O Desmonte de Um Gigante - Revista de História

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2 GHVPRQWH GH XP JLJDQWH 5HYLVWD GH +LVWyULD KWWSZZZUHYLVWDGHKLVWRULDFRPEUVHFDRFDSDRGHVPRQWHGHXPJLJDQWH O desmonte de um gigante Regimes soviéticos na Europa ruíram no espaço de seis anos, mas seu legado foi incorporado pelo Ocidente Luiz Dario Teixeira Ribeiro 1/11/2015 A abertura do Muro de Berlim representou um marco na derrubada dos regimes comunistas da Europa oriental na segunda metade de 1989. (Imagem: WIKICOMMONS) Mikhail Gorbachev foi ultrapassado por sua própria política. Quando se tornou secretário‐geral do Partido Comunista da União Soviética, em 1985, estava disposto a conduzir reformas ousadas. Seu principal objetivo era separar o partido da administração do Estado, permitindo assim que o país se abrisse à economia de mercado. As consequências foram desastrosas. Politicamente, ele desmoralizou o próprio sistema socialista que comandava e fragmentou a estrutura de governo, fomentando nacionalismos separatistas. Economicamente, gerou caos e retrocesso: para cortejar a Europa ocidental, abandonou os regimes socialistas do Leste europeu, e para se aproximar dos Estados Unidos, pôs fim à corrida armamentista e afastou‐se dos países do Terceiro Mundo, como Cuba, Etiópia, Angola e Vietnã, entre outros. Seria o último líder da União Soviética. Como num efeito dominó, em 1989 ruíram diversos países comunistas. Na Polônia, a crise econômica se intensificou e o descontentamento popular expressou‐se no apoio ao sindicato Solidariedade, que nem o estado de sítio imposto oito anos antes pelo general Jaruzelski conseguiu desarticular. Em agosto, sem mais alternativas e com consentimento soviético, o governo era entregue ao Solidariedade, cujo programa defendia a implantação de uma economia de mercado. Paralelamente, a Hungria seguia o mesmo caminho, com a formação de um governo de centro‐direita que renunciou à via socialista. Estes dois eventos sequer foram surpreendentes, pois em ambos os países já existia um forte sentimento popular antirrusso e anticomunista. Mas logo o clima de instabilidade atingiu regimes mais desenvolvidos: a República Democrática Alemã (RDA) e a Tchecoslováquia. Cerca de 20 mil turistas alemães‐orientais em férias na Hungria aproveitaram para emigrar. Os protestos e a crise cresceram durante as comemorações do 40º aniversário da RDA, com a presença de Gorbachev. A tensão levou o presidente Erich Honecker a renunciar, e seus sucessores a abrir o Muro de Berlim em novembro de 1989. No mesmo mês caía o governo tcheco, após uma série de protestos praticamente não reprimidos, na chamada Revolução de Veludo. O teatrólogo dissidente Vaclav Havel formou um governo centrista. Na Bulgária, onde sequer existia oposição organizada, a ala reformista do Partido Comunista desfechou um golpe palaciano assim que surgiram as primeiras manifestações, conservando o poder sob nova roupagem. Na acuada Romênia, as expectativas criadas pela Perestroika (o impopular racionamento imposto para pagar a dívida externa) e o imobilismo do regime de Nicolau Ceausescu fizeram eclodir protestos populares em dezembro, logo reprimidos. Na

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Dossiê Comunismo, RHBN, Novembro 2015

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O desmonte de um giganteRegimes soviéticos na Europa ruíram no espaço de seis anos, mas seu legadofoi incorporado pelo Ocidente

Luiz Dario Teixeira Ribeiro

1/11/2015  

A abertura do Muro de Berlim representou ummarco na derrubada dos regimes comunistas daEuropa oriental na segunda metade de 1989.(Imagem: WIKICOMMONS)

Mikhail Gorbachev foi ultrapassado por suaprópria política. Quando se tornousecretário‐geral do Partido Comunista daUnião Soviética, em 1985, estava disposto aconduzir reformas ousadas. Seu principalobjetivo era separar o partido daadministração do Estado, permitindo assimque o país se abrisse à economia demercado. As consequências foramdesastrosas. Politicamente, ele desmoralizouo próprio sistema socialista que comandava efragmentou a estrutura de governo,fomentando nacionalismos separatistas.Economicamente, gerou caos e retrocesso:para cortejar a Europa ocidental, abandonouos regimes socialistas do Leste europeu, epara se aproximar dos Estados Unidos, pôsfim à corrida armamentista e afastou‐se dospaíses do Terceiro Mundo, como Cuba,Etiópia, Angola e Vietnã, entre outros. Seria o último líder da União Soviética.

Como num efeito dominó, em 1989 ruíram diversos países comunistas. Na Polônia, a criseeconômica se intensificou e o descontentamento popular expressou‐se no apoio ao sindicatoSolidariedade, que nem o estado de sítio imposto oito anos antes pelo general Jaruzelskiconseguiu desarticular. Em agosto, sem mais alternativas e com consentimento soviético, ogoverno era entregue ao Solidariedade, cujo programa defendia a implantação de uma economiade mercado. Paralelamente, a Hungria seguia o mesmo caminho, com a formação de um governode centro‐direita que renunciou à via socialista.

Estes dois eventos sequer foram surpreendentes, pois em ambos os países já existia um fortesentimento popular antirrusso e anticomunista. Mas logo o clima de instabilidade atingiu regimesmais desenvolvidos: a República Democrática Alemã (RDA) e a Tchecoslováquia. Cerca de 20 milturistas alemães‐orientais em férias na Hungria aproveitaram para emigrar. Os protestos e acrise cresceram durante as comemorações do 40º aniversário da RDA, com a presença deGorbachev. A tensão levou o presidente Erich Honecker a renunciar, e seus sucessores a abrir oMuro de Berlim em novembro de 1989. No mesmo mês caía o governo tcheco, após uma série deprotestos praticamente não reprimidos, na chamada Revolução de Veludo. O teatrólogodissidente Vaclav Havel formou um governo centrista.

Na Bulgária, onde sequer existia oposição organizada, a ala reformista do Partido Comunistadesfechou um golpe palaciano assim que surgiram as primeiras manifestações, conservando opoder sob nova roupagem. Na acuada Romênia, as expectativas criadas pela Perestroika (oimpopular racionamento imposto para pagar a dívida externa) e o imobilismo do regime deNicolau Ceausescu fizeram eclodir protestos populares em dezembro, logo reprimidos. Na

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sequência foi deflagrado um golpe militar apoiado por Gorbachev, que derrubou o velho ditador,fuzilado após uma breve guerra civil. O poder foi tomado pela Frente de Salvação Nacional, umacorrente do próprio governo comunista, responsável pelo golpe.

Logo o Pacto de Varsóvia e o Comecon – blocos militar e econômico da União Soviética,respectivamente – também deixaram de existir. E em 25 de dezembro de 1991 o bloco inteirodissolveu‐se, dando origem a 15 repúblicas independentes, a maioria delas extremamente frágil.Desaparecia uma superpotência, desagregava‐se um sistema, e sua sociedade mergulhava emcrise e empobrecimento.

Os russos acabaram herdando o status internacional da União das Repúblicas SocialistasSoviéticas, mantendo a vaga no Conselho de Segurança da ONU. Boris Ieltsin, rival de Gorbachov,passou a governar a República Russa e a implementar a passagem abrupta ao capitalismo, contraa resistência de instituições federais como o exército, a KGB (polícia política) e os sindicatos,além das repúblicas menos prósperas. Os mais beneficiados pelas vertiginosas reformas foramoligarcas mafiosos ligados a Ieltsin, que se tornariam bilionários.

Do ponto de vista histórico, o século XX foi o século da Revolução Russa. O evento forneceu aidentidade e a base de boa parte dos processos políticos que caracterizaram aquele período, sejaestimulando a transformação autônoma, tornando inevitáveis as reformas ou provocandoreações. Sem a revolução, muitas mudanças não teriam acontecido. Os objetivos sociais dademocracia, por exemplo, foram realizados a partir daquele episódio, e representaram umdesafio ao capitalismo. Os anos de ouro do Ocidente foram possíveis porque o turbilhão queocorria no Leste europeu ameaçou a sobrevivência do capitalismo e o desafiou a tornar‐se maisequilibrado, possibilitando a constituição dos Estados de Bem‐Estar Social. A dinâmica social dademocratização, da ampliação de direitos sociais e dos direitos humanos universais, de respeito ede reconhecimento da igualdade como elemento intrínseco ao humano está enraizada e ancoradana Revolução Russa.  

Aos índices positivos obtidos nos campos da saúde, educação, alimentação, habitação, lazer elongevidade da população podem ser acrescentados um desenvolvimento econômico menosdesarmônico e uma divisão mais equitativa dos custos do processo. O progresso tecnológico nãoimpediu a existência do pleno emprego. Os países capitalistas, especialmente os desenvolvidos,tiveram que responder ao desafio social da Revolução Soviética implantando uma ampla reformano Ocidente, que era demandada pelo movimento operário: ao criar condições para a emergênciacultural dos dominados, o regime socialista proporcionou instrumentos para a crítica concreta aocolonialismo e ao imperialismo.

A aplicação e a ampliação dos direitos políticos e sociais, incluindo a aposentadoria e a legislaçãotrabalhista, também foram em boa medida resultantes do impacto da chegada dos soviéticos aopoder – assim como a generalização dos sistemas políticos que passaram a incorporar “minorias”como mulheres, negros, jovens e pobres.

São visíveis atualmente os processos de destruição daquelas conquistas, consideradaspermanentes e petrificadas nos “anos gloriosos”. A derrota da Revolução Russa e do universo porela construído – ou construído como resposta ao seu desafio – parece comprovar a conhecidaassertiva de Marx, “tudo que é sólido se dissolve no ar”. Por outro lado, o fim da União Soviéticapode ser considerado a interrupção de um processo multifacetado. Assim como a transição dofeudalismo ao capitalismo foi um movimento histórico longo, marcado por avanços desiguais,recuos, estancamentos e mesmo derrotas locais, a transição do capitalismo ao socialismo podeter vivido, no século XX, apenas seu primeiro episódio.

Luiz Dario Teixeira Ribeiro é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e coautorde A História da África e dos Africanos, com P.F. Vizentini e A. Danilevicz (Ed. Vozes, 2013).

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Saiba Mais

HOBSBAWN, Erich. A Era dos extremos – o breve século XX. Ed. São Paulo: Companhia dasLetras, 1995.LEWIN, Moshe. O Século Soviético. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2004.SEGRILLO, Angelo. O declínio da URSS: um estudo das causas. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.VIZENTINI, Paulo F. História do Século XX. Porto Alegre: Ed. Novo Século, 1998.VIZENTINI, Paulo F. Da Guerra Fria à Crise. 1945 a 1992. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992.