O Díscolo: estudo e tradução - Biblioteca Digital de ... · mulher, que aparece na comédia sob...

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    O DSCOLO: ESTUDO E TRADUO

    Helena de Negreiros Spinelli

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras Clssicas, do Departamento de

    Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,

    para a obteno do ttulo de Mestre em Letras Clssicas.

    Orientadora: Prof Dr Adriane da Silva Duarte

    So Paulo

    2009

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS

    O DSCOLO: ESTUDO E TRADUO

    Helena de Negreiros Spinelli

    So Paulo

    2009

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente a minha famlia pelo constante apoio. Agradeo, igualmente, a

    todos aqueles que se encontraram envolvidos, mesmo que de forma indireta, no

    desenvolvimento desta pesquisa. Devo ainda agradecer a professora Adriane da Silva Duarte

    pela orientao, s professoras Isabella Tardin e Filomena Yoshie Hirata pelas observaes e

    Fapesp pela bolsa de mestrado, sem a qual este trabalho no se teria realizado.

  • RESUMO

    Este trabalho consiste no estudo introdutrio e traduo da comdia O Dscolo, de

    Menandro, autor grego do sculo IV a.C. A primeira parte do estudo contempla a

    apresentao da comdia em seu contexto e sua estrutura dramtica. A segunda parte

    dedicada anlise das personagens - por ser uma comdia que privilegia os caracteres, julgo

    importante estender-me sobre eles. Essa seo divide-se em nove partes, cada uma dedicada a

    uma personagem, exceto no caso da primeira seo intitulada A Divindade, que apresenta uma

    anlise sobre o deus P e as Ninfas; e a quinta seo, intitulada Personagens femininas, que

    traz a anlise da menina, filha de Cnmon, de Simica, e da me de Sstrato.

    A traduo, segunda realizada no Brasil a primeira de Mrio da Gama Kury tem o

    objetivo de divulgar a obra do autor grego para o pblico brasileiro em geral. Com esse

    intuito, o texto foi vertido para o portugus em prosa, procurando-se manter o seu ritmo fluido

    e sua linguagem. Alm disso, a linha do verso foi mantida para facilitar a consulta ao original

    grego.

    PALAVRAS-CHAVE

    Literatura grega antiga, Teatro, Comdia Nova, Menandro, O Dscolo

  • ABSTRACT

    This work consists in the introductory study and translation of the comedy Dyskolos, of

    Menander, Greek author of the fourth century BC. The first part of the study includes the

    presentation of comedy concerning its context and its dramatic structure. The second part is

    devoted to the analysis of the characters - as a comedy that emphasizes the characters, I

    consider it important. This section is divided into nine parts, each one devoted to one

    character, except for the first section entitled The Divine, which presents an analysis of the

    god Pan and the Nymphs, and the fifth section, entitled Female characters, which conveys the

    analysis of the girl, the daughter of Knemon of Simike, and of Sostratos mother.

    The translation, the second one developed in Brazil the first is by Mario da Gama

    Kury aims to disseminate the work of the Greek author to the Brazilian public. With this

    purpose, the text was converted to Portuguese on prose, trying to keep its rhythm and

    language. Besides that, the line of the verse was kept to make it easier the consultation with

    the original.

    KEY-WORDS

    Ancient Greek Literature, Theatre, New Comedy, Menander, The Dyskolos

  • NDICE

    1 INTRODUO 1

    1.1 A COMDIA NOVA E O SEU TEMPO 4

    1.2 O DSCOLO: ESTRUTURA DO ENREDO 7

    1.3 PERSONAGENS 13

    1.3.1 A Divindade 13

    1.3.2. Cnmon 18

    1.3.3. Sstrato 24

    1.3.4. Grgias 29

    1.3.5. Personagens femininas 36

    1.3.6. Scon, o cozinheiro 42

    1.3.7. Queras 48

    1.3.8. Os Escravos 50

    1.3.8.1. Prrias 50

    1.3.8.2. Daos 51

    1.3.8.3. Getas 53

    1.3.9. Calipides 57

    2 NOTA SOBRE A TRADUO 59

    3 O DSCOLO Traduo 60

    4 BIBLIOGRAFIA 114

    4.1. EDIES CONSULTADAS 114

    4.2. AUTORES CONSULTADOS 114

  • 1

    1 INTRODUO

    Os textos da comdia nova chegaram at ns por duas vias: primeiramente atravs de

    citaes em obras de autores gregos e latinos, e atravs das descobertas papirolgicas do

    sculo XX, que trouxeram luz no apenas trechos de diversas comdias de Menandro

    (Aspis, Epitrepontes, Misoumenos, Periceiromene, Samia e Sicyonios), mas tambm a nica

    comdia praticamente inteira que dispomos do autor, O Dscolo.

    A comdia nova desenvolve-se em meados do sculo IV a.C., em Atenas, com as

    comdias gregas, cujos representantes so, alm de Menandro (342a.C 291a.C), Alexis de

    Turi, cuja carreira se estenderia da metade do sculo IV a.C. at aps a morte de Menandro.

    Temos ainda Filemon, cuja origem no certa (Cilcia ou Siracusa), nascido no final dos

    anos 360 a.C.. Este autor teria deixado por volta de cem peas, sendo que pelo menos duas

    delas foram adaptadas por Plauto. Outro autor, Dfilo, originrio de Sinope, no Mar Negro,

    tambm tem peas adaptadas por Plauto, e juntamente com Menandro e Filemon, formaria a

    trade convencional da comdia nova a qual se referem os escoliastas. E, por fim, h

    Apolodoro de Caristo, na Eubia, da primeira metade do sculo III a.C., que teria sido

    bastante influenciado pela obra de Menandro, tambm com peas adaptadas, dessa vez, por

    Terncio. A esses autores segue-se a tradio latina, cujos expoentes so os j referidos

    Plauto e Terncio, que adaptam as comdias gregas, principalmente de Menandro,

    encenando-as durante o perodo compreendido entre 240 e 160 a.C.

    Posterior comdia antiga, representada por Aristfanes, a comdia nova apresenta

    certas alteraes estruturais com relao tradio anterior. Primeiramente, observa-se na

    comdia antiga uma estrutura composta pelas seguintes partes:

    1. Prlogo: exposio dos acontecimentos;

    2. Prodo: interveno inicial do coro, formado, inclusive, por seres no humanos;

    3. gon: disputa, debate entre as personagens;

    4. Parbase: momento no qual o poeta, na voz do coro, se dirige aos espectadores

    para tratar de questes polticas, sociais, ou de qualquer outro assunto de

    relevncia para a comunidade;

    5. Episdios;

  • 2

    6. xodo: exposio final do coro, com quase sempre a celebrao de um

    banquete.

    J na comdia nova, observa-se uma diviso totalmente distinta, que passa a apresentar

    cinco atos, que de modo geral acompanham a intensificao da tenso dramtica. O coro,

    assim como pode j ser observado a partir das ltimas comdias de Aristfanes (Assemblia

    de mulheres e Pluto), e ainda nos fragmentos de comdia escritos entre os anos que separam

    Aristfanes de Menandro, j no tem o mesmo papel e importncia. Sua presena indicada

    pela palavra XOPOY (do coro), sem que haja qualquer meno a respeito do teor de sua

    performance, acreditando-se inclusive que nem sempre se relacione pea, no sendo

    tambm necessariamente escrito pelo autor do texto. Supe-se que o coro no tenha sido

    totalmente suprimido, pois fazia parte do ritual religioso em honra a Dionso. Outro elemento

    que tambm perde sua fora e desaparece a parbase. Contudo, o desaparecimento dessa

    seo no implica o tambm desaparecimento de discursos que lidem com aspectos a ela

    pertinentes, como os de cunho social: Cnmon, no Dscolo (708ss), discorre acerca do

    comportamento.

    A variao rtmica no teatro de Menandro tem menor importncia, havendo maior

    nfase na ao, segundo Hunter (1985), esta mais viva e variada no que diz respeito ao tempo

    e intensidade emocional. O metro mais comumente usado o trmetro jmbico, no

    acompanhado por msica, o qual Aristteles classifica como o mais prximo da fala comum.

    O tetrmetro trocaico, metro que, segundo Aristteles, caracteriza-se por ser mais vivo e

    rpido, tambm pode ser utilizado, porm com menor freqncia e mais associado a

    contextos emotivos1.

    Com relao temtica, a comdia nova volta-se, sobretudo, para as vicissitudes da

    vida privada. De acordo com Sbato Magaldi (1963),

    Em Menandro, o homem deixa de aparecer como figura pblica, para apresentar-se

    na sua natureza privada. Passam a segundo plano as cogitaes do bem coletivo,

    para se registrar o comportamento pessoal [...] A criatura que se desvincula da

    noo precpua de cidadania, identificada com a trajetria herica da plis,

    mergulha na rotina de uma vida em que importam a sobrevivncia e os prazeres

    sensoriais. (Magaldi, 1963, p.58-59)

    Devido a esse enfoque privilegiado pela comdia nova a estrutura do enredo quase

    sempre a mesma e quase no h variao, uma vez que se prope a retratar padres da vida

    1 Potica 1449a24-6.

  • 3

    privada. Em Menandro tal enredo gira quase sempre em torno do amor. Em Periceiromene,

    por exemplo, Plemon, motivado pelo cime corta os cabelos de Glicera ao v-la beijando

    outro homem. J no caso do Dscolo, temos o amor primeira vista, porm nesse caso

    possvel notar que o romance secundrio caracterizao de Cnmon, o misantropo ao qual

    se refere o ttulo do texto.

    Inseridos nesse enredo, pode-se destacar conflitos que se apresentam de maneira

    recorrente, conforme aponta Hunter (1985). A relao entre os sexos central em diversos

    enredos, o que nos permite uma viso, embora parcial, da precria situao social e legal da

    mulher, que aparece na comdia sob a forma da cortes, da escrava, e com exceo da filha

    de Cnemon, no Dscolo, da cidad casada ou viva, isso porque o realismo pretendido pela

    comdia, que se passa em lugar pblico, no lhes permite grandes papis.

    Outro tema tambm comum o conflito de geraes, expresso, normalmente na relao

    pai e filho, j presente na comdia antiga. Ao discutir os temas e conflitos comuns comdia

    nova grega e romana, Hunter (1985, p.83-113), afirma que essa modalidade de conflito ser

    desenvolvida entre os pais e os filhos que se encontram no perodo que antecede o

    casamento, uma poca durante a qual cessam os excessos da juventude e d-se a adoo de

    responsabilidades que implicam no amadurecimento do jovem. Nesse sentido, a idia que

    os mais velhos lembrem-se que tambm eles, nesse mesmo perodo de suas vidas tinham a

    mesma conduta desregrada. Exemplos so as seguintes comdias: Samia, Adelphoe, Andria e

    Heauton Timorumenos.

    E por fim, apresentando-se como um gnero essencialmente urbano, que retrata os usos

    e costumes das classes mais abastadas seu pblico predominante, uma vez que, segundo

    Hunter (1985), o teatro no mais era subsidiado pelo Estado a comdia nova apresentar a

    oposio existente entre a virtude e moralidade sria que o campo representa e a luxria e

    frivolidade encarnada pela cidade, que no Dscolo faz-se presente no contraste existente entre

    Sstrato, da cidade, e Grgias, do campo. Contudo, apesar de ser o reduto das virtudes, o

    campo tambm o local dos maus odores, sujeira e pouca sofisticao; o que reforaria a

    caracterizao da cidade como reduto dos prazeres da vida urbana (Hunter, 1985).

    Quanto s mscaras e figurino, opera-se tambm uma transformao, j que, tendo em

    vista uma abordagem mais fiel da realidade, esses aspectos devero se adequar a esse novo

    enfoque. O carter grotesco do figurino da comdia antiga deixado de lado. Os enchimentos

    usados na frente e atrs so abolidos, assim como os phalloi2 que passam a ser usados apenas

    2 No mbito cnico, o phallus era uma representao flica ereta de propores exageradas que fazia parte do

    figurino das personagens masculinas da comdia antiga.

  • 4

    em situaes de piada mais obscena. Adota-se ainda o chitn, vestimenta cotidiana do

    ateniense, mais comprida do que a utilizada pelos atores da tradio anterior, sendo que a

    tnica mais curta passa a ser usada apenas para a representao dos escravos. Alm disso, as

    mscaras tambm sofreram algumas modificaes, adquirindo um aspecto mais realista

    (WEBSTER, 1953).

    De acordo com Webster (1953), passam a existir duas mscaras usadas pelos pais e

    quatro pelos jovens. As mscaras dos escravos e das mulheres velhas continuam sendo

    caricaturas e as das moas aparecem durante a comdia mdia3 e nunca foram muito

    distorcidas.

    Para as mscaras masculinas, Webster ainda observa a diferenciao por meio do tipo

    de cabelo: encaracolado, ondulado e enrolado, possibilitando a distino entre membros de

    uma mesma famlia. H ainda a possibilidade de uma personagem apresentar mais de uma

    caracterstica atravs das mscaras dupla-face4, que datam do sculo V a.C. Com isso, soma-

    se um total de 44 mscaras disponveis para atender s necessidades da comdia nova.

    Contudo, no h evidncias de mscaras para tipos que normalmente so objeto de stira,

    como o soldado, adulador, a concubina e a madrasta, o que talvez indique uma nova

    abordagem dessas figuras, pois dado o realismo desse tipo de comdia, possvel que os

    autores tivessem a preocupao de retrat-los como pessoas comuns, sem adotar para suas

    mscaras o aspecto grotesco que a comdia antiga adotava (WEBSTER, 1953, p. 119-124),

    pois esta no apresentava mscaras para personagens tpicas, mas talvez mscaras caricaturais

    que se ligavam invectiva pessoal.

    1.1 A COMDIA NOVA E O SEU TEMPO

    Ao se falar que a comdia dita nova surge em Atenas, em meados do sculo IV a.C.,

    tem-se a impresso que, a partir de um determinado momento, o gnero anterior de comdia

    desaparece por completo dando lugar a um novo gnero, totalmente diverso do anterior.

    evidente que o abalo sofrido pela democracia ateniense com o fim da Guerra do Peloponeso

    e, posteriormente, o incio do domnio macednico refletem-se na temtica da comdia, que

    adquire um ar mais introspectivo. Entretanto, no se deve pensar que o gnero cmico tenha

    3 Gnero de comdia que se desenvolve em Atenas entre o final do sc. V e meados do sc. IV a.C. e que marca

    a transio da comdia antiga para a comdia nova. 4 Segundo Webster (1953, p.122), esse tipo de mscara possibilita uma maior variedade de expresses faciais.

  • 5

    passado por uma mudana repentina que o tenha levado a se distinguir radicalmente da

    comdia precedente.

    Em um artigo recente, Eric Csapo (2000) levanta tal questo, discutindo a evoluo do

    gnero cmico na Grcia. Em um primeiro momento, o autor aponta que a tripartio da

    comdia em comdia antiga, mdia e nova, tal como estudada, no era conhecida at pelo

    menos o sculo III ou II a.C., originando-se ento do estudo dos textos gregos por escoliastas.

    Isso nos leva a crer que, quando estabelecida tal diviso, esses estudiosos no dispunham de

    um corpus representativo o bastante do gnero cmico que os levasse a identificar um grande

    universo de autores, ou ainda relaes de continuidade ou inovaes durante o perodo que

    compreendia os trs gneros. Sendo assim, tal fato os teria levado a associar a comdia antiga

    a Aristfanes e a nova a Menandro, uma vez que as obras desses dois autores afastam-se

    tanto no que diz respeito poca em que foram criadas quanto sua temtica; a primeira de

    carter poltico e a segunda, como anteriormente dito, voltada para as vicissitudes da vida

    privada.

    Csapo observa que, evidentemente, aspectos de carter poltico, como uma lei que

    proibira a invectiva, e mesmo o domnio macednico teriam, sim, contribudo para as

    mudanas que se operaram na comdia; porm como ele mesmo afirma, The5 evidence,

    however, shows that what we normally think of as Old, Middle and New Comedy designate

    synchronic, not period styles (Capo, 2000; p. 121).

    Dessa maneira, ao se considerar o gnero cmico, deve-se pensar mais em uma

    preferncia com relao a uma determinada tendncia, durante um certo perodo, do que em

    mudanas repentinas: alguns enredos so preferidos em detrimento de outros. Logo, natural

    que se encontre evidncias de comdias de carter poltico ao longo do sculo IV a.C.,

    perodo durante o qual Menandro cria suas peas. O melhor exemplo o de Timocles, que

    escreve entre os anos de 320 e 310 a.C.

    Uma outra hiptese para explicar a despolitizao da comdia pressupe que tal

    transformao se daria em virtude de um mercado internacional emergente para as comdias

    atenienses; ou seja, platias de outras regies no teriam interesse nos assuntos pblicos de

    Atenas (Csapo, 2000).

    Mas embora a comdia perca, na sua grande maioria, seu carter poltico, que se reflete

    principalmente no j mencionado desaparecimento da parbase6, ainda sim possvel

    5 A evidncia, contudo,, mostra que o que normalmente consideramos comdia antiga, mdia e niva, designam

    estilos sincrnicos e no peridicos 6 Parte estrutural da comdia antiga na qual o poeta, na voz do coro, se dirigia aos espectadores para tratar de

    questes polticas, sociais, ou de qualquer outro assunto de relevncia para a comunidade

  • 6

    encontrar discursos que lidem com aspectos de cunho social, como o faz Cnmon, no Dscolo

    (708ss), ao discorrer acerca do comportamento humano logo aps ser resgatado do poo no

    qual cara.

    Sob tal perspectiva, David Wiles (1984), procura demonstrar, atravs de uma leitura

    contextualizada do Dscolo, que Menandro lidaria com aspectos da vida poltica ateniense,

    atribuindo Cnmon reconhecidos ideais ticos e polticos daquela poca.

    Em linhas gerais, o artigo de Wiles trata da oligarquia ateniense e de como esta busca

    alcanar um equilbrio entre ricos e desfavorecidos em consequncia de uma nova legislao,

    que redefine os padres para a cidadania ateniense, restringindo-a a um pequeno grupo, e de

    como tais eventos refletem-se no Dscolo.

    Wiles lembra que por causa da restrio da cidadania, Fcion, que viveu durante a

    segunda metade do sculo IV a.C, era um lder poltico de orientao oligrquica, aliado dos

    macednios e, notvel no apenas por sua misantropia, mas tambm pelo seu despojamento e

    admirao pela educao espartana, condenado morte em 318 a.C. em consequncia de

    um golpe de orientao democrtica. Aps a morte de Fcion, Demtrio de Faleros assume o

    governo de Atenas e, com o intuito de no despertar o ressentimento daqueles que perderam

    suas fortunas, elabora uma srie de leis que probem a ostentao, muito embora o consumo

    exagerado prevalea como a medida do status.

    Desse modo, o que se v no Dscolo a tentativa de conciliao entre ricos e pobres

    ante uma situao da qual o autor demonstra plena conscincia, sem que tente, no entanto,

    oferecer uma alternativa ao padro social vigente. E isso fica bastante evidente quando se

    chega ao final da pea e constata-se que o jovem Sstrato e seu pai continuam desfrutando do

    luxo advindo de sua riqueza. O trabalho austero do campo ao qual o jovem se submete na

    tentativa de se aproximar do velho Cnmon no passa apenas de um artifcio para atingir seus

    objetivos.

    Cnmon, por sua vez, incorporaria os ideais de Fcion, atravs de sua misantropia e

    principalmente despojamento, o que nos fica bastante claro durante parte do discurso

    proferido entre os versos 742-45, no qual apresenta uma viso ideal de uma cidade justa na

    qual cada um contenta-se em possuir apenas o suficiente. Cnmon vive de maneira simples, e

    seus hbitos e valores diferenciados levam sua execrao social, uma vez que suas atitudes

    so interpretadas pelos demais como as de um homem cruel, sem que se perceba que esse

    velho se trata apenas de um homem que segue uma filosofia de vida que rompe com os

    padres sociais.

  • 7

    Obviamente o florescimento da democracia constitua um momento mais propcio para

    o desenvolvimento da comdia de cunho poltico; porm, como visto, ela no desaparece

    totalmente no sculo IV a.C. Ela apenas perde sua fora em decorrncia de um maior

    interesse pela temtica da vida privada, quer pelo florescimento de um mercado internacional,

    quer por motivaes de carter poltico.

    1.2 O DSCOLO: ESTRUTURA DO ENREDO

    Como as demais comdias do perodo, o Dscolo divide-se em cinco atos, construindo

    seu enredo em torno da personagem Cnemon, o misantropo, que ocupa a cena por um quarto

    da pea; sendo que, no tempo restante, sua presena marcada pelas falas das demais

    personagens. O Dscolo retrata as tentativas do jovem Sstrato de se aproximar de Cnmon

    para que este consinta no casamento daquele com sua filha e, atravs da histria do amante

    que o retrato do velho construdo.

    A comdia tem incio com o prlogo proferido pelo deus P (1-49). Nele, a pea

    localizada no espao, os antecedentes da ao so expostos, e as principais personagens so

    apresentadas sem que, no entanto, sejam nomeadas, exceto Cnmon, que desde ento comea

    a ter seu carter moldado de modo negativo.

    Handley (1965), em seu comentrio ao Dscolo, aponta que esse tipo de discurso

    expositivo bastante comum na comdia grega tardia, atuando como um complemento ao

    que apresentado pelo autor nas cenas dramticas. Esses discursos podem ocorrer tanto no

    incio da pea, como o caso do Dscolo, ou aps uma cena de abertura, como ocorre em

    Periceiromene, quando a deusa Agnoia (ignorncia), fora que desencadeia a ao dramtica,

    expe alguns fatos importantes aos espectadores aps a cena em que Plemon, motivado por

    cime, corta os cabelos de Glicera.

    Tem-se, inicialmente, no prlogo do Dscolo, a localizao da ao em File, na tica,

    cuja aridez do solo reflete-se no carter de seus habitantes. A seguir, o deus passa

    imediatamente a descrever Cnmon e sua misantropia. O velho rude descrito como algum

    cruel, avesso s multides e incapaz de conversar espontaneamente com quem quer que seja,

    a no ser com o deus, a quem se dirige apenas por necessidade. Alm disso, h uma descrio

    bastante sucinta dos eventos antecedentes ao dramtica: o casamento mal-sucedido de

    Cnmon, a vida de isolamento que este leva com sua filha e uma velha escrava e a vizinhana

  • 8

    com o filho do primeiro casamento de sua ex-esposa, Grgias. E ligando-se a esses fatos, h

    ainda o jovem da cidade que se apaixona, motivado pelo deus, pela filha do velho misantropo

    devido a piedade desta em relao s Ninfas.

    Aps o prlogo, desenvolve-se a primeira cena dramtica que vem complementar parte

    do que foi dito anteriormente pelo deus. Nesta cena, Sstrato, o apaixonado e Queras, seu

    amigo, revelam ao pblico, em uma conversa, como surgiu a paixo pela menina e o que j

    foi feito para tentar arranjar o casamento, uma vez que se trata de uma menina livre.

    Subitamente, Prrias, escravo do jovem apaixonado e enviado a Cnmon para tratar do

    casamento, entra ruidosamente em cena fugindo do velho, que o persegue atirando-lhe toda

    sorte de coisas, de bolas de barro a pras silvestres. A presena do escravo em cena, alm do

    efeito cmico produzido por sua entrada, tem outra de grande importncia, pois alm de

    contribuir para a construo da imagem do velho misantropo, tambm prepara a primeira

    apario deste, no verso 153.

    Cnmon entra em cena reclamando por conta da intromisso sofrida. Esta a primeira

    manifestao de sua crueldade, que s vem a corroborar os relatos anteriores.

    A seguir, h um breve dilogo entre Sstrato e Cnmon e, quando este deixa a cena, a

    menina, sua filha, quem faz sua primeira apario. Nessa ocasio, toma-se conhecimento da

    perda do balde derrubado no poo por Simica, prenncio do acidente responsvel pela

    resoluo do conflito. A gravidade da situao, justificada pelo temperamento do pai, reflete-

    se no tom elevado de suas palavras, que, pela carga emocional expressa em seu lamento,

    remete-nos tragdia. Segundo Handley (1965), a figura da moa, lamentando-se com o pote

    de gua, ecoaria Electra, na tragdia homnima de Eurpides, que em determinado momento

    retrata a herona trgica carregando o jarro de gua na cabea, s margens do rio, a lamentar a

    morte de seu pai, Agammnon, assassinado por Clitemnestra (EL. 54ss); e em um segundo

    momento (EL. 112ss), quando a mesma retorna da fonte de gua, ainda lamenta a sorte do pai

    e sua prpria desgraa.

    Embevecido pela beleza da menina, que agora precisa pegar gua na gruta das Ninfas,

    dada a impossibilidade de utilizar o poo de sua prpria casa, Sstrato prontamente se oferece

    para ajud-la; porm seu gesto no passa despercebido para Daos, escravo de Grgias. O ato I

    chega ao fim com Daos indo em busca de Grgias e com a chegada dos adoradores de P

    para o sacrifcio.

    No segundo ato (v.233-426), entram em contato as duas esferas de ao da comdia: as

    tentativas de Sstrato de tratar do casamento e o sacrifcio realizado na gruta de P, por sua

    me. Getas, escravo da famlia de Sstrato, e Scon, o cozinheiro contratado para o ritual

  • 9

    quem realizam a ligao entre as duas aes aparentemente distintas. Em relato a este ltimo,

    o escravo revela que o motivo do sacrifcio o sonho da senhora, que v P agrilhoando seu

    filho, obrigando-o a cavar no campo prximo gruta. Logo, para afastar a ameaa, sacrificam

    sem saber que tais fatos na realidade j ocorreram, uma vez que Sstrato, ajudado por

    Grgias, meio irmo da menina, levado para o campo na tentativa de impressionar Cnmon.

    Sstrato e Grgias entram em contato no incio deste segundo ato, dando incio ao que

    ecoa o agn trgico, momento durante o qual, nas tragdias, observava-se um embate verbal.

    O meio irmo da moa, desconfiado das intenes do primeiro, pronuncia em tom bastante

    srio um discurso formado por trs argumentos na tentativa de dissuadir o outro de seus vis

    intentos:

    1. a tch, sorte ou fortuna, instvel, pois aquele que hoje prospera, mas

    injusto, amanh pode encontrar-se na misria, assim como o pobre que

    honesto pode, no futuro, vir a prosperar. Logo, por ser rico, Sstrato no deve

    cometer nenhuma injustia contra os pobres;

    2. as intenes de Sstrato no so honradas, mas criminosas;

    3. no certo fazer uso do tempo livre (cio) para prejudicar aqueles que

    trabalham.

    Handley (1965) observa neste discurso a utilizao de uma linguagem voltada para o mbito

    financeiro, como artifcio empregado por Grgias para impressionar o jovem citadino cujas

    intenes no lhe parecem honradas. Contudo, Sstrato, de maneira sincera, revela suas

    intenes, convencendo o rapaz a ajud-lo em sua empreitada. Desse modo, Grgias o leva

    para trabalhar no campo, para de que Cnmon, vendo-o, tome-o por pobre lavrador,

    consentindo, assim, no casamento, muito embora Grgias saiba da impossibilidade disso vir a

    ocorrer.

    Segundo Maria de Ftima Sousa e Silva (1976), o terceiro ato, alm de repercutir no

    ltimo ato, tambm apresenta diversas cenas com tom de farsa.

    Cnmon, a caminho do campo, novamente incomodado pelos participantes do

    sacrifcio que vo chegando e, aps criticar a piedade exagerada, volta a sua casa fugindo da

    multido. Segue-se ento uma cena em que o elemento cmico apresenta-se com bastante

    fora: os sacrificadores percebem que esqueceram a panela para preparar o cozido, logo cabe

    a Getas emprest-la de um dos vizinhos, no caso, Cnmon, que violentamente recusa-se a

  • 10

    ced-la. O escravo retorna gruta de P e, agora a vez de Scon, o cozinheiro, emprestar a

    panela, convencido de que o conseguir graas sua tcnica que consiste em bajular a pessoa

    da qual se empresta o utenslio. Contudo, aps ser brutalmente repelido pelo velho

    misantropo, o cozinheiro contenta-se em fazer uso de uma frigideira de que dispe,

    manifestando seu profundo desprezo pelos filsios, que j prontos para brigar, dificultam seu

    trabalho.

    Assim como Scon, Sstrato tambm se v envolvido em complicaes, no seu caso,

    causadas pela sua paixo. Aps um dia de trabalho, o jovem encontra-se fisicamente

    esgotado, afligido por toda sorte de dores e sem ter conseguido ver o velho, que no incio do

    ato refugia-se no interior da casa por causa dos adoradores do deus. Sstrato encontra ento

    Getas e toma conhecimento do sacrifcio que se realiza ali na gruta de P.

    Enquanto isso, Simica, escrava de Cnmon, desespera-se com medo do castigo que

    receber quando seu senhor descobrir que ela derrubou dentro do poo no s o balde, mas

    tambm o forcado que ele tanto procura. A comicidade da cena deve-se ao contraste entre o

    desespero da velha escrava que no sabe o que fazer, e a ironia de Getas que observa

    placidamente a cena, oferecendo at mesmo ajuda a Cnmon.

    Os gritos de Simica iniciam o quarto ato, anunciando a queda de Cnmon dentro do

    poo. O seu resgate por Grgias atua como um renascimento, que implica o reconhecimento

    de seus erros, bem como a aparente adoo de uma postura menos severa: finalmente, ele

    consente com o casamento.

    Durante o resgate, o vingativo cozinheiro exulta com a situao e, ao ver que o velho

    ainda vive, deseja que ele esteja mutilado ou manco para no causar mais problemas.

    Evidentemente, h uma expectativa de que alguma desgraa se abata sobre Cnmon, uma vez

    que no se espera que algum que tenha cometido tantas injustias escape impune. Contudo,

    a crueldade das palavras de Scon, que pode ser comparada crueldade do prprio Cnmon,

    acaba por despertar um sentimento de simpatia pelo acidentado misantropo, trmulo e

    encharcado.

    O impiedoso discurso do cozinheiro, conforme sugere Handley, remeteria-nos aos

    coros do sculo V a.C., que tinham como objetivo alimentar a curiosidade do pblico por

    notcias dos eventos que ocorriam fora do palco. Sob tal perspectiva, a figura de Sstrato, que

    relata o resgate ao pblico, equipara-se a de um mensageiro, preparando os espectadores para

    o longo discurso de Cnmon.

    Na cena que se segue, h ento as palavras do velho, que vem arrastado em uma

    cadeira. possvel que se tenha aqui, o uso do enciclema, dispositivo empregado para trazer

  • 11

    ao pblico uma cena interna. Em seu discurso, conforme ser visto posteriormente, o velho

    justifica suas aes, dando a conhecer as reais motivaes que o guiaram, reconhecendo, por

    fim, que errara. Sendo assim, ele transfere para Grgias a responsabilidade no s pelos seus

    bens, mas tambm por sua irm, a qual d em casamento a Sstrato. Mas embora o conflito

    inicial do enredo esteja aparentemente resolvido, o tema do casamento, juntamente com a

    chegada de Calipides ao fim do ato IV, tero continuidade no ltimo ato.

    A abertura deste quinto e ltimo ato articulada de modo a produzir no espectador um

    estranhamento, j que Sstrato expressa sua insatisfao em relao a deciso de seu pai,

    Calipides. Este no consente no casamento de sua filha com Grgias, alegando no querer

    dois parentes desprovidos. Porm, retomando o discurso de Grgias no ato II, Sstrato fala a

    seu pai sobre a instabilidade da fortuna, lembrando-o da importncia da generosidade.

    Calipides cede e, dando mostras da sua magnanimidade, recusa o dote da irm de Grgias

    oferecendo-lhe, em troca, trs talentos por sua filha. D-se lugar ento celebrao das duas

    unies com todos se dirigindo ao templo. O que se segue ento uma cena de grande

    vivacidade, na qual Getas e Scon, retomando o ato III, momento no qual vo em busca da

    panela emprestada, foram Cnmon a tomar parte nas festividades. Nessa cena, Getas e Scon

    dirigem-se a ele, recriminando sua misantropia, ambos atuando como mediadores de sua

    reintegrao social ao inst-lo a tomar parte da celebrao.

    Aps a dramaticidade de sua cena no ato IV, Cnmon retorna agora nesta cena cmica

    para finalmente se redimir e abrir mo do isolamento no qual persiste. Alm disso, pode-se

    agora tom-lo, finalmente, por uma figura cmica, j que at agora isso no fora possvel. A

    comdia termina com Cnmon, agora persuadido, sendo conduzido por Scon gruta de P, e

    Getas clamando o pblico a aplaudir o triunfo sobre o velho misantropo, com uma prece para

    que a Vitria sempre os acompanhe, devendo-se entender que a vitria nos festivais

    dramticos no deve abandonar o autor.

    A edio desta comdia apresenta um breve resumo da ao dramtica que teria

    supostamente sido escrito por Aristfanes de Bizncio, um escoliasta alexandrino que teria

    produzido entre os sculos III e II a.C. Contudo, a autoria do resumo que se encontra no

    Dscolo rejeitada pelos estudiosos, visto que ela est escrita em versos, enquanto os que

    foram de fato escritos por Aristfanes eram em prosa, sem contar que o resumo em questo

    apresenta erros com relao aos eventos da comdia, que de modo algum o fariam digno da

    figura do escoliasta (IRELAND, 1995).

    O esclio iniciado com uma meno a Cnmon e a sua estrutura familiar: por causa de

  • 12

    seus modos rudes, ele abandonado por sua esposa que tem uma filha, fruto deste casamento

    e um filho, fruto de seu primeiro casamento com outro homem. Segundo o esclio, ele vive

    sozinho no campo, ou seja, no se faz meno no esclio ao fato da filha ter permanecido com

    ele. A seguir, afirma-se que Sstrato se aproxima do velho rude (dscolo) para pedir a mo da

    menina em casamento: em momento algum o jovem tem a chance de se dirigir a Cnmon para

    fazer o pedido, pois a princpio o jovem recua temendo a reao do velho e, mais tarde,

    quando vai ao campo para trabalhar com Grgias, fingindo ser um lavrador para impressionar

    Cnmon, este no aparece pois est recolhido dentro de sua casa para evitar os sacrificadores.

    Outro ponto em desacordo com a histria a meno ao salvamento de Cnmon por Sstrato,

    pois como se sabe, o mrito pelo salvamento cabe unicamente a Grgias, enquanto Sstrato

    assiste a tudo passivamente. Por fim, h o seginte trecho:

    kathlla/gh me\n tv= gunaiki/, th\n ko/rhn

    tou/t% d e)di/dou gunai=ka kata\ no/mouj e)/xein!

    tou/tou d a)delfh \n lamba/nei t%= Gorgi/#

    (...)

    Reconciliou-se com a mulher, e a filha

    para ele deu como esposa, conforme manda a lei;

    e a irm de Sstrato, Cnmon recebe para Grgias (...)

    Em momento algum Cnmon entrega a filha a Sstrato, mas sim Grgias, que recebe a guarda

    da irm aps o resgate, e a quem cabe decidir com quem ela deve se casar; e tambm no cabe

    a Cnmon receber a irm de Sstrato para Grgias: em momento algum se encontra qualquer

    tipo de meno que indique o envolvimento do velho no arranjo.

    Contudo, afirma Ireland (1995) que a nota sobre a produo pode ser de autoria do

    referido Aristfanes, ou ento foi apenas retirada dos registros oficiais de Atenas. Nessa nota,

    ou didascalia, h a informao de que a pea foi encenada nas Lenias, um importante festival

    dramtico, realizado sempre no incio do ano, em janeiro. Outro dado importante a meno

    ao arcontado de Demgenes, que permite datar a comdia entre os anos de 317-6 a.C., o que

    faria do Dscolo uma pea do incio da carreira de Menandro, cuja estreia data de apenas

    cinco anos antes. A ltima informao da qual se dispe, alm da meno ao outro nome da

    comdia, O Misantropo, que ela foi protagonizada por Aristodemo Escarfeu. No se sabe

    nada a respeito desse ator, mas como protagonista, tem evidentemente o papel mais

    importante da pea, acumulando ainda outros papis.

  • 13

    1.3 PERSONAGENS

    1.3.1 A Divindade

    Quando se fala em teatro grego, a primeira coisa que nos vem mente a tragdia que

    se desenvolve no sculo V a.C., que, diferentemente da comdia, busca no mito a matria para

    seu enredo. E embora os heris trgiocs sejam parte desse universo mtico, a soluo do

    drama escapa a eles: jamais dada pelo heri solitrio e traduz sempre o triunfo dos valores

    coletivos impostos pela nova cidade democrtica (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 1999, p.

    XXI). Na tragdia, o heri vive dentro de si um debate, pois uma vez que coagido a fazer

    uma escolha, depara-se com valores ambguos, dados, por um lado, pela autoridade, que se

    caracteriza pela coero e, pelo outro, pelas potncias divinas, isto , pela justia de Zeus.

    Essas duas potncias, totalmente distintas, so a base do direito ateniense, que se organiza no

    segundo princpios, mas, sim, segundo diferentes graus, dados pela autoridade e pela justia

    divina, de acordo com Vernant e Vidal-Naquet (1999).

    Sob tal perspectiva, a tenso entre presente e passado que caracteriza a tragdia

    implicar a constante presena divina, visto que no apenas o direito abrange o mbito do

    divino, mas o prprio heri oriundo de um tempo em que homens e deuses coexistiam.

    Logo, Sourvinou-Inwood (2003) argumenta que, quando Aristteles afirma na Potica

    (1454a39-1454b1-8) que as epifanias fazem os enredos menos verossmeis ele

    desconsideraria o fato de o presente histrico ter sido determinado pelo passado herico,

    poca na qual o mundo dos humanos teria sido povoado pelos deuses. Por isso, a

    verossimilhana no seria comprometida, segundo a autora, pela presena divina nos enredos,

    mas recriaria um quadro verdico do que teria sido a poca dos heris. Evidentemente, o

    filsofo grego considera a oniscincia do deus, que deve apenas ser inserido no enredo para

    trazer ao pblico fatos ignorados pelas personagens. Desse modo, Sourvinou-Inwood conclui

    que, apesar de Aristteles tecer crticas a epifania, a relao de verossimilhana deve se dar

    visto que a audincia perceberia a oniscincia e sabedoria divina como caractersticas

    inerentes as suas prprias divindades. Ou seja, os deuses da tragdia no seriam meras

    criaes literrias, mas entidades que fazem parte de seu cotidiano.

    O que se v na comdia, por outro lado, algo bastante diferente. Como seu enredo no

    baseado no passado mitolgico, ela possui um carter ilimitado, j que seu autor livre para

    criar a histria que quiser. O que se observa normalmente, ao se considerar a comdia antiga,

    cujo representante mais conhecido Aristfanes, uma preocupao com os assuntos da

  • 14

    polis, os quais se encontram inseridos no enredo cmico. Como contempornea tragdia, a

    comdia tambm encontra em seus espectadores a mesma crena com relao divindade.

    Contudo, em virtude do carter transgressivo da comdia, Dover (1972) observa que o

    comedigrafo, ao mesmo tempo em que assume o papel de crtico das figuras de poder

    pblicas por meio da ridicularizao, assume tambm o mesmo papel com relao

    divindade.

    O relacionamento que se estabelece entre deuses e mortais aquele entre o que

    estabelece as regras e o que a elas se submete: o que faz as regras pode quebr-las

    impunemente, enquanto o que a elas se submete punido se as transgride. Logo, Dover

    afirma que, o que este precisa de uma oportunidade para ridicularizar o primeiro como uma

    medida de autoafirmao. Esse tipo de comportamento ser algo recorrente na comdia

    antiga, cujos enredos frequentemente retrataro as divindades de modo depreciativo, como no

    caso de Dioniso, n As Rs (479), que desmaia e se suja de medo ao procurar aco.

    Dio/nusoj

    e)gke/xoda: ka/lei qeo/n

    Canqi/aj

    w)= katage/last ou)=koun a)nasth/sei taxu \ 480

    pri/n tina/ s i)dei=n a?llo/trion

    Dio/nusoj

    a)ll w(rakiw=.

    a)ll oi)=se pro\j th\n kardi/na mou sfoggia/n

    Dioniso Eu me borrei. Chame o deus.

    Xntias Ridculo! Rpido, levante-se 480

    antes que um estranho veja voc!

    Dioniso Mas eu acho que vou desmaiar

    Traga a esponja e coloque-a sobre o meu corao.

    evidente que a oniscincia do deus permite que ele saiba que est sendo ridicularizado, mas

    a impossibilidade do pblico de saber qual seria sua reao permite que ela seja ajustada de

    acordo com as necessidades morais e emocionais da sociedade (DOVER, 1972).

    No que diz respeito comdia nova, h uma outra dimenso com relao ao tratamento

    do enredo e da divindade. Embora a questo do enredo na comdia nova j tenha sido tratada,

    vale a pena relembrar que ele lida com assuntos relativos esfera privada da vida dos

  • 15

    cidados e, por conseguinte, assume um carter mais realista no tratamento de seus eventos.

    Desse modo, haver um lugar para a divindade apenas nos rituais a elas consagrados por

    necessidade de se garantir a verossimilhana dos fatos. Conforme afirma Dover (1972), de

    Aristfanes para Menandro opera-se uma grande transformao nos enredos, pois enquanto o

    primeiro explora elementos sobrenaturais e do folclore grego, o segundo se atm apenas a

    aspectos do cotidiano, permitindo que qualquer um que assistisse s suas comdias pudesse se

    identificar com as situaes ilustradas em seus enredos.

    Por apresentar tais caractersticas, o teatro de Menandro permitir que a divindade

    aparea apenas para proferir prlogos e explicar audincia as circunstncias que deram

    incio ao dramtica, uma vez que a oniscincia uma qualidade inerente ao divino.

    Contudo, Hunter (1985) aponta que errneo pensar que a divindade apenas empregada

    para elucidar fatos importantes do enredo, pois como a principal funo do teatro entreter a

    audincia, entre os artifcios dos quais o comedigrafo lanar mo para tal fim, est o

    emprego da divindade, recurso recorrente entre os autores.

    Porm, a despeito de sua funo cmica, apesar de as figuras divinas no

    contracenarem com as humanas, a vontade divina interfere diretamente sobre os

    acontecimentos, como no caso de Periceiromene, quando a deusa Agnoia propicia o ataque de

    cime de Polemon para desencadear a ao dramtica, ou mesmo no Dscolo, quando P faz

    com que Sstrato se apaixone pela filha de Cnmon devido a devoo desta s Ninfas. A

    recompensa pela piedade, segundo Handley (1965), um motivo recorrente na comdia nova.

    No caso da menina, a oferenda simples, porm sincera, motiva o favor do deus e das Ninfas.

    P o deus local, cuja gruta localiza-se entre as duas propriedades da histria. Este deus

    encontra-se em uma zona fronteiria, entre a cultura da polis e a humanidade e o irracional,

    habitando em cavernas. A caverna foi a habitao primeira do homem, passando, no processo

    evolutivo, a ser utilizada para a inumao de corpos e, por fim, sendo concebida como a

    morada dos deuses, por sua distncia dos adensamentos populacionais (BURKERT, 1985).

    Todas essas particularidades evidentemente no foram desprezadas por Menandro, que soube

    aproveit-las para enriquecer seu enredo.

    O carter ambguo da personalidade do deus bastante significativo. Pois, ao flutuar

    entre a cultura e a humanidade e o poder incivilizado da procriao essencial para o mundo

    civilizado (BURKERT, 1986, p. 172), pode-se dizer que sua influncia divina sobre o curso

    da ao no se trata de um mero capricho do autor e de seu potencial criativo, mas sim de um

    ato coerente com a personalidade do deus. File um lugar rido, e a aridez local reflete-se no

    comportamento de Cnmon:

  • 16

    to\n a)gro\n de\ to\n [e)]pi deci\ oi)kei= toutoni \ 5

    Knh/mwn, a)pa/nqrwpo/j tij a)/nqrwpoj sfo/dra

    kai\ Du/skoloj pro\j a(/pantaj ou) xai/rwn t o)/xl% -

    o)/xl% le/gw; z[w=]n ou(=toj e)pieikw=j xro/non

    polu\n lela/l?hken h(de/wj e)n t%= bi/%

    ou)deni/, proshgo/reuke pro/teroj d ou)de/na 10

    plh\n e)c a)na/gkhj geitniw=n pariw/n t e)me \

    to\n Pa=na.

    E neste campo a, direita, mora 5

    Cnmon, um homem muito desumano

    e dscolo com todos, desgostando da multido

    digo multido? Vivendo ele suficientemente um tempo

    longo, com ningum conversou de modo agradvel em sua

    vida, e nunca se dirigiu primeiro a algum, 10

    exceto por necessidade a mim, P, por ser seu vizinho e por

    passar por perto.

    O misantropo no demonstra devoo pelo deus, dirige-se a ele apenas por necessidade, pois

    como afirma Getas, nos versos 433-434, no se deve se aproximar/desse deus em silncio,

    isso porque no se pode correr o risco de acordar, de qualquer jeito, o deus em seu sono. O

    deus deve ser acordado com uma saudao ou com msica para despertar nele bons

    sentimentos e evitar a possesso maligna que se manifesta com o pnico (HANDLEY, 1965).

    Cnmon o sada apenas para evitar qualquer tipo de aborrecimento que a fria do deus possa

    causar. O pnico pode se manifestar nos indivduos tanto em meio natureza como em

    meio batalha. Alm disso, as Ninfas, donas da morada de P, igualmente so associadas a

    estados alterados de conscincia e, por isso, ambos representam o sobrenatural da vida

    cotidiana (LARSON, 2001). P uma divindade pastoral e musical e, por isso as Ninfas so

    divindades a ele associadas, j que elas atuam como coro e danam ao som da msica tocada

    por uma figura masculina, como tambm o caso de Apolo e Hermes, tambm

    acompanhados por essas divindades. Por causa das Ninfas, o local de culto de P a caverna,

    visto que elas habitam fontes de gua, sendo que as cavernas normalmente apresentam tal

    caracterstica.

    Contrariamente a Cnmon, a menina, apesar de criada apenas pelo pai, no apresenta o

    mesmo carter rude, honrando piedosamente as Ninfas e merecendo, desse modo, o cuidado

    dessas. Apesar do favor conquistado, as Ninfas caracterizam-se por estarem ligadas

    fertilidade humana, ao nascimento e ao cuidado de crianas, sendo que essa ltima funo

    pode ser dividida em duas: cuidado por crianas pequenas e cuidado por aquelas que esto

    alcanando a maturidade, pois o ltimo grupo representa os futuros guerreiros e cidados e as

    futuras esposas. Logo, o interesse das divindades pela menina no meramente casual, mas

  • 17

    como ela se encontra em idade de casar e procriar, ela , por consequncia, objeto de

    preocupao. Contudo, por possuir um pai cujo temperamento no permite que a pessoas se

    aproximem, impedindo igualmente que qualquer pretendente tenha a chance de pedir a sua

    mo, a filha de Cnmon passa a receber uma ateno especial por parte das Ninfas o qual se

    manifesta na figura de Sstrato, o apaixonado.

    Mas as personagens, por outro lado, encaram os acontecimentos como obra da tch

    (sorte ou destino), fora responsvel pelos eventos no apenas no palco, mas tambm na vida

    real. De acordo com Hunter (1985), as transformaes pelas quais passam os gregos em um

    perodo de cinquenta anos provavelmente ocasionaram uma maior ateno sobre a fora da

    tch. Um exemplo disso o que afirma Demtrio de Faleros, que, ao viver a derrota persa e a

    ascenso do poder macednico, atribui tais transformaes sorte, a qual desconsideraria

    completamente o estilo de vida das pessoas, trazendo mudanas inesperadas (HUNTER,

    1985). Esse sentimento far com que as personagens da comdia nova se encontrem sujeitas

    s foras da tch, em maior intensidade que as personagens da tradio anterior, quando

    possvel observar que, ao invs de serem controladas pelas disposies do destino, as

    personagens tentam obter o controle sobre sua prpria sorte (HUNTER, 1985). Nesse sentido,

    a comdia nova trata a instabilidade da sorte (tch) como um assunto recorrente e ligado

    pobreza e riqueza.

    No caso do Dscolo possvel enxergar claramente o papel dessa fora divina que se

    apresenta em um primeiro nvel o do discurso, como responsvel pela boa fortuna dos

    indivduos de acordo com o carter bom ou mau desses mesmos indivduos: o bom prospera e

    o mau sofre uma mudana para pior. J em um segundo nvel o da exigncia do drama, a

    tch se apresenta como fora necessria para restabelecer a harmonia social, abalada quando

    Cnmon resolve isolar-se do convvio com os demais em virtude de um julgamento

    equivocado sobre o carter humano (SCHELL, 1990). Esse aspecto regulador da divindade

    expresso por Menandro em um fragmento de uma de suas peas (SCHELL, 1990, p. 184):

    ei) pa/ntej e)bohqou=men a)llh/loij a)ei/,

    ou)dei\j a)\n w)\n a)/nqrwpoj e)deh/qhn Tu/xhj.

    se todos ajudssemos uns aos outros sempre,

    ningum, sendo homem, precisaria da Tch.

    A tch a fora que regula o mundo da comdia, e as palavras de Menandro ecoam as de

    Cnmon no ato IV, quando este afirma que todos estariam satisfeitos com o que possuem se

    adotassem o seu estilo de vida (743 a 745). Se existisse um sentimento mtuo de

  • 18

    solidariedade, a fora divina no precisaria agir sobre o destino dos homens, porm,

    Menandro confere s palavras do velho misantropo uma certa ironia, pois se ele fosse uma

    pessoa agradvel e dada ao convvio social, a tch no precisaria intervir fazendo com que

    casse no poo para perceber que agira errado.

    Portanto, se o que se observa na comdia nova uma maior preocupao com a

    verossimilhana, logo, haver espao para a divindade apenas no prlogo ou como objeto de

    adorao em rituais religiosos. E nesse caso, a sorte (tch) que prevalece como fora

    propiciadora de mudanas no entendimento das personagens.

    1.3.2. Cnmon

    Esta no a primeira vez que a figura do misantropo empregada na comdia. De

    acordo com Ireland (1995), encontra-se, durante o perodo da comdia denominada mdia,

    uma pea de Mnesmaco, cujo nome da personagem principal Dscolo. Alm disso, teria

    havido ainda peas de Ofelion e Anaxilas com o ttulo Eremita, que remetem ao tema da vida

    em isolamento. Contudo, a origem da figura do misantropo, remontaria figura de Tmon,

    um ateniense conhecido por sua misantropia e que, de acordo com o relato histrico, aps a

    guerra do Peloponeso teria adotado um estilo de vida marcado pela recluso que, segundo

    Plutarco7, seria motivado pela ingratido de seus amigos, fato que o teria feito perder a

    confiana nos homens, vindo a se tornar, posteriormente, o paradigma do misantropo.

    Nas Aves, de Aristfanes, encontra-se referncia a tal figura histrica (1548-49),

    quando Prometeu a ela se equipara, pois assim como o famoso misantropo, contemporneo

    do comedigrafo, a divindade despreza seus pares em favor da humanidade. J na Lisstrata

    (805-20), h uma descrio mais pormenorizada de Tmon que se contrape descrio do

    casto e misgeno Melnio:

    Xoroj8 Gunaikw=n

    ka)gw\ bou/lomai mu=qo/n tin' u(mi=n a)ntile/cai 805

    tw=? Melani/wni.

    Ti/mwn h)=n a)i/druto/j tij a)ba/toisin

    e)n skw/loisi to\ pro/swpon perieirgme/noj, 810

    7 PLUTARCH. Plutarchs Lives. With an English translation by Bernadotte Perrin. London: Harvard University

    Press; v.1, 1959. 8 Aristophanes. Aristophanes Comoediae, ed. F.W. Hall and W.M. Geldart, vol. 2. Oxford. Clarendon Press,

    Oxford. 1907.

    http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Axoro%2Fs&bytepos=101160&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Agunaikw%3Dn&bytepos=101160&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ka%29gw%2F&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=bou%2Flomai&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=mu%3Dqon&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tin%27&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28mi%3Dn&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ntile%2Fcai&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tw%3D%7C&bytepos=101301&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Amelani%2Fwni&bytepos=101301&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Ati%2Fmwn&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=h%29%3Dn&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29i%2Fdrutos&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tis&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ba%2Ftoisin&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=e%29n&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=skw%2Floisi&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=to%2F&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=pro%2Fswpon&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=perieirgme%2Fnos&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035

  • 19

    )Erinu/wn a)porrw/c.

    ou(=toj ou)=n o( Ti/mwn

    *

    w)/?xeq' u(po\ mi/souj

    polla\ katarasa/menoj a)ndra/si ponhroi=j.

    ou(/tw 'kei=noj u(mw=n a)ntemi/sei

    tou\j ponhrou\j a)/ndraj a)ei/,

    tai=si de\ gunaici\n h)=n fi/ltatoj. 820

    Coro de Mulheres9

    E eu quero vos contar uma histria contra 805/6

    a de Melnio.

    Um Tmon era to fixo, em inacessveis

    espinhos as faces tendo fechado, 810/1

    um rebento das Ernies,

    este Tmon ento

    foi-se por dio

    Muitas imprecaes tendo feito aos homens perversos 815

    tanto aquele, como ns, sempre odiava os homens

    perversos, mas das mulheres era amicssimo.

    Em um esclio a esta comdia de Aristfanes, aprende-se que Tmon vem a morrer de

    gangrena por se recusar a receber cuidados mdicos aps uma queda acidental de uma

    pereira. Sob tal perspectiva, a queda de Cnmon no poo adquire um carter mais

    significativo, pois ecoaria o trgico fim do misantropo original. Com isso ficaria demonstrado

    o conhecimento de Menandro sobre tal histria. Contudo, como se trata de uma comdia, seu

    misantropo no est destinado a morrer s e desamparado, uma vez que ele reconhece a

    existncia da ao verdadeiramente altrusta.

    O carter de Cnmon constri-se de maneira bastante negativa ao longo da comdia, j

    a partir do prlogo proferido por P. E seus traos de desumanidade, aparentemente gratuita,

    acentuam-se ao longo da ao, a princpio por meio do relato de Prrias, que pelo velho

    perseguido; e em um segundo momento, atravs do prprio Cnmon, ao expressar o desejo

    de, assim como Perseu, poder transformar a todos em pedra (153-159):

    ei)=ta ou) maka/rioj h)=n o( Perseu\j kata\ du\o

    tro/pouj e)kei=noj, o(/ti pethno\j e)ge/neto

    kou)deni\ sunh/nta tw=n badizo/ntwn xamai/, 155

    ei)=q` o(/ti toiou=to kth=m` e)kekthq` %(= li/qouj

    a(/pantaj e)po/ei tou\j e)noxlou=ntaj; o(/per e)moi\

    nuni\ ge/noit`! ou)de\n ga\r a)fqonw/teron

    liti/nwn ge/noit` a)\n a)ndria/ntwn pantaxou=.

    9 ARISTFANES. Lisstrata. Traduo de Ana Maria Csar Pompeu. Editorial Cone Sul. So Paulo: 1998.

    http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2A%29erinu%2Fwn&bytepos=101496&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29porrw%2Fc&bytepos=101496&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%28%3Dtos&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%29%3Dn&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=o%28&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Ati%2Fmwn&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=w%29%2F%7Cxeq%27&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28po%2F&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=mi%2Fsous&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=polla%2F&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=katarasa%2Fmenos&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ndra%2Fsi&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ponhroi%3Ds&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%28%2Ftw&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%27kei%3Dnos&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28mw%3Dn&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ntemi%2Fsei&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tou%2Fs&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ponhrou%2Fs&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29%2Fndras&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ei%2F&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tai%3Dsi&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=de%2F&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=gunaici%2Fn&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=h%29%3Dn&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=fi%2Fltatos&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035

  • 20

    No era ento Perseu feliz por dois

    motivos: porque tornou-se alado

    e porque no encontrava nenhum pedestre no cho, 155

    e porque tinha um tal dom com o qual em pedras

    fazia todos os que o aborreciam? Quem dera eu

    agora o tivesse! Pois nada seria mais abundante

    do que esttuas de pedra por toda parte.

    Contudo, uma grande mudana opera-se no ato IV: Cnmon cai em seu prprio poo ao

    tentar recuperar um balde e um forcado, e seu resgate, que atua como um renascimento

    simblico da sua personagem encaminha o conflito do enredo para sua resoluo, uma vez

    que tal evento propicia o processo de reconhecimento no qual Cnmon revela em um longo

    discurso a verdade sobre os fatos, admitindo seu erro e justificando sua misantropia.

    O incio deste discurso nos desconhecido devido existncia de uma lacuna no texto

    original, mas interessante notar que a mtrica, a partir desse momento, sofre alterao,

    passando-se do trmetro jmbico, caracterstico da comdia, para o tetrmetro trocaico,

    conferindo cena um ar que evoca a tragdia.

    Handley (1965), em seu comentrio ao Dscolo, afirma acerca da tragicidade inerente a

    esta passagem, que no apenas a mudana no metro, mas tambm os componentes cnicos e

    textuais so elementos importantes para definir a natureza da situao. O suposto uso do

    enciclema carrinho com rodas utilizado na tragdia para trazer ao espectador cenas que se

    passam no interior de um edifcio para trazer Cnmon cena aps seu resgate, juntamente

    com o tom melanclico de seu discurso tambm contribuiriam para a criao da atmosfera

    trgica. E junto a esses elementos, h ainda a expresso proferida por Sstrato (690) w)= Zeu=

    Sw=ter, e)kto/pou qe/aj: " Zeus Salvador, que viso estranha". Tendo-se em vista que o

    adjetivo e)kto/pou denota aquilo que estranho por estar fora de lugar, a expresso apontaria

    justamente para esse deslocamento do recurso trgico, dado pelo uso do enciclema, para a

    comdia, visando despertar estranhamento ao pblico do gnero cmico. Entretanto, toda a

    tragicidade atenuada unicamente por sabermos que Cnmon no est morrendo, o que

    confere cena seu carter cmico.

    Porm, a despeito da comicidade da situao, percebe-se um profundo tom de crtica

    social nas palavras do velho, o que evocaria, como j mencionado, de certa forma, a funo

    da parbase na comdia antiga.

    O ponto de partida o reconhecimento do erro, seguido pelas razes de seu

    comportamento. Tais elementos permitem a desconstruo da imagem negativa de Cnmon

  • 21

    que at ento fora fortemente construda, permitindo-se entrever traos de humanidade na

    personagem pela primeira vez no decorrer dos eventos (713-21);

    e(/n d ) )i)/sw[j] h(/marton, o(/stij tw=n a(pa/ntwn %)o/mhn

    au)toj au)[t]a/rkhj tij ei)=nai kai\ deh/sesq )ou)deno/j.

    nu=n d )[i)]dw\n o)cei=an ou)=san a)/skopo/n te tou= bi/ou 715

    th\n te[l]euth\n, eu(=ron ou)k eu)= tou=to ginw/skwn to/te.

    dei= ga\r [ei)=]nai kai\ parei=nai to\n e)pikourh/sont` a)ei/.

    a)lla\ ma\ to\n (/Hfaiston ou(/tw sfo/dra diefqa/rmhn

    e)gw\

    tou\j bi/ouj o(rw=n e(ka/stouj tou\j logismou/j q`o(\n

    tro/pon

    pro\j to\ kerdai/nein e)/xousin - ou)de/n` eu)/noun %)o/mhn 720

    e(/teron e(/te/r% tw=n a(pa/ntwn a)\n gene/sqai!

    Talvez eu tenha cometido um erro; eu acreditava, dentre todos,

    ser auto-suficiente e no precisar de ningum.

    Mas ao ver agora que o fim da vida repentino e 715

    imprevisvel, descobri que no sabia bem disso.

    Pois preciso sempre ser e ter presente uma mo amiga.

    Mas, por Hefesto, eu estava assim to perdido

    que olhando para cada estilo de vida, os clculos

    e o modo de lucrar no acreditava que 720

    no mundo uma pessoa poderia agir de boa vontade para com a outra

    Cnmon no cr que um ser humano possa agir desinteressadamente para com outro em

    consequncia do individualismo exacerbado que observa em seus pares. Logo, visto que a

    solidariedade aparece como um valor social aparentemente inexistente, o isolamento que se

    reflete na tentativa de uma autossuficincia constitui um jeito de escapar a esse modo de vida

    pouco digno, no qual as conquistas materiais sobrepem-se s aspiraes do bem comum e ao

    sentimento de coletividade.

    Todavia, o gesto altrusta de Grgias pe por terra o julgamento precipitado de Cnmon

    sobre os homens, fazendo-o reconhecer a necessidade de relacionar-se com sua comunidade;

    uma vez que a vida repleta de imprevistos, e nunca se sabe quando ser preciso ter

    disposio algum que possa prestar auxlio. Logo, ele reconhece seus deveres para com sua

    famlia que at ento no se encontrava sob seus cuidados (79-739):

    ti/ desti/, meira/kion; e)a/n e)gw \

    a)poqa/nw nu=n-oi)/omai de/, kai\ kakw=j i)/swj e)/xw- 730

    a)/n te periw= pou, poou=mai/ s u(o/n, a(/ t e)/xwn tugxa/nw

    pa/nta sautou= no/mison ei)=nai. th/nde soi paregguw=,

    a)/ndra au)t$= po/rison! ei) ga \r sfo/dr u(giai/noim e)gw/,

    au)to\j ou) dunh/soim eu(rei=n! ou) ga \r a)re/sei moi/ pote

    ou)de\ ei(=j. a)ll e)me \ me/n, zh=n e)a=q w(j bou/lomai. 735

    ta)/lla pra=tt au?to \j paralabw/n! nou=n e)/xeij su\n toi=j qeoi=j,

  • 22

    khdemw/n ei)= th=j a)delfh=j, ei)ko/twj! tou= kth/matoj

    e)pidi/dou proi=ka tou)mou= diametrh/saj h(/misu,

    t?[o\] d? e(/teron labw \n dioi/kei ka)me\ kai\ thn\ mhte/ra.

    O que , rapaz? Caso eu

    morra agora creio que talvez sim, e eu estou mal 730

    ou sobreviva, fao voc meu filho, e tudo que tenho

    considero ser teu. Confio-a a voc:

    encontre um marido para ela, pois mesmo que me recuperasse totalmente,

    no poderia ach-lo, pois nenhum

    me agradaria. Mas quanto a mim, se viver, deixem-me viver como quero, 735

    e voc toma conta das outras coisas. Voc tem juzo, pelos deuses,

    voc o guardio da sua irm, naturalmente. Dividindo

    os meus bens, d metade deles como dote,

    e a outra metade tomando, sustenta a mim e a sua me.

    Nota-se nesta deciso um carter baseado num ideal de justia que o impele a agir desta

    maneira. Diante da possibilidade de uma morte iminente, e da necessidade dos demais,

    Cnmon reconhece a importncia de no deixar sua famlia desamparada, algo que de certa

    forma ecoa as palavras de Grgias no incio do ato II (239-240), momento no qual afirma ser

    impossvel fugir aos laos familiares. Ao reconhecer Grgias como seu filho, garante que sua

    filha tenha um guardio legal e um casamento, alm de assegurar a posse de sua propriedade.

    A terra que antes garantia sua independncia agora dividida, metade para o dote da filha e

    metade para Grgias, para que este, a partir dela, cuide de seus pais.

    Mas, apesar da reviravolta, Cnmon continua irredutvel quanto a ser deixado s. Ao

    transferir para o filho suas responsabilidades familiares, expressa e procura concretizar o

    desejo de continuar a viver recluso e de no se envolver na vida dos demais. Entretanto,

    conforme Handley afirma em seu comentrio comdia, seria impossvel permitir que

    Cnmon terminasse seus dias em paz desaparecendo da pea, ou mesmo que ele se permitisse

    participar espontaneamente da celebrao do casamento, pois no se deve esquecer que ele,

    afinal, se trata de uma personagem cmica.

    Nesse sentido, as palavras proferidas pela escrava Simique (874ss.) assumem um papel

    importante para o desdobramento dos eventos futuros, pois a recusa de Cnmon em tomar

    parte na festa pressagiada como advento de uma desgraa vindoura pior que a primeira,

    uma vez que o velho insiste em seu isolamento. Tudo isso, segundo Handley, serve para

    justificar a cena que se segue, na qual Getas e Scon foram-no a participar das festividades.

    Resignadamente, Cnmon encaminha-se para o templo para juntar-se s celebraes, tendo

    em vista que sua misantropia provou-lhe trazer apenas tormentos e inconvenientes.

  • 23

    Por trs da misantropia do velho, elemento fortemente responsvel pelo desenrolar do

    enredo, h um ideal de equidade, trao de carter que se evidencia no final do longo discurso

    por ele proferido (742-745):

    u(pe\r e)]mou= ga\r bou/loim ) ei)pei=n o)li/ga soi kai\ tou=

    tro/pou.

    ei) toiou=to]i pa/ntej h=)san, ou)/te ta\ dikasth/ria

    h)=n a)/n, o]u)/q au(tou\j a)ph=gon ei)j ta\ desmwth/ria,

    ou)/te p]o/lemoj h)=n, e)/xwn d )a)\n me/tri ) e(/kastoj h)gapa. 745

    Quero falar para voc uma coisinha sobre mim e sobre o meu jeito:

    Se todos fossem assim, no haveria

    tribunais nem mandar uns aos outros para a priso,

    nem haveria guerra, e cada um estaria satisfeito tendo o suficiente. 745

    Ter o suficiente e agir de forma justa so ideias que perpassam toda a histria. A instabilidade

    dos bens materiais em oposio s relaes interpessoais aparece como um valor importante

    que perpassa todo o drama, deixando transparecer no apenas as disposies de carter das

    personagens, mas tambm conferindo pea um tom de crtica social.

    No ultrapassar os limites da prpria condio a ideia central comdia. Aquele que

    justo no busca o constante lucro, mas vive satisfeito tendo apenas o suficiente e, por isso no

    prejudica seus semelhantes e afasta-se dos males dos tribunais e das guerras como postula

    Cnmon. Agir justamente permite ao indivduo manter sua condio ou prosperar, pois do

    contrrio certo que receber uma mudana para pior, j que sorte tais coisas pertencem, e

    da sua instabilidade.

    Portanto, vlido assumir, segundo uma perspectiva histrica, que estamos diante da

    busca por um equilbrio ante a constatao de uma crise social dada em virtude das

    circunstncias relacionadas vida poltica ateniense. E nessa busca, Menandro demonstra sua

    habilidade na manipulao desses elementos em benefcio do enredo da comdia, pois nada

    mais cmico e irnico que um homem que tenta isolar-se do convvio social por julgar que

    todos so injustos e extremamente individualistas, sem saber que a reside seu erro.

    Sendo assim, a misantropia de Cnmon, mais que fora propiciadora dos

    desdobramentos dramticos, apresenta-se ainda como elemento de carter didtico, pois sua

    motivao, dada em razo do materialismo que se mostra como chaga social, um tema que

    permeia toda a pea, como uma lembrana dos recentes eventos atenienses e como um alerta

    para aqueles buscam na ostentao um modo de medir seu status.

  • 24

    1.3.3. Sstrato

    Logo ao final do prlogo proferido por P, h a primeira meno ao heri cmico (39ss).

    Por meio da divindade, descobre-se se tratar de um mocinho de famlia rica que possui uma

    propriedade em File. Contudo, o jovem no um campesino, mas um cidado, habitante da

    cidade, que se encontra no campo para a caa e que, sob a influncia do deus, apaixona-se

    pela filha de Cnmon.

    Imediatamente aps o prlogo, Sstrato entra em cena dialogando com o parasita

    Queras acerca de sua sbita paixo, demonstrando completa inabilidade para lidar com seus

    problemas de maneira independente, ao enviar ao pai da moa o escravo Prrias na tentativa

    de tratar do casamento. Porm, a medida mostra-se ineficaz, uma vez que o velho escorraa

    brutalmente o escravo. Por isso, ele mesmo tenta se aproximar de Cnmon, mas ao avistar o

    velho, que passa gritando a reclamar sobre os aborrecimentos com os passantes que o

    perturbam durante o trabalho, Sstrato recua covardemente por constatar que o relato do

    escravo a respeito da crueldade do misantropo verdico (151 a 52):

    de/doika me/ntoi, ma\ to\v Apo/llw kai\ qeou/j,

    au)to/n! ti/ ga\r a)/ tij mh\ ou)xi\ ta)lhqh= le/goi;

    Tenho medo dele, por Apolo e pelos deuses,

    Por que no falar a verdade?

    Desse modo, Sstrato mais uma vez decide recorrer a outrem na esperana de resolver seu

    problema: agora caber a Getas, escravo de seu pai, a tarefa de se aproximar do velho rude.

    Todavia, mais uma vez seu plano frustrado ao descobrir que o escravo fora enviado cidade

    para contratar um cozinheiro para o ritual de sacrifcio realizado por sua me na gruta de P.

    De fato, essa a primeira vez que uma meno ao sacrifcio ouvida, responsvel por colocar

    em contato os dois fios da ao do drama. Mas, em um primeiro momento, no se sabe qual

    a motivao do sacrifcio, j que a razo para sua realizao tambm ignorada por Sstrato,

    que o atribui piedade exagerada de sua me.

    Assim, mais uma vez, o heri decide falar ele mesmo com Cnmon, porm, novamente,

    ele se coloca de forma passiva diante de seus problemas, buscando sempre auxlio externo

    para resolv-los, opondo-se diametralmente a Cnmon, que recusa qualquer tipo de

    interveno a seu favor. Alm disso, v-se tambm que Sstrato, ao demonstrar sua

    dependncia, no dispe da maturidade de Grgias, cuja pobreza j muito cedo lhe incute

    responsabilidade e iniciativa, qualidades que durante o resgate de Cnmon evidenciam-se em

    oposio total passividade do jovem citadino, que atua como mero espectador do ato herico

  • 25

    do outro, preocupando-se apenas em admirar a menina amada.

    Embora as intenes de Sstrato sejam nobres deseja se casar com a menina sem dote

    , suas aes so alvo da suspeita de Grgias, cujo escravo, Daos, secretamente observa o

    encontro entre amante e amada no momento em que a menina vai desacompanhada gruta de

    P para buscar gua. Nesse fortuito encontro, Sstrato faz um comentrio a respeito dos

    modos da menina (201-2), referindo-se a ela como uma moa do campo com modos livres.

    Handley (1965, 167) observa que o comentrio de Sstrato poderia ser parafraseado da

    seguinte maneira: She may be a simple country girl, but she has the poise and the frankness

    of the truly civilized.10

    ; em outras palavras, Sstrato reconhece que apesar de ser uma

    campesina, ela no uma pessoa submissa, mas algum com pensamento independente. Esse

    trao de carter da menina se revela no momento em que Sstrato se oferece para buscar a

    gua na gruta: prontamente ela aceita, respondendo mesmo de maneira rude ao rapaz (201):

    Sim, pelos deuses, v depressa!. A admirao de Sstrato se deve observao do fato de

    que a vida campesina, marcada pela simplicidade e pelo trabalho rduo no resulta sempre em

    um recrudescimento do esprito, aumentando ainda mais sua admirao pela menina. Mais

    adiante, na ao, observa-se que mais uma vez, o jovem admirar os modos da moa (384ss.),

    ao saber que ela fora criada unicamente pelo pai, mas sem a influncia negativa que as

    mulheres podem exercer sobre a criao das meninas:

    ei) mh\ ga\r e)n gunaici/n e)stin h( ko/rh

    teqramme/nh, mhd oi)=de tw=n e)n t%= bi/% 385

    tou/twn kakw=n mhde\n u(po\ thqi/doj tino\j

    dedicame/nh mai/aj t, e)leuqeri/wj de/ pwj

    meta\ patro\j a)gri/ou misoponh/rou t%= tro/p%,

    pw=j ou)k e)pituxei=n e)sti tau/thj maka/rion;

    Se a moa no foi criada entre

    mulheres, nem conhece os problemas da 385

    vida, nem foi assustada por uma

    tia ou av, mas criada livremente

    com um pai com carter, bravio e que odeia o mal,

    como no vir a ter essa felicidade?

    O modelo feminino que ela tem o da escrava Simica, o que a deixou livre das

    preocupaes, incutidas por mulheres mais velhas, que uma moa de classes superiores

    normalmente teria. Sstrato reconhece a vantagem de se ter um pai bravio, como modo de

    evitar que a menina conhea qualquer tipo de mal. Criada por um pai severo, ela conhece

    10

    Trad.: "Ela pode ser uma simples moa do campo, mas ela tem a desenvoltura e a franqueza dos

    verdadeiramente civilizados".

  • 26

    apenas um estilo de vida austero e baseado no valor do trabalho, fazendo com que seja mais

    do que digna de todos os esforos do apaixonado para conquist-la.

    Apesar de suas honradas intenes, Sstrato, aps ajudar a menina a pegar gua na

    gruta das ninfas, abordado por Grgias, que o acusa de tentar seduzir sua meia-irm.

    Assustado e aborrecido com a acusao, Sstrato responde ao discurso de Grgias

    defendendo-se. Em tom conciliatrio, e demonstrando uma desenvoltura superior a do

    lavrador, ele expe suas reais intenes, afirmando seu amor pela menina e afastando a

    necessidade de um dote, pois como dispe de vastos recursos, pode aceit-la sem nada em

    troca. Nesse ponto, nota-se que Sstrato algum dotado de grande generosidade, assim

    como Grgias, pois ao que parece, o lucro que ele poderia ter, advindo do casamento, algo

    irrelevante, visto que atribui maior importncia paixo que sente pela amada.

    Contudo, outro trao no to nobre do carter de Sstrato revela-se ainda nesse dilogo

    com Grgias. Vindo a conhecer o grau de parentesco que une o jovem lavrador menina,

    Sstrato aceita a nova amizade tendo em vista as vantagens que ela pode lhe trazer no que diz

    respeito ao arranjo do casamento, enfatizando o carter utilitrio de tal amizade ao convidar

    Grgias e Daos para o sacrifcio (557 a 62):

    mikro\n diadramw/n . e)nqadi \ tr[o/]pon tina\

    ge/gon ou)k a)/kairoj h( qusi/a. paralh/yomai

    to\ meira/kion touti/, parelqw\n w(j e)/xw,

    kai\ to\n qera/pont au)tou=! kekoinwnhko/tej 560

    i(erw=n ga\r ei)j ta\ loipa\ xrhsimw/teroi

    h(min e)/sontai su/mmaxoi pro\j to\n ga/mon.

    Apesar da perda de tempo, em certo sentido,

    esse sacrifcio no inoportuno. Vou convidar

    aquele rapaz ali, indo como estou,

    e o escravo dele, pois tomando parte 560

    nos ritos, daqui para frente sero nossos aliados

    mais teis com o casamento.

    Atravs do convite, Sstrato procura consolidar a nova aliana que o aproxima de seu

    objetivo. Logo, observa-se no jovem precisamente o que repudiado por Cnmon: uma

    preocupao apenas com os prprios interesses em detrimento dos sentimentos dos outros. A

    pretensa generosidade visa apenas seu prprio benefcio. Contudo, a despeito de seu egosmo,

    provavelmente resultante de sua criao, Sstrato trata Grgias como um igual, mesmo diante

    da desconfiana deste ltimo acerca de suas intenes com relao a meia irm. O heri

    defende-se educadamente e ainda conquista a confiana do jovem rapaz. H, nesse caso, um

    conflito de valores que se opera no jovem citadino: sua filantropia, marcada por sua

  • 27

    generosidade em aceitar a moa sem dote e pela sua amizade oferecida a Grgias, contrasta

    com o interesse que tem na amizade com Grgias, pois ser atravs dela que ele tentar se

    beneficiar para a obteno do casamento.

    Sstrato, no entanto, percebe que nada ser to fcil como imaginara, pois acostumado a

    uma vida de luxo e cio, o trabalho no campo que decide realizar para impressionar Cnmon,

    mais difcil do que parace (Dysc. 390 a 92):

    a)ll h( di/kell a)/gei ta/lanta te/ttara 390

    au(/th! proapolei= m. ou) malakiste/on d o(/mwj,

    e)pei/per h)=rgmai kataponei=n to\ pra=g a(/pac.

    Mas esse forcado pesa quatro 390

    talentos. Vai acabar comigo. No posso dar uma de fresco

    agora que j toquei no assunto de uma vez.

    Ele reconhece que no tem fora suficiente para suportar o peso do forcado, mas por querer

    tanto a menina, no deve dar uma de fresco, mas sim agentar. O heri, com bastante

    dificuldade, suporta bravamente o trabalho no campo, como afirma no ato III (522 a 545) faz

    o relato sobre as horas que passou ao lado de Grgias e Daos a cavar. Nessa breve narrativa, o

    espectador ouve, de forma bem humorada, as dificuldades enfrentadas pelo jovem, que por

    nunca ter enfrentado um dia de trabalho duro na vida, encontra-se exausto e com dores pelo

    corpo todo: trata-se de uma stira ao homem da cidade que desconhece o esforo fsico,

    acostumado apenas ao luxo. Apesar de aparentemente todo o esforo de Sstrato ter sido em

    vo, j que o velho no aparece, o empenho do jovem serve para mostrar a Grgias a sua

    sinceridade, e a disposio de se submeter ao trabalho, colocando-se no lugar do lavrador

    pobre para conseguir o casamento. Por isso, Grgias reconhece seu esforo e seu carter (761

    a 771), julgando-o digno de receber sua irm em matrimnio. Alm disso, consegue tambm a

    aprovao de Cnmon, no pelo trabalho duro, mas pelas queimaduras de sol, que para o

    velho so um indcio de que o citadino se trata, na verdade, de um lavrador.

    Mas, a despeito da breve experincia no campo, Sstrato ainda um jovem sem

    iniciativa, deixando escapar a oportunidade de resgatar Cnmon. Cabe a Grgias o

    salvamento, enquanto o apaixonado, mais atrapalhando do que ajudando, pois quase solta trs

    vezes a corda na qual Grgias se segura, presta ateno unicamente na menina que,

    desesperada, acompanha o resgate do pai. O resgate no encenado, mas Sstrato, atuando

    como um mensageiro, relata ao pblico os seus pormenores. Evidentemente o jovem est

    eufrico por causa dos acontecimentos, visto que inicia seu relato por uma tripla invocao

    dos deuses (666 a 667), artifcio, de acordo com Handley (1965), empregado para expressar e

  • 28

    enfatizar o estado de esprito das personagens. O estado de euforia do jovem reflete-se na

    narrativa entusiasmada e na elevao das personagens que dela participam: apaixonado pela

    menina, Sstrato a compara a uma esttua, colocando-se ante a ela como um adorador diante

    da divindade; j Grgias equiparado a Atlas - figura mitolgica da linhagem dos tits,

    condenado a carregar o cu nos ombros - pois apenas o lavrador faz o esforo de carregar

    Cnmon para cima, uma vez que Sstrato, distrado pela viso da menina, praticamente no

    colabora, importando-se quase nada com o velho acidentado. Mas o fundamental que o

    citadino reconhece que seu papel no resgate de nada valera, cabendo a Grgias todo o mrito

    da ao, muito embora o lavrador diga a Cnmon que o outro tambm teve parte no

    salvamento, para que este consinta em dirigir-lhe a palavra.

    Ao conseguir o consentimento para o casamento, Sstrato d provas de sua sincera

    generosidade e amizade por Grgias ao oferecer ao amigo a mo da sua irm, mas antes,

    precisa convencer Calipides, seu pai, de que essa a coisa mais justa a ser feita. Afirma

    Handley (1965) que esse desdobramento da ao tem por objetivo no apenas unir as duas

    famlias pelo duplo matrimnio, mas tambm retomar a discusso do ato II na qual se discute

    a instabilidade da sorte dada a oposio riqueza/pobreza. Aqui a questo novamente

    levantada graas recusa inicial de Calipides, que se nega a contrair dois parentes pobres.

    Nesse momento, Sstrato retoma e reformula o discurso que lhe havia sido dirigido por

    Grgias, acerca da instabilidade da fortuna (tch), quando esses dois se conhecem. Sstrato

    diz a seu pai (797-812) que os bens materiais so instveis, pois no pertencem ao indivduo,

    mas sim tch, que os distribui conforme o merecimento de cada um, por isso, necessrio

    ajudar que os demais enriqueam, no apenas porque se trata de um ato nobre, mas tambm

    porque prefervel um amigo manifesto que o ajudar quando for preciso a uma fortuna

    escondida que no dividida com ningum. No h como saber se o jovem Sstrato

    partilhava tais valores antes de conhecer Grgias, ou se foi pelo contato com este que passa a

    ver a vida sob tal perspectiva. Independente disso, nota-se ao final da comdia um Sstrato

    mais maduro, que tendo trabalhado arduamente no campo a fim de alcanar seus objetivos,

    percebe que nada vem fcil, mas que preciso batalhar por aquilo que se deseja. Alm disso,

    observa-se no discurso a Calipides que, o mesmo empenho que mostrou na busca por seu

    casamento mostrado quando se dedica a convencer o pai a entregar sua irm ao amigo

    Grgias.

    Evidentemente, a resoluo do conflito no mrito de Sstrato, j que seus planos no

    obtm o devido sucesso. Inicialmente, falha ao tentar uma aproximao de Cnmon, primeiro

    por meio de seu escravo e depois por sua prpria conta. Mais tarde, entrega-se ao trabalho no

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    campo, durante o qual travestido de lavrador, espera pelo velho acompanhado por sua filha:

    novamente fracassa, porm sem desanimar, considerando retornar no dia seguinte para uma

    nova tentativa apesar da inexperincia do esforo fsico exigido pela tarefa.

    O mrito pelo arranjo do casamento, como j dito, cabe a Grgias, que salva Cnmon do

    poo, passivamente assistido por Sstrato, que mal auxilia no resgate. Sob tal perspectiva so

    de grande ironia dramtica as palavras expressas pelo jovem apaixonado entre os versos 860 a

    65:

    ...ou)deno\j xrh\ pra/gmatoj 860

    to\n eu)= fro