O discurso sindical das trabalhadoras domésticas

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Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin 1 O DISCURSO SINDICAL DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS PRISCILA LOPES VIANA Faculdade de Letras/Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 Pampulha 31270-901 Belo Horizonte MG - Brasil [email protected] Resumo. O objetivo deste artigo é analisar o discurso sindical das trabalhadoras domésticas na matéria jornalística intitulada “Sem discriminar domésticas, custo dobra” (FOLHA DE S. PAULO, 2008). Para isso, utilizaremos o aparato conceitual do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 1999) e as contribuições da Análise do Discurso (FARIA, 2005; FIORIN, 1989; MAINGUENEAU, 1984). Palavras-Chave. Discurso. Linguagem. Trabalho. Doméstica. Abstract. The aim of this paper is to analise the discourse of domestic workers in a newspaper article entitled “Without discriminating housemaid cost doubles” (FOLHA DE S. PAULO, 2008). For this, we use the conceptual apparatus of Sociodiscursive Interactionism (BRONCKART, 1999) and the contributions of Discourse Analysis (FARIA, 2005; FIORIN, 1989; MAINGUENEAU, 1984). Keywords. Discourse. Language. Work. Housemaid. 1. Introdução O objetivo deste artigo é analisar o discurso sindical das trabalhadoras domésticas na matéria jornalística intitulada “Sem discriminar domésticas, custo dobra” (FOLHA DE S. PAULO, 2008). Essa matéria destaca que essa categoria é a maior dentre as demais categorias de trabalhadores do Brasil. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), há 6,8 milhões de trabalhadoras domésticas. Contudo, esse número refere- se às trabalhadoras domésticas mensalistas. Sendo assim, se a esse número forem somadas outras 2,3 milhões que trabalham como horistas (faxineiras ou diaristas), totalizam-se 9,1 milhões de trabalhadoras. Ou seja, cinco por cento da população brasileira pertence à categoria de trabalhadoras domésticas. A razão pela qual a matéria jornalística foi publicada deveu-se ao fato de uma proposta de emenda constitucional que ampliaria os direitos das trabalhadoras domésticas ter estado em estudo no governo Lula. Para isso, cinco ministérios (Trabalho, Planejamento, Previdência Social, Fazendo e Casa Civil) haviam sido acionados para trabalhar em prol da mudança na legislação. Se aprovada fosse a alteração na Constituição, a categoria de profissional de trabalhadoras domésticas teria todos os direitos concedidos às demais categorias, isto é: recebimento de salário família, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço)

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Trabalho apresentado no Enelim/2011

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Anais do Enelin 2011. Disponível em: www.cienciasdalinguagem.net/enelin

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O DISCURSO SINDICAL DAS TRABALHADORAS

DOMÉSTICAS

PRISCILA LOPES VIANA

Faculdade de Letras/Universidade Federal de Minas Gerais

Av. Antônio Carlos, 6627 Pampulha – 31270-901 – Belo Horizonte – MG - Brasil

[email protected]

Resumo. O objetivo deste artigo é analisar o discurso sindical das

trabalhadoras domésticas na matéria jornalística intitulada “Sem

discriminar domésticas, custo dobra” (FOLHA DE S. PAULO, 2008). Para

isso, utilizaremos o aparato conceitual do Interacionismo Sociodiscursivo

(BRONCKART, 1999) e as contribuições da Análise do Discurso (FARIA,

2005; FIORIN, 1989; MAINGUENEAU, 1984).

Palavras-Chave. Discurso. Linguagem. Trabalho. Doméstica.

Abstract. The aim of this paper is to analise the discourse of domestic

workers in a newspaper article entitled “Without discriminating housemaid

cost doubles” (FOLHA DE S. PAULO, 2008). For this, we use the

conceptual apparatus of Sociodiscursive Interactionism (BRONCKART,

1999) and the contributions of Discourse Analysis (FARIA, 2005; FIORIN,

1989; MAINGUENEAU, 1984).

Keywords. Discourse. Language. Work. Housemaid.

1. Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o discurso sindical das trabalhadoras

domésticas na matéria jornalística intitulada “Sem discriminar domésticas, custo dobra”

(FOLHA DE S. PAULO, 2008).

Essa matéria destaca que essa categoria é a maior dentre as demais categorias de

trabalhadores do Brasil. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística), há 6,8 milhões de trabalhadoras domésticas. Contudo, esse número refere-

se às trabalhadoras domésticas mensalistas. Sendo assim, se a esse número forem

somadas outras 2,3 milhões que trabalham como horistas (faxineiras ou diaristas),

totalizam-se 9,1 milhões de trabalhadoras. Ou seja, cinco por cento da população

brasileira pertence à categoria de trabalhadoras domésticas.

A razão pela qual a matéria jornalística foi publicada deveu-se ao fato de uma

proposta de emenda constitucional – que ampliaria os direitos das trabalhadoras

domésticas – ter estado em estudo no governo Lula. Para isso, cinco ministérios

(Trabalho, Planejamento, Previdência Social, Fazendo e Casa Civil) haviam sido

acionados para trabalhar em prol da mudança na legislação.

Se aprovada fosse a alteração na Constituição, a categoria de profissional de

trabalhadoras domésticas teria todos os direitos concedidos às demais categorias, isto é:

recebimento de salário família, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço)

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obrigatório, limite da jornada de trabalho estabelecida por lei, hora extra e adicional

noturno. Com isso, o custo dos encargos trabalhistas dobraria, de acordo com cálculos

de especialistas em mercado de trabalho, advogados e representantes de empregadores e

trabalhadores do Estado de São Paulo.

Frequentemente, as mídias televisivas e impressas têm discutido a situação das

trabalhadoras domésticas que, como vimos acima, constituem um número significativo

da população brasileira e estão relacionadas a importantes questões sócio-históricas do

país. Tais aspectos têm nos motivado a realizar, em nossa pesquisa de doutoramento,

análises discursivas sobre esse trabalho.

Para a realização desta análise, utilizaremos o aparato conceitual do

Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 1999) e as contribuições da Análise do

Discurso (FARIA, 2005; FIORIN, 1989; MAINGUENEAU, 1984), que serão

sintetizados na seção seguinte.

2. Fundamentos teóricos

Bronckart (1999) propõe que todo texto é organizado em três níveis (camadas)

superpostos, e em parte interativos, que constituem o “folhado textual”: (1) a arquitetura

interna dos textos, (2) os mecanismos de textualização e (3) os mecanismos

enunciativos. Essa divisão de níveis de análise é concebida pelo autor como necessidade

metodológica para se desvendar a complexidade da organização textual.

Na hierarquia do autor, a arquitetura interna dos textos seria o nível mais

profundo. Constitui-se pelo plano geral do texto, pelos tipos de discurso, pelas

modalidades de articulação entre seus tipos de discurso e pelas sequências que

casualmente aparecem no plano geral do texto. No nível intermediário, estariam os

mecanismos de textualização, constituídos pela conexão, coesão nominal e pela coesão

verbal. No último nível – o mais “superficial” – estariam os mecanismos de

responsabilização enunciativa, os quais cooperam mais para o estabelecimento da

coerência pragmática (ou interativa) do texto, pois, além de contribuírem para o

esclarecimento dos posicionamentos enunciativos, traduzem as várias avaliações em

relação ao conteúdo temático.

Por sua vez, os estudos realizados por Faria (2005) têm buscado contribuições

da Análise do Discurso para a compreensão da linguagem ficcional (e outras

linguagens) que, por sua vez, sendo constitutiva da linguagem humana, torna-se um

instrumento revelador das atividades discursivas e não-discursivas humanas.

A metodologia utilizada pelo autor – que se vale tanto de noções greimasianas

quanto de conceitos desenvolvidos por Maingueneau (1984/2005), Fiorin (1989), entre

outros – inclui as seguintes categorias analíticas, com as quais também pretendemos

realizar a análise da matéria jornalística selecionados para o córpus deste artigo:

do intradiscurso, isto é, dos textos que materializam o discurso,

identificam-se os percursos semânticos, que englobam dois conjuntos de

elementos semânticos: o percurso temático e o figurativo – o primeiro

mais abstrato e o segundo mais concreto e

do interdiscurso, a categoria de oposição.

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3. Análise

A matéria jornalística “Sem discriminar domésticas, custo dobra” (FOLHA DE

S. PAULO, 2008) apresenta diversos trechos com o discurso direto da personagem

explícita Emerenciana que, sendo a presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Domésticos do município de São Paulo, representa uma importante voz para a análise

do discurso sindical dessa categoria. Enumeramos, a seguir, essas falas transcritas pelo

jornal pertencentes a essa personagem:

(1) “Há 30 anos lutamos pelo FGTS obrigatório e por direitos que todos os trabalhadores de outras categorias têm, como a jornada de trabalho de 44

horas semanais estabelecida na Constituição. Não estamos pedindo nada

de extraordinário. Doméstico não é escravo.”

(2) “Nossa esperança é que a questão das domésticas se resolva agora. Sabe

como é: ano político, é agora ou nunca”

(3) “Só sei que qualquer proposta vai enfrentar resistência dos próprios congressistas. Muitos políticos não têm interesse em aprovar melhorias

porque a discriminação começa muitas vezes nas casas deles.”

(4) “O patrão ainda gosta de levar vantagem em tudo. Mas o fato é: começou

a trabalhar tem de registrar em carteira em 48 horas. E tanto faz se ele

trabalha uma vez por semana ou todos os dias. O cargo pode ser de

diarista, mas a profissão é uma só: doméstica.”

(5) “Se não contribuem para o INSS, elas não têm direito a aposentadoria.”

(6) “A média salarial é de R$ 600 a R$ 700, por uma jornada de 44 horas

semanais. Sempre alertamos de que o empregador não pode pagar menos

de R$ 450 [salário mínimo no Estado]. Mas o que vale é a livre

negociação entre patrões e empregados. Não há como fazer acordo coletivo”.

Na fala número (1) da personagem, percebemos a temática da exclusão social da

categoria de trabalhadoras domésticas explícita no pronome “todos” no segmento

“direitos que todos os trabalhadores de outras categorias têm”. Sposati (2011), ao

discutir o tema da exclusão social no Brasil, afirma que, em função da adoção de uma

estrutura escravagista, a universalidade da cidadania (necessária para a construção da

universalidade de condição humana a todos os brasileiros) ainda não foi consagrada, e

essa consagração deverá acontecer primeiramente na sociedade, pois sua consagração

no Estado é consequência.

A figura da Constituição Brasileira é apresentada pela personagem, na mesma

passagem (1), representando o tema dos direitos da categoria de domésticas, um dos

principais percursos semânticos da matéria. Vale ressaltar que todos os trabalhadores

brasileiros (urbanos e rurais) possuem, por lei, 34 direitos trabalhistas; somente a

categoria das trabalhadoras domésticas possui apenas nove desses direitos. O FGTS

obrigatório e a jornada de trabalho estabelecida por lei, como coloca em sua fala a

personagem Emerenciana, são dois dentre os 25 direitos não concedidos à sua categoria.

Ao afirmar que “Doméstico não é escravo” (segmento 1), Emerenciana deixa

explícita sua manifestação contra a sociedade brasileira que, no século XXI, ainda

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possui uma representação do trabalho doméstico similar ao modo que era concebido

pela sociedade brasileira escravocrata dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

A fala (2) de Emerenciana dá continuidade ao tema dos direitos das trabalhadoras

domésticas. Sendo essas trabalhadoras as mais interessadas na alteração da constituição

brasileira, no que concerne aos seus direitos, podemos observar a urgência dessa

mudança marcada pelo dêitico temporal “agora” no segmento “Nossa esperança é que a

questão das domésticas se resolva agora. Sabe como é: ano político, é agora ou nunca”

(FOLHA DE S.PAULO, 2008, p. B3). Juntamente com a ideia de urgência, os

advérbios “agora” e “nunca” presentes neste segmento da matéria jornalística

pressupõem que somente em anos políticos há a possibilidade de problemas sociais

serem solucionados.

O segmento da fala (3), por sua vez, inicia-se com uma modalização lógica. De

acordo com Bronckart (1999), essas modalizações apresentam os elementos de seu

conteúdo como fatos atestados. Pela experiência da personagem Emerenciana na luta

em favor de sua classe trabalhista – no segmento (1), a personagem menciona “30 anos”

–, e apesar da esperança de que a mudança na legislação ocorra – marcada

explicitamente no segmento (2) –, ela não tem dúvida em relação à dificuldade que a

própria sociedade impõe para que essa mudança ocorra.

Embora os direitos trabalhistas concedidos por lei às trabalhadoras domésticas

sejam somente nove dentre os 34 concedidos aos demais trabalhadores, eles ainda não

são cumpridos. Devido a esse fato, Emerenciana mostra sua indignação afirmando,

como exposto no segmento (4), que “O patrão ainda gosta de levar vantagem em tudo”.

De acordo com a (FOLHA DE S. PAULO, 2008), a falta do registro em carteira é o

principal motivo para queixas trabalhistas que chegam ao sindicato.

Podemos observar também no segmento (4) o uso do conector “mas”. De acordo

com Bronckart (1999), “mas” pertence a um conjunto de conjunções de coordenação

que assume uma função de balizamento. Ducrot (1987) afirma que o “mas” é o conector

por excelência, ele se caracteriza por contrapor algo que se afirmou anteriormente. No

segmento (4), esse conector pressupõe a luta do sindicato para forçar os empregadores a

registrar em carteira. É interessante notar que explícita (“lutamos” no segmento 1) ou

implicitamente (pressuposto mencionado anteriormente) há o tema da luta no discurso

sindical.

Muitas vezes, a consequência do não registro em carteira é o que afirma

Emerenciana no segmento (5): “Se não contribuem para o INSS, elas não têm direito a

aposentadoria.”

Na fala (6) da sindicalista Emerenciana, vemos a afirmação: “Sempre alertamos

de que o empregador não pode pagar menos de R$ 450”. Vale notar que, em muitas

falas de Emerenciana, ela assume uma voz coletiva, isto é, ela representa uma

personagem coletiva constituída pelos membros do sindicato, o que pode ser

comprovado pelos seguintes elementos linguísticos: “lutamos” e “estamos” em (1),

“Nossa” em (2) e “alertamos” em (6).

Há ainda no segmento (6) o uso de uma modalização deôntica – “não pode pagar”.

Trata-se de uma obrigação social, de uma norma em uso. Porém, o marcador discursivo

“mas”, presente na continuação da fala (6) da sindicalista, indica a possibilidade de essa

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norma não ser cumprida na medida em que a doméstica, ao fazer o acordo trabalhista,

ignora ou abre mão de seus direitos, ficando com um salário inconstitucional.

4. Considerações finais

Por meio da análise realizada na seção anterior, observamos que o percurso

semântico dos direitos trabalhistas é desenvolvido em cada fala da presidente do

sindicato, apresentando a luta sindical como um dos principais temas.

Notamos que a representante das trabalhadoras domésticas do estado de São

Paulo responsabiliza fortemente os empregadores pelo descumprimento dos nove

direitos concedidos a essa categoria de trabalhadoras, ao utilizar a expressão “levar

vantagem” em “O patrão ainda gosta de levar vantagem em tudo”. Podemos afirmar que

há uma representação, por parte do sindicado das domésticas, negativa em relação aos

empregadores domésticos, uma vez que o substantivo “patrão” é generalizado a todos os

empregadores e não é direcionado a casos específicos.

Além disso, constatamos que a própria sociedade brasileira, representada pelas

casas dos congressistas em “a discriminação começa muitas vezes nas casas deles”,

possui uma imagem negativa no discurso sindical das trabalhadoras domésticas.

Contudo, é relevante salientar que há uma representação negativa da própria

categoria na medida em que esta recebe a crítica da presidente do Sindicato dos

Empregados Domésticos de fazer acordos trabalhistas que ferem seus próprios direitos

Constitucionais.

Referências

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por um

interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999.

DUCROT, Oswald. [1984]. O dizer e o dito. Campinas: Pontes Ed., 1987.

FARIA, A. A. M. “Aspectos lingüísticos de discursos ficcionais sobre trabalhadores: os

casos de Germinal e Morro Velho”. In: R. de MELLO (org.) Análise do discurso e

Literatura. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2005.

ROLLI, Claudia; FERNANDES, Fátima. Sem discriminar domésticas, custo dobra. In:

FOLHA DE S.PAULO, 31 de agosto de 2008, Dinheiro, p. B1, B3-B5.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Ática, 1989.

MAINGUENEAU, D. (1984) Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti.

Curitiba: Criar Edições, 2005.

SPOSATI, Aldaíza. Exclusão social abaixo da linha do Equador. Disponível em

http://www.seuvizinhoestrangeiro.ufba.br/twiki/pub/GEC/RefID/exclusao.pdf Acesso

em 14 de setembro de 2011.