homem fazer conhecer a sua vontade se no

    houvesse um interlocutor, ou seja, por meio da linguagem que os homens

    expressam aos outros os seus desejos, incluindo a o desejo de construir a paz.

    Portanto, entender a questo da linguagem em Hobbes fundamental, pois pela

    linguagem que os homens iro formalizar o pacto, portanto, pela linguagem que

    os homens saem do estado de natureza e caminham para o estado civil.

    Evidentemente, a linguagem sozinha no ter fora suficiente para controlar

    os homens nas suas paixes. Para tal, preciso que haja a fora do Estado para

    garantir o cumprimento daquilo que foi acordado por meio das palavras.

    Para Hobbes, o critrio do que para o homem deleitoso ou perturbador do

    esprito est nas sensaes. Assim, as sensaes de luz, cor, som e olfato

    provocam em ns boas ou ms sensaes. Do mesmo modo so as paixes44. A

    tendncia que o homem fuja daquilo que lhe cause algum tipo de desconforto e

    procure as coisas que lhe dem conforto. Hobbes entende tambm que todos

    esses movimentos esto ligados manuteno da vida: Este movimento a que se

    chama apetite e, em sua manifestao, deleite e prazer, parece constituir uma

    corroborao do movimento vital e uma ajuda prestada a este 45. Aps essas

    consideraes sobre o movimento, a linguagem e as sensaes, Hobbes comea

    42

    Cf. Matos, Ismar D. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 58. 43

    Matos, Ismar Dias de. Uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 60. 44

    Idem. p. 49 45

    Idem. p. 50

  • 27

    a descrever cada uma das paixes at quase o final de todo o captulo seis do

    Leviat.

    De acordo com Hobbes, chamamos de prazerosos os objetos que

    contribuem para a manuteno da vitalidade e de molstias as coisas que nos

    causam algum tipo de perturbao vital. Os prazeres podem ser divididos em duas

    categorias: prazeres dos sentidos e prazeres do esprito. Hobbes entende que

    todos os objetos que apetecem, ou seja, que atraem algum dos nossos sentidos e,

    por conseqncia, nos trazem sensao de conforto e prazer, ns os

    denominamos de prazeres dos sentidos, ao passo que os objetos que causam

    transtornos a algum dos cinco sentidos, quando temos algum desprazer, essa

    sensao recebe o nome de dor46. Quanto aos prazeres do esprito, afirma o

    filsofo: Outros prazeres ou deleites derivam da expectativa provocada pela

    previso do fim ou conseqncia das coisas, quer essas coisas agradem ou

    desagradem os sentidos 47. Segundo o filsofo, tanto a alegria quanto a tristeza

    residem nas consequncias de uma espera futura, na possibilidade ou no do

    contato com um objeto que possa causar ou no algum benefcio ou dano

    pessoa que entrar em contato com esse objeto.

    Hobbes continua o captulo seis analisando cada um dos desejos humanos

    e como esses so movidos por sucessivas causas. Dito de outro modo, um desejo

    sempre impulsiona outro desejo que, consequentemente, gera um novo desejo.

    Hobbes vai articulando os desejos e as paixes humanas. No final, constata que

    eles se expressam e se realizam numa cadeia de causalidades.

    Feita essa exposio sobre as paixes iniciaremos agora um esforo para

    tentar explicar em que medida em Hobbes a sua concepo de ser humano seria

    essencial na fundamentao da sua teoria poltica.

    Quando observamos as paixes, de acordo com a leitura que Hobbes faz

    delas, constatamos que as paixes geram guerras, conflitos e insegurana; do

    mesmo modo, que elas so em parte responsveis pelo controle da natureza

    46

    Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 50 47

    Idem. p. 50

  • 28

    humana. Vamos tentar entender ao longo deste captulo essa dupla funo das

    paixes. Mas, para tal empreitada, ser necessrio seguir os passos da

    apresentao das paixes feita pelo filsofo no captulo VI do Leviat. Vejamos

    como o autor costura essa teia de relaes entre desejos e paixes.

    O desejo, ou melhor, o apetite, quando ligado crena da conquista recebe

    o nome de ESPERANA, ao passo que o desejo sem a crena da conquista

    recebe o nome de DESESPERO. Quando somos repelidos pelo medo de alguma

    das consequncias ruins que podem ser causadas por um objeto, damos o nome

    a esse movimento de afastamento do objeto de MEDO. Se, ao contrrio,

    decidimos enfrent-lo, a essa atitude de enfrentamento damos o nome de

    CORAGEM. Hobbes pondera e diz que a coragem sbita pode tornar-se

    COLRA, que entendemos ser a falta de controle no uso da virtude da coragem48.

    Se considerarmos as paixes como o principal alicerce do edifcio poltico

    do pensamento de Hobbes, certamente o medo e a esperana tero lugar de

    destaque. Dito de outro modo, se as paixes tm um papel decisivo na cincia

    poltica pensada por Hobbes, sero o medo e a esperana os pilares desse

    projeto. Voltemos ao Leviat.

    Para Hobbes, a esperana constante chama-se CONFIANA, essa falta de

    confiana ou DESCONFIANA em si mesmo recebe o nome de desespero. Nesse

    caso, o desespero aparece tanto para falar da falta de confiana num futuro

    promissor quanto para falar da falta de expectativa em relao prpria vida.

    Muitas paixes, segundo Hobbes, assim como o desespero, so causadas por

    expectativas futuras.

    A clera, quando bem direcionada, pode tornar-se indignao. De acordo

    com Hobbes, esse ato de indignar-se surge perante um grande dano feito a

    outrem, quando pensamos que foi feito por injria 49. O que Hobbes entende por

    injria est claro no De Cive: Violar um compromisso, ou exigir de volta algo que

    48

    Idem. p. 51 49

    Idem. p. 50

  • 29

    j demos o que se chama injria 50. Essa palavra injria, no entender de

    Hobbes, significa qualquer tipo de ofensa a um direito individual de alguma

    pessoa, pois, segundo ele, a ningum se faz injria, exceto com queles que

    contratamos 51.

    Ao descrever a benevolncia, a boa vontade, a caridade e a bondade

    natural, Hobbes relaciona todas essas paixes ao desejo que os homens tm de

    ver o bem dos outros. O interessante perceber que no De Cive o autor fala que

    os homens no tiram nenhum proveito da companhia uns dos outros, que muitas

    vezes a convivncia social penosa e complicada 52.

    Quando o desejo est direcionado para riquezas chama-se cobia.

    Segundo Hobbes, a cobia sempre vista pelos civilizados com reprovao moral,

    mas ela deve ser considerada e relacionada aos meios empregados para

    conseguir quando se almeja riquezas 53. O mesmo pode-se dizer sobre a ambio,

    que o desejo de por altos cargos.

    A virtude da magnanimidade, que pode ser entendida como uma grandeza

    de esprito, est ligada s grandes ajudas, aos grandes feitos de coragem,

    sobretudo quando esses colocam em risco a vida do seu praticante. Ao contrrio,

    o desejo pelas coisas pequenas chamado de pusilanimidade. O pusilnime, no

    uso do dinheiro, torna-se mesquinho54. Da virtude do amor derivam a gentileza, a

    lascvia natural, a luxria, a paixo do amor e o cime. J o cime provm do

    medo de no ter o amor correspondido 55.

    Quando Hobbes fala da curiosidade, ele ressalta que esse desejo de saber

    a causa e a razo intrnseca das coisas no existe em nenhum outro ser vivente a

    no ser no homem: Nos animais, o apetite pelo alimento e outros prazeres dos

    sentidos predominam de modo tal que impedem toda e qualquer preocupao

    50

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 54 51

    Idem. p. 55. 52

    Cf. Idem. 26 53

    Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 51. 54

    Idem. p. 51. 55

    Idem. p. 52.

  • 30

    com o conhecimento das causas 56. Para Hobbes, o homem no est apenas

    sujeito ao efeito das coisas, mas ele tambm busca as suas causas, em outras

    palavras, ele busca o conhecimento na tentativa de compreender as coisas.

    Ainda no captulo seis, Hobbes fala da religio, da superstio e da

    verdadeira religio. A superstio, no seu entender, teriam como fonte histrias

    imaginadas:

    O medo dos poderes invisveis, inventados pelo esprito ou

    imaginados com base em histrias publicamente permitidas, chama-se

    religio; quando essas histrias no so permitidas, chama-se

    superstio. Quando o poder imaginado realmente o que imaginamos,

    chama-se verdadeira religio 57

    .

    O medo seria a causa da religio? No entender de Hobbes, sim. Mesmo no

    caso daquela religio que ele chama de verdadeira religio ele atribui ao medo o

    seu principal fundamento. O medo que nos leva a imaginar e a inventar a religio

    o mesmo para a falsa religio, para as religies oficiais e para a verdadeira

    religio. O que fica claro que Hobbes diferencia a religio pblica daquela que

    a verdadeira religio. Na verdade, nem sempre a religio que publicamente

    aceita corresponde verdadeira religio. Em outras palavras, as histrias pelos

    homens inventadas, na tentativa de solucionar um problema causado pelo medo

    daquilo que eles no vem, podem ser proibidas e, por isso, chamadas de

    superstio; podem ser aceitas e, consequentemente, serem chamadas de

    religio; e se aquilo que os homens imaginam corresponde realidade, a essa

    imagem pelo homem criada d-se o nome de verdadeira religio.

    Parece que a verdadeira religio pode subsistir apenas no corao do

    homem. Para Hobbes, a verdadeira religio no precisa ser necessariamente

    aquela institucionalmente aceita. No sculo XVII, falar desse modo de religio era

    pisar em um terreno minado, pois a influncia da religio nos assuntos da poltica

    56

    Idem. p. 52 57

    Idem. p. 52

  • 31

    era constante. O problema de conceber Deus como uma inveno com base na

    imaginao e no medo das coisas invisveis est no fato de que essa afirmao

    contraria toda uma tradio crist, pois, para o cristianismo dominante na poca

    de Hobbes, Deus teria se revelado ao ser humano.

    Hobbes continua o texto falando da vangloria e do por que ela seria v. Ele

    afirma que a alegria que produzida pela imaginao do poder que acreditamos

    ter o que chamamos de glria58, ou seja, a glria fruto da expectativa que um

    homem cria em relao quilo que os outros pensam dele e do seu poder. Sendo

    assim, quando a glria no se concretiza, ela se torna vangloria, pois no

    corresponde realidade. Diferentemente da confiana que tem resultados

    eficazes, a v glria no conduz a nada. Nas palavras do filsofo, a confiana

    bem fundada leva eficincia, ao passo que a suposio do poder no leva ao

    mesmo resultado e portanto justamente chamada v59. Ao falar das relaes

    humanas, Hobbes cita a vangloria como causa das discrdias entre os homens.

    Vejamos como Hobbes encaminha essa anlise.

    No De Cive, nosso autor afirma que as reunies humanas no so

    motivadas pelo amor ou pela considerao ao prximo, mas o contrrio: Toda

    associao (...) ou para o ganho ou pela glria- isto : no tanto para o amor de

    nossos prximos, quanto pelo amor de ns mesmos 60. No Leviat, o filsofo

    mais explicito ao tratar da relao entre v glria e discrdias: De modo que na

    natureza do homem encontramos trs causas principais de discrdia. Primeiro, a

    competio; segundo, a desconfiana; e terceiro, a glria 61. Aqui podemos

    perceber como Hobbes articula as paixes humanas com as relaes sociais.

    Ainda falando sobre o De Cive, nele que Hobbes desenvolve, no primeiro

    captulo, as consequncias da vangloria para o convvio entre as pessoas.

    Segundo Hobbes, a discrdia nasce da comparao das vontades 62, ou seja,

    58

    Cf. Idem. 53. 59

    Idem. p. 53 60

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 28. 61

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 108. 62

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30.

  • 32

    quando uma pessoa discorda frontalmente da opinio da outra. Esta discordncia

    gera uma situao de extrema ferocidade, pois ningum gosta de ser contrariado

    na sua vontade; a esta atitude Hobbes d o nome de combate entre os espritos:

    como o combate entre os espritos de todos o mais feroz, dele necessariamente

    devem nascer as discrdias mais srias 63. Na opinio do filsofo ainda, quando

    uma pessoa discorda da opinio da outra em muitos assuntos, o mesmo que

    chamar essa pessoa de louca ou insensata64. E continua afirmando que todo

    prazer da mente consiste em encontrar pessoas que, se nos comparamos com

    elas, nos fazem sentir triunfantes e com motivo para nos gabar 65. Na viso

    hobbesiana, a glria pessoal conta consideravelmente nas relaes humanas.

    Para Hobbes, a glria no pode ser dividida, pois qualquer tipo de louvor

    consiste na elevao da pessoa. Somos demais vaidosos, acredita o autor, de

    modo que, se todas as pessoas so elevadas, ento, nenhuma delas tirar

    proveito algum dessa elevao: essa glria como a honra, pois consiste em

    comparao e precedncia66. Esse desejo de precedncia, na viso de Hobbes,

    uma das causas do desejo que os homens tm de se ferirem mutuamente no

    estado de natureza. O filsofo afirma que existem duas origens para os homens

    quererem causar danos uns aos outros: a primeira causa surge da avaliao que

    cada pessoa faz da igualdade que existe entre os seres humanos no estado de

    natureza (Dessa causa nos ocuparemos no prximo captulo) e a segunda causa

    o resultado justamente da v glria: (...), supondo-se superior aos demais,

    querer ter licena para fazer tudo o que bem entenda, e exigir mais respeito e

    honra do que pensa serem devidos aos outros 67.

    Hobbes, ainda no captulo 6, continua a sua descrio das paixes

    abordando a vergonha, a crueldade, a emulao e a inveja68.

    63

    Idem. p. 30. 64

    Cf. Idem. p. 30. 65

    Idem. p. 30. 66

    Idem. p. 28. 67

    Idem. p. 29. 68

    Cf. Hobbes, Thomas. Leviat. p. 54.

  • 33

    Como j aludimos acima, Hobbes termina o captulo seis do Leviat, onde

    ele fala da origem das paixes, falando sobre a liberdade. Quando os diversos

    desejos e averses surgem ao mesmo instante no ser humano, quando ele

    precisa tomar uma deciso sobre o que melhor ou pior, isto , o que ir lhe

    causar mais prazer e menos dor, esse movimento em busca de uma alternativa

    Hobbes o chama de deliberao.

    Segundo Hobbes, antes da deliberao vem a vontade: Na deliberao, o

    ltimo apetite ou averso imediatamente anterior ao ou omisso desta que

    se chama VONTADE, ou ato(e no faculdade) de querer. 69 Para ele, os animais

    tambm deliberam e, portanto, tambm tm vontade. Depois Hobbes contraria as

    tradicionais definies de vontade, onde a vontade apetite racional 70. Ele

    entende que a vontade no pode ser apetite racional, pois nenhum ato voluntrio

    poderia ir contra a razo, ou seja, algumas vontades contrariam a razo, no

    entender de Hobbes.

    Segundo Matos, no que se refere vontade, Hobbes no poderia deixar de

    afirmar que seres humanos realizam alguns atos deliberadamente, e define a

    inteno desses atos como paixes 71. Dito de outro modo, quando um ser

    humano procura se afastar de algum objeto, ele o faz em busca de menor ou

    maior prazer, ou seja, o critrio para a escolha o que vai causar-lhe maior ou

    menor dano. Ainda sobre a deliberao, afirma Matos: A diferena fundamental

    entre os homens e as bestas o grau de desenvolvimento provenientes do uso da

    linguagem 72. O prprio Hobbes afirma:

    Fica assim manifesto que as aes voluntrias no so as que tm

    origem na cobia, na ambio, na lascvia e em outros apetites em

    relao a coisa proposta, mas tambm aquelas que tm origem na

    69

    Idem. p. 55. 70

    Idem. p. 55. 71

    Matos, Ismar Dias. uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 56. 72

    Idem. p.56.

  • 34

    averso ou no medo das consequncias decorrentes da omisso da

    ao 73

    .

    Na perspectiva hobbesiana, existe uma linguagem que o homem utiliza

    para comunicar os seus desejos, como j aludimos anteriormente quando falamos

    da linguagem como construo da identidade humana e da linguagem com uso

    poltico.

    O segredo de uma vida feliz estaria na previso, na capacidade de prever

    as consequncias das aes. Para o nosso autor, o ser humano que consegue

    prever com mais preciso quais as consequncias das suas deliberaes ser

    feliz:

    Como na deliberao os apetites e averses so suscitados pela

    previso das boas ou ms consequncias e seqelas da ao sobre a

    qual se delibera, os bons ou maus efeitos dessa ao dependem da

    previso de uma extensa cadeia de consequncias, cujo fim ultimo

    poucas pessoas so capazes de ver 74

    .

    O filsofo atribui ao bom uso da razo ou experincia essa capacidade de

    enxergar longe os resultados das aes. Assim, quem possuir, graas

    experincia ou razo, maior grau de segurana das consequncias ser mais

    capaz de deliberar para si, e ter mais condies, (...) de dar aos outros

    conselhos 75. O ser humano, na perspectiva de Hobbes, est sempre preocupado

    ou calculando as suas decises com base nos seus anseios futuros.

    A relao entre as paixes humanas e o futuro est sempre presente nos

    textos de Hobbes. Quando o autor trata no De Cive e no Leviat da igualdade de

    condio entre os homens, e, por conseguinte, da possibilidade que cada um tem

    de usar da sua prpria vontade para se defender do jeito que melhor lhe aprouver,

    73

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 56. 74

    Idem. p. 57. 75

    Idem. p. 57.

  • 35

    Hobbes fala de uma ao futura. Ele afirma que os homens se antecipam a uma

    possvel violncia que poder ser cometida contra ele. Dito de outro modo, quando

    os homens esto no estado de natureza, no h alternativa para se proteger a no

    ser o ataque, visto que no h nada nessa situao que contenha ou controle as

    paixes humanas 76.

    Hobbes termina o captulo VI falando da felicidade e da viso beatfica, que

    seria o encontro com Deus no cu. O que podemos perceber desde j na anlise

    das paixes que o homem, para Hobbes, conduzido pelas paixes. Nas

    palavras do professor Matos, a filosofia hobbesiana apresenta uma multiplicidade

    de seres humanos individuais, conduzidos, cada um, por suas paixes que so,

    em si mesmas, diferentes formas de movimento 77. Em suma, para Hobbes, cada

    ser escolhe o que melhor para si mesmo.

    Pelo que podemos perceber, o filsofo d um papel de precedncia s

    paixes nas aes humanas. Na verdade, os homens agem movidos por

    impulsos, levado por paixes. Dito de outro modo, as relaes humanas esto

    aliceradas nos movimentos das paixes.

    Sendo assim, no estado de natureza, onde no h um poder comum que

    controle as aes dos indivduos, cada homem relaciona-se com o seu

    semelhante tendo por base os seus desejos e suas averses. Visto de outro

    modo, procuramos sempre o que nos d prazer e deleite e nos afastamos do

    sofrimento e do desprazer. Com isso, as relaes humanas ficam merc,

    quando no h um poder comum capaz de colocar todos os homens na mesma

    direo, dos critrios estabelecidos por cada um na hora de fazer as suas

    deliberaes.

    Neste caso, pergunta se as paixes so fundamentais para a filosofia

    poltica em Hobbes, a resposta est no modo como o prprio autor articula as

    suas duas principais obras, a saber, o De Cive e o Leviat. Em ambos, Hobbes

    76

    Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 32. 77

    Matos, Ismar Dias. uma descrio do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes. p. 57.

  • 36

    comea pela anlise dos homens no estado de natureza para depois falar deles

    no estado civil. Vejamos melhor.

    Na introduo do De Cive, Hobbes salienta quais seriam os passos por ele

    desejado quando pensou na elaborao de um sistema filosfico: primeiro, o

    estudo dos corpos, o que seria a fsica de Hobbes; depois, do homem; e por fim a

    pesquisa sobre a poltica, que pretendia que fosse uma cincia to rigorosa como

    a geometria 78. Acontece que, no meio do caminho desses estudos, a guerra civil

    inglesa eclodiu e Hobbes se viu obrigado a adiantar o seu projeto, colocando a

    poltica em primeiro plano, como ele mesmo afirma:

    (...), aconteceu, nesse nterim, que meu pas, alguns anos antes que as

    guerras civis se desencadeassem, j fervia com questes acerca dos

    direitos de dominao, e da obedincia que os sditos devem, questes

    que so as verdadeiras precursoras de uma guerra que se aproxima; e

    isso foi a causa para que (adiantando todos os demais tpicos)

    amadurecesse e nascesse de mim a terceira parte. Assim sucede que

    aquilo que era ltimo na ordem veio a lume primeiro no tempo, e isso

    porque vi que esta parte, fundada nos seus prprios princpios

    suficientemente conhecidos pela experincia, no precisaria das partes

    anteriores 79

    .

    Essa afirmao de Hobbes de que a poltica independe das outras duas

    partes, ou seja, da fsica e da antropologia, para ser exposta, aparentemente

    contradiz todo o nosso projeto de colocar as paixes como fundamento da poltica.

    Pelo contrrio, essa afirmao que depois ser comprovada nos primeiros passos

    que Hobbes d no De Cive vem corroborar com a nossa tese, uma vez que, logo

    no incio da referida obra o autor afirma: As faculdades da natureza humana

    podem ser reduzidas a quatro espcies: fora corporal, experincia, razo e

    paixo. Partindo delas para a doutrina que se segue (...)80. Percebamos o quo

    78

    Hobbes, Thomas. Prefcio do autor. In. De Cive. p. 17. 79

    Idem. p. 18 80

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 25.

  • 37

    sutil o trecho em que Hobbes fala sobre o motivo que o levou a escrever

    primeiramente sobre a poltica. Na verdade, ele no fala que a antropologia no

    importante, mas simplesmente que a experincia, que a vivncia dos homens,

    dispensava-no de expor os detalhes do homem no estado de natureza, coisa que

    ele far no Leviat.

    Tomando por base o assunto acima abordado, podemos salientar uma

    diferena importante de outras entre os textos polticos do De Cive e do Leviat,

    que a abordagem metodolgica que Hobbes utiliza em cada um deles. No De

    Cive, Hobbes parte da experincia das paixes para justificar esse comportamento

    belicoso, ao passo que no Leviat ele faz uma inferncia partindo das paixes.

    Segundo Limongi, a condio natural do homem uma condio de guerra de

    todos contra todos. Eis uma concluso qual se pode chegar por duas vias: pela

    experincia de nossas paixes ou por uma inferncia, feita a partir das paixes 81.

    bem verdade que o tempo todo Hobbes est inferindo da experincia os

    resultados que mostram que a natureza dissocia os homens, mas, segundo ele

    prprio, no seria preciso a experincia para confirmar a tese de que os homens

    tendem por natureza guerra, como podemos ler a seguir:

    Poder parecer estranho a algum que no tenha medido bem

    estas coisas que a natureza tenha dissociado os homens, tornando-os

    capazes de se atacarem e destrurem uns aos outros. E poder portanto

    talvez desejar, no confiando nesta inferncia feita das paixes, que ela

    seja confirmada pela experincia 82

    Neste caso, a experincia apenas confirma o que j seria possvel inferir

    pelo estudo das paixes. Afirma Limongi mais uma vez a esse respeito:

    No De Cive, Hobbes percorre a primeira via, salientando que o

    recurso experincia permite conferir certa autonomia cincia poltica

    81

    Idem. p. 85. 82

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 109.

  • 38

    em relao s primeiras partes do sistema- uma cincia do corpo e uma

    cincia do homem-, que na ordem das razes do hobbesionismo

    deveriam anteceder poltica, no fosse a guerra civil inglesa ter exigido

    que o posterior na ordem viesse primeiro na exposio 83

    Onde est a diferena entre inferir a teoria poltica de Hobbes tendo como

    ponto de partida as paixes e entend-la partindo da experincia? Para Hobbes,

    no De Cive, possvel a cada homem, olhando para si mesmo, perceber como se

    comporta em relao ao seu semelhante, bem como perceber que a natureza

    dificulta nossa associao: Assim esclarece a experincia, a todos aqueles que

    tenham considerado com alguma preciso maior ou mais usual os negcios

    humanos, que toda reunio, por mais livre que seja, deriva da misria recproca 84.

    Ainda que a experincia sirva como prova adicional inferncia, e ainda

    que possa at mesmo tomar o seu lugar, como se faz no De Cive, no

    preciso ter a experincia de tais paixes para que se possa inferir o

    estado de natureza a parir delas85

    Sendo assim, podemos concluir que no De Cive a teoria poltica

    hobbesiana estava sem um dos seus pilares que anlise do homem? Segundo

    Hobbes, no. Pois a experincia esclarece 86. Quando Hobbes mostra, no De

    Cive, recorrendo experincia, como os homens no estado de natureza vivem em

    estado de guerra, ele economizou um longo caminho que, posteriormente, foi

    percorrido no Leviat, ou seja, no era preciso analisar pontualmente a natureza

    humana para saber como o comportamento de cada homem, bastando a

    experincia. A inferncia porm, permite das razes aos fatos, explicar o porqu

    de nossas paixes, fornecendo-lhes a gnese 87.

    83

    Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 85. 84

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 27. 85

    Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 86. 86

    Hobbes. Thomas. De Cive. p. 27. 87

    Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 86.

  • 39

    Trata-se talvez de um equvoco pensar a filosofia poltica de Hobbes

    sem considerar os aspectos fundamentais do homem no estado de natureza, a

    saber: primeiro, os homens so movidos por impulsos e esses impulsos, quando

    no h um poder comum capaz de direcion-los, so descontrolados. Depois,

    entender as paixes (mesmo que seja por meio da experincia) de fundamental

    importncia para estudarmos a filosofia poltica em Hobbes. Em outras palavras,

    ao que nos parece, no possvel dissociar a teoria poltica de Hobbes da sua

    antropologia. Seja pela via da inferncia ou da experincia, a natureza humana

    fundamenta e justifica a cincia poltica de Hobbes.

    Sendo assim, procuraremos mostrar no captulo subseqente como se

    comporta a natureza humana, como vimos, dominada pelas paixes, no estado de

    natureza, nesse hipottico estado pr-social e pr-poltico.

  • 40

    CAPTULO 2

    O HOMEM QUE DESEJA: AS PAIXES ENTRE OS HOMENS

    Como as paixes humanas se expressam e se efetivam e quais suas

    conseqncias nas relaes sociais? Como os impulsos, desejos e apetites

    concernentes natureza humana se manifestam no estado de natureza e,

    sobretudo, como sero administrados no estado civil, segundo Hobbes?

    Enfrentaremos tais questes seguindo o itinerrio lgico-argumentativo do De Cive

    e recorrendo sempre que necessrio ao Leviat.

    Comecemos ento diferenciando as noes de estado de natureza e de

    natureza humana. Em seguida, valendo-se de uma leitura bastante rente ao texto

    do De Cive e do Leviat, apresentaremos o pensamento de Hobbes sobre a

    condio da natureza humana fora do estado civil, ou seja, no estado de natureza.

    O prprio ttulo do captulo 1 do De Cive j sugestivo, na medida em que

    apresenta os fundamentos da teoria poltica de Hobbes, ou seja, a natureza

    humana e as suas particularidades: Da condio humana fora da sociedade civil.

    E uma questo que podemos impor de imediato aos textos do De Cive e do

    Leviat : o que o estado de natureza?

    A natureza humana e o estado de natureza podem ser facilmente

    confundidos numa primeira abordagem do texto hobbesiano. Apesar de terem

    uma relao intrnseca, elas no so a mesma coisa. Natureza humana para

    Hobbes aquela situao na qual a prpria natureza colocou todos os homens,

    sua situao original, digamos, aquela bem antes de viverem de maneira

    organizada em sociedades. Alm disso, como mostrei no captulo anterior, uma

    condio na qual os homens seguem sem rdeas os movimentos das mais

    variadas paixes. Ao passo que, estado de natureza a condio natural dos

  • 41

    homens na vida pr-social. Em outras palavras, o que configura o estado de

    natureza a ausncia de sociedade. Talvez, a melhor maneira de diferenciar o

    estado de natureza da natureza humana seja por meio dos textos do filsofo. Ou

    seja, da mesma maneira que apresentamos aspectos da natureza humana no

    primeiro captulo, cabe agora salientar como agem os homens, evidentemente que

    movidos pela natureza humana, no estado de natureza.

    Duas caractersticas pelo menos- dos homens no estado de natureza so

    medo e a esperana, ou seja, os homens no estado de natureza so impelidos,

    sobretudo, por essas duas paixes. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que

    os homens no estado de natureza encontram-se numa situao de medo, eles

    possuem a expectativa de uma vida longe de qualquer ameaa. Podemos ainda

    salientar outras caractersticas do estado de natureza: todos os homens so

    iguais; todos so juzes; no h paz; h guerra perptua de todos contra todos;

    existe a desconfiana contnua; no h propriedade; no h sociedade.

    O que leva os homens a viverem todas essas situaes, supracitadas, no

    estado de natureza? Na nossa viso, so duas (podendo ter outras que se

    configurem a elas) as principais causas: a igualdade natural e o direito natural.

    De acordo com Hobbes, a natureza humana fez os homens todos iguais.

    Lembremo-nos que Hobbes est falando de um estgio pr-social, pois podemos

    incorrer no erro de tentar analisar essa igualdade do ponto de vista da vida social,

    o que nos levaria a uma concluso errnea do estado de natureza, pois a

    desigualdade, segundo Hobbes, fruto do estado civil88.

    Essa igualdade, segundo o nosso autor, tem duas vertentes que so, a

    saber, a de que os homens so iguais quanto fora corporal e quanto ao

    esprito:

    A natureza humana fez os homens to iguais, quanto s faculdades do

    corpo e do esprito, que embora, por vezes se encontre um homem mais

    forte de corpo, ou de esprito mais vivo do que o outro, mesmo assim,

    88

    Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29.

  • 42

    quando se considera tudo isso no conjunto, a diferena entre um e outro

    homem no considervel para que um deles possa com base nela

    reclamar algum benefcio que o outro no possa igualmente aspirar 89

    .

    Quando fala de igualdade natural no estado de natureza, o filsofo

    fundamenta a sua afirmao de que os homens so iguais, utilizando os seguintes

    argumentos: Quanto fora corporal o mais fraco tem fora suficiente para matar

    o mais forte, que por secreta maquinao, quer aliando-se com outros que se

    encontrem no mesmo perigo 90.

    E ainda, no diz respeito s faculdades do esprito, de acordo com Hobbes,

    existe uma igualdade bem maior, pois O que talvez possa tornar inacreditvel

    essa igualdade simplesmente a presuno vaidosa da prpria sabedoria, a qual

    quase todos os homens supem possuir em maior grau do que o vulgo. (...) 91.

    Expliquemos melhor. Segundo o filsofo, os homens tm uma viso sempre

    positiva da prpria sabedoria, que ele mesmo chama de faculdades do esprito,

    pois a maioria dos homens, normalmente, julga-se sempre mais sbio do que os

    demais, ou seja, boa parte dos homens atribui a si mesmos uma sabedoria maior

    do que aquela que eles possam realmente possuir. Para tal, o nosso autor, com

    base na tese de que cada homem sente-se superior aos demais em sabedoria,

    vale-se do seguinte argumento:

    Pois a natureza dos homens tal que, embora sejam capazes

    de reconhecer em muitos outros maior sagacidade, (...) dificilmente

    acreditam que haja to sbios como eles prprios, porque vem a prpria

    sagacidade bem de perto, e dos outros homens distncia. Ora, isto

    prova que os homens so iguais quanto a esse ponto, e no que sejam

    desiguais. Pois geralmente no h sinal mais claro de um distribuio

    89

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 106. 90

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 106. 91

    Idem. p. 107.

  • 43

    equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com

    a parte que lhe coube 92

    .

    Gostaramos de levantar duas questes em cima dos argumentos utilizados

    para justificar a suposta igualdade existente entre os homens no que diz respeito

    s faculdades do esprito: primeiramente, no seria essa igualdade fruto de uma

    viso errnea que cada homem tem de si mesmo ao se auto-avaliar? Pois, na

    medida em que os homens se comparam, e Hobbes afirma no De Cive que os

    homens sempre se comparam93, eles acabam, normalmente, mesmo percebendo

    que outros homens possuem mais eloqncia e sagacidade que eles, emitindo

    sempre um parecer favorvel a sua pessoa. Em outras palavras, essa analise

    estaria comprometida, pois cada um tende a buscar o prprio favorecimento.

    Outra questo seria a de que os homens aceitam a distribuio feita pela

    prpria natureza das faculdades referentes ao esprito. Pois bem, esse no seria

    um sentimento de conformismo e at mesmo estratgico de cada homem para

    benefcio prprio? Uma vez que, afirmar que os outros homens so mais

    eloqentes, sagazes e astutos que ele, no seria colocar-se numa condio

    extremamente desfavorvel, tendo em vista que o homem hobbesiano sempre

    visa o benefcio prprio? O que pretendemos dizer que, em outras palavras, o

    fato dos homens no reconhecerem em outros homens maior sabedoria, poderia

    ser uma estratgia do homem que vive amedrontado no estado de natureza.

    Pois bem, o fato que a igualdade natural vai ser uma das causas do medo

    que existe no estado de natureza, pois, como afirmamos acima, o homem no

    estado de natureza vive amedrontado.

    Segundo Hobbes, o medo que existe no estado de natureza

    conseqncia dessa igualdade que h entre os homens, conforme ele afirma no

    De Cive: O medo recproco consiste, em parte, na igualdade natural dos homens,

    92

    Idem. p. 107. 93

    Cf. Hobbes, Thomas. De Cive. p. 30.

  • 44

    em parte na mtua vontade de se ferirem 94. Sendo assim, de onde provm o

    medo que alimenta os homens no estado de natureza?

    A origem do medo e da desconfiana dos homens em relao aos outros no

    estado de natureza surge de mltiplos fatores que permeiam a natureza humana.

    Na verdade, como se existisse para Hobbes uma ao em cadeia no estado de

    natureza que levar os homens fatalmente h um estado permanente de guerra e

    intranqilidade. Dito de outro modo, a igualdade dos homens no estado de

    natureza gera a desconfiana, que trs consigo o medo, que sugere, por sua vez,

    a antecipao ao ataque alheio e que tem por conseqncia a guerra

    generalizada.

    Outro aspecto que cabe ressaltar que os homens, conhecedores da sua

    prpria natureza, sabem quais so os sentimentos que tambm movem os seus

    semelhantes, ou seja, o que move os homens s aes so basicamente os

    mesmos desejos e averses pelas coisas. Neste caso, alguns desejos ampliariam

    a tenso existente entre os homens no estado de natureza, a saber: o desejo de

    glria; o desejo de lucro e o medo da morte, ou seja, a preservao da prpria

    existncia.

    Sendo assim, cabe-nos mostrar essa reao em cadeia que surge com as

    paixes e que terminar por colocar os homens num estado de constante ameaa

    e guerra no estado de natureza.

    No entender de Thomas Hobbes, h nos seres humanos uma vontade

    natural de causar dano aos outros95. Segue-se disso que a intranqilidade, mais

    exatamente o medo que a marca registrada do homem hobbesiano no estado de

    natureza, pois o medo que ele tem de receber algum tipo de ofensa fsica ou moral

    constante. Hobbes tenta explicar de onde provm esse desejo de ferir os outros

    seres humanos, ou melhor, o desejo de se ferirem mutuamente.

    94

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29. 95

    Cf. Thomas, Hobbes. Leviat. p. 29.

  • 45

    De acordo com o filsofo, entre as causas da vontade de causar danos aos

    outros, no estado de natureza, estariam a v glria e a necessidade de

    autodefesa. Nas palavras do prprio Hobbes: No estado de natureza, todos os

    homens tm desejo e vontade de ferir, mas no procede da mesma causa, e por

    isso no deve ser condenado com igual vigor 96. E acrescenta: Pois um,

    conformando-se aquela igualdade natural que vige entre ns, permite aos outros

    tanto quanto ele requer para si (que como pensa um homem temperado, e que

    corretamente avalia o seu poder) 97. Esse homem, avaliando a condio dos

    outros seres humanos no estado de natureza, faz da antecipao aos ataques a

    sua defesa, como sugere o prprio Hobbes ao dizer que a vontade de ferir o outro

    provm da necessidade de se defender, bem como sua liberdade e bens, da

    violncia daquele 98 Maria Isabel Limongi interpreta dessa forma:

    Nota-se: no se trata de dizer que tendemos efetivamente

    disputa, como se nossa natureza se inclinasse irremediavelmente a ela,

    seja em que condies for, mas de dizer que, numa situao de

    igualdade, e no caso de algum se colocar como obstculo consecuo

    dos nossos fins, somos levados disputa. 99

    Lembremos que o homem hobbesiano, que movido por paixes, no

    aceita obstculos. Uma vez que, como vimos no captulo anterior, paixes so

    movimentos e a noo que se tem de movimento aquela que est prxima da lei

    dos corpos inerciais: o movimento tende ao infinito. Neste caso, qualquer pessoa

    que se coloque como obstculo preservao do movimento das paixes ser

    para aquele que impedido um inimigo.

    Sendo assim, a antecipao a forma mais prtica de garantir a segurana,

    melhor dizendo, a sobrevivncia, pois ela no d aos meus supostos adversrios

    96

    Idem. p. 29. 97

    Ibidem. 98

    Ibidem. 99

    Limongi, Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Thomas Hobbes. p. 88.

  • 46

    nenhuma possibilidade de ataque. Nas palavras de Limongi, esse comportamento

    razovel:

    A razoabilidade deste comportamento (que se segue da

    circunstncia da nossa igualdade e que no pressupe nenhuma tese

    acerca de uma inclinao irreparvel para a disputa que estivesse desde

    sempre e para todo escrita nos nossos coraes) suficiente para tornar

    razovel que cada um se antecipe a ela, garantindo-se pela fora ou pela

    astcia

    Limongi entende que esse comportamento belicoso dos homens que

    Hobbes constata no tem origem em uma inclinao natural, mas conseqncia

    de uma situao de igualdade natural. Ao contrrio do que pensa Limongi, parece-

    nos que o homem hobbesiano tem um sentimento natural que o leva sempre a

    uma antecipao dos seus atos, ou seja, a antecipao no apenas uma

    conseqncia da igualdade natural como prope a autora, mas seria o resultado

    de uma natureza que movida por impulsos e que no mudar nem mesmo no

    estado civil. Em outras palavras, mesmo aps a passagem do estado de natureza

    para o estado civil, vrios aspectos da natureza humana continuam latentes.

    Sobre esse assunto, o prprio Hobbes nos adverte: E poder portanto talvez

    desejar, no confiando nesta inferncia feita das paixes, que ela seja confirmada

    pela experincia 100 Hobbes usa vrios exemplos prticos para mostrar que

    mesmo depois da instituio das leis a preveno continua a existir. Dito de outro

    modo, a intranqilidade e a desconfiana permanecem:

    Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando

    empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; quando

    vai dormir fecha as suas portas; mesmo quando est em casa tranca os

    100

    Hobbes, Thomas. Leviat. p. 109.

  • 47

    seus cofres, embora saiba que existem leis e servidores pblicos

    armados, prontos a vingar qualquer dano que lhe possa ser feito 101

    Observemos que Hobbes fala de leis e servidores armados, ou seja, ele

    no est obviamente falando do estado de natureza. Sendo assim, podemos

    concluir que o estado de natureza continua latente mesmo no estado civil, no qual

    no h mais igualdade, pois, segundo Hobbes: a desigualdade que hoje

    constatamos encontra-se na lei civil

    Essa necessidade de antecipao da ao gera, como j aludimos acima,

    uma condio perptua de guerra. Com isso, Hobbes est demonstrando os

    passos que os homens seguem para chegar ao conflito permanente que a vida

    no estado de natureza. Neste caso, a expectativa que cada homem cria em

    relao ao outro homem importante para entendermos a lgica dessa guerra

    perptua. Portanto, valiosa a apresentao da origem desse comportamento

    hostil que h entre os homens, pois com base na gnese que fazemos do tema

    que podemos entender o motivo desse comportamento:

    Sendo possvel mostrar a gnese deste comportamento e, nessa

    medida, oferecer sua razo, justificvel inferir que os homens assim se

    comportem. E esta inferncia justifica que nos comportemos de igual

    maneira a fim de nos precaver, o que, por sua vez, justifica o

    comportamento dos outros no mesmo sentindo e assim por diante: a

    lgica da guerra est instaurada 102

    Como podemos notar, segue-se dessa situao, acima descrita, que o

    medo vai se apoderando dos homens no estado de natureza e os leva a agir de

    maneira violenta na direo do outro, que possivelmente, poder hoje ou amanh

    tornar-se um obstculo s minhas aspiraes.

    101

    Ibidem. p. 110. 102

    Limongi. Maria Isabel. O homem excntrico: paixes e virtudes em Hobbes. p. 89.

  • 48

    Nas palavras de Limongi: a lgica da guerra est instaurada 103. O que

    podemos notar a reao em cadeia que leva os homens ao estado de guerra.

    Primeiro existe uma igualdade entre os pares. Depois, dessa igualdade nasce a

    desconfiana que, por sua vez, gera antecipao e que, por fim, traz a tona o

    estado de guerra permanente.

    Poderamos ento dizer que no existe paz no estado de natureza?

    Na viso de Hobbes, sim. Pois, segundo ele, para a guerra no necessrio o

    ato: Pois o que a guerra, seno aquele tempo em que a vontade de contestar o

    outro pela fora est completamente declarada, seja por palavras, seja por atos?

    O tempo restante denominado paz 104. Analisando essa passagem do De Cive e

    confrontando-a com a lgica aqui por ns exposta, acreditamos que no existe

    esse tempo restante que Hobbes usa para falar de paz.

    A vida dos homens no estado de natureza, segundo Hobbes, est muito

    longe de ser uma vida pacfica, pois o tempo todo ou existe o confronto ou o

    desejo de confrontar-se (o que por vezes torna-se manifesto por meio da

    antecipao). Sendo assim, conclui-se que uma das causas do medo existente no

    estado de natureza decorre justamente dessa condio de guerra perptua.

    Mas, no s a paz que no possvel no estado de natureza. No

    verdade, no h sociedade e, sendo assim, no existe nenhuma possibilidade de

    vida civilizada, pois em tempo de guerra no h motivos para que os homens

    confiem nos seus semelhantes. Dito de outro modo, em tempos de guerra a

    infidelidade, a desconfiana e o ataque so constantes, fazendo assim com que

    qualquer tipo de pacto ou contrato no tenha nenhuma garantia de cumprimento.

    Tendo abordado uma das causas que levam os homens a se feriem,

    Hobbes salienta no De Cive e no Leviat outra causa: o desejo de glria. No

    entender de Hobbes, a anlise que os homens fazem de si mesmos por vezes

    103

    Idem. p.89 104

    Thomas, Hobbes. De Cive. p. 33.

  • 49

    est equivocada. Se, por um lado, existe aquele que vai atacar para se defender,

    como vimos acima, o prprio Hobbes salienta que:

    O outro, supondo-se superior aos demais, querer ter licena para fazer

    tudo o que bem entenda, e exigir mais respeito e honra do pensam

    serem devidos aos outros (o que exige um esprito arrogante). No

    segundo a vontade de ferir vem da v glria, e da falsa avaliao que faz

    da prpria fora 105

    .

    A v glria para Hobbes seria a falsa imagem que cada homem cria de si

    mesmo e das expectativas que ele tem em relao aos outros. O desejo de glria

    entraria como um fator multiplicador dos demais impulsos humanos, pois, como j

    argumentamos, todos precisam defender-se de um futuro ataque ou de uma

    possvel dominao. Deste modo, aquele que busca se defender o faz justamente

    pelo fato de que h algum que busca por todos os meios, mesmo que

    erroneamente, se impor pela dominao.

    Podemos assim levantar uma questo: se o estado de natureza igual

    em todos os homens, por que Hobbes diferencia o caso daquele que busca a

    defesa por medo do ataque e aquele que procura por algum tipo de benefcio

    mediante a dominao? Ele mesmo ressalta que ambos no devem receber a

    mesma condenao 106.

    O que conseguimos auferir das leituras dos textos hobbesianos aqui

    analisados a de que os homens buscam o lucro (agem sempre em benefcio

    prprio) e a conservao da prpria vida e que, nenhum homem est livre de

    nenhuma desses aspectos, ou seja, eles so naturais. Dito de outro modo, esses

    impulsos de glria e dominao (que garante a manuteno da prpria vida) so

    expresses da natureza humana. Portanto, a v glria entraria como um elo entre

    o desejo de lucro e a necessidade de lutar pela prpria segurana, pois, aos

    homens, no suficiente apenas obter lucro, mas tambm receber as glrias que

    105

    Hobbes, Thomas. De Cive. p. 29. 106

    Cf. Idem. p. 29.

  • 50

    uma posio superior pode trazer. Ao passo que, o lucro sem as garantias da vida

    no tem nenhum sentido.

    Nota-se que o desejo que cada homem tem de se sentir melhor que os

    demais decorrente de uma condio intrnseca a ele, ou seja, esse desejo

    conseqncia da vontade que ele possui de receber os ttulos de reconhecimento.

    Segundo Limongi:

    Dificilmente as duas primeiras causas da guerra nos conduziriam a uma

    situao de disputa generalizada, no fosse este fator multiplicador que

    nos dispe a disputar no apenas pelos bens necessrios

    sobrevivncia mas tambm pelos signos de reconhecimento 107

    . (Trata-

    se da segurana e do lucro a referncia que o texto faz s duas primeiras

    causas).

    O desejo de glria conseqncia de um erro de clculo que os homens

    comentem quando se analisam. Cabe aqui um olhar sobre esses dois conceitos:

    glria e v glria. J deu para perceber que, para Hobbes, so conceitos distintos.

    V glria uma falsa compreenso que os homens tm de si mesmo, seja do seu

    prestgio ou da sua fora. J a glria so os benefcios que um lugar de destaque

    pode trazer a esse homem. Por isso, os homens buscam a glria, mas so

    acometidos pela v glria quando se investigam, pois, na maioria dos casos, no

    conseguem fazer uma analise de si mesmos livre de erros.

    Esse erro de clculo que leva os homens a vangloriar-se to grave que

    Hobbes o coloca como mais uma das causas das discrdias que ele mesmo

    chama de comparao das vont