Comédia de Enganos

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Livro Semifinalista noPrêmio SESC de Literatura 2014 ISBN: 978-85-66266-80-1

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MARIO FILIPE

CAVALCANTI

COMÉDIA DE

ENGANOS

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Livro Semifinalista no Prêmio SESC de

Literatura 2014

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A meus pais Maria e Artur. A Catarina. Aos amigos Saulo, Rodrigo

e Michell.

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“O desejo é a essência mesma do homem”

BARUCH DE SPINOZA,

Ética.

“Mundo contraditório, alegria e tristeza, tudo

misturado”.

JORGE AMADO, Tereza Batista cansada de guerra.

“Ôh! esse vácuo abominando entre aquilo

que existe e a sua imagem, na certa é o

único empecilho que nos impede de aferrar com

nitidez a realidade!”

MÁRIO DE ANDRADE,

Prefácio à terceira versão d‘Os Contos de Belazarte.

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“Satisfeito mesmo quem, em todo o mundo, já

foi?”

O DANTE COUTO,

pensando no sofrimento do

mundo, pensando em

Lara.

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SUMÁRIO

1. Prosa de entrada (prefácio): A Comédia e Os

Enganos

2. Olho de Gato

3. O namorado de Vivi

4. Menino do olho junto e trela no meio

5. Lara

6. Olga

7. Comédia do vira

8. O marido, a mulher e as panelas

9. A carta

10. Aprendizado

11. Ossos do ofício

12. Do Letreiro (poesia)

13. Posfácio – por Guto Stresser

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PROSA DE ENTRADA (prefácio):

A COMÉDIA E OS ENGANOS

ESSES CONTOS ao que me parece não

intentam bancar a comédia divina que não faz

ninguém rir... Alguma graça deve de ter, pra

alguém, alguém no mundo, o que escrito aqui está.

Mas é que o segundo nome conjugado com o

primeiro é capaz de suplantá-lo e muito! – tornar a

tal da comédia meio capenga! ENGANOS... Será?

É de enganos que se faz uma vida mais

interessante, me disseram certa vez em ocasião

que agora não lembro. Mas será mesmo? O

estagirita orgulhoso vivia dizendo que sem uma

peripécia o teatro ficava morto. Se é! E os enganos

nada mais me parecem ser que as peripécias da

vida.

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Esses calungas de séquito de maracatu que

pari se enganaram ora ou outra e tiraram suas

lições variadas... Ah, essa mania esopiana de tirar

lição... vixe! Mas no fim das quantas é isso, a gente

vai vivendo e enfeitando essa nossa vegetação de

cada dia, e vai tirando lições que achamos

inquestionáveis e imprescindíveis pra se evitar as

lástimas da vida.

Mas as lástimas vêm, como o riso. E parece

que em toda lástima há certo gracejo, meio maroto

e meio irônico, da vida. Parece mesmo que sem

elas o próprio ato de rir seria um saco! Um mundo

de babacas. Mas o pior é que quem em todo o

mundo gosta das lástimas? Ô mundo complicado,

tanto vasto quanto contraditório! A tal da pedra

constante no meio do caminho, tão chata quanto

necessária – sem ela, não existiria a poesia...

Pois então, uma verdadeira comédia de

enganos onde o viver de cada um no fito de

perseguir o interesse próprio é tomado e

suplantado aqui e ali por essas coisas inesperadas

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que mudam os rumos da vida, às vezes totalmente,

outras apenas confundindo o intento originário. E

mudanças são essas coisas novas nem sempre

pedidas... Parece-me que toda compreensão do

homem é embriagada!

Não acho que prefacio um livro novel com o

intento de quem prefacia uma obra prima sua que

estourará por aí – hoje em dia as coisas que

estouram são literaturas de quinta, auto-ajuda ao

outro, coisas do tipo. Falo como leitor que sou –

voraz, confesso – não como um autocrítico

sorumbático que se acha grande. O fato mesmo é

que um dia as coisas poderão ser diferentes.

Serão? Bem, não podemos dizer...

Talvez a coisa que mais me tenha encantado

nesses calungas, que às vezes duvido se criei ou se

realmente são almas viventes em algum lugar, é o

fato de que suas vidas, com todas as insatisfações

e desenlaces estranhos, quase nunca harmônicos,

quase nunca alinhados, numa rebelde revolta ao

antigo ―felizes para sempre‖ é, nada mais e menos

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que o espelho mágico da vida verdadeira. Essa vida

que se vive por aí, como diria o Christopher Lee,

meio que fazendo a história e não se dando conta

disso.

Vida pouca, meio café com leite, como alguns

diriam, mas vida. Completa e transbordante. Uma

coisa enorme de importante – embora a depender

do ponto de vista sejamos tão pequenos e

franzinos.

Aliás, aqueles versos de Goethe muito bem

couberam a esse livro, nos quais dizia que ―quem,

em três milênios/ é incapaz de se dar conta/ vive

na ignorância/ a mercê dos dias, dos tempos‖, e é

justamente esse viver na ignorância de tudo que

faz dessa nossa vida de enganos, uma comédia!

Brasília – DF,

agosto de 2013.

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OLHO DE GATO

AQUELA SEMANA de janeiro tinha entrado pros

anais da família como um dia bem mais especial

que os dias santos ou feriados, e olhe que não há

coisa que brasileiro mais goste que dia santo ou

feriado – talvez por isso seja considerado um povo

religioso, não que a fé seja seu ofício por natureza,

mas, porque é devoto dos dias santos, por causa,

justamente, dos feriados!

Pois nem dia santo, ou feriado muito menos,

seriam tão especiais como aquele dia, quando

ainda pela madrugada a pequena Amália rasgando

a madre de sua pobre mãe em chamas, nasceu.

Dizem que depois de um berro tão alto

quanto as duas torres insossas do Cais de Santa

Rita, dado por Paula, a mãe da pequena Amália,

seguiu-se um riso calmo e tranquilo como um

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braço do Capibaribe.Eram sinais do nascimento de

uma menina com personalidade forte.

Fábio, pai de segunda temporada, tinha

ficado tão alegre que publicou o nascimento da

filha na edição daquele dia no Diário de Pernambuco ––

―Um dinheiro gasto à toa, oxente! Mas fazer o quê,

morreu o boi!‖, insistia D. Mariana, a avó, fazendo

seu eterno papel de sogra ingrata.

Amália era, como disse, a segunda filha do

casal Fábio e Paula, talvez não restasse realmente

necessidade para tantos alardes, afinal, os casais

costumam ser muito bobos com os primeiros

filhos, mimam, mimam, e mais ainda mimam, mas

depois relegam o ato de parir à normalidade da

vida. Aí vêm os gritos, os palavrões e as ameaças

nunca cumpridas, do tipo: ―vou pôr um ovo quente

na sua boca!‖. Mas não era assim na família

Santana. Para eles o nascimento de cada filha foi

tão louvável quanto o nascimento do cristo.

Paula, que ainda jovem se casara com o

Fábio esperando Marina na barriga, não sabia

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muito da vida ao atar-se, mas agora, após o

nascimento da segunda, esse planejado, era uma

felicidade só.Ele, o Fábio, era o homem que ela

tinha pedido a Deus, e certeza, certeza mesmo

dessas coisas a gente só tem na travessia, passar

do tempo. Idas e vindas, coisa de transeunte.

Mas D. Mariana, que já naquela época tinha

sido mortífera com a união repentina do casal por

conta do acidente da gravidez, tornava-se cada vez

mais ácida. O tempo parecia lhe tirar o riso ou

qualquer coisa que lhe reportasse alegria –– era a

iminência da morte, essa grande máscara com

boca caída. D. Mariana via a cuja e fingia que não

via. Até o formato da lua minguante lhe agoniava

de noite, por parecer com o de uma foice... E a

velha envelhecia com chatices e chatezas.

No mais, o casal, por ausência de melhores

oportunidades tinha ido morar justamente na casa

de D. Mariana, na Várzea, para alegria de Paula

que não teria de se acostumar com um lugar

diferente, longe dos quitutes e carinhos

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(implicâncias também) da mãe –– tão grande era

esse seu apego pernambucano às barras da saia

materna. Contudo, para Fábio aquilo não se

mostrava muito apetitoso, embora fosse, e ele

sempre reconhecia isso, o único jeito.

–– Oxe, Fábio! Não sei como tu aguenta essa

velha! Dizia um amigo, num bar.

–– Em campo de guerra a gente não escolhe o

que come, Manuel; quem não tem cão, caça com

gato. Sibilava.

Todavia o tempo, esse grande relógio sem

ponteiros, que apenas gira, fez com que os ânimos

ácidos da velha senhora se acalmassem,

principalmente quando do nascimento de Marina,

a primogênita. ―Essa menina é a minha cara,

Nossa Senhora da Conceição!‖, berrou contente a

avó. E dali em diante foi bordado em toalha,

camisas de crochê, presentes e presentes à

pequena Marina.

Nos olhos de Fábio um brilho redentor.

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Isso durou até aquela semana de janeiro que

abriu esta estória.A vida, pra não se achar tão

chata e tediosa, quis pregar mais essa peça.

D. Mariana, estranhamente, tinha sido a

única da família inteira que tão logo pondo os

olhos na pequena Amália, enjoou-se de vez. Pra

nunca mais. Enquanto a alegria perfazia os

cômodos da casa, D. Mariana em sua cadeira de

balanço, fumando seu cachimbo centenário,

enquanto rodopiava a bengala no solado de

madeira antiga, fazia caras e bocas de quem não

gostava de nada daquilo.

―Não se preocupe, amor, mainha é assim

mesmo, você não sabe?! Banca a durona, depois se

derrete toda. Foi assim com a Marina, não será

diferente com a Amalinha, que acaba de nascer!‖.

Aquelas previsões de fim de noite vindas de

Paula, acalmavam os ânimos de Fábio, contudo,

não os de D. Mariana...

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E o tempo também foi passando, passando,

enquanto a anciã murchava e diminuía e a

pequena Amália crescia e crescia. E a velha se

entediava da ciência que tinha dessa marcha

troncha do circo da vida. Enquanto a menina

desabrochava os botões, ela murchava como a

papoula seca e sem cor.

Até que um dia, inesperadamente, a própria

menina tomou ciência daquele comportamento de

sua avó, quando, solicitada a ajudar a velha

senhora que se levantava com dificuldade da

cadeira de balanço por conta da chuva que já

varria o terraço, foi recebida com um ―Vá s‘embora

daqui sua insuportável! Olho de gato! Em tu,

confiar, confio não!‖.

Não é preciso dizer o quanto os ânimos

ficaram tensos na casa dos Santana naquela noite,

quando Fábio chegando do trabalho deparou-se

com a filha mais nova aos prantos no colo da mãe,

amparada por sua irmã, enquanto a velha D.

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Mariana da sala de estar murmurava algo como

―Num gosto dessa aí, tem o olho de gato!‖.

Conversas se seguiram, família inteira

reunida, mas não tinha jeito, D. Mariana tinha

verdadeira aversão à menina. Cogitou-se mesmo

em mudarem de casa, mas Paula já não podia

deixar a mãe idosa sozinha.

–– Por que não colocamos ela num asilo,

Paula? Tem um aqui na Várzea, próximo à Praça,

as condições são boas e...

–– Fábio, pare com isso já! Quero ver se seus

pais estivessem vivos e dando trabalho como um

dia você deu, se iria mandar pô-los num asilo!

Dali nada mais saía a não ser um

―precisamos fazer alguma coisa...‖ e nisso eles,

angustiados, concordavam.

–– Mas vó, por que cargas d‘água a senhora

não gosta da Amalinha? Dizia a Marina numa

daquelas manhãs de inverno antes de ir à escola.

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–– Simples, querida: não confie em quem tem

olho de gato. Olhe lá, sua irmã, diferentemente de

você, puxou esse olho ridículo, amarelado e com

uma pupila estranha, só pode ter vindo da família

de seu pai! Uma aberração! E de aberrações,

querida, a gente mantém distância pro mói de não

se machucar!

Durante tudo isso, Amália assustou-se no

início, traumatizou-se depois, e no fim, como tudo

na vida, conformou-se àquela falta de deferência

com um ―vovó tá é caduca!‖.

No percurso do tempo, que, como uma roda

gigante estúpida continuava a rodar mesmo sem

ter ninguém por cima, a adolescência das duas

irmãs chegara. D. Mariana, que àquela altura já

contava mais de oitenta, já tinha feito testamento e

tudo. Era muita coisa não, o suficiente à

sobrevivência daquela geração e da que viesse,

desde que o trabalho fosse contínuo e paralelo à

mirrada herdade.

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É óbvio que naquele testamento a Amália

não tinha entrado tranquilamente, ―só dou alguma

coisa àquela olho de gato porque nasceu das

entranhas da minha filha e eu vi o parto, por que

se não tivesse visto, nem acreditar que do meu

sangue fosse eu acreditaria!‖. O advogado,

acanhado, uma vez que a menina estava presente

àquela declaração tão infamante, se resignou a

fazer a anciã assinar os papéis, para, enfim, sair

daquela situação constrangedora com a desculpa

de levá-los para registro.

O coração de Amália batia como uma alfaia

louca nos dias de maracatu... Em sua mente uma

nuvem espessa surgia.

*

* *

Na semana seguinte enquanto todos

jantavam contentes num sábado à noite, D.

Mariana veio com uma história de estar com um

ossinho de galinha atravessado na goela.

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Vira e mexe, olhou-se daqui e dali e ninguém

constatou na garganta da velha mais que as

seculares cordas do corpo.

–– Estou entalada, minha Nossa Senhora da

Conceição! Insistia a anciã. Façam alguma coisa

bando de cabeça de bagre! Vocês ficam aí na caixa

prego enquanto eu me laio! Acudam aqui! Sibilava

truculenta.

Ninguém, contudo, dava mais bola àquilo.

―Isso é invencionice sua, mainha. Pare já!‖, dizia

Paula. A própria Marina teria dito ―oxe, isso é coisa

de velho!‖. Amália, contudo, preocupada, chamou o

médico da família que, examinando a velha, pois

fora o ossinho, pequeno e fino que àquela altura

tentava fazer parte de sua garganta.

A velha quando soube quem chamara o

médico, deu um mixoxo gigantesco e pôs-se a pitar

o seu cachimbo secular, olhando os prados

sumidos da Várzea...

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No mês seguinte a velha já não andava mais

e precisava de cuidados para tudo, desde para

alimentar-se até para as mais básicas

necessidades... A gente envelhece e volta ao mesmo

estado da infância – só que não sabendo mesmo

das coisas... Fábio, coitado, trabalhava o dia

inteiro, Paula, também, Marina cogitava até em ir

morar numa república, só tinha cabeça pra seu

curso de Educação Física na Universidade Federal,

Amália tinha acabado de passar no vestibular de

Enfermagem, estando já no segundo período e não

teria tempo para cuidar da avó, dadas suas aulas

integrais.

Cogitou-se de contratar uma enfermeira, mas

o dinheiro não daria, foi aí que Amália resolveu

trancar o curso, mesmo com todo o ônus disso

decorrente, e cuidar o mais que pôde da avó. Em

sua mente, contudo, a nuvem negra persistia...

Foram dias escuros, aquele quarto mais

parecia um porão, tão reclusa estava sua avó, e tão

fraca, sem forças ou ânimo para tomar sol ou ar.

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Pior ainda era o silêncio sepulcral com o qual D.

Mariana agradecia aos cuidados da neta. ―Essa

olho de gato pensa que me engana!‖, interiorizava.

Dalia uns dias, contudo, o silêncio foi

quebrado.A velha D. Mariana, num dos dias

quentes de janeiro, pediu baixinho com sua voz

rouca de muitos anos ultrapassados para que

Amália abrisse a janela do quarto.

–– Mas vó...

–– Não titubeie! Sibilou fanhosa a velha de

cima da cama entre tosses agigantadas.

Aquelas tinham sido as palavras mais

amenas que a velha já tinha reportado à pobre

neta, que de espantada com uma resposta (já que

nunca havia respostas), resolveu não titubear.

A janela foi aberta e quase que

imediatamente os raios de sol entraram porta

adentro espantando sombras e cheiros de passados

sombrios. Um beija-flor parado no ar batia suas

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asas infindamente, o jardim estava florido. Era

uma daquelas semanas de janeiro...

A jovem sentou-se ao lado do leito da velha,

que numa atitude inesperada, ainda ordenou:

–– Leia pra mim, minha filha, aquela página

marcada do livro em cima da mesinha!

–– Mas vó, a senhora tá tão fraca e...

–– Leia!

Amália, ainda relutando, sentindo um

calafrio estranho, da morte que se esgueirava a um

canto do quarto do lado da janela, tomou do livro

em mãos, abriu na página amarelada, se riu

marotamente, o autor lhe era conhecido...

Respirou, leu:

―O menino doente

(Manuel Bandeira)

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O menino dorme.

Para que o menino

Durma sossegado

Sentada ao seu lado

A mãezinha canta:

— ‗Dodói, vai-te embora!

‗Deixa o meu filhinho,

‗Dorme . . . dorme . . . meu . . .‘

Morta de fadiga,

Ela adormeceu.

Então, no ombro dela,

Um vulto de santa,

Na mesma cantiga,

Na mesma voz dela,

Se debruça e canta:

— ‗Dorme, meu amor.

‗Dorme, meu benzinho . . .‘

E o menino dorme‖.

Sobre a cama do velho quarto, D. Mariana

dormiu. Amália não sentia nem mais aquele

calafrio, apenas uma paz intensa, estranha,

gostosa de sentir... D. Mariana, enfim, perdoara a

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sua pobre mãe, que tinha aquele tão vivo, tão belo,

brilhante e intenso olho de gato, por ter morrido

justamente naquele momento em que contente, a

pobre e pequena Mariana adormecia no colo

materno, embalada por uma cantiga que se

interrompeu e nunca mais se cantou.

O vulto de Amália atou-lhe o fio daquela

velha canção num leve farfalhar como a brisa do

venusto poema. Aquele vulto, como o da santa...

Na mente de Amália as densas nuvens

dissolveram-se. Seu coração batia como uma alfaia

louca nos dias de maracatu...

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O NAMORADO DE VIVI

–– ORA, MAS VIVI era praticamente da família!

E não me venha com essa estória de que ―todo

mundo diz isso!‖. Vivi era, sim, praticamente da

família!

Lembro-me ainda do dia em que fomos para

Lagoa de Itaenga, onde fica a fazenda de vovô e

naquele dia ensolarado, debaixo da cachoeira

friíssima, conheci a Vivi. Eu tinha escorregado,

sabe?, era uma criança ainda, uma menina de

meus lá oito anos, dos quais os oito tinham

transcorrido em Recife. A única coisa que eu sabia

da vida aventureira de criança era o que me diziam

os parques da Jaqueira e o Sítio da Trindade.

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Não, não mesmo, nunca frequentei o Parque

Treze de Maio... Mainha e painho não deixavam,

diziam que lá só tinham crianças pobrezinhas e

gente se esfregando, uma pouca vergonha! Enfim,

tudo o que eu sabia de uma vida aventureira se

encontrava naqueles parques que acabo de lhe

dizer; demais disso, vivia nos Shopping Centers,

dentro dos cinemas e Game Stations... Essa era

toda minha vida de criança no Recife.

Quando encontrei a Vivi na cachoeira lá em

Lagoa de Itaenga eu estava numa situação

inusitada, ao menos para mim naquela época,

sabe? Calma, vou dizer. Aliás, já disse.Eu tinha

escorregado e me relei todinha nas pedras da

cachoeira, se não fosse a Vivi... Ah, meu Deus, Vivi

era praticamente da família!

Tudo bem, vou contar, ela ali, estava na

cachoeira, me olhando de rabo de olho, era que eu,

menina da cidade grande, queria não junto de mim

os matutos da roça, mas veja, não me leve tão a

mal, isso era o que me tinham incutido mainha e

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painho, eles, grandes médicos, me diziam que as

perebas dos ricos e a dos pobres eram diferentes,

veja só! Eu só podia crer como verdade... Além do

mais, minha própria avó dizia que quando rico

morre, morre diferente de pobre. Confesso que

morremos sim, diferentes.Nós no luxo, eles na

penúria sofrendo sofrimento horrível... Caixão e

vela preta.

Não que eu queira dizer que vamos para

lugares diferentes..., sim, eu conheço a tal

parábola do rico e do pobre... Mas não era pra

menos, sendo Jesus filho de carpinteiro, achas

mesmo que ele ia colocar o pobre no inferno e o

rico no seio de Abraão? Ah, meu filho se toque!

Você não acha que estamos fugindo muito do

foco? Tenho amigas que vivem me dizendo que

gosto tanto de digressões que barro aquele meu

velho ex-professor de Ciência Política e Teoria

Geral do Estado.

O fato é que Vivi veio nova ainda aqui pra

casa, todo mundo tinha gostado do que ela tinha

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feito –– pulou na cachoeira e foi nadando no fito de

me socorrer lá em baixo... Pie só, eu estava sendo

puxada pelas águas da cachoeira, e mais em baixo

tinha outra... Seria mortal. Vivi me salvou.

Em troca disso, painho considerou dar-lhe

um prêmio: uma oportunidade de viver na capital

do Estado. Veja bem, você não acha inusitado, algo

bom por demais da conta para uma pessoa tão

pobre e desajustada na vida? Os pais de Vivi

cortavam cana, trabalho braçal insuportável

naquela usina duns tais Campellos... Sabes qual

seria sua maior herdade? Cortar cana como os pais

e irmãos...

Lembrando disso eu até sinto que painho

deve de estar agora no céu ao lado da Virgem Maria

ouvindo essa história que estou lhe contando e se

arrepiando todo... Deus que lhe ilumine a alma! A

caridade que fizemos ninguém faz hoje em dia.

Vivemos tempos de mentes secas, duma seca pior

que a do sertão.

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Daí Vivi cresceu comigo, estudou numa

escola daqui mesmo da capital. Como? Particular?

Não, não, mainha a colocou numa escola pública

boa. Isso bastava não? Considerando que ela não

ia sequer estudar em Lagoa de Itaenga!

O que ela virou? Ora, claro que Vivi era

nossa empregada! Ela foi por nós empregada para

poder ter o dinheiro dela, para poder usar como

bem lhe apetecesse, para poder ser alguém,

entende? Ah, mas se eu ganhava mesada era

porque era filha, se Vivi ganhava o dinheiro dela,

era porque era trabalhadeira, e isso a ninguém

repugna!

E daí, com a morte de painho, que Deus o

tenha em firmes tronos, mainha já estava bastante

velha e eu já casada e morando na mesma casa

nossa no bairro do Poço da Panela. Vivi, grande,

tornou-se minha ajudante sem igual. Uma

ajudante número um, sem falar que ganhou lá uns

aumentos salariais...

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Claro que foi por conta do plano real. Mas

foram aumentos! Não diga que não foram, que

importa o aumento das coisas? Vivi morava

comigo, comia do meu pão, bebia do meu vinho,

quer dizer, vinho mesmo ela num bebia não, não

tinha costume, mas bebia da minha água, nunca

precisou comprar uma bolacha sequer, como disse,

era praticamente da família!

Meus filhos nasceram, e tanto eu quanto o

Adalberto ficamos felizes da vida, nossa vida seria

ainda melhor, e Vivi, ora, Vivi era a única pessoa

em quem nós confiávamos para cuidar deles, para

gerir seu carinho e cuidado... Vivi foi nossa babá.

Mas veja só como o tempo passou! Estou eu

agora com meus quarenta anos e minha filha mais

velha com vinte! Vivi? Acho que deve ter minha

idade, sempre foi maiorzinha, sabe?, nunca

perguntei nem nada. Carteira de trabalho? Ora, já

não falei que era quase da família?! Você assinaria

a carteira da sua mãe? E não obstante ela sempre

trabalhou pra você!

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Mas o problema veio quando Vivi arrumou

aquele namorado... Quem já se viu, uma mulher de

seus quarenta anos arrumando namorado?E foi

numa folga que eu dei a ela para ela brincar o São

João – ah, meu Deus como eu me arrependo disso!

Arrumou um traste de um namorado pelos lugares

aí em que foi e, o que é pior:engravidou! Sim,

querido, isso mesmo, EN-GRA-VI-DOU!

O que eu poderia fazer, meu Deus?! Criar o

filho de Vivi? Mas é claro que não! Já criei a

própria Vivi, junto com minha mãe, ela era

praticamente da família, tinha quarto, tinha cama,

mesa e banho, tinha tudo, família e carinho, e

jogou tudo por cima da janela como se fosse nada.

Espaço? Mas é claro que minha casa tem

espaço, mas a questão não é espaço, meu caro, é

de espaço que vem o dinheiro que se gasta com

comida, médico, consultas, escola, educação,

moral e bons costumes e outras coisas mais que

criança precisa? E veja, Vivi não era um bebê,

tinha lá seus oito ou nove anos, como eu, quando

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veio. Além do mais, na minha casa mando eu e

meu marido, mas quando Adalberto cisma com

alguma coisa, só posso fazer meu papel de boa

diplomata. Adalberto disse categórico: ―Não quero

saber de menino chorando por aqui. Meus filhos já

criei; essa daí que crie os dela!‖.

Ora, não recrimine o Adalberto por dizer

―essa daí‖ de Vivi, é que os homens são mais

estourados, não sabe? E ele, como quase um pai

que foi pra Vivi não podia ficar calado... Não, não,

Vivi não foi minha madrinha de casamento, pra

seu governo tenho grandes amigas, como poderia

chamar Vivi?

Falamos pra ela sobre esse problema e ela

mesma resolveu voltar pra Lagoa de Itaenga, pra

criar o filho lá. Disse ela, DIS-SE-E-LA, que o tal

namorado ia ajudar.Quero ver como.Só pode ser

cortando cana!

Não temo ter demitido Vivi, ou melhor, que

conste que ela mesma é que se despediu. Só dói

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aqui no peito, sabe? Vivi era praticamente da

família.

Minha filha? Que tem minha filha? Sim, sim,

minha filha está grávida do namorado... Mas veja,

ele é estudante de Direito da Universidade Federal,

os pais são uma advogada e o outro procurador,

têm escritório próprio, etc., boas relações na alta

sociedade recifense, o rapaz faz despachos com

desembargadores federais e estaduais..., não é a

mesma coisa! Minha filha está bem assistida, e fez

o que era certo, não foi com um desses quaisquer

que ficam dançando forró por aí...

Entenda, a mulher precisa mesmo de quem

lhe dê de tudo. Homem sem dinheiro num pode ter

mulher. Só tem mulher quem pode.

Além do mais, já disse mil vezes, parece que

você ainda não entendeu: Vivi era pra-ti-ca-men-te,

da família... Nunca disse que ela e-ra da família.

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MENINO DO OLHO JUNTO

E TRELA NO MEIO

ERA UMA TARDE de janeiro, daquelas em que o

azul do céu de tão intenso encandeava a visão do

recifense que se atrevesse a erguer os olhos. O sol

impingia o suor na pele como um castigo, a cidade

inteira parecia um prelúdio aos círculos do inferno.

―Um calor dos diabos!‖, como se diz.

Momento daquele, em dias de outrora, num

passado bem perto, coisa de uns poucos anos –

tempo que engatinha –, ela estaria sem sombra de

dúvidas numa das belas praias, Pina ou Boa-

Viagem, Casa Caiada ou Bairro Novo,

movimentando o comércio do peixe frito e da

cerveja gelada, com o corpo sob os protetores e os

óculos escuros na cara.

Os tempos mudaram...

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39

Os tempos, aliás, mudam muito rápido. Isso

ela tinha atestado muito mal, coisas da vida.

Aquele menino mesmo, que ali em sua frente fazia

das suas trelas, como poderia ter imaginado? ―Ah,

minha filha, essas coisas hoje ninguém mais

imagina!‖, tinha dito a tia Martinha.

Aliás, a tal da tia Martinha tinha sido dessas

que contrariam todas as leis da natureza e, o que

soa muito estranho, ainda continuou devota. Ela

nasceu de sete meses, cresceu bem pouco, nunca

se reproduziu e com seus lá setenta anos de

solteirice, já devia uns anos ao caixão. A velha

Martinha vivia de se lembrar como eram os

namoros de antanho.

–– Você jura, minha filha, você jura mesmo

que naquela época a gente embuchava assim como

você, agora? Ah há! Não mesmo. A gente sabia era

de nada, minha filha, a gente sabia era de nada!

Você acredita que a gente jurava de pé junto que

embuchava tão só sentasse no quente da cadeira

do noivo? Oxe, era um azougue! Lembro-me da

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40

prima Marocas que foi pedindo perdão aos berros

pra mãe por ter perdido a honra... Tio Bernardino

deu-lhe umas tapas tão cheias no meio da cara que

a pobre ficou de duas cores! E no fim das contas o

quê? Ela disse que tinha sentado bem no quente

da cadeira do Marsílio, noivo dela! Oxe, uma

arretação dos diabos... E o pior, a tia e o tio se

riram, mas explicar que é bom pra menina que o

quente da cadeira num pega, explicaram foi nada.

Isso porque, a gente namorava era sentado cada

qual num canto dum mesmo sofá, painho na nossa

frente pitando cachimbo e o irmão pequeno

brincando no meio. A coisa mais excitante que

poderia haver, era a gente namorar da janela,

sabe?, e mesmo assim, só era essas coisas porque

a gente fazia escondido, mas ficava ele lá recitando

uns versos e a gente de cá só a olhar e fazer caras

e bocas. Hoje, é uma coisa de ficar se esfregando...

Isso antes era coisa de puta! Coisa do Chanteclair,

o cabaré do Recife Antigo que, graças à Virgem,

fechou suas portas!

Page 41: Comédia de Enganos

41

Claro que aqueles comentários não ajudavam

em nada. A pobre da Márcia não queria o menino,

é bem verdade, contudo veio.Que fazer? Além do

mais, se as mulheres daquele tempo não tinham

seus meninos não era por falta de sem-vergonhice,

mas pelo simples fato de que um namoro assim tão

casto não daria, realmente, em nada. A própria tia

Martinha que tanto namorou e escolheu, escolheu,

escolheu os homens, acabando sem nenhum, teria

seu filhinho de quebra se fosse mais moderna,

pensava.

E, além disso, não era mais tempo de ficar

ouvindo aquelas baboseiras de tia Martinha, ela, a

Márcia, estava ali com seu filho pequeno e se isso

era coisa de puta, e daí? Ela dizia pra si mesma:

―Parabéns, senhora dona puta!‖.

Pois é, os tempos mudaram...

Nesses tempos de calor infernal em Recife

não podia mais ir a Boa Viagem, a Candeias, a

Piedade ou às praias de Bairro Novo ou Casa

Caiada, como costumava. Itamaracá?Nem se

Page 42: Comédia de Enganos

42

fale!Tinha que guardar o dinheiro contado do leite

do filho. O menino tinha alergia à lactose, pra

terminar de danar as coisas!

–– Ah, minha filha, se prepare que desgraça,

desgraça mesmo, só acontece com filho de pobre.

Completava a tia Martinha enquanto se ajoelhava

ante ao oratório para fazer suas preces diárias – o

telefone grudado no ouvido.

O ruim de tudo eram os preços.Sabe quanto

que custa uma lata de leite pra menino com esse

problema alérgico? O olho da cara! Coisa que a

Márcia sabia muito bem, já que não mais tinha

seus próprios olhos, os olhos que tinha eram

postiços, já não enxergavam mais belezas, tinha

uma visão de leoa, via tudo cinzento, sua vida era

um poema de Álvares de Azevedo.

–– E o pior, minha filha, o pior mesmo é esse

pai, né? Por que, vou te dizer, viu!, com um pai

desses menino num devia nem de nascer vivo!

Preciso dizer que esse bordão era da tia Martinha?

Page 43: Comédia de Enganos

43

Mas o fato, o fato mesmo é que Márcia ia

vivendo aquela sua vida de caranguejo atolado no

mangue, num mangue lamacento e viscoso como

os do Capibaribe ou Beberibe, cheio de seres

zumbis; mas tinha como único alívio olhar para o

céu acima, o céu azul... Era quase a liberdade.

Uma liberdade pequena que parecia afligir mais do

que a ausência total de liberdade... Isso porque à

sua mente não bastava apenas alguma liberdade.

Ela precisava se sentir livre. Precisava se sentir

livre pra achar nisso alguma prisão que lhe desse

qualquer vontade de mudança; e as coisas

seguiriam o curso das insatisfações, o curso das

razões de viver. Insatisfação de insatisfações, tudo

insatisfaz e é justamente isso que dá à vida algum

sentido.

Voltava seus olhos justamente daquele céu

tão azul, naquela tarde de janeiro, quando viu o

menino brincar naquela alegria só de menino

invencionista que brinca sozinho como quem

brinca com a Terra inteira de meninos. Menino que

mete as mãos na terra e tira um palmo cheio de

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44

areia, destino da boca. Uma trabalheira dos diabos!

Tira-se um olho de vista, e o menino se explode!

Santo Amaro não era o lugar mais adequado

pro menino brincar, pensava ela. Justo ela que fora

ensinada em outros ares, e que por ter sido

expulsa de casa por causa da gravidez teve de

morar onde pôde pagar..., tinha sempre o alerta

ligado e o cuidado dobrado; era certo que os

meninos não nasciam ruins ou sabendo dos

crimes, mas as vielas do crime eram muito largas

para crianças tão pobres e rejeitadas dum convívio

mínimo, ela tinha estas certezas ao passo em que

vivia, ali mesmo, imergida em tanta sofreguidão. E

o menino crescia brincando sozinho... A vida toda

era ele, a terra, a boca, o catarro escorrendo, a

terra e mais e mais coisas pra brincar.

Da família só tinha a companhia de alguns

telefonemas da tia Martinha, que falava essas

coisas que já contamos bastante animadoras. Ela

mesma se sentia rejuvenescida ao ouvir aquelas

pérolas da velha, mas tolerava; afinal de contas a

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45

tia Martinha tinha sido a única, a única mesmo

que ainda lhe chamava de ―filha‖.

O menino era nem belo nem feio e tinha

como marca do pai aquele olho junto que fazia todo

mundo dizer, principalmente as professoras na

escola: ―Ih, com um olho junto desse só pode ser

da turma dos sonsos!‖. Ela ria. Achava graça.Era o

tipo de coisa que ela pensava antes... Antes de

conhecer o pai. O pai do menino.

Mesmo com toda aquela realidade que

passou a sufocar sua vida, e ainda o fato de ter que

começar a trabalhar precocemente pra sustentar

sua própria existência, coisas que teriam feito

qualquer um de juízo mais frouxo saltar do décimo

quinto andar de um CFCH1, ela não se arrependia

de nada.E ria, como quem ri de um louco, como

quem ri da comédia por trás dos enganos da vida.

Aquele cara do olho junto tinha lhe ensinado,

das poucas coisas pra que prestara, que amar é o

1 Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de

Pernambuco. Famoso pelos suicídios corriqueiros de pessoas que se lançavam de seu 15º andar. (Nota do Autor).

Page 46: Comédia de Enganos

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tipo de coisa que a gente sente sem saber falar

sobre.Não tinha nada a ver com aquelas baboseiras

da tia Martinha. E ensinou também que homem

bom não dá mais. Tempos secos.

Amar, verbo transitivo direto, sem quê nem

pra quê, nem com o quê, muito menos por quê. Ela

sentiu, foi e fez, e daí? Daí ela tinha liberdade,

aquela, pequenina, de que ela mesma sentia

raiva... Uma raiva doida que dava, sem quê nem

porque, e ela metia a mão no menino. ―Tira essa

mão da areia, menino! Olha pra isso, pondo a mão

na boca... Vai ficar cheio de germe e eu não vou

levar ao pronto socorro coisa nenhuma!‖. Lepte,

lepte! E o menino berrava uma enchente de

lágrimas de crocodilo. ―É sonso feito o pai!‖.

Num relance, o menino nasceu. O pai nem

soube. Precisava? Diria que não era culpado de um

flerte, de uma noitada. Ela que tinha aquela paixão

como um amor, uma modalidade qualquer

possível, não se importava muito. E fora

justamente aquela ausência de preocupações que

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47

fizera o pai dela, um intransigente milico, mandá-la

embora. Filha de coronel não pode ser uma mulher

apaixonada. Ela era uma mulher apaixonada.

Sentia no peito bater muito forte a martelada da

paixão do existir.

―Tenho filha mais não. Filha? Tenho não!São

coisas muito das diferentes filha e puta!‖, sibilou o

velho com o cajado de Moisés na mão, abrindo o

mar vermelho na cabeça da moça.

Vida parece não deixa ninguém tentar nela

mais que o feijão com o arroz ou o pão com

manteiga; quem mandou ela tentar uma

modalidade nova de amar? Quem mesmo foi que

mandou ela se aventurar e entregar um pedaço de

pele que todo mundo achava ser mais precioso que

ela mesma, inteirinha? Quem mandou ter essa

ideia de jerico? Vida parece não deixa ninguém ir

além das ideias de jerico de todo mundo, não.

Ah, mas ela valia muito mais, seu velho

coronel filho da jia! ―Menino, tira essa mão da boca

antes que eu meta a mão em você!‖.

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Lepte! Lepte! E lá vinha o rio sem água,

choro de menino amarelo.

E ali, naquela tarde de janeiro, embebida em

todos esses pensamentos e mais aqueles que não

se deitam ao papel, olhava aquele menino dela,

saído de suas entranhas debaixo de grito e força

descomunal e pensava nos sentidos tantos e mais

variados de felicidade. ―Ser feliz é coisa de rico!‖.

Ao menos alguém com o olho junto ela

poderia chamar de ―seu‖, e engraçado que até

aquele momento não tinha chamado o menino

assim... ―Meu menino...‖ Seria mais uma afirmação

de que tinha algo de valor inestimável, sim, ao

menos uma coisa na vida. O menino gostasse? E

interessava! Menino foi feito pra atender mãe e pai,

e prestar diligência, em grande.

Enquanto o pequeno brincava pisou sem

querer na bola de futebol de plástico, tombou e

enfiou a testa na parede. O choro, inevitável,

estrondou a tarde. Ela correu, foi socorrer aquela

dor. Pôs o menino no colo, massageou com gelo. Os

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49

olhos do pequeno diminuíram as cheias lacrimais,

no colo materno a certeza do alento.

E olhou para ela, com aquela ternura de

olhar típica de quem retribui carinho, e assim, com

o olho junto mesmo, e o sinal da trela no meio

(uma roncha que de tão escura fazia jus ao nome),

disse ―te amo, mainha!‖.

Ela, surpresa com aquela afirmação tão

veraz, tão inédita até então, respondeu com aquele

―meu menino!‖, que tinha pensado...

E riu. Sim, algo no mundo era dela. Algo no

mundo existia nos braços dela e pela primeira vez

em sua vida viu o menino como um presente. ―Só

tem esse olho junto igual o do pai... Bem dizem que

em cavalo dado não se olham os dentes!‖.

De repente, ―ueber!‖, ―ueber!‖, ―ueber!‖, do

bolso do menino, em cima de seu colo, parte aos

pulos uma rã verde da cor do mato, tão grande foi

o susto que só se ouviu um ―lepte‖, mas tão forte

que o menino borrou-se, chorou e entendeu. Foi

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até a rã de cuja amizade sentia-se ganhador e

varou-lhe as costas até a barriga, deixando-a morta

no chão de barro.

–– Pra você aprender a não assustar a

mamãe,Coronel filho duma jia!

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51

LARA

LARA ERA FATAL no mal. Percebia-se

facilmente. No seminário teológico era sempre

motivo certo de comentários, risinhos, virada de

olhos, apostas e esconjurações. As irmãs da

Sagrada Soledade da Virgem Maria viviam de

repreender o santo Cura a respeito daquela jovem

despertadora de tão malignos desígnios nos pobres

seminaristas...

–– Jesus, Maria e José, padre! O senhor bem

sabe que os desígnios dessa jovem também não

podem ser outros... Uma devassidão sem tamanhos

nem freios! Além do mais, os votos de nossos

irmãos ficam prejudicados... Jesus, Maria e José!

Não intentamos falar à Santa Sé, notificar essa

conduta, sabemos que o senhor poderá resolver...

Page 52: Comédia de Enganos

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–– Irmãs, que prova têm contra a

bibliotecária? O fato d‘ela ser jovem atiça seus mais

secretos venenos? Ora, irmãs, vigiem e orem, pois o

diabo bate às suas portas... Peçam ajuda à virgem

Maria, rezem com fé, a ajuda virá. No mais, não

posso cometer injustiças, não posso expulsar do

seio de Abraão essa jovem valorosa que com tão

útil trabalho tem catalogado todos os livros desse

Seminário a troco de tão mirrado salário.

As irmãs, nunca desistentes, vigiavam Lara

em todos os seus passos, em todos os seus gestos,

em busca da tão sonhada prova. ―Jesus, Maria e

José, irmãs, quem já viu isso? E parece que tem

parte com o cujo que provar mesmo a gente

consegue é nunca?! Deus é maior! Valei-nos Nossa

Senhora da Soledade!‖ Era inútil. Lara era, em

campo aberto única flor de rígidas raízes, bela e

inflexível no fazer de seu labor.

Já o Dante, coitado, sofria dissolvendo seu

bem naquele rio maligno... E, aliás, maligno

Page 53: Comédia de Enganos

53

mesmo era olhar para Lara e não vislumbrar

naquele demônio sensual nada mais que um anjo

alado cheio de leveza e graciosidade. É que Lara

era assim, inexplicável.

De uma coisa o jovem seminarista estava

certo –– num de seus constantes pensamentos em

como tomar Lara nos braços ––:tivesse um dia de

catar aquela mulher em qualquer lugar além, não

seria no céu onde o seu xará florentino encontrou

Beatrix clamando em santo coro ao orgulhoso

Agnus Dei. Devia de encontrá-la mesmo era no

círculo dos luxuriosos bem no cone do inferno ––

isso cria.

É que embora o rosto e o agir da bela Lara

induzissem seu expectador a pensar ver um anjo

celeste, seu corpo torneado, seus lábios vermelhos

e pedintes, seu passo firme e decidido, todo o seu

exterior era coisa de anjo decaído.

O cupido ao que parece, com a malícia de

sua volúpia, mascarara de negras vendas a face de

Lara, e essas eram as mesmas máscaras que

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sempre usou para esconder sua devassidão... Todo

o ar angelical do cupido é um engano, uma

comédia de enganos. Eis, pois, Lara.

No entanto, verdade seja dita, toda aquela

periculosidade típica dos reinos abissais não se

encontrava apenas na bela jovem, mas também no

arder do próprio amor, que, malgrado seja lindo,

expressão máxima da divindade –– afinal de

contas, não dizem tanto que Deus teria se dito

amor? –– queima mais que as labaredas do inferno!

E era assim que Dante se sentia, queimando,

amando, nos campos Elíseos do céu, porém caindo

e caindo na direção do inferno...

Contudo, ele mesmo não podia incitar na

jovem mais do que o platonismo de seu sadismo

retraído –– Lara não era dele. Era mesmo é de

ninguém. Soube de uma centena de colegas do

seminário que ainda que tentassem em Lara nada

mais que um madrigal imitado dos livros de

literatura, não tinham conseguido nem sequer um

soslaio dos olhos da criatura venusta. Era o tipo

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55

de coisa que deixava os ânimos excitados, e não só

eles...

Enquanto tudo isso ia e vinha na mente cada

vez mais (per)vertida em delírios de Dante, a jovem

morena de olhos jabuticabais, tez macia,

sobrancelhas cheias, mãos de ceda, pés de

algodão, seios eriçados e agudos, corpo de viola,

ancas generosas, despertadora dos maiores anseios

com o mero olhar, passava seus dias em desdém

completo às suas tímidas investidas.

Sim, das investidas ainda não falamos...

Havia mais investimentos em Lara do que no

mercado imobiliário. E o melhor, não havia CVM

certa! Lara era investimento de risco –– todos

queriam a mesma coisa e o recurso sendo escasso

(afinal, era apenas uma), e a demanda grande

demais, sobrevinham as habituais crises.

Mas isso não importava, homem parece já

nasceu com esse instinto de cão que quanto mais

difícil tarefa a conquista se mostra, mais imperiosa

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56

fica. E quando a seleção é por cima ainda melhor –

– quem não gostaria de ao menos uma vez na vida

sentir-se acima de tudo e todos, de Deus e dos

homens?

E assim, Lara era disputada por todos,

enquanto, na verdade dos fatos, desdenhava a

banalização de sua imagem como a freira idosa

desdenha a do corpo. As mulheres foram feitas

para a beleza. Pensava ela. Mas não para o mero

desfrute. Exigia-se algo mais. Alguma coisa que os

homens –– feitos para a cópula –– não

vislumbravam sequer de longe.

Qual era a exigência daquele ser?

Dante ficava doente, pobre diabo, tinha

sonhos fornicários terminados num gozar na

soledade. Coisa pungente. Queria mesmo era voltar

à puerilidade para poder pedir amamentação

daqueles seios duros, certo de que Lara, com ar

maternal, o deitaria em seu colo quente para dar-

lhe os mamilos enquanto lhe fazia algum cafuné.

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57

―Felizes aqueles que são como crianças‖ –– dizia,

dando ao dito sacro novas interpretações...

Lara? Ora, que podemos mais dizer? Era

simplesmente ela mesma, sem nenhum apego de

outrem. Mulher do mal, involuntariamente. Feita

para completar a obra de Eva. Era, sozinha, muito

mais do que toda a prova supostamente imposta

pelo anjo de luz ao pobre do Jó, nos sonhos

virulentos de Moisés –– talvez nem ele mesmo,

exemplo judaico de paciência e perseverança, por

isso onírico, tivesse humor suficiente para esperar

Lara querer alguma coisa, até porque biblicamente

conhecer, deitar e copular já são verbos irmãos...

E era nesse ponto que surgiam as dúvidas

maiores sobre Lara na cabeça de Dante. Afinal, se

no tempo dos antigos hebreus deitava-se com tanta

facilidade e o verbo conhecer não significasse nada

além de penetrar, por que cargas d‘água nossa

sociedade cristobajuladora tem de seguir à risca o

padrão de Maria? Seria por acaso mais moderno?

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58

Não sendo, seria o quê, mais antigo? Certamente

que não.

Isso tudo não passava sempre de uma

justificativa contínua de Dante aos atos

pecaminosos que praticava em sua solidão

religiosa, enquanto pensava em Lara.

Certa vez, disse Marcena, seu amigo, que não

havendo celibato algum como regra mor, não havia

pecado desejar Lara. Lara era ser desejável, fruta

desfrutável, senão comida. Mas havia pecados

flagrantes para o ato de gostar de Lara... A luxúria,

a fornicação, o desejo sexual intenso, o desrespeito,

a falta de santidade, a falta de unção, a

fornicação... É, dela já falamos duas vezes..., santa

fornicação!Pensando nela Dante esquecia até da

correta pronúncia do latim, gaguejando

lastimosamente ao recitar em plena missa: ―Usque

et dixi huc venies et non procedes amplius et hic

confringes tumentes fluctus...‖2.

2 Trecho de Jó 38:11. A ironia reside no fato de se tratar do dito suposto

do Deus a Jó (para frustrar seus anseios de conhecimento): “Virás até aqui

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59

Enquanto isso a pobre musa somente

contava seus livros nas prateleiras teológicas e

filosóficas do seminário, sem sentir em seu coração

sequer a agitação que no mundo exterior ao seu

causava. Lara era efeito sem causa.

*

* *

Findo o curso e diplomados os teólogos,

inclusive Dante Couto, nosso ilustre sofredor dos

decotes de Lara, restava a tórrida pergunta: por

que diabos o reverendo padre Moreira fizera, por

questão sua anunciada, acontecerem as aulas

derradeiras em plena sala reservada da biblioteca?

Acaso não sabia ele que dali, através dos vidros

acusticamente estucados, é que dava para ver

Lara, os seios de Lara, a bunda de Lara, o corpo de

Lara, os soluços intensos de Lara, o suor de Lara,

os gritos de Lara, o palpitar do coração de Lara, o

gozo de Lara? Tudo isso nas mentes em crise dos

jovens seminaristas?

e não irás mais longe”. Dante gagueja por tomar pra si o dito do Deus, como se para ele Lara fosse objeto inalcançável. (Nota do Autor).

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60

O reverendo padre Moreira sabia o efeito de

Lara. Ela era como a rainha de Sabá a um Salomão

da vida. O que queria mesmo era ver se frente

àquele turbilhão os seminaristas escreveriam

Cânticos de cânticos ou Eclesiastes.

No fim das contas eram os ossos do ofício

que tornavam cada seminarista presente um

reverendo jovem. Cheio de santidade. Claro,

faltosos de Lara. E, pior, seria essa a justificativa

de serem todos pregadores radicais contra a

fornicação e as concupiscências da carne... Dante

mesmo certa vez dissera já na sua maturidade

pastoral em um sermão na igreja cuja paróquia ele

tinha ganas de presidir:

–– O pecado jaz à porta... Cumpre a nós

cerrarmos a porta ainda mais. Cumpre não abrir.

Cumpre não deitar com Lara...

Instante em que todos os fiéis, mesmo sem

entender, tomaram aquilo por um mistério revelado

por Deus e disseram:

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61

–– Amém!

E Dante, surpreso por tamanha

concordância, descrente nas meras coincidências,

teria ainda pensado: ―satisfeito mesmo quem, em

todo o mundo, já foi?‖.

Do alto da abóbada do templo, o rosto do

pequeno cupido ri.

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62

OLGA

OLGA ERA de porcelana branca. Intocável.

Boneca russa. Se abrisse saía outra, mais outra,

mais outra. Repetitiva sem enfado. Olga era algo

mais que ela mesma. Era pianista dos melhores

pianíssimos que já ouvi. Olga acabou comigo.

Na escola de artes visão melhor não se tinha.

Olga ao piano tocando Schumann. Mirou pra mim

(canto da sala) e me viu. Veja só! Ergui olhos

baixos depois de muito recalcitrar mirados no

chão, fitei-a. Olga era a próxima a dispor do piano,

sozinha, sala fechada, cabina pequena, cheiro de

lírios. Perguntou se queria tocar com ela. Ah, Olga

era fatal!

E sentamos ao piano a quatro mãos,

mexendo dedos ágeis de paixão iniciada. Era

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63

também eu fatal. Olga ruíra ao meu piano a quatro

mãos –– subterfúgio de sentir textura da pele, sem

riscar a porcelana, querência que eu tinha. Senti

sentença do juiz. Era pra ser com Olga! E foi.

Fiquei depois por saber palavreados maiores,

Olga era moça de mais abastada família, garota

dada ao Carlinhos, filho do Juiz de Direito... Ora!

Dei de ombros. O Juiz de Direito que, achando

ruim, vá pro inferno! Olga era algo que me dizia

―vem!‖, e eu ia...

Festival teve na Escola.Mestre pianista

adivinhou-nos sem querência –– seriam, ao piano,

todos os alunos apresentados a quatro mãos. Olga

pediu, solicitância dum amor roxo, tocar comigo a

quatro mãos e vinte dedos, música audível-bela de

Robert Schumann antes da loucura. De querência

que eu tinha morria... A sabença feminina é

mortal. Olga olhou com olho trivial, escolha a dedo

do mestre pianista. O velho gordo, cabelos

beethovenianos, cheio de lordesas, atendeu à diva.

Como não atender pedido de boneca russa?

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―Olga Weruska Sacarova Carvalhal e José

João Cavalcanti, piano a quatro mãos do

Träumerei de Schumann‖.

Anúncio porta de sala, quarta à tarde.

Vibraram-se as cordas de nosso desejo. Todos os

fins de semana até a apresentação recital

treinávamos piano a quatro mãos como se a peça a

tocar de Schumann fosse uma sinfonia difícil!

Importância tem isso? Não quando se ama.

Éramos nós dois Robert e Clara Schumann

reencarnados, se é que esse troço existe, juntos a

despeito de tudo.

O Carlinhos aparecera, querência do pai...

Olga era filha do médico da família do juiz. Bons

intentos, coisas negociais, mas a boneca russa à

venda não queria estar pela estima da família...

Afinal de contas, o Carlinhos era um bobo da corte!

Éramos guris adolescentes no intento da púbere

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65

flor, confessar, confesso logo, mas sabia eu dar a

Olga pormenores dum amor pequeno a crescer no

já e no já.

Olga amava. Amor era coisa dela, mais

vantajosa que as bonecas antigas de porcelana na

penteadeira de jacarandá. Mais do que o piano

onde tocávamos a quatro mãos e quatro braços,

vinte dedos e duas bocas...

Olga trazia bolinhos, avó dela trouxera da

Rússia receita caseira. ―A Rússia fica muito longe?‖

Dava um cheiro para cada quilômetro da distância

incerta. E ficava-se naquela incerteza de chamego

reiterado tarde toda. O piano ficava sem as nossas

quatro mãos que empregadas em melhor engenho,

lapidavam a vontade crescente Olga e eu. Eu e

Olga. Mas ora! Eu já não era mais eu. Eu era Olga.

Olga era eu.

O Carlinhos continuava a insistir com Olga...

Estaria ele insistindo no meu eu? Desatei-lhe uns

tapas na cara branca assustada da covardia dele

natural. Enfezou-se. Disse ter paga. Paga pagou.

Page 66: Comédia de Enganos

66

Esperou-me ao fim das aulas, co‘ele mais três, dez

vezes mais que ele. Prometeu-me surra, pediu

largar a Olga.

Ora, pois! Olga se larga, larga? Nada! Olga

era eu. Eu era Olga. Largar, na morte somente no

apenas. Tava eu amando Olga, não sabia direito.

Era a graça, a fala mansa, o piano a quatro mãos,

os bolinhos, a avó russa, as bonecas da infância

enfileiradas na penteadeira de jacarandá... Era

tudo dela q‘eu gostava. Era já amor amante. Podia

ver e crer.

Pai de Olga teve em consultório, consulta

inusitada. Chegou em casa estremecido. ―Mas,

ora...‖ pensava, ―é Olga moça tão nova...‖. E daí?

Dizia o juiz –– filho dele querendo é vencer o

embate co‘a ajuda do papai, do painho, do

paizinho... Arre! Excrementos de menino!

Pai de Olga era homem duro, feitio estranho.

Senhor grande médico! Hipócrates hipócrita. Disse

certa vez querer ver a apresentação, sabença de

como seria. Olga disse que era implicância. Ciúmes

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67

de filha que tinha –– perturbara muito as filhas dos

outros na juventude –– mal de pai de mulher...

Pensava com meus botões não querer ter

filha mulher, pra como Olga não ficar sendo

cortejada por marmanjo homem. Prosuê que tinha

sozinho vendo Olga dedilhar o piano pianíssimo,

Chopin, Debussy, Àlbeniz...

*

* *

Conversa do pai de Olga com ela sobre mim,

tascando, me ausentando:

–– Olga, minha filha... Sabe não do gosto do

Carlos Freire, filho do juiz meu amigo de anos?

–– Do que fala, papai? De gosto? Como

assim?

–– Falo de querência, filhinha, vontade de

marmanjo tem ele... Enfim, falo de amor!Disse

após lembrar-se do juiz e do peso de sua caneta.

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68

–– Painho mande ele falar comigo, fará sua

parte, se não me convencer, e não vou, mando ele

pro inferno e quero saber se o juiz me põe a ferros!

Carlinhos fazia o jus ao diminutivo do nome

–– sabia não amar. Já havia eu mudado a alma de

casa. Olga tava era ocupada dos meus pensares...

Amores caídos na cama de menina moça...

Amara eu Olga ainda mais. Crescera junto a

ideia do deitar. Deitamos Olga e eu. Eu era Olga.

Olga era eu. Os dois. Um só. Dentro de um, dentro

do outro nas literalidades... Aquilo quente e úmido

era não o clima de Recife, era eu e era Olga, era eu

em Olga e Olga em mim...

Dissera ela à mãe, novidade de moça amiga

do ser materno. O pai ouvira. Expulsar-me-ia do

conservatório a ferro e a fogo. Soube até que com a

ajuda do Carlos, o filho do juiz, aquele bunda suja,

bebê de homem da lei, Sua Excelência, excelente

pai de palerma...

*

Page 69: Comédia de Enganos

69

* *

Chegara dia. Teatro lotado, Escola de Artes

aberta. Vinha de fora gente assaz. Fez-se plateia.

Solicitou-se presença ao palco. Subimos Olga e eu.

Não se podia fazer muita coisa. Ela deslumbrava,

vestido florido branco –– cara de primavera cara.

Eu cheirava o perfume que emanava das dobras

atadas com laço róseo-avermelhado. Olga ria,

estava..., era linda!

Träumerei, opus... Qual o quê!

Larguei do piano que ficara a duas mãos

apenas e dei em Olga o último beijo. Teatro de pé

gritou:

–– Bravo!

–– Bravíssimo!

Bravo beijo durou os instantes do träumerei

eles todinhos. Mestre pianista surpreso dizia nada.

Pai de Olga tava lá sabença não se tinha. Na

plateia, um bando de artista subversivo do CAC,

Page 70: Comédia de Enganos

70

CFCH3 da Federal, Escola de Artes João

Pernambuco de pé.

Os aplausos se eternizaram na memória, se

brincar ainda ouço...

Semana seguinte namoro desfeito: Olga fora

para a Rússia virar boneca porcelanada no frio.

3 Centro de Artes e Criatividade e Centro de Filosofia e Ciências Humanas

da Universidade Federal de Pernambuco, famosos por seus alunos com “estilo alternativo”. (Nota do Autor).

Page 71: Comédia de Enganos

71

COMÉDIA DO VIRA

–– NUM GOSTO de veado. Pronto, tá dito!

Assim sem mais nem meio mais, sem os

titubeios comuns a tantos que seu Ricardo

decretou seu ódio à ―raça dos frangos‖, como

costumava dizer, e aquilo, ali, assim pronunciado,

a um amigo de longa data que em meio às

confissões de pinga, caipirosca no juízo,

consciência no chão, tinha dito que o filho mais

velho, um tal José Fernando, tinha saído do

armário em poucos dias.

–– Porra nenhuma!Essa peste merecia nem

sequer teu auxílio, que dirá teu chororô, homem!

Merecia mesmo era uma pisa de cipó de goiaba e

depois caixão e vela preta.

Page 72: Comédia de Enganos

72

Era uma excitação sem tamanho que se

notava naquelas palavras; seu Ricardo era homem

de ―sim, sim, não, não‖, fiel seguidor do livro de

capa preta e peixe na frente. Gostava não de

titubear, o homem quando via gente vacilando na

dúvida de uma escolha perguntava logo: ―Tás feito

frango, é?! Oxe! T‘emenda!‖. Era um cabrão

daqueles: pau que nasce torto e morre envergado.E

o pai, antigo nas sendas do sertão, com aquela

moral arraigada,da fé no padre Cícero Romão,

padim de todos, e a certeza do castigo do céu,

terminava de entortar.

Homem sem arrodeio nem atropelo, dado a

um xingamento antes e depois da cachaça; depois,

muito pior, verdade seja dita, ganhava quando

bebo a fama de tupinambá.Dava uma de pugilista–

– era pau no bar inteiro. ―Parece que guarda raiva

dos outros, escondida...Só sai quando bebe. Filho

de‘uma mãe!‖, dizia D. Mariinha, quando o via de

gaiato batendo bar adentro com voz de policial:

―Todo mundo prá fora, o pau vai comer no centro!‖.

Sádico às escondidas.

Page 73: Comédia de Enganos

73

Enfim, um doce de pessoa...

–– Mas compadre, você vem dizendo assim,

na minha cara, tascando um ―veado‖, e ficando por

isso mesmo, é?

–– Tu vai fazer o quê? Pai de veado.Tu és pai

de veado! Vou ficar enrolando, é? Porra nenhuma!

Num gosto de veado, pronto, tá dito! E se tiver

arretado, venha tirar na tapa!

–– Mas compadre, a gente se conhece há

tanto tempo... Num precisa dessas coisas não...

–– A gente se conhece muito tempo mesmo,

compadre, a gente jogava junto lá no campo da

BR/101, bairro da Macaxeira, e tal, mas agora

estou vendo que o compadre num soube criar o

filho, o compadre num soube. Menino se cria é na

tapa quando começa a afeminar, e, pelo jeito, o seu

deve de ter começado cedo... Vige Maria! Uma

negação...

–– Só digo uma coisa pra tu, compadre...

Disse o amigo, alterado, se levantando. Só torço

Page 74: Comédia de Enganos

74

pra não acontecer contigo o mesminho que me

aconteceu, porque aí é que são elas!

–– Tu tás me rogando praga, capiroto? Tu tás

me rogando as pragas da macumba, filho duma

pombagira?!

E daí a luta começava, terminada quando a

polícia apontava na Rua 2 de arma e cassetete na

mão, quando saíam correndo todos Vasco da Gama

adentro. Seu Ricardo? Ora, esse aí é que dava uma

de ninja quando a cana apontava na esquina,

sumia que ninguém via, era uma coisa de santo:

corpo fechado. Aparecia em segundos no Largo

Dom Luís, depois suprassumo.

Uma vez, ao que consta dos anais dos

baderneiros do bairro de Casa Amarela e

proximidades, bateu até sangrar num cabra que

lhe tinha perguntado se por acaso não comia ―um

frango‖ por detrás.

–– E tenho mulher pra quê, seu quengo!

Page 75: Comédia de Enganos

75

–– Oxe, meu velho, mulher direita, correta,

dessas que se tem gostam não da arte de detrás...

–– Daí você vai se refugiar nos frangos? Vá

pra porra, seu capiroto!

Daí era guerra declarada, honra lavada no

sangue, alma redimida num Agnus Dei às avessas.

O sangue do cordeiro. Uma danação!

Isso tudo até a mulher vir com aquela

conversa...

–– Ricardo, querido, é caso sério.Precisas

sentar, te acalmar e manter o ouvido atento...

–– Mulher, gosto não de arrodeio. Trate logo

de desembuchar sem essa frescalhice idiota!

–– Ô homem, é que não é assunto de se

contar na afobação não, rapaz! É caso dos mais

sérios que já te contei...

Enfim, vamos suspender por aqui que há por

enquanto, coisa mais importante pra contar. O

primeiro de três filhos nasceu menina. O segundo,

Page 76: Comédia de Enganos

76

menina. O terceiro... O homem já tava ficando

louco, queria porque queria um menino já que

achava que esse negócio de ser pai de menina era o

cão!

–– É só pra nego ficar de preocupação com as

filhas, enquanto os outros ficam de ensinar aos

filhos como pegar as meninas por detrás do muro

do colégio, é uma droga!

Seu Ricardo fez novena, lembrou-se de que

tinha lá na mente guardadas umas rezas antigas

aprendidas com a mãe, beata carmelita, ―mulher de

verdade, digna, honrada!‖, segundo dizia. E fez de

tudo, acendeu vela no quarto das filhas, deixou

queimando por semanas, mandinga ensinada num

terreiro de jurema; diz-se que até cem reais em

moeda o homem jogou na fonte dos desejos do

Castelo de São João, terras dos Brennand, tudo

por um filho, filho homem, cabra macho feito o pai,

arretador, tupinambá quando bebo.

O tempo foi passando e o homem ficando de

cabelos brancos, quando a mulher apareceu

Page 77: Comédia de Enganos

77

grávida de novo... ―Prenha?Menino ou menina?‖.

―Dá pra ver não, Ricardo..., tá com as perninhas

cruzadas.‖. ―Pois trate logo de ver!Faça o fedelho

descruzar as pernas!‖.

Vou logo dizendo que se fosse romano, o

diabo do Ricardo faria aquilo que os romanos

faziam quando do nascimento dos filhos. Olharia

as meninas recém-nascidas, postas no chão, de

um lado para outro procurando uma ―pitoca‖, como

se diz, e não encontrando ou deixaria a mãe se

virar com a pequena, ou viraria as costas e

mandaria alguém levar pra floresta, pras

montanhas, para o Deus dará, para o raio que lhe

partisse, desde que tirasse aquele ser de frente

dele... Só ergueria ao céu, mostraria à cidade e

diria ―meu filho‖, se fosse homem.

Engraçado que mesmo com tudo isso Ricardo

era um ser humano, por certo, o que estranha

mais ainda essa vida perigosa que se tem aqui na

Terra-Água. Um constante aprendizado na

travessia, enquanto a vida trama e pula no

Page 78: Comédia de Enganos

78

playground da morte. Seres humanos com tudo de

humano dentro, até essas coisas sufocantes e

ruins, nada alheio.

Se não fazia o que acabamos de dizer ser ele

capaz, não fazia era por medo da lei, medo de ser

preso, ―aí é a treva!‖, os tempos outros. A lei sem o

pau não é nada.

Daí foi que quando a mulher fez a força

descomunal e pôs à luz o pequeno ser, quase que

arrancou das mãos do médico, pra ver se tinha o

―bilau‖!

–– É menino, doutor?É menino?

–– Tome aqui em mãos, seu Ricardo, seu

filho.

Teve uma tontura, um malestar, quase cai

duro no chão, tiveram de levá-lo à sala de

reanimação quando, ladeado por gente lhe dando

choque, despertou já perguntando: ―cadê meu filho

HOMEM?‖. No Hospital Getúlio Vargas ficou

conhecido como ―O pai do HOMEM‖, trocadilho da

Page 79: Comédia de Enganos

79

tal autodesignação do nazareno de ―filho do

homem‖.

Foi uma alegria sem tamanho, estava pela

primeira vez na vida em casa. E, que de logo se

diga, só disse amar as filhas depois do nascimento

do filho. Pra esposa, uma vitória, mudança total na

vida daquele pai depressivo-pós-parto. As meninas

se alegrando, um pai de verdade...

É..., talvez já seja hora de voltar... Permita-

me.

–– Como é que é, mulher? Que porra é essa

que tu estás me dizendo? Tu estás me tirando é?

Tu estás me tirando... Olha mulher, faz tudo, mas

num me tira não, hein!

–– Estou falando a mais pura verdade,

Ricardo.A mais pura verdade... Tome suas

providências.

Debaixo dos pés um alçapão foi içado. Sob

seu chulé habitual o vácuo, e ele, Ricardo Feitosa,

caindo, caindo... Era estranho que naquela vida

Page 80: Comédia de Enganos

80

toda de agitação que levava, era a primeira vez que

caía, que verdadeiramente caía para dentro se si.

–– Filho da puta! Num berro extremo, seu

grito de guerra ecoado até o Chuí.

Ricardo Feitosa Júnior, nascido homem,

descoberto namorando um menino.

Aquilo foi o fim.Aquilo foi o fim de tudo.

Amor, compreensão, investimento, obrigação,

sanidade mental, ah!, de tudo mesmo. Sentia-se

esvaído, tratou de tomar providências.Mandou

derrubarem o catimbozeiro que tinha posto nele

aquele carma.Descobriu só depois que o tal tinha

viajado com a família ao exterior pra acompanhar

os estudos de design do filho, destaque de sua

turma na Universidade Federal de Pernambuco.

–– Aquele filho duma jia há de me pagar, se

há! Pensa que de mim foge? Pensa mesmo? Ah,

meu mano velho, sou pior que nego guerreando em

guerra contra senhor de engenho!Brigo pior que os

Novaes com os Ferraz em sua pitoresca briga de

Page 81: Comédia de Enganos

81

família!Sou pior que Virgulino Ferreira da Silva

vingando o pai, um mártir!

Alucinado, prometeu mundos e fundos,

queria uma caça, uma verdadeira caça ao

macumbeiro que tinha feito aquele despacho que

naquela noite fatídica, no bar, depois de começada

a briga, tinha lhe rogado aquela praga. Um

desastre! Um desastre... Queria posto morto o

catimbozeiro no estrangeiro mesmo, pra gringo ver

como é que justiça no Brasil é feita! Autotutela,

como dizem os juristas, a das mais violentas, a la

Lampião! À moda da casa!

–– Eu quero aquele pino no chão! Eu quero

aquele pino no chão! Repetia redundante.

*

* *

Naquele dia ali sentado, pitando cachimbo

secular, herança do cabra macho do pai, recebeu o

filho, cadeira colocada na sua frente, com toda

coragem do mundo, cabeça erguida, olhar

vacilante, mas insistente, em sua frente.

Page 82: Comédia de Enganos

82

–– Olhe, menino, não me venha com...

–– Pai, se o senhor aprecia qualquer tipo de

coragem, aprecie esta. Esse sou eu, o que o senhor

quer? Alguém além de mim? Uma estátua de

marfim, sem erros?

Conversa longa, longuíssima, no início

levantou até a mão na tentativa de acertar o coco

do filho, ―menino afeminado merece é pisa!‖, como

dizia, seria uma pisa bem dada, mas quem disse

que pisa bem dada tira da mente um querer?

Quem disse que berros e xingamentos tira da alma

o ser? Lutou, lutou, lutou, suou de cansar, e o

menino na frente dele, sentado enfrentando a fera,

enfrentando de frente. A cabeça erguida, o nariz

em pé, era a cara do pai. Dentro dele,

inconscientemente, brotava um orgulho daquela

coragem.

No mundo inteiro tudo parou para o instante

derradeiro da luta, guerra na chapuleta, guerra

sobre guerra, o único Armagedom, bem longe de

Israel.O Ricardo, pai virado no mói de coentro,

Page 83: Comédia de Enganos

83

prometendo ameaças, dedo em riste, bradando

pragas, clamando pelo padim padre Cícero, e o

menino, do outro, guerreando calado, cansando o

inimigo, numa estratégia militar à Sun Tzu,

território aquele bem conhecido, cheio de acidentes

geográficos, o rapaz passando por eles, de fininho,

esperando o inimigo se debater. E a fera se debatia.

Oh, se!

Soaram por fim os clarins. Quem aguenta

bancar Yansã ad aeternum? Jesus de Nazaré

derrubando as barracas do templo, com uma

vontade de matar terrível, apenas batendo com um

cipó de goiaba?! Seu Ricardo caiu sentado, quase

expirou.O menino, impassível, na sua frente. O

jeito do pai, a cara do pai, cabra macho corajoso,

namorando um menino!

E daí que, depois de tanta angústia percebeu

que o filho tinha em coragem o dobro da dele, e

isso ele apreciou. Daí pros abraços foi vapte e

vupte. Fizeram as pazes. Nunca estiveram de mal

um do outro. Só o seu Ricardo, que em razão de

Page 84: Comédia de Enganos

84

um fato novo deixava de ser ele mesmo, seria agora

ele mesmo e todos os outros que lhe estivessem ao

redor. Ao cair para dentro, bem dentro de si,

descobrira a si mesmo, ou a parcela de si que não

tinha antes. Melhorou-se. Não que o filho estivesse

certo, insistia, não também que estivesse errado,

mas que gosto é fruta das mais variadas dadas

numa única árvore multicor, louca da vida.

–– Traga aquele demônio aqui que eu quero

ver!

–– Amanhã mesmo, pai.

–– Amanhã não que é dia de missa, quero

nada de safadezas nessa casa!

–– Amanhã mesmo, pai. Não há com a gente

nenhuma safadeza que não haveria se fosse entre

mim e uma menina.

–– Hum!, menino cabuloso! Só me faça um

favor, meu filho, num dê não, meta!

–– Pai, vou lhe dizer uma coisa... Isso aí é

que são elas!

Page 85: Comédia de Enganos

85

Tremeram-se de tanto rir, vitória do bom

senso. Guerra encerrada, assinado o armistício.

–– E o compadre, qu‘é que acha?

–– É filho, né, compadre? A gente ama, a

gente quer bem...

–– Confesso que chorei, compadre... Confesso

que naquele dia no bar chorei. Uma arretação,

juízo afobado, uma tristeza! Mas o menino só nos

dava orgulho, por que focar em detalhe, felicidade

né assim, a gente busca antes que ela escasseia?

–– Se é!

–– Então, menino buscou, achou a dele à sua

maneira. Que faço eu? Aprumo o que já está

aprumado? Viro pra desentortar o que já está

assentado? Aí é que estaria entortando num vira

entorta danado, numa miserável comédia do vira!

Daí me convenci.Foi a época da viagem, notas do

menino tudo 10. Fomos a Portugal, terra dos

manuéis, uma belezinha.

Page 86: Comédia de Enganos

86

–– Pois é, compadre, concordo com você. Só

lhe peço desculpas dum acontecido não

sucedido..., ainda bem!...

–– Como assim?

–– Aconteceu, mas num se procedeu.

–– Que foi?

–– Mandei lhe matar.

Page 87: Comédia de Enganos

87

O MARIDO, A MULHER

E AS PANELAS

ALFREDINHO SEMPRE tivera uma certeza mais

que certa: amor com amor se paga. E ele era desse

tipo mesmo, sabe?, dos românticos crônicos,

inveterados, parece ter nascido na época em que

Lord Byron, cheio de si, escreveu Dom Juan... O tio

Marcílio, espírita kardecista de carteira assinada,

vivia rindo dele, dizia que por mais que ele

arrotasse esse ser que pretendia tão dele, nada

mais seria do que ―a reencarnação pobre de

Byron!‖, um ―Byron depois da pobreza‖.

Alfredinho, logicamente, não gostava nem de

ser alguma coisa que não fosse ele mesmo, de

carne e osso, Alfredo da Cunha Lima, por nome de

batismo na Igreja Matriz do Pina, nem de ser ―essa

coisa de reencarnação‖ de outro homem..., sentia

Page 88: Comédia de Enganos

88

um atordoamento de alma estranha em carne que

se habita e não se possui, era uma coisa confusa

de lascar!

–– Tio, o senhor deixe de frescura, que já

disse que não compartilho dessas heresias!

–– Heresia, mesmo, Alfredinho é você achar

que é você mesmo sendo Byron!

Aquela conversa era, no geral, uma

danação. Alfredinho era mesmo é muito romântico,

gostava dos títulos de Camilo Castelo Branco,

queria amores de perdição no início e de salvação

no final. E vivia sonhando... Esquecia que para a

vida a ordem dos fatores não influenciava muito no

resultado, e que ela brincava o mais que podia,

trazendo as perdições no final, após as salvações

do início.

A Bruna apareceu num desses sonhos dele.

Menina belíssima, branca de neve, na verdade

mais alva que a neve, parecia até papel que se pega

com cuidado pra não dobrar, contava-se até as

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89

veias que tinha no corpo de tão alva, quase

transparente, Bruna Maria Gonçalves de Alencar,

menina da zonal sul.Falava devagarzinho um

português bem explicado, dava até um saco de

ouvir aquela vozinha de criança falando

compassadamente, soletrando quase. Alfredinho,

romântico como era, gamou de plano, naquele

carnaval.

Foi tudo muito inusitado.Na folia dos quatro

dias, sábado de Zé Pereira, estritamente, deu um

pisão no pé da moça enquanto tentava desarnar o

frevo estrambótico que dizia saber.A menina,

coitada, teve duas reações: um grito e um

empurrão; ele, assustado por causa do de repente,

veio se achegando, pedindo desculpas, ajoelhando

beijando o pé da menina pra ver se sarava... Uma

coisa de dar pena.

A menina, contudo, gostou. Lembrara, com

vagueza o alento paterno...O pai beijando a

feridinha pra passar logo, depois das quedas de

bicicleta no Parque da Jaqueira... Pensou

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schopenhauerianamente: ―esse dá pra ser pai de

filhos‖. E, inconscientemente, claro, decidiu-se pelo

Alfredinho. O fato é que ficou toda prosa e tanto

que gamou no Alfredinho. Ela de odalisca, ele de

papangu.

Depois de três beijinhos Alfredinho se

ergueu, no calor infernal do carnaval na Rua do Sol

tirou a máscara de papangu e disse ―prazer, me

chamo Alfredo, mil perdões por pisar seu pequeno

pé tão lindo e macio... Você não merecia isso...‖. A

voz grossa, herança do pai, o jeito meigo, as

palavras pronunciadas lentamente, Bruna quase

desmorona.

Como as coisas hoje são bastante rápidas os

beijos vieram ali mesmo, os primeiros. Deu nem

tempo do pobre coitado versejá-los como queria.Os

versos só fez depois. Bruna era de toda versos na

mente dele, musa ninfa da ilha de Calipso.

Alfredinho inseriu-se no círculo de amizade

cineminha e McDonalds da Bruna, sabia nem lá o

que era aquele enfadonho cinema da fundação.

Page 91: Comédia de Enganos

91

Aprendeu, desgostou, mas fingiu bem fingido que

era coisa da hora! Ele que achava tão bons os

filmes clichês de Hollywood, tinha certa estranheza

aos filmes de Pedro Almodóvar e Stanley Kubrick...

A vida dele, mesmo por assim foi colando na vida

de Bruna, foi virando a vida de Bruna, foi se

incrustando na vida de Bruna. Alfredinho sem

Bruna não era mais Alfredinho. E ele amava. Oh,

se! O rapaz amava tanto que dava pena até mesmo

dele. Amor com amor se paga.

E foi com aquela frase belíssima de Hugo que

projetaram, na Jaqueira, o casamento na praia,

repleto de amigos, sem muitos dos siris cascudos

das famílias, ―l’amour na point de moyen terme, ou

Il perde, ou Il salve”. Bruna, num regozijo:

Alfredinho fala francês!

Casório marcado, da família Gonçalves de

Alencar a contragosto de tudo e todos apenas a

mãe.Da família Da Cunha Lima, o tio Marcílio e

mais ninguém.Casório estranho, verdade seja

dita.No entanto, os noivos, maiores, de comum

Page 92: Comédia de Enganos

92

acordo, estipularam, assinaram os contratos

matrimoniais, venderam alma e coração ao diabo,

pagaram as custas cartorárias, encomendaram

padre e cerimônia simples, e tinham no ato

cerimonial à beira mar de Itamaracá, ao por do sol,

mais de cem amigos juntos de um lado e outro,

não havia que se falar, tempos modernos, tempos

outros.

–– Alfredo da Cunha Lima e Bruna Gonçalves

de Alencar, eu os declaro, em nome de Deus e do

Estado, marido e mulher.Formam a partir de

agora, conforme seu gosto, a família Gonçalves

Lima... Ah, sim, pode beijar a noiva!

Beijo de hora e meia, os amigos aplaudindo,

assoviando, dando urras, bravos, bravíssimos!

Casamento feito, Lord Byron aprisionado.

*

* *

Tudo aquilo, muito lindo, casamento de

jovens loucos, tudo muito aceitável, nada que se

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93

declarar em contrário, até aquele fato

superveniente...

–– Você é louco, Alfredo?

–– Mas amor pensei que você soubesse...

–– Você é louco, Alfredo?! Até entendo que

você é romântico, você sempre foi, eu adoro isso,

mas casamento... Meu Deus dos céus! Casamento

não é apenas romantismo, seu imbecil!

–– Não fala assim, amor...

–– Não fala assim uma droga! Quem já viu!

Quem já viu! E eu, de idiota, nem sequer tinha

visitado tua casa ainda... Por isso que tu viesses

com aquela história de parentes muito chatos e

tudo... Meu Deus! Pudera eu imaginar... Somente

imaginar! Mainha vai ficar me enchendo o saco,

―eu disse, Bruna, eu disse‖ tô já vendo!

–– Mas Bruna, a gente pode contornar isso,

somos amantes, namorados, marido e mulher,

conseguimos passar por isso facilmente...

Page 94: Comédia de Enganos

94

–– Isso é um engano, aliás, tudo isso é um

engano, um completo embuste, um engodo

ridículo! Eu fui enganada! Deus, a comunhão

total...

–– Enganada? Como assim enganada,

Bruna?

–– Enganada! Você... Meu Deus dos céus,

você não é quem diz ser...

–– Mas eu nunca disse...

–– Você também nunca desdisse! E eu,

pensando que... Ah, não pode ser assim!

–– Pode ser sim, estamos casados, Bruna,

temos que resolver isso...

–– Não vamos resolver isso, ninguém vai

resolver isso, isso não tem resolução! Por que

casei, meu Deus?! Por que casei?!

–– Bruna, pára já com isso, eu estou ficando

nervoso!

Page 95: Comédia de Enganos

95

–– Uma loucura de adolescentes, meu pai me

disse. Não iria praquele casamento de jeito

nenhum, ―minha filha, tão adulta e ao mesmo

tempo tão mimada, você me envergonha!‖ foi isso

que ouvi de meu pai, você sabia, Alfredo, você

sabia?

–– E, não obstante você não estava nem aí!

–– Claro que não, imaginava que você fosse

quem você dizia ser...

–– Já disse que não disse!

–– Já disse que não desdisse! E agora... E

agora...

–– Agora vamos passar por isso, e enfrentar

todas as outras crises que sobrevierem como um

casal apaixonado que somos, Bruna. Agora, só

podemos fazer isso, você vai se acalmar, eu vou me

acalmar, vamos nos abraçar e fingir que nada disso

está acontecendo...

–– Seu idiota! Não vou fingir. A vida é um

teatro, todo mundo diz, mas desse papel eu não

Page 96: Comédia de Enganos

96

gostei nada! E você, passe bem. Não dá pra viver

assim.

*

* *

Um mês depois a Sentença dada: casamento

anulado. Erro quanto à pessoa, numa

interpretação que o advogado da Autora

considerara novel no Tribunal de Justiça, dando

tapinhas nas costas do juiz, em celebração de uma

longa amizade. Artigos 1.556 e 1.557, inciso I do

Código Civil Brasileiro, assim, frios e sem

romantismos, lei aplicada ao caso, subsunção

tácita e fria. Na sala de audiência o juiz olhando

por cima dos óculos, olhar de reprovação, inquiriu

gentilmente se a autora intentava mover a

competente ação de danos morais, vez que poderia

lhe indicar a título gratuito um advogado amigo

seu, especializado, ao que disse que não.

Page 97: Comédia de Enganos

97

–– Apresente sentença lavrada e assinada

não prejudica as sanções penais cabíveis. Nesta

cidade do Recife, PRI4.

Da sala de audiência do Fórum da Ilha de

Joana Bezerra o último olhar... Alfredinho e Bruna,

uma desgraça.

Alfredo era pobre na forma da lei e na forma

da prática. Bruna, como poderia viver assim? Sem

recursos, sem nada, uma vida eterna na 2ª classe

pernambucana. Fora enganada! Casório bonito no

início, anulado depois. A vida invertendo a ordem

dos fatores, brincando, como gosta. Salvação no

início, perdição no fim...Rosa e espinho.

4 Publique-se, Registre-se, Intime-se. Determinação do magistrado à

secretaria dos cartórios ao fim das decisões judiciais. (Nota do Autor).

Page 98: Comédia de Enganos

98

A CARTA

QUAL NÃO FOI sua surpresa, a coisa mais

inesperada do mundo, a coisa mais improvável, e

talvez até impossível, ali, em sua frente, no simples

abrir do caderno de exercícios... Dobrada e escrita

sem nenhuma pompa em folha branca repleta das

linhas azuis do pautado.

É bem verdade que essa surpresa toda não

veio só com o ato de abrir o caderno, acontece que

lhe deu um não sei quê de estranho quando viu o

papel dobrado na forma de envelope, ali, em sua

frente, inesperadamente, uma carta. E essa coisa

estranha não foi a surpresa não, era uma espécie

de pressentimento que ela tinha, que ela teve e

descobriu que tinha naquele instante, ou será no

depois?

Page 99: Comédia de Enganos

99

Em pensar que olhando aqueles desaforos

dele, duma hora pra outra lançados, quase que do

nada, um cansaço de vida a dois, contrato

matrimonial vigendo, não dava pra fazer mais nada

que rir, a reação era a mesma! Ela ria, um riso

estranho de quem ama (amou?), um riso do

costume, do costume do cheiro e das coisas

divididas, e ele lá, largado no sofá vendo o infame

do jogo enquanto ela ali fazendo as anotações do

quadro clínico daquele paciente tão birrento

quanto ele... Homem é tudo igual! Mulher também,

dizendo isso.

Pôs-se a lembrar de novo...

As mãos congelaram-se no ar, deu-lhe um

malestar que atingiu até a espinha e de uma hora

pra outra sentiu uma vontade enorme de soltar os

bofes pela boca e por debaixo – um horror! Tudo

aquilo tramitava em seu organismo como um caos

harmônico, sim, porque ela tinha certeza, uma

coisa lá no fundo lhe dizendo que daria em

harmonia... Essa harmonia de que falamos quase

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não se via (se vê?), naquela hora. Nesses instantes

inesperados a gente parece pressente as coisas...,

ou é uma pretensão de pressentimento que nos dá.

Vai entender!

Esse momento que passou parada durou

como que uma eternidade, pra ela, transportada

àquele tal do tempo kairós, no qual dizem os

experts planar o ser divino. Verdade é que num

átimo de segundo agarrou-se à carta de um modo

tão intenso que quase rasgava o papel no simples

ato de pegar. Uma colega de classe sentada ao lado

assustou-se tanto que deu um pequeno sobressalto

da cadeira – ela nem notou, estava às cegas.

Ali em suas mãos a consubstanciação do ato.

Daquele seu constante ato de pensar... Ah, passava

noites pensando! Uma transformação terrível lhe

acontecia, e ele, em si mesmo tão próximo e tão

distante... É que dizem que homem é burro pra

essas coisas. E ela ficava pensando que devia

mesmo de ser. Tantas pistas deixadas, tantos

detalhes, toques e retoques e o cara não percebia

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nada! Vindo com aquela história de ―minha amiga‖!

Ora qual! Pensar que...

Abriu vorazmente não ligando pra nada que

ao seu lado estivesse. À sua frente, a poucos

metros, o professor Hermenegildo lia o livro de

física quântica e sentia-se um lixo por ser obrigado

pelo Ministério ―da burrice‖, como dizia, a dar

aulas de física clássica! Seus olhos pregados nas

fórmulas de Einstein não notaram a voracidade da

descoberta da carta.

Ali no papel, em sua frente, em suas mãos

trêmulas, registradas com todo zelo habitual

aquela letra redonda, escrita vagarosamente do

modo que só ele fazia... O professor Hermenegildo

vivia dizendo ―esse menino não escreve, pinta!‖, e

pintava mesmo, na cor azul da caneta Bic. As

palavras todas escritas perfeitamente bem por um

verdadeiro pintor, uma a uma dispostas, mais

pareciam arranjadas elegantemente no papel, um

verdadeiro esponsal – as amigas diziam que aquele

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era bom de casar, coisas do povo: crendices – quem

escreve bem, casa bem? Pensar que...

Seus olhos correram a carta de cabo a rabo,

identificando primeiro a letra, percebendo o modo

lento e decidido como fora escrita, e depois, só por

último, como se numa vontade infinda de guardar

a melhor parte pro final, o teor, o que estava

escrito. E leu, com todas as letras a declaração

feita, aberta, confessa, amor, amor, AMOR!!! A

caixa de pandora aberta.

Naquele instante um grito interrompeu seu

divagar – ―Goooooooool!!!!!‖ Coisa mais infame ter

jogo toda quarta! Ô país de lesmas! O coração dela

ainda batia rápido num atropelar-se loucamente, o

peito batendo feito coração de poodle. Estava

ansiosa, sempre ficava, amava aquelas lembranças

e eram justamente as lembranças que faziam com

que seu casamento perdurasse tanto. Casara-se

com as lembranças depois que o tempo passou.

Apegara-se com as lembranças na ausência de

coisa melhor.

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Esticou-se toda, visivelmente alterada. Deu-

se por si apenas quando a Maria lhe tocou o ombro

esquerdo perguntando o que tinha. Maria era

muito amiga, de tempos ainda das brincadeiras de

boneca, mas o engraçado é que Maria não sabia

dessa sua querência pelo Felipe. Ela mesma não

sabia o por quê. Entretanto, o fato era que Felipe

tinha qualquer coisa de secreto que nem ela

mesma entendia. Um jeito, um traquejo, uma coisa

doida, dava um malestar que arrepiava...

– Não é nada, Maria. É que me deu um

malestar...

– Por que você não vai ao banheiro, lava o

rosto e tenta se sentir melhor? Já tomou algum

remédio?

– É... Vou fazer isso...

Pediu pra se retirar da sala, ―fazer o quê lá

fora?‖ alteou a voz o professor Hermenegildo

naquela sua curiosidade acobertada pela

hierarquia, um fulo! ―Fazer xixi, caso não me

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permita fazer aqui!‖. Algumas pessoas riram. O

professor balançou a mão com o gesto da gente

besta que se dirige a quem crê como ralé. Estava

no auge de sua leitura do ―Diário da Física‖, revista

editada por uma das maiores Universidades de São

Paulo sobre o assunto, tinha ganas de ser grande,

publicar um artigo ali um dia, tinha cansado da

vidinha de professor umas horas e funcionário em

outras – ―a vida de funcionário é um matar-se aos

poucos... Moralmente, socialmente, humanamente,

dignamente‖, vivia de repetir. Estava era ficando

senil e não se dava conta – logo a senilidade,

adjetivo encangado aos cargos do funcionalismo!

Ela foi.

Cambaleou um pouco. Tudo muito estranho,

Deus dos céus! As mãos suavam, a testa inundava-

se de uma água fria e salgada como a do mar, um

suor frio, deu-lhe um tremelique, um negócio de

doido e o intestino parece que cobrava uns dias de

atraso no regular exercício de suas funções. Mas

logo ali, naquela hora! E tem horas?

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105

Passou bem uns quinze minutos no

banheiro. Suada, parecia que tinha tomado um

banho. Enxugou a cara, não podia demonstrar. Daí

a alguns instantes voltou. Ele já tinha regressado

da secretaria com os papéis que tinha ido

carimbar, segundo disse. Estava lá sentado ao lado

de sua cadeira, lendo umas coisas soltas, pareciam

contos – ignorava completamente as aulas de

cálculos, que desgostava. Parecia querer fazer crer

nada ter acontecido.

Sentou-se ao lado dele discretamente e

passou-lhe daí a alguns minutos infindos, a carta.

Observou-lhe as feições do rosto. Tomou um susto

que foi aumentando num crescendo até dar

naquilo.

E lá veio a primeira demonstração dos

desaforos, e ela nem se deu conta. A gente se dá

conta? Pensar que...

– Que palhaçada é essa? Perguntou o Felipe

alteando a voz em tom de ameaça dirigido a toda

classe.

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O professor levantou a vista, pediu silêncio.

Felipe, desobedecendo às ordens expressas, fez que

ia protestar.

– Professor, quero saber e quero saber é

agora quem foi o infeliz que teve a coragem de

colocar essa carta no caderno da Ana! Um

absurdo, professor! Nós, tão amigos, tão próximos,

e esse indivíduo filho duma puta faz essa carta

ridícula, essa porcaria, imitando minha letra e

assinando como se fosse eu, pedindo a Ana, minha

melhor amiga, em namoro! Isso é um absurdo! É

falsidade ideológica e material! Quero saber o

responsável já!

Na sala, todos boquiabertos expressavam

emoções as mais variadas... Ah, tá vendo! – ela se

lembrando que algumas pessoas riram. A Margot e

a Amélia... Duas safadas! Bem que podia ter sido

elas, umas tiradoras de onda! Mas na hora só o

desaforo ficara guardado no peito e na mente, ele

berrando, vociferando na cara de todos.

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– Já disse que foi em defesa de nossa

amizade, querida. Dizia anos depois num

aniversário de casamento. Por que cargas d‘água

você tem sempre que se lembrar disso?

Por que cargas d‘água as mulheres tem

sempre de se lembrar de tudo?!

Pensar que se casara com as lembranças,

depois que o tempo passou, na ausência de coisas

melhores... O tempo tem disso, brinca com a gente.

A gente cresce e perde a graça. Vive de lembranças,

memórias, fogo fátuo.

Agora veja, se foi malestar que ela sentiu ao

receber a tal carta e jurar ser dele, imagina agora o

que ela sentia sabendo por ele e logo daquele jeito

bravio, que a carta não era dele, que ele não sentia

nada além de amizade (grande bosta a amizade

quanto o que a gente quer é amor nu e cru!) e

que... E que...

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Baixou a cabeça e não disse, não sentiu, não

falou, não esteve mais ali. Há coisas que a gente

fala, mas não explica. Ela teve um malestar. Ponto.

Ah!, mas ria, ria e agora alto, atrapalhando o

maldito jogo.

– Amor, faz favor né? Oxe!, quero ver o jogo,

tá vendo não?

– Não, Felipe, quem tá vendo é você!

– Você entendeu. Deixe de onda!

Pensar que...

Ele ainda se sentou, pediu desculpas a ela

por aquilo, aquilo não devia ter acontecido, a

amizade deles era importante demais, as pessoas

não podiam brincar com o sentimento das outras,

que isso e aquilo e aquilo outro, e ela com uma

vontade enorme de enfiar a boca dele no obelisco

de Brennand. Teve, do nada, essa vontade sádica

de vê-lo sofrer dependurado à vista de todos no

Marco Zero.

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– Você está bem?

– Estou...

– Tem certeza?

―Não, seu idiota!‖ ainda pensou, mas não

valia dizer.

– Tenho.

A gente mente muitas vezes porque precisa e

se o Diabo é o pai da mentira, Deus é um invejoso

injuriante.

Ele se levantou. Aprumou a bolsa nas costas

daquele jeito que ela gostava de ver, o sino tinha

tocado, hora de largar. Ela se ergueu

maquinalmente. Abraçaram-se.

– Até amanhã!

– Até...

Parou um instante. Era intervalo de jogo,

mas ele pegara no sono. Advogado não tem horas

pra nada, é incomodado e incomoda o tempo todo.

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Tinha pifado, precisava dormir. Aquele jogo maldito

recomeçando...

Engraçado como na vida as coisas são... Daí

a uns meses estavam namorando. Teria sido dele a

carta? Não, não era possível, ele negara

terminantemente. Terminantemente! Era de uma

daquelas desocupadas, ou a Amélia ou a Margot.

Mas não é que namoraram?! Um sonho realizado.

Amor, amor, AMOR!

Ali, depois de tantos anos de casados, tantas

inescrupulices e aguentamentos, ele dormindo no

sofá como um bêbado depois de horas de happy

hour, após milhares de horas enterrado em

processos e ela passando o jaleco a ferro, depois de

um preocupante plantão hospitalar... Foi à sala.

Ele dormindo ali em meio a latas de cerveja e

tiragostos diversos e aquele futebol horroroso na

televisão, uma loucura! Olhou bem seu rosto,

pensar que as feições eram as mesmas, de mudado

pouca coisa, a coisa louca do amor, o amor é uma

loucura. Seguiu as linhas de seu corpo caído no

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sofá, largado de qualquer jeito, e parou hesitante

no V que ele tinha ao redor do bucho, que ia dar na

virilha. Teve um malestar, o corpo todo

estremecido, uma vontade de deitar, de entregar-se

toda como da primeira vez... Foi aí que ele soltou

um pum estrondoso e o malestar se foi.

Pensar que...

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APRENDIZADO

–– HOMEM É HOMEM, ser imperativo feito pra

ação, meu filho. Não sei de ninguém que se diga

homem e seja coisa diferente dessa.

Seus olhos brilhavam com o aprendizado de

mais essa lição, de mais essa certeza, de mais essa

compreensão alheia da realidade. Quando, enfim,

ele compreenderia a vida? Ele mesmo, sem o

auxílio da visão de outros olhos? Bem, há

perguntas que a gente só se faz lá por dentro.

Sabença de nada disso ele tinha, a vida era futebol,

pique-esconde, pega-pega e essa mania de correr

feito um louco sem pé nem razão.

Mas o pai, o pai não. O pai já tinha passado

por tudo, já tinha visto de tudo, já era senhor de

muito e muitos. ―A sabença da vida quem tem é

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quem vive‖: a primeira lição que seu avô tinha

incutido em seu pai. Seu Amaro de Souza era um

avozão, metido a contador de estórias, um Esopo!

Mas daquela primeira lição seu pai nunca tirou

muitos proveitos... ―Ora essa! Esse negócio de ir

vivendo e aprendendo faz a gente quebrar a cara.

Prefiro ensinar ao meu filho as coisas que ele deve

saber e pronto!‖, tinha falado pra esposa quando

lembrado da tal lição do Seu Amaro.

–– Que é isso, menino? Erga a cabeça!

Homem não chora.

E o pião ainda rodando no chão mostrava o

rastro de sangue tirado da barriga do pequeno.

–– Claro que está doendo. Você não é de

barro! Mas aguente. Vamos fazer um curativo, isso

não é o fim do mundo. Pra tudo há jeito na vida,

menos pra morte. Aguente! Homem não chora.

E o menino chorava calado, contrariando a si

próprio, seu intento maior era a igualdade ao pai,

ser igual, ser maior, ora que pecado ele achava

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isso!, ser melhor que o próprio pai! Um

―homenzarrão‖, como dizia sua mãe. Mas fazia

parte, parte da vida, dessas coisas da gente, o

menino ia aprendendo na travessia.

–– Aguenta moleque idiota, não tá vendo

painho dizer que homem não chora! Prendia o

choro, engolia aquela água salgada de mares

internos que ia aprendendo a desbravar, deveria

ser como o pai e aguentar feito homem que não

chora. Deveria controlar aqueles rios internos

embaraçadores como Poseidon do alto do Olimpo

controlava os mares com seu tridente potente.

Deveria ser uma máquina que cumpre todas as

ordens preestabelecidas de como se deve agir.

Outra lição que tinha aprendido era a de agir

sem arrodeios, sem titubeios, tendo certeza,

caminho certo, pés sem vacilar. Vida mais fácil sem

as preocupações das perspectivas.

Aquela lição durou até que ele conheceu a

Laurinha... A janela da Laurinha dava pra sala, e

de repente o menino não saía mais da sala, lendo

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no sofá, escrevendo no sofá, desenhando no sofá,

brincando no sofá.

–– Filho, não vai brincar mais com o

Marquinhos e o Mateus, não? Vi os meninos indo

pro campinho...

–– Não, mãe. Tô brincando aqui já.

E eram horas e horas de ver Laurinha no

quarto brincando de bonecas. O menino lutando

contra sua insegurança, lembrando sempre das

lições aprendidas, ―o que painho vai dizer se

souber que você tá com medo de ir até lá, seu

maricas! Homem não vacila!‖.

Mas a Laurinha era mais forte que as lições

do pai. Laurinha era a primeira chave da adivinha.

Um dia, quando ele ia saindo de casa destino da

escola, a porta da casa de Laurinha também se

abriu e ele de repente, bruscamente, voltou pra

dentro de casa e fechou a porta de supetão atrás

de si, meio sem saber o por quê. Correu pra janela

e ficou espiando Laurinha correndo atrás de sua

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poodle. Ela estudava à tarde na mesma sala que

ele estudava de manhã, e aquela hora era o

momento de passear com a cadelinha. Ele hesitara!

Ele vacilara! Laurinha era mais forte... Lição que

aprendera sozinho.

Quando se lembrou disso uns anos mais

tarde, achou até um tanto engraçado. Uma graça

sem graça. Sem graça por ser um riso fora de

ocasião, com graça porque, ora!, porque tinha

graça! Contradição. A vida feito um trava-línguas.

Vida contraditória caminho do norte indo pro sul –

– bússola, qual há?

O pai dele, homem do forte, cabra macho

criado e benzido no interior, homem de poucas

palavras e muitos conselhos, lições que dava

aprendizado do filho, pai dele na cama estirado

inerte balbuciando umas palavras estranhas, a

mãe já idosa com o coração apertado, um malestar

sem sabença de por quês.

–– Ele quer falar, Tavinho, ele quer falar,

encosta o ouvido... Ai meu Deus! Uma mão no

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peito, apertando, outra com as costas na testa,

saindo do quarto escuro, buscando ar, um ar pra

respirar, essa liberdade em nuvem constante no ar,

Dona Maria angustiada, nem benção de padre o

homem quis ―Padre não se faz hoje como antes.

Padre mesmo quem foi, foi o nazareno, depois dele,

uns bostas! Mulher, ‗o evangelho morreu na cruz.‘‖.

E Dona Maria preocupada com aquela lição

para ela tão errada que o marido dava, heresia nas

portas da morte. Um pecado ficar sem unção

extrema...

O filho recostou o ouvido esquerdo na boca

do pai. O quarto silencioso. Um ar pesado... A

morte gosta de olhar quem vai levar por uns

instantes, e enquanto ela fica no quarto, parada,

encostada em uma das paredes, num canto mais

escuro, às vezes sentada na cadeira mais simples

esquecida a um canto, arfa essa sua respiração

pesada de muitos sonhos, de muitos intentos

breviados, de muitas desilusões de sua própria

vida morta em devaneios.

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–– Um... idi... Um idiota, meu filho, eu sou!

–– Não diga isso, meu pai. Ô, aguente!

Homem não chora.

–– Por isso mesmo! Um idiota! Quem já viu...

Quem já viu homem não chorar?! Até Jesus

chorou, meu filho! Isso pelo que dizem... E sabe o

que mais? Não tenho essa certeza toda, aquela

segurança... Borro-me de medo: a morte à espreita,

uma cara estranha com olhos encobertos...

–– Não diga isso, meu pai...

–– Uma última lição, menino, anote no

juízo... Ouviu, Otávio? Anote no juízo: quem dá

lição na gente é a vida. Ninguém mais... Um filete

de lágrima no canto do olho.

De repente, voltou os olhos agoniados para

um canto do quarto, o filho olhou assustado:

apenas a parede e um ar pesado, quente...

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você aprende uma última coisa hoje amaro de souza

filho

(disse o ser de voz tranquila que acabava de se

achegar a ele)

sua derradeira lição uma resposta a umas perguntas

presente por morrer EU sou a vida também

O homem na cama se abriu num sorriso

contentado. Riso maroto mostrando os dentes,

uma luz em seus olhos e seu último ar exalado.

―Que ironia, meu Deus!‖, suas últimas palavras.

–– Pai? Pai? Ironia? O quê? Pai?

Com as mãos em suas costas como gesto de

consolo, Laura abraçou-lhe bem forte, passando

essa coisa enérgica que existia nela. Ele olhou

profundamente em seus olhos e com aquela

lembrança da infância se riu...

Seu pai descansara. Morrera sorrindo. Era,

na verdade, a lição derradeira. Laura em seus

braços confortando... Em seus olhos tomados de

estranha alegria, um filete de lágrima.

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OSSOS DO OFÍCIO

CERTA VEZ ouviu um companheiro de

trabalho dizer, sorumbático, que o que importa

mesmo na vida é ser feliz e dar risadas na cara dos

que querem emperrar as coisas, mas sinceramente,

depois desses dez anos de um serviço repetitivo, ele

começava a pensar que a felicidade era coisa pros

outros.

Não que estivesse redondamente insatisfeito,

não que estivesse jururu constantemente com

tudo, todos, e tudo aquilo... Não! Aquele colega de

trabalho, o que chamavam Januário, ou Janu,

vivia dizendo: ―Tu és um bosta que cospe no prato

que come!‖, maior engano haveria? Soava até

cômico, uma comédia! Aí ele ria! Como enganado

estava o Janu... Não se tratava de ser um mal

agradecido, era uma coisa maior, sei lá...

Page 122: Comédia de Enganos

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Haveria, pois, então, ofício mais ridículo? No

início estava radiante de felicidade. A proposta era

boa e lhe tiraria os cortes nas costas, lidar com

crianças e tudo, coisas interessantes as crianças,

tão frágeis, mas futuramente tão cheias de

complexidade inimaginável, era uma coisa

interessantíssima, mas depois... No depois as

coisas ficam repetidas e toda rotina é um

entorpecimento.

Demais, viviam de dizer que quem é burro

não pensa, não é inteligente, não pode dar opinião

concatenada, ora! E acaso ele era burro? Burro...

palavra idiota! As pessoas são tão imbecis que

dizem ser ―pai dos burros‖ o dicionário. Há burrice

maior?

A multidão é que era uma coisa estressante...

Aquele povo todo ali reunido, olhando, mascando

chiclete, falando ao mesmo tempo, berrando, rindo

com risos de palhaços, como uns lunáticos bobos

da corte de Deus. Ah, Deus! Que burrice a tua...

Ou não, né? Pensava. Talvez toda essa comédia de

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enganos criada por Deus nada mais fosse que o

clímax do gozo filosófico da divindade. Contradição,

bem com mal, alegria com tristeza, preto no

branco, tudo misturado!

Teve um dia que um botijão explodiu e foi

um corre-corre, um chororô, mas, ora!, logo

quando uma coisa diferente acontece, quando

tanto chama à sua atenção! Ele mesmo deu uma

risada enorme quando viu os algodões-doce

queimarem no fogo, uma coisa inusitada! Mas

depois, aquele chororô, aquele corre-corre, aquela

angústia, aquelas rezas estranhas, tudo muito

estranho, atmosfera triste, fez com que ele se

sentisse um idiota, um incômodo, um sem noção.

–– Tu não precisa ter noção, Mariano, tu não

precisa ter nada. Só come tua ração diária e vive!

Era o Janu naquele realismo pessimista dele.

Mas estava certo o Janu, ele realmente não

precisava ter noção, não precisava de nada, talvez

fosse o nome certo, o de ser burro, um burro,

iletrado, analfabeto das falas humanas, das falas

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do mundo, das coisas misteriosas das auroras e

crepúsculos, das coisas de Deus, universo

silencioso... Universo imenso até mesmo às pulgas!

Ele ali limitado, num eterno Jó 38:11.

E a vida ficava sendo essa comilança da

ração diária. A vida ficava sendo essa vegetação da

manutenção da própria vida. A vida virava o

espelho de Narciso. Uma coisa idiota! ―Pensa pelo

lado positivo, ao menos aqueles cortes...‖, lá vinha

o Janu. Talvez ele tivesse é que se aposentar. Como

seria se aposentar? Como seria não ter que fazer

nada por um bom tempo, um tempo longo, o tempo

do fim? Era o tipo de coisa que deveria haver a vida

toda, não só no fim. Coisa pachorrenta que os

homens inventam pra se ocupar a tal da rotina...

Estava um caco. Um caco moral, físico e

psicológico. E ficava ali, rodando lentamente,

passeio suplicante, Praça Faria Neves no bairro de

Dois Irmãos, em plena manhã de domingo. Manhã?

Manhã até à tardinha, oh, povo besta!, achar

diversão ver um monte de animal infeliz,

Page 125: Comédia de Enganos

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engaiolado, tentando entender a vida, nas jaulas

do Zoológico de Dois Irmãos, uma danação! Uma

espoliação!

No fim das quantas achava que aquele nome

não era pra ele, que aquela designação pejorativa

não era dele. Ele, Mariano, o Marí, assim como o

Januário, Janu ou o Epaminondas, Epami ou o

Dioclécio, Dió, toda a sua espécie de ser eram, sim,

jumentos, jumentos de corda no pescoço e criança

nos lombos rodando na praça em frente ao horto,

eles trabalhavam, trabalhavam, comiam sua ração,

dormiam, e depois trabalhavam mais, mas

tentavam, como os outros animais do zoológico,

pensar na vida, nessa comédia de enganos...

Burros? Burros eram os homens que viviam

naquele azougue, naquela embaraçada agonia de

bem e mal, felicidade e tristeza, e nem se davam

conta.

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DO LETREIRO

No fim das contas a vida acaba

tendo esse não sei quê de mistério, essa inexplicável interrogação...

É que nas portas dela

lemos o aviso daquele letreiro que Dante enganado pôs no inferno:

―Deixai, ó vós que entrais, toda esperança‖

Mas a gente se esquece... se esquece de tudo Tão nova é a vida,

tão quente o materno alento tantas as coisas e escasso o tempo

E daí inventamos que a esperança

É a última que morre Até que somos obrigados a voltar

E revendo o letreiro Ficamos com cara de menino amarelo

Cientes, mas contentes,

por ao menos, e sobretudo,

termos vivido.

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128

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“Aplaudam, amigos, a

comédia acabou”.

LUDWIG VAN

BEETHOVEN, no último instante.

“Wer nicht von dreitausend Jahren

Sich weiss Rechenssachaft zu geben

Bleib in Dunkeln unerfahren, Mag von Tag zu Tag leben”

JOHANN WOLFGANG VON GOETHE.

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130

―Ah, Deus! Que burrice a tua... Ou não, né? Talvez

toda essa comédia de

enganos criada por Deus nada mais fosse que o

clímax do gozo filosófico da

divindade. Contradição, bem com mal, alegria com

tristeza, preto no branco, tudo misturado!

”.

MARIANO, O MARÍ, numa de suas reflexões

filosóficas.

Page 131: Comédia de Enganos

131

Recife –– PE, Brasil,

maio a julho de 2013.

Page 132: Comédia de Enganos

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|POSFÁCIO Por Guto Stresser5.

HÁ CALOR em Comédia de Enganos. Há

vida, comédia e enganos. De bonequinha

porcelanada à morte que espreita no canto do

quarto, encontro aqui uma reunião de verdades tão

viscerais que esse posfácio terá, quem sabe, o

condão de captá-las e deixar que fiquem

pendulando na memória de cada leitor. Mario alça

pulos machadianos, vai do passado ao futuro,

passa pelo presente, volta ao passado... Enfim,

deságua num tempo particular, coerente. Cada

conto é uma foz.

5 Escritor e ilustrador paranaense.

Page 133: Comédia de Enganos

133

Cada estória escrita no mundo é um álbum

de fotografias. Desde Morte e Vida e outros contos6,

seu primeiro livro, suas estórias me são tão

próximas! Leitura simples, proporções ideais. Seus

calungas me parecem quase como vizinhos. Talvez

cada calunga seja um pouco daquilo que sou, e

aquilo que sou seja um pouco de cada calunga. E

para me parecerem vizinhos, não é tão simples:

precisam cruzar o Brasil e desembocar em

Curitiba, neste frio que não se sente em terras

pernambucanas.

A verdade é que este livro me confunde. Não

sei, aqui, onde começo, como termino, de que jeito

me acho. Como fazem as melhores e mais

pontiagudas leituras, acho que entrei na estória,

sou parte dela, sou enredo e clímax. Depois de lê-

lo, andei me perdendo. Francamente, tenho

pensado em deixar de ser gente de carne e osso

para virar um eterno calunga. Se for assim, até

6 Primeiro livro de contos de Mario Filipe Cavalcanti, no prelo pela Editora

Universitária da UFPE. Teve seus contos ilustrados por Guto Stresser.

Page 134: Comédia de Enganos

134

breve. Talvez vocês me encontrem no próximo livro

de Mario.

Curitiba – PR, Brasil,

agosto de 2013.

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|BIOGRAFIA RESUMIDA DO AUTOR

MARIO FILIPE CAVALCANTI (MARIO FILIPE

CAVALCANTI DE SOUZA SANTOS) nasceu em 15

de janeiro de 1992 na cidade do Recife, capital do

estado de Pernambuco, Brasil. Escritor, tendo dado

maior ênfase aos gêneros contos e poesia.

Bacharelando em Direito na tradicional Faculdade

de Direito do Recife, da Universidade Federal de

Pernambuco. Estudou piano clássico na Escola de

Artes do Recife. Prêmios: Foi vencedor de vários

concursos literários no Brasil, como os de contos

da Associação Nacional de Escritores (Brasília/DF,

2012), de contos ―Cidade das Asas‖ da Secretaria

de Cultura do Município de Gavião Peixoto (São

Paulo, 2013), Menção Honrosa no de poesia ―VIII

Varal de poesia‖ da Faculdade Metropolitana de

Maringá e Academia de Letras de Maringá (Paraná,

2013) e Semifinalista do Prêmio SESC de

Literatura 2014 com a presente obra. Publicações:

É participante de Antologias poéticas no Brasil

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(IHGM, UFMA, 2013 – ―Mil poemas para Gonçalves

Dias‖) e na Europa (Chiado Editora, Porto,

Portugal, 2013 – ―IV Antologia de Poesia

Contemporânea Entre o sono e o sonho‖). É

colunista da Revista SAMIZDAT (editada em

Madrid) e da revista eletrônica Página Cultural

(editada em Minas Gerais). Autor dos livros

―Comédia de enganos‖ (Editora Penalux, 2013),

livro Semifinalista no Prêmio SESC de Literatura

2014, ―Morte e vida e outros contos‖ e ―O circo‖

(Editora Universitária da UFPE, prelo). Tendo ainda

mais três livros de contos e um de poesia, não

publicados na integralidade. Publicou em edições

impressas das revistas SAMIZDAT (nº. 39, 40, 41 e

42) e Varal do Brasil (Genebra, Suíça) e em edições

online (9ª) da Revista Flaubert (contos) (7ª e 8ª)

da Revista 7 faces (poesia), Natal/RN. Mantém o

blog literário:

www.mariofilipecavalcanti.blogspot.com.

Page 137: Comédia de Enganos

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