O ENSINO DE FILOSOFIA PARA A CLASSE TRABALHADORA ... · contemporaneidade a partir do aporte...
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Eixo: Marxismo e educação
O ENSINO DE FILOSOFIA PARA A CLASSE TRABALHADORA:
INDICAÇÕES A PARTIR DO MATERIALISMO HISTÓRICO
DIALÉTICO
Carine Ane Jung (UNICAMP)1
Resumo: O presente artigo se propõe a discutir aspectos relacionados ao ensino de
Filosofia direcionado para classe trabalhadora, por meio da escola pública, na
contemporaneidade a partir do aporte teórico da pedagogia histórico-crítica, da psicologia
histórico-cultural e do pensamento do filósofo marxista Antonio Gramsci, pressupostos
ancorados no materialismo histórico dialético. A função social atribuída à Filosofia,
enquanto disciplina curricular no Ensino Médio, aparece nos documentos oficiais,
manuais didáticos e propostas de ensino que orientam o trabalho com os conteúdos
filosóficos na escola, pautada por justificativas que, em sua maioria, ressaltam a efetiva
contribuição da disciplina para a formação de indivíduos críticos da realidade em que
estão inseridos. Entretanto, evidenciamos em nossa prática docente que, grande parte
destas propostas, apesar de promulgarem uma formação distanciada de preceitos
resultantes do senso comum, nem sempre fornecem os elementos imprescindíveis para
esta formação, desconsiderando tanto características fundamentais do processo cognitivo
dos estudantes, quanto a importância do acesso e contato com os textos dos autores
clássicos da História da filosofia para a aprendizagem. É, em decorrência desta
constatação, a partir da análise do principal aspecto relacionado à pertinência do ensino
da Filosofia na escola, que realizamos a indicação do caminho teórico-metodológico do
materialismo histórico dialético como o fundamento que compreendemos possuir em si a
possibilidade de auxiliar e incentivar os jovens filhos da classe trabalhadora, ou já
inseridos no mundo do trabalho a ascenderem à condição de homens libertos das
interpretações decorrentes do senso comum, ou seja, que estes se tornem capazes de
construírem concepções de mundo mais coerentes com posição social e cultural que
ocupam dentro da realidade em que se reproduzem.
Palavras-chave: Ensino de Filosofia; Pedagogia histórico-crítica; Psicologia histórico-
cultural; Antonio Gramsci.
Introdução
A defesa acerca da inserção e da permanência da Filosofia2, enquanto disciplina
curricular no Ensino Médio público, tem sido pautada por justificativas téorico-
1 Carine Ane Jung. Professora de Filosofia. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual de Campinas (PPGE-FE/UNICAMP). E-mail: [email protected]. 2 A palavra “Filosofia” será escrita com inicial maiúscula no presente texto quando fizer referência à disciplina
curricular do Ensino Médio.
2
metodológicas que ressaltam sua efetiva contribuição para a formação de indivíduos
críticos da realidade em que estão inseridos, capazes de compreenderem de forma
coerente o mundo em que vivem e, inclusive, indicarem soluções para os principais
problemas que afligem a sociedade contemporânea. A formação de jovens críticos, neste
ínterim, tem se constituído como o principal aspecto conferido à relevância do ensino de
Filosofia, tal afirmação pode ser evidenciada a partir da leitura das Orientações
Curriculares para o Ensino Médio para a disciplina de Filosofia, as quais indicam:
“A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando
quando se trata de ensinar Filosofia no ensino médio? [...][...] Trata-se
da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas
alternativas para a solução de um problema, ou seja, do
desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar
em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição
para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar
conhecimentos [...] (SEB, 2006, p. 30) (grifo nosso).
[...] Espera-se da Filosofia [...] [...] o desenvolvimento geral de
competências comunicativas [...][...] envolvendo capacidade de análise,
de interpretação, de reconstrução racional e crítica. Com isso, a
possibilidade de tomar posição por sim ou por não [...][...] pressuposto
necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte,
da cidadania”. (SEB, 2006, p. 30-31) (grifo nosso).
É notória a presença de expressões como “pensamento crítico” nos manuais que
buscam subsidiar o trabalho dos professores de Filosofia no interior das instituições
públicas de ensino. Entendemos que, em sua maioria, estes materiais sintetizam os
direcionamentos contidos nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio,
salientamos, portanto, que estas indicações também aparecem como pano de fundo de
nossas atividades docentes e, que o que pretendemos no presente artigo é tomar estas
“orientações” para o ensino de Filosofia como ponto de partida para nossa discussão
acerca da função social atribuída à Filosofia.
O papel desempenhado pelo ensino de Filosofia na formação intelectual dos jovens
pertencentes à classe trabalhadora tem ocupado lugar constante em nossas reflexões
acerca da própria prática docente. Nesse contexto, consideramos indispensável analisar,
constantemente, os próprios pressupostos filosóficos que sustentam nossas atividades de
ensino no interior da escola pública. A realização de tal análise nos levou á verificação
3
da existência de uma cisão entre as principais teorias filosóficas que se nomeiam
“críticas” e permeiam a prática dos professores de Filosofia da educação básica.
Verificamos existirem duas matrizes teóricas distintas e que aparecem como o
sustentáculo do ensino de Filosofia: uma que toma como principais expoentes teóricos os
filósofos franceses contemporâneos3 e, outra proveniente de uma concepção materialista,
histórica e dialética4. Destarte, pretendemos aqui discutir a função social atribuída à
Filosofia na escola a partir dos pressupostos do materialismo histórico, opção teórica que
assumimos em nossa prática docente, pois, consideramos este o método que possibilita
efetivamente a apreensão dos elementos imprescindíveis para a formulação de uma
concepção de mundo alinhada com o real.
A importância da presença do texto clássico no trabalho educativo: o aporte teórico
da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica
Compreendemos a formação escolar como um percurso de formação de indivíduos,
intencionalmente engendrado, para a efetivação de uma determinada prática social.
Analogamente, entendemos que este processo não pode ser compreendido como uma
“prática” de sujeitos isolados, mas como uma prática de um conjunto de homens em um
dado momento histórico. Na forma societária vigente esse processo formativo tem
recebido inúmeras imposições e demandas hegemônicas, as quais se configuram como
condicionantes para a produção de resultados específicos ao trabalho educativo, tais como
o desenvolvimento do “saber fazer” ou “aprender a aprender” 5, sobrepondo-se ao ensino
de conteúdos teóricos.
Nesse contexto, temos evidenciado no tocante ao ensino de Filosofia, uma ênfase
no direcionamento do processo educativo como responsável pela aquisição de
“instrumentos” ou “ferramentas” para a resolução de problemas imediatos ao cotidiano
dos alunos. Esta estratégia pedagógica hegemônica pautada no lema “aprender a
3 Jean- Paul Sartre (1905 -1980), Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-1995), Felix Guattari
(1930-1992) e Jacques Derrida (1930-2004). 4 Antonio Gramsci (1891-1937). 5 Entre as teorias pedagógicas em voga no debate educacional e, que destacam o lema “aprender a aprender”
podemos citar: “[...] o construtivismo, a pedagogia do professor reflexivo, a pedagogia das competências,
a pedagogia dos projetos e a pedagogia multiculturalista [...]” (DUARTE, 2010, p. 33).
4
aprender” ressalta que, mais importante do que adquirir conhecimentos, seria a formação
de futuros profissionais flexíveis, munidos de competências que lhes permitam se
adaptarem às mais diversas situações vivenciadas no mundo do trabalho6.
Postulamos, contrariamente ao ideário pedagógico do “aprender a aprender”
geralmente travestido como método de ensino e desenvolvimento de “competências” 7,
que a formação dos indivíduos por meio da Educação Básica seja orientada por um
modelo alternativo, o qual se posicione frente ao esvaziamento da educação escolar da
apropriação do patrimônio intelectual produzido pela humanidade, assim como assevera
a perspectiva pedagógica histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural. A partir deste
horizonte teórico, o trabalho educativo, enquanto prática social, não deve ser norteado
pelas necessidades cotidianas imediatas dos indivíduos ou se manter atrelado ao
desenvolvimento de uma maturidade biológica que se configura como determinante para
a aprendizagem dos educandos. O ensino deve, contudo, preceder o desenvolvimento
biológico, adiantar-se a ele (Vigotski, 2006). É pela mediação de atividades pedagógicas
que possibilitem ao educando o contato com as formas mais desenvolvidas em que se
expressa o saber produzido historicamente que poderá ocorrer o desenvolvimento dos
indivíduos humanos, permitindo que estes compreendam a si mesmos e a realidade em
que se reproduzem (Saviani, 2003).
A ascensão à compreensão do atual estágio de desenvolvimento em que vivemos
requer a apreensão dos conhecimentos que são tomados como referência para o mundo
6 A centralidade do lema “aprender a aprender” e da ideia que o mais importante a ser adquirido por meio
da educação é a capacidade de grande adaptação às mudanças do sistema produtivo, no ideário pedagógico
contemporâneo brasileiro pode ser remetida à publicação no país, em 1998, do Relatório Jacques Delors
(UNESCO), o qual contou com o apoio do Ministério da Educação. O relatório da comissão internacional
presidida por Jacques Delors (economista francês) e, intitulado: Educação, um tesouro a descobrir (1996)
elaborou diretrizes para a educação mundial para o próximo século, dentre elas “quatro pilares”
fundamentais: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser. A
apresentação da publicação no Brasil foi assinada pelo ministro Paulo Renato Souza, o qual afirma a
importância do relatório para a condução de um “[...] processo, em que, de modo especial, se empenha o
Ministério da Educação, qual seja, o de repensar a educação brasileira [...]” (DELORS, 1998, p. 10).
Entendemos que esta posição do ministro exemplifica o rumo tomado pela política educacional durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, o qual acarretou em consequências que, consideramos prejudiciais
ao sistema educacional brasileiro ainda na atualidade, pois, fizeram parte de um projeto de conformação da
política social no país aos ditames do capitalismo mundializado, visando apenas uma adequação econômica
e não avanços substanciais na qualidade da educação viabilizada pela escola pública. Entre as pesquisas
que analisam de forma crítica as consequências deste projeto, confira Borges 2009. 7 Sobre o conceito de “competências” e sua aplicação teórica no âmbito educacional, confira: Boterf, 2003;
Perrenoud, 1999, 2000 e 2002.
5
contemporâneo, aquilo que produzimos e perdurou com tempo, se mantendo essencial,
ou seja, o que é clássico. Os clássicos exprimem questões nucleares à própria identidade
do homem em determinadas conjunturas históricas e permanecem como parâmetro para
as gerações posteriores que empreendem a apropriação das objetivações humanas
produzidas ao longo tempo (Saviani; Duarte, 2012).
É neste quadro teórico que situamos a função social atribuída ao ensino de Filosofia
na escola pública, ou seja, este deve almejar o desenvolvimento de um pensar “crítico”
por parte dos jovens pertencentes à classe trabalhadora. Entretanto, este desenvolvimento
se encontra atrelado à efetivação de atos educativos que busquem promover,
intencionalmente, o contato dos estudantes da educação básica com os textos clássicos da
História da filosofia. Tais textos apresentam concepções de mundo, formuladas e
encaminhadas como soluções de problemas postos para a época em que se constituem,
contudo, suas formulações, mesmo enraizadas em uma época determinada, ultrapassam
este limite e se mantém enquanto objeto de interesse para as gerações que se seguiram.
A filosofia de Antonio Gramsci e o ensino de Filosofia para a classe trabalhadora
Ao sugerir o materialismo histórico como fundamento para o entendimento da
problemática referente à formação escolar dos jovens na sociedade capitalista, ou seja, a
função social atribuída ao ensino de Filosofia, não pretendemos nos restringir à uma
esfera particular, mas abranger a formação humana de uma forma geral. A necessidade
da reflexão proposta em nosso texto expressa o conjunto dos questionamentos que nos
impelem a pesquisar o fenômeno educativo na educação básica, ou seja, a busca pela
investigação dos fundamentos desta realidade educacional. Deste modo, é importante
salientar que intentamos lutar contra formas específicas de ver a realidade, as quais tem
como origem a naturalização das desigualdades sociais vigentes no capitalismo e uma
perspectiva dicotomizada da docência de filosofia em particular e, da realidade em geral.
Nosso intuito é articular dialeticamente teoria e prática, assumindo uma postura
realmente crítica frente ao modo de conceber o ensino de Filosofia e o modo de ensinar
filosofia no seu fazer pedagógico concreto na escola. É motivada por estas condições
materiais e, historicamente produzidas, buscando a aproximação crítica de nossa prática
6
docente e, partindo da consciência do lugar que tem ocupado ou, podem vir a ocupar os
professores, pesquisadores e intelectuais oriundos da classe trabalhadora na sociedade de
classes, que erigimos nossas reflexões, pois :
[...] O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem
compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só
pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar
que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante)
mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir
as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto,
explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem
como relacionando-as dialeticamente com as leis da história [...] [...] Na
ausência deste nexo, as relações do intelectual com o povo- nação são,
ou se reduzem, a relações de natureza puramente burocrática e formal
[...] ( GRAMSCI, 2014, C 11, § 67 , p. 221-222).
Na passagem supracitada, o filósofo Antonio Gramsci esclarece que também os
intelectuais precisam se libertar do erro em crer que seja possível saber e compreender
sem sentir, ou sentir sem compreender, explicitando a relação dialética existente entre a
mudança do panorama ideológico de uma determinada época histórica e as mudanças
verificadas na mentalidade popular. É necessária a criação de uma elite intelectual que
venha da “massa popular” e que se mantenha ligada à ela, caso almejemos a elevação
intelectual da classe trabalhadora, para que esta compreenda a si e ao mundo criticamente.
Os professores de Filosofia da educação básica podem ser incluídos no grupo que
Gramsci denomina como “elite intelectual”, já que estes, teoricamente, possuem uma
formação de nível superior em relação aos seus educandos. Porém, estes também
precisam ser educados, salientando que a formação dos indivíduos necessita viabilizar
uma dinâmica que possibilite a conformação entre a forma de produzir e as formas de
viver, sentir e pensar a realidade. Por isso, o professor de Filosofia pode contribuir com a
formação de indivíduos que busquem perpetrar modificações na estrutura social, como
afirma Silveira (2013):
[...] Mas, para que isso ocorra, é preciso que os educadores, em especial,
os professores- filósofos, reconheçam a sala de aula como campo de
batalha da “guerra de posições” e não abdiquem de travar ali,
cotidianamente, a luta cultural pela transformação da “mentalidade”
popular, tendo em vista a construção de uma hegemonia que conduza à
superação da sociedade de classes. É no seio dessa luta que se constrói,
passo a passo, uma nova cidadania que signifique de fato proporcionar
a cada cidadão as condições para que venham a se tornar governantes
[...] (p. 74-75).
7
Esta “luta cultural” que necessita ser empreendida diariamente no interior da
escola, segundo Silveira, é responsável pela possibilidade de formar indivíduos que,
futuramente, possuam condições de também se tornarem governantes, passando de uma
posição de dirigidos ao lugar de dirigentes. Ou seja, a estratégia de combate do professor
de Filosofia é promover o contato dos jovens com o pensamento historicamente
produzido pelos filósofos, tanto no que se refere ao conteúdo desse pensamento, quanto
ao método de filosofar. Podemos afirmar então, que o ensino de Filosofia, enquanto ato
educativo, além de ensinar quais as principais correntes de pensamento de cada período
histórico e seus conceitos fundamentais, também contém em si a possibilidade de, mesmo
partindo do interior da escola, dialeticamente produzir algo novo.
Nesse contexto, mesmo que a escola de nível médio, espaço empírico onde o
professor-filósofo se materializa como “militante cultural”, esteja inserida em uma
sociedade caracterizada pelo antagonismo de classes e assentada no modo capitalista de
produção, não podemos compreendê-la somente como reprodutora da hegemonia
burguesa ou, como “aparelho ideológico do Estado” na expressão de Althusser (1989). É
no aporte teórico-filosófico de Antonio Gramsci que alicerçamos nossa discussão acerca
da função social do ensino de Filosofia na contemporaneidade, justamente, por que este
fixa a questão sobre as atribuições da escola e do ensino da Filosofia, no bojo de um
projeto político específico: a construção de uma nova hegemonia, um novo homem e um
novo mundo. Gramsci se ocupa da reflexão sobre qual a tarefa que compete à escola e ao
ensino de Filosofia para a consolidação de um projeto revolucionário.
Nesse decurso, a temática pedagógica ocupa lugar de destaque no pensamento
gramsciano, por isso, “Gramsci logo irá colocar [...] [...] ao lado das organizações
políticas e sindicais como órgãos de hegemonia imediatamente política, também todas
as outras instituições educativas de consenso, e entre estas, a escola” (MANACORDA,
2008, p.125). Mesmo que as relações educativas não ocorram, de modo exclusivo, por
meio da educação escolar formal, mas “existam em toda a sociedade no seu conjunto e
em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos” (GRAMSCI, 2014, C 10, § 44,
p.399), a escola se constitui em um aparelho importante para a organização de uma nova
cultura, uma cultura de massa (MANACORDA, 2008, p.125).
8
Gramsci observou e examinou a Itália de seu tempo, buscando alternativas para a
construção e efetivação de uma revolução proletária, por isso, liga a prática educativa
escolar com sua compreensão de hegemonia. O conceito de hegemonia designa, no
interior de sua teoria, uma ação que não faz parte apenas da estrutura política da
sociedade, mas que interfere diretamente sobre o modo pensar dos indivíduos, sobre as
orientações ideológicas e culturais que estes possuem. O caráter pedagógico da
hegemonia reside no fato que, esta implica que determinadas concepções de mundo se
tornem unitárias, portanto, o papel da educação no quadro societário é travar a luta pela
conquista da hegemonia, pois, “quando na história se elabora um grupo social
homogêneo, elabora-se também, contra o senso comum, uma filosofia homogênea”
(GRAMSCI, 2014, C 11, § 13, p. 116). Nesse sentido, a educação escolar também pode
assumir uma posição renovada na sociedade quando mantém uma relação orgânica com
a hegemonia, transformando as concepções de mundo dos indivíduos coerentes com sua
posição social e cultural:
[...] A escola, mediante o que ensina, luta contra o folclore, contra todas
as sedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de
difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e
fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis
naturais como algo objetivo e rebelde, às quais é preciso adaptar-se para
dominá-las, bem como de leis civis e estatais que são produtos de uma
atividade humana estabelecida pelo homem e podem ser por ele
modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo [...] (GRAMSCI,
1982, p. 129-130).
O desenvolvimento e a formação dos indivíduos por meio da educação escolar
não pode prescindir do abandono dos conhecimentos científicos, pelo contrário, a escola
deve oferecer aos jovens conhecimentos que estejam para além do folclore e do senso
comum. A ciência não deve ser concebida como abstrata, mas como algo concretamente
criado por meio das relações de trabalho existentes entre os homens, por isso, o
conhecimento científico consiste em uma forma “radical” de explicar o mundo em cada
período da história humana. Podemos ainda acrescentar, a esta indicação gramsciana
sobre a função social da escola que, esta também tem a atribuição de promover o contato
do “povo” com os “intelectuais”, condição essencial para a “elevação cultural de massa”
e para a formação de uma nova força hegemônica política a partir da “compreensão
crítica de si mesmo [...][...]portanto, através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de
9
direções contrastantes [...][...] atingindo, finalmente, uma elaboração superior da
própria concepção do real”(GRAMSCI, 2014, C 11, § 12, p. 113).
O estabelecimento de novas relações sociais e até mesmo, a luta entre os distintos
grupos na sociedade de classes, não se resumem apenas à uma atividade prática inerente
ao devir histórico. Esta relação também encerra “a conformação e a afirmação de uma
identidade filosófica” (BIANCHI, 2008, p. 80) a qual assegura a unidade do grupo social
e confere um “sentido a uma prática transformadora e à constituição de um grupo
intelectual próprio” (BIANCHI, 2008, p. 80). Esta relação entre teoria e prática é
permeada pelo entendimento de que “todos os homens são intelectuais” (GRAMSCI,
2001, C 12, § 1, p.18), ou seja, a rigor não existem homens não-intelectuais, pois, não
existe atividade humana separada totalmente de uma atividade intelectual. Dessa forma,
todos os indivíduos possuem uma concepção de mundo, definida de forma consciente e
vinculada a esta concepção. Assim como, “todos os homens são ‘filósofos’” (GRAMSCI,
2014, C 11, § 12, p.93), pois, “ainda que a seu modo”, “manifestam uma atividade
intelectual” (GRAMSCI, 2014, C 11, § 12, p.93).
Contudo, Gramsci identifica que a atividade intelectual pode ser diferenciada em
graus qualitativos, o que fixa uma evidente distinção também entre os “filósofos”8.
Alguns homens são “filósofos profissionais e sistemáticos”, em contrapartida, outros
realizam uma “filosofia espontânea”. Por isso, “todos são filósofos”, mas a grande
maioria o faz dentro dos limites do senso comum, o objetivo de Gramsci ao ressaltar esta
discrepância, não é afirmar que a Filosofia deveria ficar restrita a determinados grupos
sociais, pelo contrário:
[...] o objetivo é destruir os preconceitos e os privilégios, de modo que
todos os homens avancem de um “filosofar” espontâneo, típico do senso
comum, para um filosofar mais elaborado, sistemático, rigoroso, a
exemplo do que é praticado pelos “filósofos profissionais”. Daí sua
exigência de que a filosofia e os filósofos estejam em permanente
contato com os “simples” [...][...] A preocupação de Gramsci, portanto,
ao distinguir as duas formas de filosofar, é enriquecer e elevar o nível
intelectual, moral e cultural das massas populares, tornando-as, assim,
mais bem preparadas para a ação política [...] (SILVEIRA, 2001, p.
142).
8 O termo aparece entre aspas no Caderno 11 por que já indicaria a intenção do autor em
evidenciar esta distinção (Cf. SILVEIRA, 2001, p. 138).
10
A desmistificação da atividade intelectual-filosófica, enquanto exercício
característico de intelectuais, em estrito senso, identifica todos àqueles que não são
intelectuais como os “simples”. Todos aqueles que possuem alguma visão de mundo,
mesmo que não orientada de forma consciente, mas que legitima suas ações, são os
“simples”, também denominados de “homens-massa”. A concepção de mundo que
possuem, por conseguinte, é absorvida de forma passiva, construída a partir de um
conjunto de relações sociais pré-existentes, isto é, o “senso comum”. Gramsci define o
senso comum como: “a filosofia dos não filósofos”, uma concepção “desagregada,
incoerente, inconsequente, conforme à posição social e cultural das multidões das quais
ela é filosofia” (GRAMSCI, 2014, C 11, § 13, p.114).
É importante salientar que Gramsci não considera o senso comum como algo
oposto à filosofia. Pois, é justamente a partir do exame do próprio senso comum que será
possível ao indivíduo desenvolver uma concepção de mundo mais coerente com o
momento histórico em que vive. Além disso, não há uma compreensão definitiva do real,
o que ocorre é a existência de compreensões que busquem maior unidade e coerência
possível com a realidade. A concepção de mundo dos indivíduos indica claramente o
grupo social a que pertencem, por isso, o ensino de Filosofia na escola pública se torna
estratégico na luta contra a hegemonia burguesa, que se converte em senso comum e é
assimilado pelas próprias classes subalternas.
Considerações finais
A experiência da reprodução de nossa existência imbricada com nosso fazer laboral,
evidencia cotidianamente a situação de desapropriação material e intelectual em que
subsiste a classe trabalhadora, em especial sua fração operária. Envolvidos nesta trama
na relação cotidiana com os jovens e a escola, não podemos nos furtar a analisar
criticamente a existência de possibilidades de superação dessas vicissitudes. Por isso,
consideramos imprescindível desvelar as contradições inerentes à relação existente entre
a classe trabalhadora, a escola e os conteúdos escolares. Nesse contexto, evidenciamos na
atualidade o processo de aviltamento dos conhecimentos sistemático transmitido através
do currículo pela mediação das instituições de ensino, como as universidades e as escolas.
11
O trabalho educativo que, tendo como base a psicologia histórico-cultural e a
pedagogia histórico-crítica prima pelo papel inalienável do planejamento do trabalho
educativo como condição de possibilidade para a apropriação dos conhecimentos mais
elaborados produzidos pela humanidade, imprescindíveis ao desenvolvimento cultural do
indivíduo humano. Na ótica da psicologia histórico – cultural o processo de
desenvolvimento psíquico dos educandos por meio da educação escolar não ocorre como
algo natural ao processo de ensino-aprendizagem, mas como resultado de atividades
pedagógicas mediadas por professores que compreendem a importância da realização de
atividades planejadas intencionalmente com o intuito de ocasionar, nos indivíduos, a sua
possível elevação a níveis superiores de desenvolvimento psíquico (Duarte, 2013).
O psicólogo Vigotski, um dos expoentes da corrente histórico-cultural, afirmou em
vários escritos 9 que a interação entre crianças e adolescentes com os adultos, isto é, a
interação entre seres em desenvolvimento e seres mais desenvolvidos intelectualmente
seria o principal motor impulsionador do desenvolvimento cultural. No volume IV das
Obras escolhidas (1996a) Vigotski aborda a formação do pensamento por conceitos
durante a adolescência, enquanto um momento decisivo para o desenvolvimento da
personalidade e da concepção de mundo do indivíduo, nesse contexto, uma educação
escolar que garanta a transmissão do saber objetivo por meio do trabalho educativo, se
configura de extrema importância, principalmente quando, além de apresentar aos
estudantes novos conceitos incentiva a reflexão filosófica acerca destes.
A apropriação do saber objetivo resultante da atividade passada de outros seres
humanos, ou seja, a apropriação da significação social da produção humana pelas
gerações futuras permite que estas realizem seu processo de inserção na história. O
psicólogo soviético Leontiev, ao analisar como ocorre a apropriação da cultura pelos
indivíduos afirma que este processo reproduz nos indivíduos “as aptidões e funções
humanas historicamente formadas” (LEONTIEV apud DUARTE, 2011, p. 148),
portanto, a aprendizagem realiza a mediação entre o processo histórico de formação do
gênero humano10 e o processo de formação de cada indivíduo enquanto ser humano. A
9 Entre estes escritos, destacamos: Vigostki 1991a, 1991b, 1996a, 1996b e 1998. 10 Entendemos aqui a categoria gênero humano como aquela que: “[...] expressa o resultado da história
social, da história da atividade objetivadora dos seres humanos [...]” (DUARTE, 1999, p. 15).
12
apropriação pelo indivíduo humano daquilo que constitui a genericidade humana,
segundo a nossa compreensão e as pesquisas de Leontiv, não ocorre, somente, por meio
da educação escolar, entretanto, concebemos que a educação escolar possui um papel
decisivo na apropriação de toda a riqueza material e intelectual produzida socialmente e
incorporada ao gênero humano.
O trabalho educativo comprometido com a socialização dos conhecimentos que
fundamentam a história da ciência, da arte e da filosofia, em detrimento do ensino
ajustado apenas ao desenvolvimento de “competências”, de acordo com os moldes das
pedagogias do “aprender a aprender”, oportuniza aos estudantes dominarem referências
indispensáveis para a compreensão e a análise crítica do mundo em que vivem. Isto posto,
a construção da universalidade própria do gênero humano em cada indivíduo, está
subordinada ao contato e apropriação de conceitos “clássicos” que remontam ao
patrimônio cultural da humanidade. Assim, a Filosofia, na qualidade de objetivação
humano- genérica, precisa ser disponibilizada às novas gerações para que, ao se
apropriarem destes conteúdos filosóficos, estes adquiram formas mais elevadas de
formação.
Portanto, vislumbramos que o estudo do pensamento dos grandes expoentes da
História da filosofia, isto é, de seus conteúdos clássicos, se apresenta como um caminho
privilegiado para a compreensão da problemática humana. A realização de atividades
educativas que envolvam estudantes, principalmente, de escolas públicas, as quais são
frequentadas quase que exclusivamente por indivíduos oriundos das diversas frações da
classe trabalhadora, se constituem como estratégias pedagógicas que possibilitam o
acesso aos conteúdos científicos, artísticos e, neste caso, filosóficos, propiciem aos
indivíduos em formação o conhecimento necessário para que estes tenham condições de
compreender sua realidade para além das aparências, captando o mundo que os circunda
com um nível de complexidade que a vida cotidiana não lhes oferece de imediato. A
Filosofia ensinada nas escolas deve dar forma ao conteúdo retirado de seu contato com o
“simples”, é nesta relação que percebe os problemas filosóficos que realmente
“interessam” aos trabalhadores, mesmo que estes, em sua maioria, não possuam
entendimento pleno sobre esta necessidade, pois subsistem em uma realidade
contraditória que tem como corolário:
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[...] a luta entre as classes cujos interesses são antagônicos e
irreconciliáveis. Ora, se a filosofia deve se ocupar dos problemas postos
pela realidade, cabe então perguntar: dos problemas de qual classe? Ou,
em outros termos: na seara de qual classe social ela deverá colher os
problemas que serão objeto de suas reflexão? Se a filosofia deve estar
comprometida com a superação do senso comum [...][...] não podendo,
portanto, jamais [...] [...] deixar de estar em contato com os “simples”
[...] (SILVEIRA, 2001, p. 147).
A classe trabalhadora deve ter condições de problematizar sua própria realidade,
esta é a reflexão filosófica que lhes permitirá romper com o senso comum oriundo da
hegemonia perpetrada pela classe dominante. Estes esclarecimentos oriundos da teoria
gramsciana nos permitem inferir que não existe apenas uma filosofia, mas filosofias
diferentes, isto é concepções de mundo diversas, mas que subsistem em um mesmo
período histórico, entretanto, os homens realizam uma escolha entre elas. Por
conseguinte, consideramos que o ensino de Filosofia na escola pública, quando orientado
por uma compreensão materialista histórica e dialética da realidade sinaliza a necessidade
histórica, para a própria classe trabalhadora, de desvelar e apontar caminhos para sua
libertação das amarras que lhe acorrentam ao projeto societário do Capital.
Referências
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.
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