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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
O DSCOLO: ESTUDO E TRADUO
Helena de Negreiros Spinelli
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Letras Clssicas, do Departamento de
Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,
para a obteno do ttulo de Mestre em Letras Clssicas.
Orientadora: Prof Dr Adriane da Silva Duarte
So Paulo
2009
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS CLSSICAS
O DSCOLO: ESTUDO E TRADUO
Helena de Negreiros Spinelli
So Paulo
2009
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AGRADECIMENTOS
Agradeo primeiramente a minha famlia pelo constante apoio. Agradeo, igualmente, a
todos aqueles que se encontraram envolvidos, mesmo que de forma indireta, no
desenvolvimento desta pesquisa. Devo ainda agradecer a professora Adriane da Silva Duarte
pela orientao, s professoras Isabella Tardin e Filomena Yoshie Hirata pelas observaes e
Fapesp pela bolsa de mestrado, sem a qual este trabalho no se teria realizado.
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RESUMO
Este trabalho consiste no estudo introdutrio e traduo da comdia O Dscolo, de
Menandro, autor grego do sculo IV a.C. A primeira parte do estudo contempla a
apresentao da comdia em seu contexto e sua estrutura dramtica. A segunda parte
dedicada anlise das personagens - por ser uma comdia que privilegia os caracteres, julgo
importante estender-me sobre eles. Essa seo divide-se em nove partes, cada uma dedicada a
uma personagem, exceto no caso da primeira seo intitulada A Divindade, que apresenta uma
anlise sobre o deus P e as Ninfas; e a quinta seo, intitulada Personagens femininas, que
traz a anlise da menina, filha de Cnmon, de Simica, e da me de Sstrato.
A traduo, segunda realizada no Brasil a primeira de Mrio da Gama Kury tem o
objetivo de divulgar a obra do autor grego para o pblico brasileiro em geral. Com esse
intuito, o texto foi vertido para o portugus em prosa, procurando-se manter o seu ritmo fluido
e sua linguagem. Alm disso, a linha do verso foi mantida para facilitar a consulta ao original
grego.
PALAVRAS-CHAVE
Literatura grega antiga, Teatro, Comdia Nova, Menandro, O Dscolo
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ABSTRACT
This work consists in the introductory study and translation of the comedy Dyskolos, of
Menander, Greek author of the fourth century BC. The first part of the study includes the
presentation of comedy concerning its context and its dramatic structure. The second part is
devoted to the analysis of the characters - as a comedy that emphasizes the characters, I
consider it important. This section is divided into nine parts, each one devoted to one
character, except for the first section entitled The Divine, which presents an analysis of the
god Pan and the Nymphs, and the fifth section, entitled Female characters, which conveys the
analysis of the girl, the daughter of Knemon of Simike, and of Sostratos mother.
The translation, the second one developed in Brazil the first is by Mario da Gama
Kury aims to disseminate the work of the Greek author to the Brazilian public. With this
purpose, the text was converted to Portuguese on prose, trying to keep its rhythm and
language. Besides that, the line of the verse was kept to make it easier the consultation with
the original.
KEY-WORDS
Ancient Greek Literature, Theatre, New Comedy, Menander, The Dyskolos
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NDICE
1 INTRODUO 1
1.1 A COMDIA NOVA E O SEU TEMPO 4
1.2 O DSCOLO: ESTRUTURA DO ENREDO 7
1.3 PERSONAGENS 13
1.3.1 A Divindade 13
1.3.2. Cnmon 18
1.3.3. Sstrato 24
1.3.4. Grgias 29
1.3.5. Personagens femininas 36
1.3.6. Scon, o cozinheiro 42
1.3.7. Queras 48
1.3.8. Os Escravos 50
1.3.8.1. Prrias 50
1.3.8.2. Daos 51
1.3.8.3. Getas 53
1.3.9. Calipides 57
2 NOTA SOBRE A TRADUO 59
3 O DSCOLO Traduo 60
4 BIBLIOGRAFIA 114
4.1. EDIES CONSULTADAS 114
4.2. AUTORES CONSULTADOS 114
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1 INTRODUO
Os textos da comdia nova chegaram at ns por duas vias: primeiramente atravs de
citaes em obras de autores gregos e latinos, e atravs das descobertas papirolgicas do
sculo XX, que trouxeram luz no apenas trechos de diversas comdias de Menandro
(Aspis, Epitrepontes, Misoumenos, Periceiromene, Samia e Sicyonios), mas tambm a nica
comdia praticamente inteira que dispomos do autor, O Dscolo.
A comdia nova desenvolve-se em meados do sculo IV a.C., em Atenas, com as
comdias gregas, cujos representantes so, alm de Menandro (342a.C 291a.C), Alexis de
Turi, cuja carreira se estenderia da metade do sculo IV a.C. at aps a morte de Menandro.
Temos ainda Filemon, cuja origem no certa (Cilcia ou Siracusa), nascido no final dos
anos 360 a.C.. Este autor teria deixado por volta de cem peas, sendo que pelo menos duas
delas foram adaptadas por Plauto. Outro autor, Dfilo, originrio de Sinope, no Mar Negro,
tambm tem peas adaptadas por Plauto, e juntamente com Menandro e Filemon, formaria a
trade convencional da comdia nova a qual se referem os escoliastas. E, por fim, h
Apolodoro de Caristo, na Eubia, da primeira metade do sculo III a.C., que teria sido
bastante influenciado pela obra de Menandro, tambm com peas adaptadas, dessa vez, por
Terncio. A esses autores segue-se a tradio latina, cujos expoentes so os j referidos
Plauto e Terncio, que adaptam as comdias gregas, principalmente de Menandro,
encenando-as durante o perodo compreendido entre 240 e 160 a.C.
Posterior comdia antiga, representada por Aristfanes, a comdia nova apresenta
certas alteraes estruturais com relao tradio anterior. Primeiramente, observa-se na
comdia antiga uma estrutura composta pelas seguintes partes:
1. Prlogo: exposio dos acontecimentos;
2. Prodo: interveno inicial do coro, formado, inclusive, por seres no humanos;
3. gon: disputa, debate entre as personagens;
4. Parbase: momento no qual o poeta, na voz do coro, se dirige aos espectadores
para tratar de questes polticas, sociais, ou de qualquer outro assunto de
relevncia para a comunidade;
5. Episdios;
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6. xodo: exposio final do coro, com quase sempre a celebrao de um
banquete.
J na comdia nova, observa-se uma diviso totalmente distinta, que passa a apresentar
cinco atos, que de modo geral acompanham a intensificao da tenso dramtica. O coro,
assim como pode j ser observado a partir das ltimas comdias de Aristfanes (Assemblia
de mulheres e Pluto), e ainda nos fragmentos de comdia escritos entre os anos que separam
Aristfanes de Menandro, j no tem o mesmo papel e importncia. Sua presena indicada
pela palavra XOPOY (do coro), sem que haja qualquer meno a respeito do teor de sua
performance, acreditando-se inclusive que nem sempre se relacione pea, no sendo
tambm necessariamente escrito pelo autor do texto. Supe-se que o coro no tenha sido
totalmente suprimido, pois fazia parte do ritual religioso em honra a Dionso. Outro elemento
que tambm perde sua fora e desaparece a parbase. Contudo, o desaparecimento dessa
seo no implica o tambm desaparecimento de discursos que lidem com aspectos a ela
pertinentes, como os de cunho social: Cnmon, no Dscolo (708ss), discorre acerca do
comportamento.
A variao rtmica no teatro de Menandro tem menor importncia, havendo maior
nfase na ao, segundo Hunter (1985), esta mais viva e variada no que diz respeito ao tempo
e intensidade emocional. O metro mais comumente usado o trmetro jmbico, no
acompanhado por msica, o qual Aristteles classifica como o mais prximo da fala comum.
O tetrmetro trocaico, metro que, segundo Aristteles, caracteriza-se por ser mais vivo e
rpido, tambm pode ser utilizado, porm com menor freqncia e mais associado a
contextos emotivos1.
Com relao temtica, a comdia nova volta-se, sobretudo, para as vicissitudes da
vida privada. De acordo com Sbato Magaldi (1963),
Em Menandro, o homem deixa de aparecer como figura pblica, para apresentar-se
na sua natureza privada. Passam a segundo plano as cogitaes do bem coletivo,
para se registrar o comportamento pessoal [...] A criatura que se desvincula da
noo precpua de cidadania, identificada com a trajetria herica da plis,
mergulha na rotina de uma vida em que importam a sobrevivncia e os prazeres
sensoriais. (Magaldi, 1963, p.58-59)
Devido a esse enfoque privilegiado pela comdia nova a estrutura do enredo quase
sempre a mesma e quase no h variao, uma vez que se prope a retratar padres da vida
1 Potica 1449a24-6.
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privada. Em Menandro tal enredo gira quase sempre em torno do amor. Em Periceiromene,
por exemplo, Plemon, motivado pelo cime corta os cabelos de Glicera ao v-la beijando
outro homem. J no caso do Dscolo, temos o amor primeira vista, porm nesse caso
possvel notar que o romance secundrio caracterizao de Cnmon, o misantropo ao qual
se refere o ttulo do texto.
Inseridos nesse enredo, pode-se destacar conflitos que se apresentam de maneira
recorrente, conforme aponta Hunter (1985). A relao entre os sexos central em diversos
enredos, o que nos permite uma viso, embora parcial, da precria situao social e legal da
mulher, que aparece na comdia sob a forma da cortes, da escrava, e com exceo da filha
de Cnemon, no Dscolo, da cidad casada ou viva, isso porque o realismo pretendido pela
comdia, que se passa em lugar pblico, no lhes permite grandes papis.
Outro tema tambm comum o conflito de geraes, expresso, normalmente na relao
pai e filho, j presente na comdia antiga. Ao discutir os temas e conflitos comuns comdia
nova grega e romana, Hunter (1985, p.83-113), afirma que essa modalidade de conflito ser
desenvolvida entre os pais e os filhos que se encontram no perodo que antecede o
casamento, uma poca durante a qual cessam os excessos da juventude e d-se a adoo de
responsabilidades que implicam no amadurecimento do jovem. Nesse sentido, a idia que
os mais velhos lembrem-se que tambm eles, nesse mesmo perodo de suas vidas tinham a
mesma conduta desregrada. Exemplos so as seguintes comdias: Samia, Adelphoe, Andria e
Heauton Timorumenos.
E por fim, apresentando-se como um gnero essencialmente urbano, que retrata os usos
e costumes das classes mais abastadas seu pblico predominante, uma vez que, segundo
Hunter (1985), o teatro no mais era subsidiado pelo Estado a comdia nova apresentar a
oposio existente entre a virtude e moralidade sria que o campo representa e a luxria e
frivolidade encarnada pela cidade, que no Dscolo faz-se presente no contraste existente entre
Sstrato, da cidade, e Grgias, do campo. Contudo, apesar de ser o reduto das virtudes, o
campo tambm o local dos maus odores, sujeira e pouca sofisticao; o que reforaria a
caracterizao da cidade como reduto dos prazeres da vida urbana (Hunter, 1985).
Quanto s mscaras e figurino, opera-se tambm uma transformao, j que, tendo em
vista uma abordagem mais fiel da realidade, esses aspectos devero se adequar a esse novo
enfoque. O carter grotesco do figurino da comdia antiga deixado de lado. Os enchimentos
usados na frente e atrs so abolidos, assim como os phalloi2 que passam a ser usados apenas
2 No mbito cnico, o phallus era uma representao flica ereta de propores exageradas que fazia parte do
figurino das personagens masculinas da comdia antiga.
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em situaes de piada mais obscena. Adota-se ainda o chitn, vestimenta cotidiana do
ateniense, mais comprida do que a utilizada pelos atores da tradio anterior, sendo que a
tnica mais curta passa a ser usada apenas para a representao dos escravos. Alm disso, as
mscaras tambm sofreram algumas modificaes, adquirindo um aspecto mais realista
(WEBSTER, 1953).
De acordo com Webster (1953), passam a existir duas mscaras usadas pelos pais e
quatro pelos jovens. As mscaras dos escravos e das mulheres velhas continuam sendo
caricaturas e as das moas aparecem durante a comdia mdia3 e nunca foram muito
distorcidas.
Para as mscaras masculinas, Webster ainda observa a diferenciao por meio do tipo
de cabelo: encaracolado, ondulado e enrolado, possibilitando a distino entre membros de
uma mesma famlia. H ainda a possibilidade de uma personagem apresentar mais de uma
caracterstica atravs das mscaras dupla-face4, que datam do sculo V a.C. Com isso, soma-
se um total de 44 mscaras disponveis para atender s necessidades da comdia nova.
Contudo, no h evidncias de mscaras para tipos que normalmente so objeto de stira,
como o soldado, adulador, a concubina e a madrasta, o que talvez indique uma nova
abordagem dessas figuras, pois dado o realismo desse tipo de comdia, possvel que os
autores tivessem a preocupao de retrat-los como pessoas comuns, sem adotar para suas
mscaras o aspecto grotesco que a comdia antiga adotava (WEBSTER, 1953, p. 119-124),
pois esta no apresentava mscaras para personagens tpicas, mas talvez mscaras caricaturais
que se ligavam invectiva pessoal.
1.1 A COMDIA NOVA E O SEU TEMPO
Ao se falar que a comdia dita nova surge em Atenas, em meados do sculo IV a.C.,
tem-se a impresso que, a partir de um determinado momento, o gnero anterior de comdia
desaparece por completo dando lugar a um novo gnero, totalmente diverso do anterior.
evidente que o abalo sofrido pela democracia ateniense com o fim da Guerra do Peloponeso
e, posteriormente, o incio do domnio macednico refletem-se na temtica da comdia, que
adquire um ar mais introspectivo. Entretanto, no se deve pensar que o gnero cmico tenha
3 Gnero de comdia que se desenvolve em Atenas entre o final do sc. V e meados do sc. IV a.C. e que marca
a transio da comdia antiga para a comdia nova. 4 Segundo Webster (1953, p.122), esse tipo de mscara possibilita uma maior variedade de expresses faciais.
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passado por uma mudana repentina que o tenha levado a se distinguir radicalmente da
comdia precedente.
Em um artigo recente, Eric Csapo (2000) levanta tal questo, discutindo a evoluo do
gnero cmico na Grcia. Em um primeiro momento, o autor aponta que a tripartio da
comdia em comdia antiga, mdia e nova, tal como estudada, no era conhecida at pelo
menos o sculo III ou II a.C., originando-se ento do estudo dos textos gregos por escoliastas.
Isso nos leva a crer que, quando estabelecida tal diviso, esses estudiosos no dispunham de
um corpus representativo o bastante do gnero cmico que os levasse a identificar um grande
universo de autores, ou ainda relaes de continuidade ou inovaes durante o perodo que
compreendia os trs gneros. Sendo assim, tal fato os teria levado a associar a comdia antiga
a Aristfanes e a nova a Menandro, uma vez que as obras desses dois autores afastam-se
tanto no que diz respeito poca em que foram criadas quanto sua temtica; a primeira de
carter poltico e a segunda, como anteriormente dito, voltada para as vicissitudes da vida
privada.
Csapo observa que, evidentemente, aspectos de carter poltico, como uma lei que
proibira a invectiva, e mesmo o domnio macednico teriam, sim, contribudo para as
mudanas que se operaram na comdia; porm como ele mesmo afirma, The5 evidence,
however, shows that what we normally think of as Old, Middle and New Comedy designate
synchronic, not period styles (Capo, 2000; p. 121).
Dessa maneira, ao se considerar o gnero cmico, deve-se pensar mais em uma
preferncia com relao a uma determinada tendncia, durante um certo perodo, do que em
mudanas repentinas: alguns enredos so preferidos em detrimento de outros. Logo, natural
que se encontre evidncias de comdias de carter poltico ao longo do sculo IV a.C.,
perodo durante o qual Menandro cria suas peas. O melhor exemplo o de Timocles, que
escreve entre os anos de 320 e 310 a.C.
Uma outra hiptese para explicar a despolitizao da comdia pressupe que tal
transformao se daria em virtude de um mercado internacional emergente para as comdias
atenienses; ou seja, platias de outras regies no teriam interesse nos assuntos pblicos de
Atenas (Csapo, 2000).
Mas embora a comdia perca, na sua grande maioria, seu carter poltico, que se reflete
principalmente no j mencionado desaparecimento da parbase6, ainda sim possvel
5 A evidncia, contudo,, mostra que o que normalmente consideramos comdia antiga, mdia e niva, designam
estilos sincrnicos e no peridicos 6 Parte estrutural da comdia antiga na qual o poeta, na voz do coro, se dirigia aos espectadores para tratar de
questes polticas, sociais, ou de qualquer outro assunto de relevncia para a comunidade
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encontrar discursos que lidem com aspectos de cunho social, como o faz Cnmon, no Dscolo
(708ss), ao discorrer acerca do comportamento humano logo aps ser resgatado do poo no
qual cara.
Sob tal perspectiva, David Wiles (1984), procura demonstrar, atravs de uma leitura
contextualizada do Dscolo, que Menandro lidaria com aspectos da vida poltica ateniense,
atribuindo Cnmon reconhecidos ideais ticos e polticos daquela poca.
Em linhas gerais, o artigo de Wiles trata da oligarquia ateniense e de como esta busca
alcanar um equilbrio entre ricos e desfavorecidos em consequncia de uma nova legislao,
que redefine os padres para a cidadania ateniense, restringindo-a a um pequeno grupo, e de
como tais eventos refletem-se no Dscolo.
Wiles lembra que por causa da restrio da cidadania, Fcion, que viveu durante a
segunda metade do sculo IV a.C, era um lder poltico de orientao oligrquica, aliado dos
macednios e, notvel no apenas por sua misantropia, mas tambm pelo seu despojamento e
admirao pela educao espartana, condenado morte em 318 a.C. em consequncia de
um golpe de orientao democrtica. Aps a morte de Fcion, Demtrio de Faleros assume o
governo de Atenas e, com o intuito de no despertar o ressentimento daqueles que perderam
suas fortunas, elabora uma srie de leis que probem a ostentao, muito embora o consumo
exagerado prevalea como a medida do status.
Desse modo, o que se v no Dscolo a tentativa de conciliao entre ricos e pobres
ante uma situao da qual o autor demonstra plena conscincia, sem que tente, no entanto,
oferecer uma alternativa ao padro social vigente. E isso fica bastante evidente quando se
chega ao final da pea e constata-se que o jovem Sstrato e seu pai continuam desfrutando do
luxo advindo de sua riqueza. O trabalho austero do campo ao qual o jovem se submete na
tentativa de se aproximar do velho Cnmon no passa apenas de um artifcio para atingir seus
objetivos.
Cnmon, por sua vez, incorporaria os ideais de Fcion, atravs de sua misantropia e
principalmente despojamento, o que nos fica bastante claro durante parte do discurso
proferido entre os versos 742-45, no qual apresenta uma viso ideal de uma cidade justa na
qual cada um contenta-se em possuir apenas o suficiente. Cnmon vive de maneira simples, e
seus hbitos e valores diferenciados levam sua execrao social, uma vez que suas atitudes
so interpretadas pelos demais como as de um homem cruel, sem que se perceba que esse
velho se trata apenas de um homem que segue uma filosofia de vida que rompe com os
padres sociais.
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Obviamente o florescimento da democracia constitua um momento mais propcio para
o desenvolvimento da comdia de cunho poltico; porm, como visto, ela no desaparece
totalmente no sculo IV a.C. Ela apenas perde sua fora em decorrncia de um maior
interesse pela temtica da vida privada, quer pelo florescimento de um mercado internacional,
quer por motivaes de carter poltico.
1.2 O DSCOLO: ESTRUTURA DO ENREDO
Como as demais comdias do perodo, o Dscolo divide-se em cinco atos, construindo
seu enredo em torno da personagem Cnemon, o misantropo, que ocupa a cena por um quarto
da pea; sendo que, no tempo restante, sua presena marcada pelas falas das demais
personagens. O Dscolo retrata as tentativas do jovem Sstrato de se aproximar de Cnmon
para que este consinta no casamento daquele com sua filha e, atravs da histria do amante
que o retrato do velho construdo.
A comdia tem incio com o prlogo proferido pelo deus P (1-49). Nele, a pea
localizada no espao, os antecedentes da ao so expostos, e as principais personagens so
apresentadas sem que, no entanto, sejam nomeadas, exceto Cnmon, que desde ento comea
a ter seu carter moldado de modo negativo.
Handley (1965), em seu comentrio ao Dscolo, aponta que esse tipo de discurso
expositivo bastante comum na comdia grega tardia, atuando como um complemento ao
que apresentado pelo autor nas cenas dramticas. Esses discursos podem ocorrer tanto no
incio da pea, como o caso do Dscolo, ou aps uma cena de abertura, como ocorre em
Periceiromene, quando a deusa Agnoia (ignorncia), fora que desencadeia a ao dramtica,
expe alguns fatos importantes aos espectadores aps a cena em que Plemon, motivado por
cime, corta os cabelos de Glicera.
Tem-se, inicialmente, no prlogo do Dscolo, a localizao da ao em File, na tica,
cuja aridez do solo reflete-se no carter de seus habitantes. A seguir, o deus passa
imediatamente a descrever Cnmon e sua misantropia. O velho rude descrito como algum
cruel, avesso s multides e incapaz de conversar espontaneamente com quem quer que seja,
a no ser com o deus, a quem se dirige apenas por necessidade. Alm disso, h uma descrio
bastante sucinta dos eventos antecedentes ao dramtica: o casamento mal-sucedido de
Cnmon, a vida de isolamento que este leva com sua filha e uma velha escrava e a vizinhana
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com o filho do primeiro casamento de sua ex-esposa, Grgias. E ligando-se a esses fatos, h
ainda o jovem da cidade que se apaixona, motivado pelo deus, pela filha do velho misantropo
devido a piedade desta em relao s Ninfas.
Aps o prlogo, desenvolve-se a primeira cena dramtica que vem complementar parte
do que foi dito anteriormente pelo deus. Nesta cena, Sstrato, o apaixonado e Queras, seu
amigo, revelam ao pblico, em uma conversa, como surgiu a paixo pela menina e o que j
foi feito para tentar arranjar o casamento, uma vez que se trata de uma menina livre.
Subitamente, Prrias, escravo do jovem apaixonado e enviado a Cnmon para tratar do
casamento, entra ruidosamente em cena fugindo do velho, que o persegue atirando-lhe toda
sorte de coisas, de bolas de barro a pras silvestres. A presena do escravo em cena, alm do
efeito cmico produzido por sua entrada, tem outra de grande importncia, pois alm de
contribuir para a construo da imagem do velho misantropo, tambm prepara a primeira
apario deste, no verso 153.
Cnmon entra em cena reclamando por conta da intromisso sofrida. Esta a primeira
manifestao de sua crueldade, que s vem a corroborar os relatos anteriores.
A seguir, h um breve dilogo entre Sstrato e Cnmon e, quando este deixa a cena, a
menina, sua filha, quem faz sua primeira apario. Nessa ocasio, toma-se conhecimento da
perda do balde derrubado no poo por Simica, prenncio do acidente responsvel pela
resoluo do conflito. A gravidade da situao, justificada pelo temperamento do pai, reflete-
se no tom elevado de suas palavras, que, pela carga emocional expressa em seu lamento,
remete-nos tragdia. Segundo Handley (1965), a figura da moa, lamentando-se com o pote
de gua, ecoaria Electra, na tragdia homnima de Eurpides, que em determinado momento
retrata a herona trgica carregando o jarro de gua na cabea, s margens do rio, a lamentar a
morte de seu pai, Agammnon, assassinado por Clitemnestra (EL. 54ss); e em um segundo
momento (EL. 112ss), quando a mesma retorna da fonte de gua, ainda lamenta a sorte do pai
e sua prpria desgraa.
Embevecido pela beleza da menina, que agora precisa pegar gua na gruta das Ninfas,
dada a impossibilidade de utilizar o poo de sua prpria casa, Sstrato prontamente se oferece
para ajud-la; porm seu gesto no passa despercebido para Daos, escravo de Grgias. O ato I
chega ao fim com Daos indo em busca de Grgias e com a chegada dos adoradores de P
para o sacrifcio.
No segundo ato (v.233-426), entram em contato as duas esferas de ao da comdia: as
tentativas de Sstrato de tratar do casamento e o sacrifcio realizado na gruta de P, por sua
me. Getas, escravo da famlia de Sstrato, e Scon, o cozinheiro contratado para o ritual
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quem realizam a ligao entre as duas aes aparentemente distintas. Em relato a este ltimo,
o escravo revela que o motivo do sacrifcio o sonho da senhora, que v P agrilhoando seu
filho, obrigando-o a cavar no campo prximo gruta. Logo, para afastar a ameaa, sacrificam
sem saber que tais fatos na realidade j ocorreram, uma vez que Sstrato, ajudado por
Grgias, meio irmo da menina, levado para o campo na tentativa de impressionar Cnmon.
Sstrato e Grgias entram em contato no incio deste segundo ato, dando incio ao que
ecoa o agn trgico, momento durante o qual, nas tragdias, observava-se um embate verbal.
O meio irmo da moa, desconfiado das intenes do primeiro, pronuncia em tom bastante
srio um discurso formado por trs argumentos na tentativa de dissuadir o outro de seus vis
intentos:
1. a tch, sorte ou fortuna, instvel, pois aquele que hoje prospera, mas
injusto, amanh pode encontrar-se na misria, assim como o pobre que
honesto pode, no futuro, vir a prosperar. Logo, por ser rico, Sstrato no deve
cometer nenhuma injustia contra os pobres;
2. as intenes de Sstrato no so honradas, mas criminosas;
3. no certo fazer uso do tempo livre (cio) para prejudicar aqueles que
trabalham.
Handley (1965) observa neste discurso a utilizao de uma linguagem voltada para o mbito
financeiro, como artifcio empregado por Grgias para impressionar o jovem citadino cujas
intenes no lhe parecem honradas. Contudo, Sstrato, de maneira sincera, revela suas
intenes, convencendo o rapaz a ajud-lo em sua empreitada. Desse modo, Grgias o leva
para trabalhar no campo, para de que Cnmon, vendo-o, tome-o por pobre lavrador,
consentindo, assim, no casamento, muito embora Grgias saiba da impossibilidade disso vir a
ocorrer.
Segundo Maria de Ftima Sousa e Silva (1976), o terceiro ato, alm de repercutir no
ltimo ato, tambm apresenta diversas cenas com tom de farsa.
Cnmon, a caminho do campo, novamente incomodado pelos participantes do
sacrifcio que vo chegando e, aps criticar a piedade exagerada, volta a sua casa fugindo da
multido. Segue-se ento uma cena em que o elemento cmico apresenta-se com bastante
fora: os sacrificadores percebem que esqueceram a panela para preparar o cozido, logo cabe
a Getas emprest-la de um dos vizinhos, no caso, Cnmon, que violentamente recusa-se a
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ced-la. O escravo retorna gruta de P e, agora a vez de Scon, o cozinheiro, emprestar a
panela, convencido de que o conseguir graas sua tcnica que consiste em bajular a pessoa
da qual se empresta o utenslio. Contudo, aps ser brutalmente repelido pelo velho
misantropo, o cozinheiro contenta-se em fazer uso de uma frigideira de que dispe,
manifestando seu profundo desprezo pelos filsios, que j prontos para brigar, dificultam seu
trabalho.
Assim como Scon, Sstrato tambm se v envolvido em complicaes, no seu caso,
causadas pela sua paixo. Aps um dia de trabalho, o jovem encontra-se fisicamente
esgotado, afligido por toda sorte de dores e sem ter conseguido ver o velho, que no incio do
ato refugia-se no interior da casa por causa dos adoradores do deus. Sstrato encontra ento
Getas e toma conhecimento do sacrifcio que se realiza ali na gruta de P.
Enquanto isso, Simica, escrava de Cnmon, desespera-se com medo do castigo que
receber quando seu senhor descobrir que ela derrubou dentro do poo no s o balde, mas
tambm o forcado que ele tanto procura. A comicidade da cena deve-se ao contraste entre o
desespero da velha escrava que no sabe o que fazer, e a ironia de Getas que observa
placidamente a cena, oferecendo at mesmo ajuda a Cnmon.
Os gritos de Simica iniciam o quarto ato, anunciando a queda de Cnmon dentro do
poo. O seu resgate por Grgias atua como um renascimento, que implica o reconhecimento
de seus erros, bem como a aparente adoo de uma postura menos severa: finalmente, ele
consente com o casamento.
Durante o resgate, o vingativo cozinheiro exulta com a situao e, ao ver que o velho
ainda vive, deseja que ele esteja mutilado ou manco para no causar mais problemas.
Evidentemente, h uma expectativa de que alguma desgraa se abata sobre Cnmon, uma vez
que no se espera que algum que tenha cometido tantas injustias escape impune. Contudo,
a crueldade das palavras de Scon, que pode ser comparada crueldade do prprio Cnmon,
acaba por despertar um sentimento de simpatia pelo acidentado misantropo, trmulo e
encharcado.
O impiedoso discurso do cozinheiro, conforme sugere Handley, remeteria-nos aos
coros do sculo V a.C., que tinham como objetivo alimentar a curiosidade do pblico por
notcias dos eventos que ocorriam fora do palco. Sob tal perspectiva, a figura de Sstrato, que
relata o resgate ao pblico, equipara-se a de um mensageiro, preparando os espectadores para
o longo discurso de Cnmon.
Na cena que se segue, h ento as palavras do velho, que vem arrastado em uma
cadeira. possvel que se tenha aqui, o uso do enciclema, dispositivo empregado para trazer
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ao pblico uma cena interna. Em seu discurso, conforme ser visto posteriormente, o velho
justifica suas aes, dando a conhecer as reais motivaes que o guiaram, reconhecendo, por
fim, que errara. Sendo assim, ele transfere para Grgias a responsabilidade no s pelos seus
bens, mas tambm por sua irm, a qual d em casamento a Sstrato. Mas embora o conflito
inicial do enredo esteja aparentemente resolvido, o tema do casamento, juntamente com a
chegada de Calipides ao fim do ato IV, tero continuidade no ltimo ato.
A abertura deste quinto e ltimo ato articulada de modo a produzir no espectador um
estranhamento, j que Sstrato expressa sua insatisfao em relao a deciso de seu pai,
Calipides. Este no consente no casamento de sua filha com Grgias, alegando no querer
dois parentes desprovidos. Porm, retomando o discurso de Grgias no ato II, Sstrato fala a
seu pai sobre a instabilidade da fortuna, lembrando-o da importncia da generosidade.
Calipides cede e, dando mostras da sua magnanimidade, recusa o dote da irm de Grgias
oferecendo-lhe, em troca, trs talentos por sua filha. D-se lugar ento celebrao das duas
unies com todos se dirigindo ao templo. O que se segue ento uma cena de grande
vivacidade, na qual Getas e Scon, retomando o ato III, momento no qual vo em busca da
panela emprestada, foram Cnmon a tomar parte nas festividades. Nessa cena, Getas e Scon
dirigem-se a ele, recriminando sua misantropia, ambos atuando como mediadores de sua
reintegrao social ao inst-lo a tomar parte da celebrao.
Aps a dramaticidade de sua cena no ato IV, Cnmon retorna agora nesta cena cmica
para finalmente se redimir e abrir mo do isolamento no qual persiste. Alm disso, pode-se
agora tom-lo, finalmente, por uma figura cmica, j que at agora isso no fora possvel. A
comdia termina com Cnmon, agora persuadido, sendo conduzido por Scon gruta de P, e
Getas clamando o pblico a aplaudir o triunfo sobre o velho misantropo, com uma prece para
que a Vitria sempre os acompanhe, devendo-se entender que a vitria nos festivais
dramticos no deve abandonar o autor.
A edio desta comdia apresenta um breve resumo da ao dramtica que teria
supostamente sido escrito por Aristfanes de Bizncio, um escoliasta alexandrino que teria
produzido entre os sculos III e II a.C. Contudo, a autoria do resumo que se encontra no
Dscolo rejeitada pelos estudiosos, visto que ela est escrita em versos, enquanto os que
foram de fato escritos por Aristfanes eram em prosa, sem contar que o resumo em questo
apresenta erros com relao aos eventos da comdia, que de modo algum o fariam digno da
figura do escoliasta (IRELAND, 1995).
O esclio iniciado com uma meno a Cnmon e a sua estrutura familiar: por causa de
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seus modos rudes, ele abandonado por sua esposa que tem uma filha, fruto deste casamento
e um filho, fruto de seu primeiro casamento com outro homem. Segundo o esclio, ele vive
sozinho no campo, ou seja, no se faz meno no esclio ao fato da filha ter permanecido com
ele. A seguir, afirma-se que Sstrato se aproxima do velho rude (dscolo) para pedir a mo da
menina em casamento: em momento algum o jovem tem a chance de se dirigir a Cnmon para
fazer o pedido, pois a princpio o jovem recua temendo a reao do velho e, mais tarde,
quando vai ao campo para trabalhar com Grgias, fingindo ser um lavrador para impressionar
Cnmon, este no aparece pois est recolhido dentro de sua casa para evitar os sacrificadores.
Outro ponto em desacordo com a histria a meno ao salvamento de Cnmon por Sstrato,
pois como se sabe, o mrito pelo salvamento cabe unicamente a Grgias, enquanto Sstrato
assiste a tudo passivamente. Por fim, h o seginte trecho:
kathlla/gh me\n tv= gunaiki/, th\n ko/rhn
tou/t% d e)di/dou gunai=ka kata\ no/mouj e)/xein!
tou/tou d a)delfh \n lamba/nei t%= Gorgi/#
(...)
Reconciliou-se com a mulher, e a filha
para ele deu como esposa, conforme manda a lei;
e a irm de Sstrato, Cnmon recebe para Grgias (...)
Em momento algum Cnmon entrega a filha a Sstrato, mas sim Grgias, que recebe a guarda
da irm aps o resgate, e a quem cabe decidir com quem ela deve se casar; e tambm no cabe
a Cnmon receber a irm de Sstrato para Grgias: em momento algum se encontra qualquer
tipo de meno que indique o envolvimento do velho no arranjo.
Contudo, afirma Ireland (1995) que a nota sobre a produo pode ser de autoria do
referido Aristfanes, ou ento foi apenas retirada dos registros oficiais de Atenas. Nessa nota,
ou didascalia, h a informao de que a pea foi encenada nas Lenias, um importante festival
dramtico, realizado sempre no incio do ano, em janeiro. Outro dado importante a meno
ao arcontado de Demgenes, que permite datar a comdia entre os anos de 317-6 a.C., o que
faria do Dscolo uma pea do incio da carreira de Menandro, cuja estreia data de apenas
cinco anos antes. A ltima informao da qual se dispe, alm da meno ao outro nome da
comdia, O Misantropo, que ela foi protagonizada por Aristodemo Escarfeu. No se sabe
nada a respeito desse ator, mas como protagonista, tem evidentemente o papel mais
importante da pea, acumulando ainda outros papis.
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1.3 PERSONAGENS
1.3.1 A Divindade
Quando se fala em teatro grego, a primeira coisa que nos vem mente a tragdia que
se desenvolve no sculo V a.C., que, diferentemente da comdia, busca no mito a matria para
seu enredo. E embora os heris trgiocs sejam parte desse universo mtico, a soluo do
drama escapa a eles: jamais dada pelo heri solitrio e traduz sempre o triunfo dos valores
coletivos impostos pela nova cidade democrtica (VERNANT, VIDAL-NAQUET, 1999, p.
XXI). Na tragdia, o heri vive dentro de si um debate, pois uma vez que coagido a fazer
uma escolha, depara-se com valores ambguos, dados, por um lado, pela autoridade, que se
caracteriza pela coero e, pelo outro, pelas potncias divinas, isto , pela justia de Zeus.
Essas duas potncias, totalmente distintas, so a base do direito ateniense, que se organiza no
segundo princpios, mas, sim, segundo diferentes graus, dados pela autoridade e pela justia
divina, de acordo com Vernant e Vidal-Naquet (1999).
Sob tal perspectiva, a tenso entre presente e passado que caracteriza a tragdia
implicar a constante presena divina, visto que no apenas o direito abrange o mbito do
divino, mas o prprio heri oriundo de um tempo em que homens e deuses coexistiam.
Logo, Sourvinou-Inwood (2003) argumenta que, quando Aristteles afirma na Potica
(1454a39-1454b1-8) que as epifanias fazem os enredos menos verossmeis ele
desconsideraria o fato de o presente histrico ter sido determinado pelo passado herico,
poca na qual o mundo dos humanos teria sido povoado pelos deuses. Por isso, a
verossimilhana no seria comprometida, segundo a autora, pela presena divina nos enredos,
mas recriaria um quadro verdico do que teria sido a poca dos heris. Evidentemente, o
filsofo grego considera a oniscincia do deus, que deve apenas ser inserido no enredo para
trazer ao pblico fatos ignorados pelas personagens. Desse modo, Sourvinou-Inwood conclui
que, apesar de Aristteles tecer crticas a epifania, a relao de verossimilhana deve se dar
visto que a audincia perceberia a oniscincia e sabedoria divina como caractersticas
inerentes as suas prprias divindades. Ou seja, os deuses da tragdia no seriam meras
criaes literrias, mas entidades que fazem parte de seu cotidiano.
O que se v na comdia, por outro lado, algo bastante diferente. Como seu enredo no
baseado no passado mitolgico, ela possui um carter ilimitado, j que seu autor livre para
criar a histria que quiser. O que se observa normalmente, ao se considerar a comdia antiga,
cujo representante mais conhecido Aristfanes, uma preocupao com os assuntos da
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polis, os quais se encontram inseridos no enredo cmico. Como contempornea tragdia, a
comdia tambm encontra em seus espectadores a mesma crena com relao divindade.
Contudo, em virtude do carter transgressivo da comdia, Dover (1972) observa que o
comedigrafo, ao mesmo tempo em que assume o papel de crtico das figuras de poder
pblicas por meio da ridicularizao, assume tambm o mesmo papel com relao
divindade.
O relacionamento que se estabelece entre deuses e mortais aquele entre o que
estabelece as regras e o que a elas se submete: o que faz as regras pode quebr-las
impunemente, enquanto o que a elas se submete punido se as transgride. Logo, Dover
afirma que, o que este precisa de uma oportunidade para ridicularizar o primeiro como uma
medida de autoafirmao. Esse tipo de comportamento ser algo recorrente na comdia
antiga, cujos enredos frequentemente retrataro as divindades de modo depreciativo, como no
caso de Dioniso, n As Rs (479), que desmaia e se suja de medo ao procurar aco.
Dio/nusoj
e)gke/xoda: ka/lei qeo/n
Canqi/aj
w)= katage/last ou)=koun a)nasth/sei taxu \ 480
pri/n tina/ s i)dei=n a?llo/trion
Dio/nusoj
a)ll w(rakiw=.
a)ll oi)=se pro\j th\n kardi/na mou sfoggia/n
Dioniso Eu me borrei. Chame o deus.
Xntias Ridculo! Rpido, levante-se 480
antes que um estranho veja voc!
Dioniso Mas eu acho que vou desmaiar
Traga a esponja e coloque-a sobre o meu corao.
evidente que a oniscincia do deus permite que ele saiba que est sendo ridicularizado, mas
a impossibilidade do pblico de saber qual seria sua reao permite que ela seja ajustada de
acordo com as necessidades morais e emocionais da sociedade (DOVER, 1972).
No que diz respeito comdia nova, h uma outra dimenso com relao ao tratamento
do enredo e da divindade. Embora a questo do enredo na comdia nova j tenha sido tratada,
vale a pena relembrar que ele lida com assuntos relativos esfera privada da vida dos
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cidados e, por conseguinte, assume um carter mais realista no tratamento de seus eventos.
Desse modo, haver um lugar para a divindade apenas nos rituais a elas consagrados por
necessidade de se garantir a verossimilhana dos fatos. Conforme afirma Dover (1972), de
Aristfanes para Menandro opera-se uma grande transformao nos enredos, pois enquanto o
primeiro explora elementos sobrenaturais e do folclore grego, o segundo se atm apenas a
aspectos do cotidiano, permitindo que qualquer um que assistisse s suas comdias pudesse se
identificar com as situaes ilustradas em seus enredos.
Por apresentar tais caractersticas, o teatro de Menandro permitir que a divindade
aparea apenas para proferir prlogos e explicar audincia as circunstncias que deram
incio ao dramtica, uma vez que a oniscincia uma qualidade inerente ao divino.
Contudo, Hunter (1985) aponta que errneo pensar que a divindade apenas empregada
para elucidar fatos importantes do enredo, pois como a principal funo do teatro entreter a
audincia, entre os artifcios dos quais o comedigrafo lanar mo para tal fim, est o
emprego da divindade, recurso recorrente entre os autores.
Porm, a despeito de sua funo cmica, apesar de as figuras divinas no
contracenarem com as humanas, a vontade divina interfere diretamente sobre os
acontecimentos, como no caso de Periceiromene, quando a deusa Agnoia propicia o ataque de
cime de Polemon para desencadear a ao dramtica, ou mesmo no Dscolo, quando P faz
com que Sstrato se apaixone pela filha de Cnmon devido a devoo desta s Ninfas. A
recompensa pela piedade, segundo Handley (1965), um motivo recorrente na comdia nova.
No caso da menina, a oferenda simples, porm sincera, motiva o favor do deus e das Ninfas.
P o deus local, cuja gruta localiza-se entre as duas propriedades da histria. Este deus
encontra-se em uma zona fronteiria, entre a cultura da polis e a humanidade e o irracional,
habitando em cavernas. A caverna foi a habitao primeira do homem, passando, no processo
evolutivo, a ser utilizada para a inumao de corpos e, por fim, sendo concebida como a
morada dos deuses, por sua distncia dos adensamentos populacionais (BURKERT, 1985).
Todas essas particularidades evidentemente no foram desprezadas por Menandro, que soube
aproveit-las para enriquecer seu enredo.
O carter ambguo da personalidade do deus bastante significativo. Pois, ao flutuar
entre a cultura e a humanidade e o poder incivilizado da procriao essencial para o mundo
civilizado (BURKERT, 1986, p. 172), pode-se dizer que sua influncia divina sobre o curso
da ao no se trata de um mero capricho do autor e de seu potencial criativo, mas sim de um
ato coerente com a personalidade do deus. File um lugar rido, e a aridez local reflete-se no
comportamento de Cnmon:
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to\n a)gro\n de\ to\n [e)]pi deci\ oi)kei= toutoni \ 5
Knh/mwn, a)pa/nqrwpo/j tij a)/nqrwpoj sfo/dra
kai\ Du/skoloj pro\j a(/pantaj ou) xai/rwn t o)/xl% -
o)/xl% le/gw; z[w=]n ou(=toj e)pieikw=j xro/non
polu\n lela/l?hken h(de/wj e)n t%= bi/%
ou)deni/, proshgo/reuke pro/teroj d ou)de/na 10
plh\n e)c a)na/gkhj geitniw=n pariw/n t e)me \
to\n Pa=na.
E neste campo a, direita, mora 5
Cnmon, um homem muito desumano
e dscolo com todos, desgostando da multido
digo multido? Vivendo ele suficientemente um tempo
longo, com ningum conversou de modo agradvel em sua
vida, e nunca se dirigiu primeiro a algum, 10
exceto por necessidade a mim, P, por ser seu vizinho e por
passar por perto.
O misantropo no demonstra devoo pelo deus, dirige-se a ele apenas por necessidade, pois
como afirma Getas, nos versos 433-434, no se deve se aproximar/desse deus em silncio,
isso porque no se pode correr o risco de acordar, de qualquer jeito, o deus em seu sono. O
deus deve ser acordado com uma saudao ou com msica para despertar nele bons
sentimentos e evitar a possesso maligna que se manifesta com o pnico (HANDLEY, 1965).
Cnmon o sada apenas para evitar qualquer tipo de aborrecimento que a fria do deus possa
causar. O pnico pode se manifestar nos indivduos tanto em meio natureza como em
meio batalha. Alm disso, as Ninfas, donas da morada de P, igualmente so associadas a
estados alterados de conscincia e, por isso, ambos representam o sobrenatural da vida
cotidiana (LARSON, 2001). P uma divindade pastoral e musical e, por isso as Ninfas so
divindades a ele associadas, j que elas atuam como coro e danam ao som da msica tocada
por uma figura masculina, como tambm o caso de Apolo e Hermes, tambm
acompanhados por essas divindades. Por causa das Ninfas, o local de culto de P a caverna,
visto que elas habitam fontes de gua, sendo que as cavernas normalmente apresentam tal
caracterstica.
Contrariamente a Cnmon, a menina, apesar de criada apenas pelo pai, no apresenta o
mesmo carter rude, honrando piedosamente as Ninfas e merecendo, desse modo, o cuidado
dessas. Apesar do favor conquistado, as Ninfas caracterizam-se por estarem ligadas
fertilidade humana, ao nascimento e ao cuidado de crianas, sendo que essa ltima funo
pode ser dividida em duas: cuidado por crianas pequenas e cuidado por aquelas que esto
alcanando a maturidade, pois o ltimo grupo representa os futuros guerreiros e cidados e as
futuras esposas. Logo, o interesse das divindades pela menina no meramente casual, mas
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como ela se encontra em idade de casar e procriar, ela , por consequncia, objeto de
preocupao. Contudo, por possuir um pai cujo temperamento no permite que a pessoas se
aproximem, impedindo igualmente que qualquer pretendente tenha a chance de pedir a sua
mo, a filha de Cnmon passa a receber uma ateno especial por parte das Ninfas o qual se
manifesta na figura de Sstrato, o apaixonado.
Mas as personagens, por outro lado, encaram os acontecimentos como obra da tch
(sorte ou destino), fora responsvel pelos eventos no apenas no palco, mas tambm na vida
real. De acordo com Hunter (1985), as transformaes pelas quais passam os gregos em um
perodo de cinquenta anos provavelmente ocasionaram uma maior ateno sobre a fora da
tch. Um exemplo disso o que afirma Demtrio de Faleros, que, ao viver a derrota persa e a
ascenso do poder macednico, atribui tais transformaes sorte, a qual desconsideraria
completamente o estilo de vida das pessoas, trazendo mudanas inesperadas (HUNTER,
1985). Esse sentimento far com que as personagens da comdia nova se encontrem sujeitas
s foras da tch, em maior intensidade que as personagens da tradio anterior, quando
possvel observar que, ao invs de serem controladas pelas disposies do destino, as
personagens tentam obter o controle sobre sua prpria sorte (HUNTER, 1985). Nesse sentido,
a comdia nova trata a instabilidade da sorte (tch) como um assunto recorrente e ligado
pobreza e riqueza.
No caso do Dscolo possvel enxergar claramente o papel dessa fora divina que se
apresenta em um primeiro nvel o do discurso, como responsvel pela boa fortuna dos
indivduos de acordo com o carter bom ou mau desses mesmos indivduos: o bom prospera e
o mau sofre uma mudana para pior. J em um segundo nvel o da exigncia do drama, a
tch se apresenta como fora necessria para restabelecer a harmonia social, abalada quando
Cnmon resolve isolar-se do convvio com os demais em virtude de um julgamento
equivocado sobre o carter humano (SCHELL, 1990). Esse aspecto regulador da divindade
expresso por Menandro em um fragmento de uma de suas peas (SCHELL, 1990, p. 184):
ei) pa/ntej e)bohqou=men a)llh/loij a)ei/,
ou)dei\j a)\n w)\n a)/nqrwpoj e)deh/qhn Tu/xhj.
se todos ajudssemos uns aos outros sempre,
ningum, sendo homem, precisaria da Tch.
A tch a fora que regula o mundo da comdia, e as palavras de Menandro ecoam as de
Cnmon no ato IV, quando este afirma que todos estariam satisfeitos com o que possuem se
adotassem o seu estilo de vida (743 a 745). Se existisse um sentimento mtuo de
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solidariedade, a fora divina no precisaria agir sobre o destino dos homens, porm,
Menandro confere s palavras do velho misantropo uma certa ironia, pois se ele fosse uma
pessoa agradvel e dada ao convvio social, a tch no precisaria intervir fazendo com que
casse no poo para perceber que agira errado.
Portanto, se o que se observa na comdia nova uma maior preocupao com a
verossimilhana, logo, haver espao para a divindade apenas no prlogo ou como objeto de
adorao em rituais religiosos. E nesse caso, a sorte (tch) que prevalece como fora
propiciadora de mudanas no entendimento das personagens.
1.3.2. Cnmon
Esta no a primeira vez que a figura do misantropo empregada na comdia. De
acordo com Ireland (1995), encontra-se, durante o perodo da comdia denominada mdia,
uma pea de Mnesmaco, cujo nome da personagem principal Dscolo. Alm disso, teria
havido ainda peas de Ofelion e Anaxilas com o ttulo Eremita, que remetem ao tema da vida
em isolamento. Contudo, a origem da figura do misantropo, remontaria figura de Tmon,
um ateniense conhecido por sua misantropia e que, de acordo com o relato histrico, aps a
guerra do Peloponeso teria adotado um estilo de vida marcado pela recluso que, segundo
Plutarco7, seria motivado pela ingratido de seus amigos, fato que o teria feito perder a
confiana nos homens, vindo a se tornar, posteriormente, o paradigma do misantropo.
Nas Aves, de Aristfanes, encontra-se referncia a tal figura histrica (1548-49),
quando Prometeu a ela se equipara, pois assim como o famoso misantropo, contemporneo
do comedigrafo, a divindade despreza seus pares em favor da humanidade. J na Lisstrata
(805-20), h uma descrio mais pormenorizada de Tmon que se contrape descrio do
casto e misgeno Melnio:
Xoroj8 Gunaikw=n
ka)gw\ bou/lomai mu=qo/n tin' u(mi=n a)ntile/cai 805
tw=? Melani/wni.
Ti/mwn h)=n a)i/druto/j tij a)ba/toisin
e)n skw/loisi to\ pro/swpon perieirgme/noj, 810
7 PLUTARCH. Plutarchs Lives. With an English translation by Bernadotte Perrin. London: Harvard University
Press; v.1, 1959. 8 Aristophanes. Aristophanes Comoediae, ed. F.W. Hall and W.M. Geldart, vol. 2. Oxford. Clarendon Press,
Oxford. 1907.
http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Axoro%2Fs&bytepos=101160&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Agunaikw%3Dn&bytepos=101160&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ka%29gw%2F&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=bou%2Flomai&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=mu%3Dqon&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tin%27&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28mi%3Dn&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ntile%2Fcai&bytepos=101216&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tw%3D%7C&bytepos=101301&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Amelani%2Fwni&bytepos=101301&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Ati%2Fmwn&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=h%29%3Dn&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29i%2Fdrutos&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tis&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ba%2Ftoisin&bytepos=101347&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=e%29n&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=skw%2Floisi&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=to%2F&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=pro%2Fswpon&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=perieirgme%2Fnos&bytepos=101416&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035
-
19
)Erinu/wn a)porrw/c.
ou(=toj ou)=n o( Ti/mwn
*
w)/?xeq' u(po\ mi/souj
polla\ katarasa/menoj a)ndra/si ponhroi=j.
ou(/tw 'kei=noj u(mw=n a)ntemi/sei
tou\j ponhrou\j a)/ndraj a)ei/,
tai=si de\ gunaici\n h)=n fi/ltatoj. 820
Coro de Mulheres9
E eu quero vos contar uma histria contra 805/6
a de Melnio.
Um Tmon era to fixo, em inacessveis
espinhos as faces tendo fechado, 810/1
um rebento das Ernies,
este Tmon ento
foi-se por dio
Muitas imprecaes tendo feito aos homens perversos 815
tanto aquele, como ns, sempre odiava os homens
perversos, mas das mulheres era amicssimo.
Em um esclio a esta comdia de Aristfanes, aprende-se que Tmon vem a morrer de
gangrena por se recusar a receber cuidados mdicos aps uma queda acidental de uma
pereira. Sob tal perspectiva, a queda de Cnmon no poo adquire um carter mais
significativo, pois ecoaria o trgico fim do misantropo original. Com isso ficaria demonstrado
o conhecimento de Menandro sobre tal histria. Contudo, como se trata de uma comdia, seu
misantropo no est destinado a morrer s e desamparado, uma vez que ele reconhece a
existncia da ao verdadeiramente altrusta.
O carter de Cnmon constri-se de maneira bastante negativa ao longo da comdia, j
a partir do prlogo proferido por P. E seus traos de desumanidade, aparentemente gratuita,
acentuam-se ao longo da ao, a princpio por meio do relato de Prrias, que pelo velho
perseguido; e em um segundo momento, atravs do prprio Cnmon, ao expressar o desejo
de, assim como Perseu, poder transformar a todos em pedra (153-159):
ei)=ta ou) maka/rioj h)=n o( Perseu\j kata\ du\o
tro/pouj e)kei=noj, o(/ti pethno\j e)ge/neto
kou)deni\ sunh/nta tw=n badizo/ntwn xamai/, 155
ei)=q` o(/ti toiou=to kth=m` e)kekthq` %(= li/qouj
a(/pantaj e)po/ei tou\j e)noxlou=ntaj; o(/per e)moi\
nuni\ ge/noit`! ou)de\n ga\r a)fqonw/teron
liti/nwn ge/noit` a)\n a)ndria/ntwn pantaxou=.
9 ARISTFANES. Lisstrata. Traduo de Ana Maria Csar Pompeu. Editorial Cone Sul. So Paulo: 1998.
http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2A%29erinu%2Fwn&bytepos=101496&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29porrw%2Fc&bytepos=101496&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%28%3Dtos&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%29%3Dn&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=o%28&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%2Ati%2Fmwn&bytepos=101546&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=w%29%2F%7Cxeq%27&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28po%2F&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=mi%2Fsous&bytepos=101658&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=polla%2F&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=katarasa%2Fmenos&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ndra%2Fsi&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ponhroi%3Ds&bytepos=101709&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ou%28%2Ftw&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=%27kei%3Dnos&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=u%28mw%3Dn&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ntemi%2Fsei&bytepos=101788&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tou%2Fs&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=ponhrou%2Fs&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29%2Fndras&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=a%29ei%2F&bytepos=101851&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=tai%3Dsi&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=de%2F&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=gunaici%2Fn&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=h%29%3Dn&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/morphindex?lang=greek&lookup=fi%2Fltatos&bytepos=101911&wordcount=1&embed=2&doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0035
-
20
No era ento Perseu feliz por dois
motivos: porque tornou-se alado
e porque no encontrava nenhum pedestre no cho, 155
e porque tinha um tal dom com o qual em pedras
fazia todos os que o aborreciam? Quem dera eu
agora o tivesse! Pois nada seria mais abundante
do que esttuas de pedra por toda parte.
Contudo, uma grande mudana opera-se no ato IV: Cnmon cai em seu prprio poo ao
tentar recuperar um balde e um forcado, e seu resgate, que atua como um renascimento
simblico da sua personagem encaminha o conflito do enredo para sua resoluo, uma vez
que tal evento propicia o processo de reconhecimento no qual Cnmon revela em um longo
discurso a verdade sobre os fatos, admitindo seu erro e justificando sua misantropia.
O incio deste discurso nos desconhecido devido existncia de uma lacuna no texto
original, mas interessante notar que a mtrica, a partir desse momento, sofre alterao,
passando-se do trmetro jmbico, caracterstico da comdia, para o tetrmetro trocaico,
conferindo cena um ar que evoca a tragdia.
Handley (1965), em seu comentrio ao Dscolo, afirma acerca da tragicidade inerente a
esta passagem, que no apenas a mudana no metro, mas tambm os componentes cnicos e
textuais so elementos importantes para definir a natureza da situao. O suposto uso do
enciclema carrinho com rodas utilizado na tragdia para trazer ao espectador cenas que se
passam no interior de um edifcio para trazer Cnmon cena aps seu resgate, juntamente
com o tom melanclico de seu discurso tambm contribuiriam para a criao da atmosfera
trgica. E junto a esses elementos, h ainda a expresso proferida por Sstrato (690) w)= Zeu=
Sw=ter, e)kto/pou qe/aj: " Zeus Salvador, que viso estranha". Tendo-se em vista que o
adjetivo e)kto/pou denota aquilo que estranho por estar fora de lugar, a expresso apontaria
justamente para esse deslocamento do recurso trgico, dado pelo uso do enciclema, para a
comdia, visando despertar estranhamento ao pblico do gnero cmico. Entretanto, toda a
tragicidade atenuada unicamente por sabermos que Cnmon no est morrendo, o que
confere cena seu carter cmico.
Porm, a despeito da comicidade da situao, percebe-se um profundo tom de crtica
social nas palavras do velho, o que evocaria, como j mencionado, de certa forma, a funo
da parbase na comdia antiga.
O ponto de partida o reconhecimento do erro, seguido pelas razes de seu
comportamento. Tais elementos permitem a desconstruo da imagem negativa de Cnmon
-
21
que at ento fora fortemente construda, permitindo-se entrever traos de humanidade na
personagem pela primeira vez no decorrer dos eventos (713-21);
e(/n d ) )i)/sw[j] h(/marton, o(/stij tw=n a(pa/ntwn %)o/mhn
au)toj au)[t]a/rkhj tij ei)=nai kai\ deh/sesq )ou)deno/j.
nu=n d )[i)]dw\n o)cei=an ou)=san a)/skopo/n te tou= bi/ou 715
th\n te[l]euth\n, eu(=ron ou)k eu)= tou=to ginw/skwn to/te.
dei= ga\r [ei)=]nai kai\ parei=nai to\n e)pikourh/sont` a)ei/.
a)lla\ ma\ to\n (/Hfaiston ou(/tw sfo/dra diefqa/rmhn
e)gw\
tou\j bi/ouj o(rw=n e(ka/stouj tou\j logismou/j q`o(\n
tro/pon
pro\j to\ kerdai/nein e)/xousin - ou)de/n` eu)/noun %)o/mhn 720
e(/teron e(/te/r% tw=n a(pa/ntwn a)\n gene/sqai!
Talvez eu tenha cometido um erro; eu acreditava, dentre todos,
ser auto-suficiente e no precisar de ningum.
Mas ao ver agora que o fim da vida repentino e 715
imprevisvel, descobri que no sabia bem disso.
Pois preciso sempre ser e ter presente uma mo amiga.
Mas, por Hefesto, eu estava assim to perdido
que olhando para cada estilo de vida, os clculos
e o modo de lucrar no acreditava que 720
no mundo uma pessoa poderia agir de boa vontade para com a outra
Cnmon no cr que um ser humano possa agir desinteressadamente para com outro em
consequncia do individualismo exacerbado que observa em seus pares. Logo, visto que a
solidariedade aparece como um valor social aparentemente inexistente, o isolamento que se
reflete na tentativa de uma autossuficincia constitui um jeito de escapar a esse modo de vida
pouco digno, no qual as conquistas materiais sobrepem-se s aspiraes do bem comum e ao
sentimento de coletividade.
Todavia, o gesto altrusta de Grgias pe por terra o julgamento precipitado de Cnmon
sobre os homens, fazendo-o reconhecer a necessidade de relacionar-se com sua comunidade;
uma vez que a vida repleta de imprevistos, e nunca se sabe quando ser preciso ter
disposio algum que possa prestar auxlio. Logo, ele reconhece seus deveres para com sua
famlia que at ento no se encontrava sob seus cuidados (79-739):
ti/ desti/, meira/kion; e)a/n e)gw \
a)poqa/nw nu=n-oi)/omai de/, kai\ kakw=j i)/swj e)/xw- 730
a)/n te periw= pou, poou=mai/ s u(o/n, a(/ t e)/xwn tugxa/nw
pa/nta sautou= no/mison ei)=nai. th/nde soi paregguw=,
a)/ndra au)t$= po/rison! ei) ga \r sfo/dr u(giai/noim e)gw/,
au)to\j ou) dunh/soim eu(rei=n! ou) ga \r a)re/sei moi/ pote
ou)de\ ei(=j. a)ll e)me \ me/n, zh=n e)a=q w(j bou/lomai. 735
ta)/lla pra=tt au?to \j paralabw/n! nou=n e)/xeij su\n toi=j qeoi=j,
-
22
khdemw/n ei)= th=j a)delfh=j, ei)ko/twj! tou= kth/matoj
e)pidi/dou proi=ka tou)mou= diametrh/saj h(/misu,
t?[o\] d? e(/teron labw \n dioi/kei ka)me\ kai\ thn\ mhte/ra.
O que , rapaz? Caso eu
morra agora creio que talvez sim, e eu estou mal 730
ou sobreviva, fao voc meu filho, e tudo que tenho
considero ser teu. Confio-a a voc:
encontre um marido para ela, pois mesmo que me recuperasse totalmente,
no poderia ach-lo, pois nenhum
me agradaria. Mas quanto a mim, se viver, deixem-me viver como quero, 735
e voc toma conta das outras coisas. Voc tem juzo, pelos deuses,
voc o guardio da sua irm, naturalmente. Dividindo
os meus bens, d metade deles como dote,
e a outra metade tomando, sustenta a mim e a sua me.
Nota-se nesta deciso um carter baseado num ideal de justia que o impele a agir desta
maneira. Diante da possibilidade de uma morte iminente, e da necessidade dos demais,
Cnmon reconhece a importncia de no deixar sua famlia desamparada, algo que de certa
forma ecoa as palavras de Grgias no incio do ato II (239-240), momento no qual afirma ser
impossvel fugir aos laos familiares. Ao reconhecer Grgias como seu filho, garante que sua
filha tenha um guardio legal e um casamento, alm de assegurar a posse de sua propriedade.
A terra que antes garantia sua independncia agora dividida, metade para o dote da filha e
metade para Grgias, para que este, a partir dela, cuide de seus pais.
Mas, apesar da reviravolta, Cnmon continua irredutvel quanto a ser deixado s. Ao
transferir para o filho suas responsabilidades familiares, expressa e procura concretizar o
desejo de continuar a viver recluso e de no se envolver na vida dos demais. Entretanto,
conforme Handley afirma em seu comentrio comdia, seria impossvel permitir que
Cnmon terminasse seus dias em paz desaparecendo da pea, ou mesmo que ele se permitisse
participar espontaneamente da celebrao do casamento, pois no se deve esquecer que ele,
afinal, se trata de uma personagem cmica.
Nesse sentido, as palavras proferidas pela escrava Simique (874ss.) assumem um papel
importante para o desdobramento dos eventos futuros, pois a recusa de Cnmon em tomar
parte na festa pressagiada como advento de uma desgraa vindoura pior que a primeira,
uma vez que o velho insiste em seu isolamento. Tudo isso, segundo Handley, serve para
justificar a cena que se segue, na qual Getas e Scon foram-no a participar das festividades.
Resignadamente, Cnmon encaminha-se para o templo para juntar-se s celebraes, tendo
em vista que sua misantropia provou-lhe trazer apenas tormentos e inconvenientes.
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23
Por trs da misantropia do velho, elemento fortemente responsvel pelo desenrolar do
enredo, h um ideal de equidade, trao de carter que se evidencia no final do longo discurso
por ele proferido (742-745):
u(pe\r e)]mou= ga\r bou/loim ) ei)pei=n o)li/ga soi kai\ tou=
tro/pou.
ei) toiou=to]i pa/ntej h=)san, ou)/te ta\ dikasth/ria
h)=n a)/n, o]u)/q au(tou\j a)ph=gon ei)j ta\ desmwth/ria,
ou)/te p]o/lemoj h)=n, e)/xwn d )a)\n me/tri ) e(/kastoj h)gapa. 745
Quero falar para voc uma coisinha sobre mim e sobre o meu jeito:
Se todos fossem assim, no haveria
tribunais nem mandar uns aos outros para a priso,
nem haveria guerra, e cada um estaria satisfeito tendo o suficiente. 745
Ter o suficiente e agir de forma justa so ideias que perpassam toda a histria. A instabilidade
dos bens materiais em oposio s relaes interpessoais aparece como um valor importante
que perpassa todo o drama, deixando transparecer no apenas as disposies de carter das
personagens, mas tambm conferindo pea um tom de crtica social.
No ultrapassar os limites da prpria condio a ideia central comdia. Aquele que
justo no busca o constante lucro, mas vive satisfeito tendo apenas o suficiente e, por isso no
prejudica seus semelhantes e afasta-se dos males dos tribunais e das guerras como postula
Cnmon. Agir justamente permite ao indivduo manter sua condio ou prosperar, pois do
contrrio certo que receber uma mudana para pior, j que sorte tais coisas pertencem, e
da sua instabilidade.
Portanto, vlido assumir, segundo uma perspectiva histrica, que estamos diante da
busca por um equilbrio ante a constatao de uma crise social dada em virtude das
circunstncias relacionadas vida poltica ateniense. E nessa busca, Menandro demonstra sua
habilidade na manipulao desses elementos em benefcio do enredo da comdia, pois nada
mais cmico e irnico que um homem que tenta isolar-se do convvio social por julgar que
todos so injustos e extremamente individualistas, sem saber que a reside seu erro.
Sendo assim, a misantropia de Cnmon, mais que fora propiciadora dos
desdobramentos dramticos, apresenta-se ainda como elemento de carter didtico, pois sua
motivao, dada em razo do materialismo que se mostra como chaga social, um tema que
permeia toda a pea, como uma lembrana dos recentes eventos atenienses e como um alerta
para aqueles buscam na ostentao um modo de medir seu status.
-
24
1.3.3. Sstrato
Logo ao final do prlogo proferido por P, h a primeira meno ao heri cmico (39ss).
Por meio da divindade, descobre-se se tratar de um mocinho de famlia rica que possui uma
propriedade em File. Contudo, o jovem no um campesino, mas um cidado, habitante da
cidade, que se encontra no campo para a caa e que, sob a influncia do deus, apaixona-se
pela filha de Cnmon.
Imediatamente aps o prlogo, Sstrato entra em cena dialogando com o parasita
Queras acerca de sua sbita paixo, demonstrando completa inabilidade para lidar com seus
problemas de maneira independente, ao enviar ao pai da moa o escravo Prrias na tentativa
de tratar do casamento. Porm, a medida mostra-se ineficaz, uma vez que o velho escorraa
brutalmente o escravo. Por isso, ele mesmo tenta se aproximar de Cnmon, mas ao avistar o
velho, que passa gritando a reclamar sobre os aborrecimentos com os passantes que o
perturbam durante o trabalho, Sstrato recua covardemente por constatar que o relato do
escravo a respeito da crueldade do misantropo verdico (151 a 52):
de/doika me/ntoi, ma\ to\v Apo/llw kai\ qeou/j,
au)to/n! ti/ ga\r a)/ tij mh\ ou)xi\ ta)lhqh= le/goi;
Tenho medo dele, por Apolo e pelos deuses,
Por que no falar a verdade?
Desse modo, Sstrato mais uma vez decide recorrer a outrem na esperana de resolver seu
problema: agora caber a Getas, escravo de seu pai, a tarefa de se aproximar do velho rude.
Todavia, mais uma vez seu plano frustrado ao descobrir que o escravo fora enviado cidade
para contratar um cozinheiro para o ritual de sacrifcio realizado por sua me na gruta de P.
De fato, essa a primeira vez que uma meno ao sacrifcio ouvida, responsvel por colocar
em contato os dois fios da ao do drama. Mas, em um primeiro momento, no se sabe qual
a motivao do sacrifcio, j que a razo para sua realizao tambm ignorada por Sstrato,
que o atribui piedade exagerada de sua me.
Assim, mais uma vez, o heri decide falar ele mesmo com Cnmon, porm, novamente,
ele se coloca de forma passiva diante de seus problemas, buscando sempre auxlio externo
para resolv-los, opondo-se diametralmente a Cnmon, que recusa qualquer tipo de
interveno a seu favor. Alm disso, v-se tambm que Sstrato, ao demonstrar sua
dependncia, no dispe da maturidade de Grgias, cuja pobreza j muito cedo lhe incute
responsabilidade e iniciativa, qualidades que durante o resgate de Cnmon evidenciam-se em
oposio total passividade do jovem citadino, que atua como mero espectador do ato herico
-
25
do outro, preocupando-se apenas em admirar a menina amada.
Embora as intenes de Sstrato sejam nobres deseja se casar com a menina sem dote
, suas aes so alvo da suspeita de Grgias, cujo escravo, Daos, secretamente observa o
encontro entre amante e amada no momento em que a menina vai desacompanhada gruta de
P para buscar gua. Nesse fortuito encontro, Sstrato faz um comentrio a respeito dos
modos da menina (201-2), referindo-se a ela como uma moa do campo com modos livres.
Handley (1965, 167) observa que o comentrio de Sstrato poderia ser parafraseado da
seguinte maneira: She may be a simple country girl, but she has the poise and the frankness
of the truly civilized.10
; em outras palavras, Sstrato reconhece que apesar de ser uma
campesina, ela no uma pessoa submissa, mas algum com pensamento independente. Esse
trao de carter da menina se revela no momento em que Sstrato se oferece para buscar a
gua na gruta: prontamente ela aceita, respondendo mesmo de maneira rude ao rapaz (201):
Sim, pelos deuses, v depressa!. A admirao de Sstrato se deve observao do fato de
que a vida campesina, marcada pela simplicidade e pelo trabalho rduo no resulta sempre em
um recrudescimento do esprito, aumentando ainda mais sua admirao pela menina. Mais
adiante, na ao, observa-se que mais uma vez, o jovem admirar os modos da moa (384ss.),
ao saber que ela fora criada unicamente pelo pai, mas sem a influncia negativa que as
mulheres podem exercer sobre a criao das meninas:
ei) mh\ ga\r e)n gunaici/n e)stin h( ko/rh
teqramme/nh, mhd oi)=de tw=n e)n t%= bi/% 385
tou/twn kakw=n mhde\n u(po\ thqi/doj tino\j
dedicame/nh mai/aj t, e)leuqeri/wj de/ pwj
meta\ patro\j a)gri/ou misoponh/rou t%= tro/p%,
pw=j ou)k e)pituxei=n e)sti tau/thj maka/rion;
Se a moa no foi criada entre
mulheres, nem conhece os problemas da 385
vida, nem foi assustada por uma
tia ou av, mas criada livremente
com um pai com carter, bravio e que odeia o mal,
como no vir a ter essa felicidade?
O modelo feminino que ela tem o da escrava Simica, o que a deixou livre das
preocupaes, incutidas por mulheres mais velhas, que uma moa de classes superiores
normalmente teria. Sstrato reconhece a vantagem de se ter um pai bravio, como modo de
evitar que a menina conhea qualquer tipo de mal. Criada por um pai severo, ela conhece
10
Trad.: "Ela pode ser uma simples moa do campo, mas ela tem a desenvoltura e a franqueza dos
verdadeiramente civilizados".
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26
apenas um estilo de vida austero e baseado no valor do trabalho, fazendo com que seja mais
do que digna de todos os esforos do apaixonado para conquist-la.
Apesar de suas honradas intenes, Sstrato, aps ajudar a menina a pegar gua na
gruta das ninfas, abordado por Grgias, que o acusa de tentar seduzir sua meia-irm.
Assustado e aborrecido com a acusao, Sstrato responde ao discurso de Grgias
defendendo-se. Em tom conciliatrio, e demonstrando uma desenvoltura superior a do
lavrador, ele expe suas reais intenes, afirmando seu amor pela menina e afastando a
necessidade de um dote, pois como dispe de vastos recursos, pode aceit-la sem nada em
troca. Nesse ponto, nota-se que Sstrato algum dotado de grande generosidade, assim
como Grgias, pois ao que parece, o lucro que ele poderia ter, advindo do casamento, algo
irrelevante, visto que atribui maior importncia paixo que sente pela amada.
Contudo, outro trao no to nobre do carter de Sstrato revela-se ainda nesse dilogo
com Grgias. Vindo a conhecer o grau de parentesco que une o jovem lavrador menina,
Sstrato aceita a nova amizade tendo em vista as vantagens que ela pode lhe trazer no que diz
respeito ao arranjo do casamento, enfatizando o carter utilitrio de tal amizade ao convidar
Grgias e Daos para o sacrifcio (557 a 62):
mikro\n diadramw/n . e)nqadi \ tr[o/]pon tina\
ge/gon ou)k a)/kairoj h( qusi/a. paralh/yomai
to\ meira/kion touti/, parelqw\n w(j e)/xw,
kai\ to\n qera/pont au)tou=! kekoinwnhko/tej 560
i(erw=n ga\r ei)j ta\ loipa\ xrhsimw/teroi
h(min e)/sontai su/mmaxoi pro\j to\n ga/mon.
Apesar da perda de tempo, em certo sentido,
esse sacrifcio no inoportuno. Vou convidar
aquele rapaz ali, indo como estou,
e o escravo dele, pois tomando parte 560
nos ritos, daqui para frente sero nossos aliados
mais teis com o casamento.
Atravs do convite, Sstrato procura consolidar a nova aliana que o aproxima de seu
objetivo. Logo, observa-se no jovem precisamente o que repudiado por Cnmon: uma
preocupao apenas com os prprios interesses em detrimento dos sentimentos dos outros. A
pretensa generosidade visa apenas seu prprio benefcio. Contudo, a despeito de seu egosmo,
provavelmente resultante de sua criao, Sstrato trata Grgias como um igual, mesmo diante
da desconfiana deste ltimo acerca de suas intenes com relao a meia irm. O heri
defende-se educadamente e ainda conquista a confiana do jovem rapaz. H, nesse caso, um
conflito de valores que se opera no jovem citadino: sua filantropia, marcada por sua
-
27
generosidade em aceitar a moa sem dote e pela sua amizade oferecida a Grgias, contrasta
com o interesse que tem na amizade com Grgias, pois ser atravs dela que ele tentar se
beneficiar para a obteno do casamento.
Sstrato, no entanto, percebe que nada ser to fcil como imaginara, pois acostumado a
uma vida de luxo e cio, o trabalho no campo que decide realizar para impressionar Cnmon,
mais difcil do que parace (Dysc. 390 a 92):
a)ll h( di/kell a)/gei ta/lanta te/ttara 390
au(/th! proapolei= m. ou) malakiste/on d o(/mwj,
e)pei/per h)=rgmai kataponei=n to\ pra=g a(/pac.
Mas esse forcado pesa quatro 390
talentos. Vai acabar comigo. No posso dar uma de fresco
agora que j toquei no assunto de uma vez.
Ele reconhece que no tem fora suficiente para suportar o peso do forcado, mas por querer
tanto a menina, no deve dar uma de fresco, mas sim agentar. O heri, com bastante
dificuldade, suporta bravamente o trabalho no campo, como afirma no ato III (522 a 545) faz
o relato sobre as horas que passou ao lado de Grgias e Daos a cavar. Nessa breve narrativa, o
espectador ouve, de forma bem humorada, as dificuldades enfrentadas pelo jovem, que por
nunca ter enfrentado um dia de trabalho duro na vida, encontra-se exausto e com dores pelo
corpo todo: trata-se de uma stira ao homem da cidade que desconhece o esforo fsico,
acostumado apenas ao luxo. Apesar de aparentemente todo o esforo de Sstrato ter sido em
vo, j que o velho no aparece, o empenho do jovem serve para mostrar a Grgias a sua
sinceridade, e a disposio de se submeter ao trabalho, colocando-se no lugar do lavrador
pobre para conseguir o casamento. Por isso, Grgias reconhece seu esforo e seu carter (761
a 771), julgando-o digno de receber sua irm em matrimnio. Alm disso, consegue tambm a
aprovao de Cnmon, no pelo trabalho duro, mas pelas queimaduras de sol, que para o
velho so um indcio de que o citadino se trata, na verdade, de um lavrador.
Mas, a despeito da breve experincia no campo, Sstrato ainda um jovem sem
iniciativa, deixando escapar a oportunidade de resgatar Cnmon. Cabe a Grgias o
salvamento, enquanto o apaixonado, mais atrapalhando do que ajudando, pois quase solta trs
vezes a corda na qual Grgias se segura, presta ateno unicamente na menina que,
desesperada, acompanha o resgate do pai. O resgate no encenado, mas Sstrato, atuando
como um mensageiro, relata ao pblico os seus pormenores. Evidentemente o jovem est
eufrico por causa dos acontecimentos, visto que inicia seu relato por uma tripla invocao
dos deuses (666 a 667), artifcio, de acordo com Handley (1965), empregado para expressar e
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enfatizar o estado de esprito das personagens. O estado de euforia do jovem reflete-se na
narrativa entusiasmada e na elevao das personagens que dela participam: apaixonado pela
menina, Sstrato a compara a uma esttua, colocando-se ante a ela como um adorador diante
da divindade; j Grgias equiparado a Atlas - figura mitolgica da linhagem dos tits,
condenado a carregar o cu nos ombros - pois apenas o lavrador faz o esforo de carregar
Cnmon para cima, uma vez que Sstrato, distrado pela viso da menina, praticamente no
colabora, importando-se quase nada com o velho acidentado. Mas o fundamental que o
citadino reconhece que seu papel no resgate de nada valera, cabendo a Grgias todo o mrito
da ao, muito embora o lavrador diga a Cnmon que o outro tambm teve parte no
salvamento, para que este consinta em dirigir-lhe a palavra.
Ao conseguir o consentimento para o casamento, Sstrato d provas de sua sincera
generosidade e amizade por Grgias ao oferecer ao amigo a mo da sua irm, mas antes,
precisa convencer Calipides, seu pai, de que essa a coisa mais justa a ser feita. Afirma
Handley (1965) que esse desdobramento da ao tem por objetivo no apenas unir as duas
famlias pelo duplo matrimnio, mas tambm retomar a discusso do ato II na qual se discute
a instabilidade da sorte dada a oposio riqueza/pobreza. Aqui a questo novamente
levantada graas recusa inicial de Calipides, que se nega a contrair dois parentes pobres.
Nesse momento, Sstrato retoma e reformula o discurso que lhe havia sido dirigido por
Grgias, acerca da instabilidade da fortuna (tch), quando esses dois se conhecem. Sstrato
diz a seu pai (797-812) que os bens materiais so instveis, pois no pertencem ao indivduo,
mas sim tch, que os distribui conforme o merecimento de cada um, por isso, necessrio
ajudar que os demais enriqueam, no apenas porque se trata de um ato nobre, mas tambm
porque prefervel um amigo manifesto que o ajudar quando for preciso a uma fortuna
escondida que no dividida com ningum. No h como saber se o jovem Sstrato
partilhava tais valores antes de conhecer Grgias, ou se foi pelo contato com este que passa a
ver a vida sob tal perspectiva. Independente disso, nota-se ao final da comdia um Sstrato
mais maduro, que tendo trabalhado arduamente no campo a fim de alcanar seus objetivos,
percebe que nada vem fcil, mas que preciso batalhar por aquilo que se deseja. Alm disso,
observa-se no discurso a Calipides que, o mesmo empenho que mostrou na busca por seu
casamento mostrado quando se dedica a convencer o pai a entregar sua irm ao amigo
Grgias.
Evidentemente, a resoluo do conflito no mrito de Sstrato, j que seus planos no
obtm o devido sucesso. Inicialmente, falha ao tentar uma aproximao de Cnmon, primeiro
por meio de seu escravo e depois por sua prpria conta. Mais tarde, entrega-se ao trabalho no
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campo, durante o qual travestido de lavrador, espera pelo velho acompanhado por sua filha:
novamente fracassa, porm sem desanimar, considerando retornar no dia seguinte para uma
nova tentativa apesar da inexperincia do esforo fsico exigido pela tarefa.
O mrito pelo arranjo do casamento, como j dito, cabe a Grgias, que salva Cnmon do
poo, passivamente assistido por Sstrato, que mal auxilia no resgate. Sob tal perspectiva so
de grande ironia dramtica as palavras expressas pelo jovem apaixonado entre os versos 860 a
65:
...ou)deno\j xrh\ pra/gmatoj 860
to\n eu)= fro