O Cuidado e a Educação Popular Em Saude

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    Coleo Micropolca do Trabalho e o Cuidado em Sade

    Luciano Bezerra Gomes

    Organizador

    O Cuidado e a Educao Popularem Sade

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    Coleo Micropolca do Trabalho e o Cuidado em Sade

    Luciano Bezerra GomesOrganizador

    O Cuidado e a Educao Popularem Sade

    1 EdioPorto Alegre - 2015

    Rede UNIDA

    Coordenador Nacional da Rede UNIDAAlcindo Antnio FerlaCoordenao EditorialAlcindo Antnio Ferla

    Conselho EditorialAdriane Pires Baston- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, BrasilAlcindo Antnio Ferla- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

    ngel Marnez-Hernez- Universitat Rovira i Virgili, EspanhaAngelo Steani- Universidade de Bolonha, ItliaArdig Marno- Universidade de Bolonha, Itlia

    Berta Paz Lorido- Universitat de les Illes Balears, EspanhaCelia Beatriz Iriart- Universidade do Novo Mxico, Estados Unidos da Amrica

    Dora Lucia Leidens Correa de Oliveira - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, BrasilEmerson Elias Merhy- Universidade Federal do Rio de Janeiro, BrasilIzabella Barison Matos- Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil

    Joo Henrique Lara do Amaral- Universidade Federal de Minas Gerais, BrasilJulio Csar Schweickardt -Fundao Oswaldo Cruz/Amazonas, Brasil

    Laura Camargo Macruz Feuerwerker- Universidade de So Paulo, BrasilLaura Serrant-Green- University of Wolverhampton, Inglaterra

    Leonardo Federico- Universidade de Lanus, ArgennaLisiane Ber Possa- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

    Liliana Santos- Universidade Federal da Bahia, BrasilMara Lisiane dos Santos- Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil

    Mrcia Regina Cardoso Torres -Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro, BrasilMarco Akerman- Universidade de So Paulo, Brasil

    Maria Luiza Jaeger- Associao Brasileira da Rede UNIDA, BrasilMaria Rocineide Ferreira daSilva - Universidade Estadual do Cear, BrasilRicardo Burg Ceccim- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

    Rossana Staevie Baduy- Universidade Estadual de Londrina, BrasilSueli Goi Barrios-Universidade Federal de Santa Maria, BrasilTlio Basta Franco- Universidade Federal Fluminense, Brasil

    Vanderlia Laodete Pulga- Universidade Federal da Fronteira Sul, BrasilVera Lucia Kodjaoglanian- Fundao Oswaldo Cruz/Pantanal, Brasil

    Vera Rocha- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, BrasilComisso Execuva Editorial

    Janaina Matheus CollarJoo Beccon de Almeida Neto

    Arte grca CapaFrag-intensos de Kathleen Tereza da Cruz

    DiagramaoLuciane de Almeida CollarBibliotecria Responsvel

    Jacira Gil Bernardes

    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO-CIP

    C966 O cuidado e a educao popular em sade [recurso eletrnico] /Luciano Bezerra Gomes, organizador. 1.ed. Porto Alegre : RedeUNIDA, 2015.

    p. 262 : il. (Coleo Micropolca do Trabalho e o Cuidado em Sade)

    ISBN: 978-85-66659-40-5 DOI: dx.doi.org/1018310/9788566659405

    1.Educao em Sade. 2. Educao popular Sade. 3. Sistemanico de Sade. 4. Sade pblica. 5. Cuidado em sade. I. Gomes,Luciano Bezerra. II. Srie.

    CDU: 614 NLM: WA590

    Bibliotecria responsvel: Jacira Gil Bernardes CRB 10/463

    Todos os direitos desta edio reservados Associao Brasileira Rede UNIDARua So Manoel, n 498 - CEP 90620-110, Porto Alegre - RS

    Fone: (51) 3391-1252 - www.redeunida.org.br

    Graa atualizada segundoo Acordo Ortogrco da

    Lngua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no

    Brasil em 2009.Copyright 2015 by

    Luciano Bezerra Gomes

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    SUMRIO

    APRESENTAO.........................................................................7

    PARTE I

    A GESTO DO CUIDADO NA EDUC AO POPULAR EM SADE:UM ESTUDO A PARTIR DA OBRA DE EYMARD MOURO VASCONCELOS..........................................................................13Luciano Bezerra Gomes

    Introduo.......................................................................13Entre justificativa e fundamentao terica....................17Algumas opes metodolgicas......................................24Desenvolvimento............................................................32Compreendendo a educao popular em sade..............32 A educao popular em sade no Brasil: entre movimentosocial e ferramenta metodolgica...................................33 Contribuies da educao popular para a educao em

    sade...............................................................................39 A educao popular em sade ajudando a compreendere lidar com as iniciativas autnomas da populao: asredes de apoio social no territrio..................................46 Para fazer avanar a educao popular nos serviosde sade..........................................................................51A gesto do cuidado em sade na obra de Eymard MouroVasconcelos.....................................................................53 Educao popular e o cuidado em sade.....................58 Uma nova educao popular em sade........................65 Organizando o servio segundo o cuidado na lgica da educao popular em sade............................................68 Os limites do cuidado....................................................72

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    Luciano Bezerra Gomes, Organizador_____________________________________

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    APRESENTAO

    O campo da sade, no Brasil, tem apresentadopouca capacidade de se abrir internamente para umdilogo profundo. Temos visto isso com receio, poisparece que perdemos a capacidade de nos renovarmosa parr das afetaes e da abertura para a produo detransversalidades. para insisrmos na necessidade desairmos de monlogos entre disntas matrizes discursivasque os autores presentes nesse livro se mobilizaram paraelabor-lo.

    Tomamos como disparador dos debates umadissertao de mestrado1, defendida em 2010 juntoao Programa de Ps-Graduao em Clnica Mdica da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, elaborada peloorganizador do presente livro, Luciano Bezerra Gomes, eque teve como orientadores Emerson Elias Merhy e MarceloGerardin Poirot Land.

    Nesta dissertao, realizou-se uma sistemazaoda produo da educao popular em sade, no a parrdo que mais comumente se toma para analis-la, suasformulaes sobre a educao em sade, mas sim sobreum aspecto menos (ou pracamente no) debado: o que

    1 GOMES, L.B. A gesto do cuidado na educao popular em sade:um estudo a parr da obra de Eymard Mouro Vasconcelos. 2010.Dissertao (Mestrado em Clnica Mdica) Faculdade de Medicina,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

    Relaes de poder no cuidado em sade.........................74 Sobre o conceito de classes populares..........................82 Crticas biomedicina...................................................86 Crticas ao racionalismo e concepo de subjetividadee espiritualidade..............................................................90 A subjetividade dos usurios como potncia para otrabalho em sade...........................................................97 Sobre a espiritualidade no trabalho em sade............101 O atendimento individual...........................................104 A abordagem famlia................................................112 Anlise do Programa Sade da Famlia.......................120 Gesto do trabalho em equipe....................................126

    Concepes sobre a gesto da sade e o Estado........137 Caminhos e desafios para a educao popular emsade.............................................................................143Concluso......................................................................149Referncias....................................................................154

    PARTE II

    MINHA PERCEPO SOBRE AS ANLISES DE LUCIANOSOBRE MINHA PRODUO BIBLIOGRFICA......................171Eymard Mouro Vasconcelos

    DE PALAVRASSMBOLO E DE IMAGENSESTRELA: SOBRELEVEZA, INCOMPLETUDE, E SER MAIS NO MUNDOPENSADO E IMAGINADO DA SADE COLET IVA...................205

    Julio Alberto Wong un

    UMA TORO PEDAGGICA NO CUIDADO EM SADE.....233Helvo slomp Junior Laura Camargo Macruz Feuerwerker dboraCristina Bertussi Maria paula Cerqueira Gomes Emerson EliasMerhy

    SOBRE OS AUTORES...............................................................261

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    a educao popular prope para o tema do cuidado emsade.

    Alm de uma reviso que buscou delimitar aconstuio do campo da educao popular em sade,Luciano tomou como referncia para aprofundamento aobra de Eymard Mouro Vasconcelos. Alm de apresentaras formulaes de Eymard, a dissertao apontouaproximaes e divergncias com diversos autores querealizam o debate sobre o cuidado em sade.

    Na banca de avaliao da dissertao, parciparamos professores Ricardo Burg Ceccim, Laura Camargo MacruzFeuerwerker e Antonio Jos Ledo Alves da Cunha. J naquelemomento, um intenso debate se desencadeou, seja sobreaspectos da prpria pesquisa, seja apontando para aspossibilidades de ampliao do debate que ela suscitava.

    Desde aquela data, cou em parte dos presentes avontade de dar mais flego ao debate, para dialogar sobreas questes que estavam sendo levantadas, ampliandoos interlocutores dessa boa e insgante conversa. Sendoassim, tentamos desenvolver este livro como um esforocolevo de reer sobre essas interfaces e conexes entrea educao e o cuidado em sade.

    Desse modo, ele foi dividido em duas partes.

    Na primeira, temos a ntegra do texto da supracitadadissertao, com algumas modicaes em relao aoseu texto original, que buscaram melhorar parte da suaredao, bem como atualizar algumas de suas referncias.Embora, parte relevante do seu contedo do texto j tenhavindo a pblico em alguns argos2, consideramos que seria2Vide as referncias seguintes: GOMES, L.B.; MERHY, E.E. A educaopopular e o cuidado em sade: um estudo a parr da obra de EymardMouro Vasconcelos. Interface (Botucatu), Botucatu, v.18, supl.2,p.1427-1440, dez. 2014. GOMES, L.B.; MERHY, E.E. Subjevidade,espiritualidade, gesto e Estado na Educao Popular em Sade: umdebate a parr da obra de Eymard Mouro Vasconcelos. Interface

    importante divulg-la do modo como foi elaborada, visandodar uma viso de unicidade ao debate por ela proposto,j que nos argos se perde nesse aspecto. E embora j setenham passado cinco anos de sua defesa, cremos que asreexes apontadas neste estudo connuam pernentes. Epara alm de uma atualizao da reviso que fundamentoua pesquisa, acreditamos que seria mais relevante apromoo de um debate envolvendo autores de diferentesperspecvas.

    Neste sendo, na segunda parte, encontram-se textos

    originais de autores que ofertam relevantes reexes sobrea temca em questo. Entre os convidados para essaproduo, no poderia faltar o prprio Eymard Vasconcelos. desnecessrio falar da relevncia de sua colaborao parao campo da educao popular em sade, mas tambmsua presena aqui se deve ao fato de ter sido em torno desuas formulaes que se deu parte substancial do debatepromovido na dissertao disparadora da organizaodeste livro.

    Ainda, se agrega uma reexo insgante de JulioAlberto Wong Un, convidado a parcipar desse livro pelasua trajetria militante e acadmica, bem como por suacapacidade de agregar outras nfases ao debate. Noapenas em relao ao contedo, mas prpria estca da

    produo textual, como se pode apreender no captulo porele elaborado.

    E para fechar o livro, um texto escrito a muitas mos,tendo envolvido na sua elaborao Helvo Slomp Junior,Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Dbora CrisnaBertussi, Maria Paula Cerqueira Gomes e Emerson EliasMerhy. A presena deles, para alm da contribuio que

    (Botucatu), Botucatu, v.18, supl.2,, p.1269- 1281, dez. 2014. GOMES,L.B.; MERHY, E.E. Compreendendo a educao popular em sade:um estudo na literatura brasileira. Cadernos de Sade Pblica (ENSP.Impresso), Rio de Janeiro, v.27, n.1, p.7-18, jan. 2011.

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    tm em relao ao tema do cuidado e da educao emsade, se d por serem alguns dos mais avos membrosda Linha de Pesquisa Micropolca do Trabalho e o Cuidadoem Sade na UFRJ, em que diversas pesquisas esto sendodesenvolvidas integrando as mais variadas perspecvastericas e epistemolgicas.

    Enm, a ideia disparadora para a elaborao dosdiversos textos presentes nesse livro era no apenas queos autores pudessem cricar as noes presentes nadissertao de Luciano Gomes, mas que agregassem em

    seus textos os mais variados aspectos que considerassemnecessrios, no atual momento, para aprofundar o debatesobre as interfaces entre o cuidado e a educao em sade.Apostamos tambm na abertura para nos engravidarmosmutuamente, para nos desenvolvermos na produoradical da diferena.

    Vendo o resultado a que chegamos, consideramosque boa parte dos objevos propostos foram alcanados,ao apontarmos algumas possibilidades de enriquecimentode disntas perspecvas da sade coleva ao rompermoscom nichos de reproduo e transitarmos em dilogosrespeitosos e solidrios entre disntas matrizes existentes.O que coloca, agora, novos desaos a ns mesmos e para osque se dispuserem a ler este livro: dar os prximos passos,

    avanar na reexo e, principalmente, no desenvolvimentode novas prcas nos servios, na gesto, na academia enos movimentos sociais da sade.

    nisso que reside a principal aposta dos textosaqui presentes, bem como em todos os livros da ColeoMicropolca do Trabalho e o Cuidado em Sade,publicados pela Editora Rede UNIDA, qual est vinculadaesta produo.

    Luciano Bezerra Gomes

    Agosto/2015

    PARTE I

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    A GESTO DO CUIDADO NA EDUCAO

    POPULAR EM SADE: UM ESTUDO APARTIR DA OBRA DE EYMARD MOUROVASCONCELOS

    Luciano Bezerra Gomes

    Introduo

    O campo da sade no Brasil, h vrias dcadas,constuiu-se como um terreno de intensos debatesquando toma por foco a organizao das polcas pblicaspara esta rea. So muitos os sujeitos que, com disntasinseres instucionais, constroem formulaes no intuito

    de disputar nesta arena.

    Entretanto, em relao maneira como se posicioname no modo como so construdas as formulaes, muitasvezes, estas disputas cam relavamente veladas. Por umlado, o fato de a sade coleva brasileira ter se fortalecidocomo rea de produo acadmica, com diversos gruposde pesquisa vinculados a conceituadas instuiesformadoras, leva a que os debates tomem um carter maistcnico, mais cienco. Neste sendo, a dimensopolca inerente s proposies que so realizadas ca, no

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    mximo, ocupando um reconhecimento da parcialidade detodo e qualquer conhecimento produzido. De certo modo,assumidas apenas como perspecvas tericas, as disntasformulaes se isolam entre as escolas, fomentandodiscusses que cam no campo epistmico em torno deaspectos metodolgicos.

    Na produo cienca em geral, mas no campo dasade em especial, as produes acadmicas no apenasesto se assentando em mtodos que tm relao com aconcepo de mundo dos seus pesquisadores; as escolhas

    dos autores, de certa forma, delimitam o campo polcono qual eles pretendem debater. No h delimitao deobjeto de pesquisa, h sempre denio polca em tornode que disputas esto entrando e com quem as estotravando. Desta maneira, acredito que no debatemosapenas teorias, de fato, estamos sempre disputando aconstruo dos sujeitos, a produo da subjevidade dosatores presentes nas arenas. A formulao acadmica ,intensamente, produo de disputas. (DELEUZE; GUATTARI,1997; MERHY, 1992)

    Em frente disnta, h toda uma construo deformulaes diretamente vinculadas s instncias gestorasdas polcas pblicas de sade que, baseando-se ouno nas produes acadmicas, por outro caminho,acabam por chegar tambm, aparentemente, a um campoasspco de disputa. Cada vez mais, tem se tornadoindiferenciada a agenda explcita dos sujeitos polcosquando se apresentam as suas formulaes para a sade.Todos parecem concordar - apenas supercialmente, claro - quando quesonados em relao prioridade dasade, deliberao de fortalecer o Sistema nico de Sade(SUS), necessidade de mais recursos para a sade, de sehumanizar a ateno, de se qualicar a gesto, entre outraspropostas. Apenas na anlise concreta das experinciasde implementao de polcas de sade que podemos

    evidenciar as efevas diferenas de projetos existentesentre os vrios grupos polcos que esto frente dasdecises nas mquinas governamentais.

    Contudo (e aqui vem outra premissa para esteestudo), esta constatao no elimina a relevncia deidencar e analisar as diferentes formulaes queso produzidas. Mesmo reconhecendo que no so asformulaes que denem os rumos da implementao daspolcas pblicas, e mais o contrrio, os decisores queselecionam os formuladores necessrios para seus projetos

    polcos (MERHY, 1992), considero que o debate sobre asformulaes connua capaz de claricar alguns aspectosimportantes. Isto porque os formuladores, em suas disputaspela produo da subjevidade dos (novos) atores, nesteprocesso, com suas construes acabam por tambmmodicar os sujeitos decisores. De certa forma, como dizo poeta que arma que os livros no mudam o mundo /quem muda o mundo so as pessoas / os livros mudam,apenas, as pessoas1.3E como os formuladores se envolvemem processos concretos de implementao de experinciasde polcas pblicas, eles, na sua prxis, tambm tm suaproduo modicada ao longo do tempo.

    Feitas tais consideraes, posso armar que esteestudo se realizou no intuito de compreender melhoro debate posto em torno de algumas formulaesque considero relevantes, hoje, no campo da sade.No compreendendo as criaes tericas como merasconsequncias de desenvolvimentos epistmicos emetodolgicos, nem tambm trazendo para as formulaes13Este poema j li em vrios locais (como camisetas e pginas virtuais nainternet), mas nunca encontrei em livro e, at o presente momento, noconsegui precisar a autoria, sendo s vezes referido a Mario Quintana,em outras ocasies, menos frequentemente, a Carlos Drummond deAndrade; de todo modo, sem a referncia adequada a uma produoacadmica, resolvi uliz-lo, pois serve ao intuito que se pretende notexto.

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    a (oni)potncia de transformar diretamente o mundo.Pretendo compreender como algumas formulaesesto sendo concebidas, justamente por reconhecer aimportncia que elas tm ao cumprir papel to sinuoso naconstruo das polcas pblicas.

    Entretanto, diante da innidade de disputas postasem torno de diferentes formulaes num campo deproduo to complexo como o da sade, delimitei umtema de interesse que considero ter bastante centralidadepara o momento em que estamos: a gesto do cuidado em

    sade. E dentre as diversas possibilidades de abordagem,realizei um estudo sobre as formulaes para o cuidadoentre autores da educao popular em sade. Entre estes,aprofundei-me na obra de um de seus maiores expoentes:Eymard Mouro Vasconcelos. Para apresentar uma visopanormica do texto, passo descrio sucinta de cadauma das sees que o compem.

    Ainda nesta introduo, primeriamente, apresentoos movos que me levaram a desenvolver este estudoe alguns elementos guisa de fundamentao terica,para ajudar a compreender algumas escolhas que foramfeitas ao longo do percurso de produo da pesquisa. Emseguida, descrevo as opes metodolgicas que orientarama realizao desta pesquisa, desde a seleo e anlise domaterial, at escrita do texto dissertavo.

    No desenvolvimento, o texto foi desdobrado em duassees secundrias. Na primeira parte, encontra-se umareconstruo dos movimentos que levaram constuioda educao popular em sade como matriz terica forjadanas lutas sociais de alguns colevos, bem como umasistemazao de suas caracterscas e principais embatesque vem travando. Na segunda parte, a maior delas, sodesenvolvidas as reexes realizadas a parr do mergulhomais aprofundado na obra de Eymard Vasconcelos.

    Por m, na concluso, realizo algumas consideraesque apontam para o nal desta pesquisa, abrindo paranovas possibilidades de dilogos.

    Entre justificativa e fundamentao terica

    Alguns autores que se debruaram sobre a formulaode polcas para a sade tentaram compreender aconstruo dos modelos tecnoassistenciais e as disputas

    postas em torno de suas implementaes entre as arenasinstucionais das polcas pblicas. (PAIM, 2008; CAMPOS,2006; FEUERWERKER, 2005; TEIXEIRA, 2000; SILVA JR, 1998;MERHY, 1992) Reconheo a contribuio fundamental destesestudos em claricar a imbricao entre as formulaes demodelos tecnoassistenciais com as disputas em relao implementao de polcas de sade, destas lmas como conjunto de polcas sociais dos governos, e para ajudara compreender os governos, por sua vez, como inseridosnas relaes polcas maiores que se estabelecem entreos atores que conguram as redes sociais em determinadocontexto histrico.

    Abordagens nesta perspecva, geralmente, tendem

    a compreender um conjunto de formulaes de gruposcompromedos com o desenvolvimento concreto dedeterminadas experincias de organizao da ateno emservios e de gesto na sade, explicitando suas basestericas e a maneira como elas se relacionam com outrasformulaes e com os jogos polco-instucionais. Nestesendo, encontramos no estudo de Merhy (1992) uma boacaracterizao para as dimenses inerentes aos modelostecnoassistenciais, quais sejam:

    - as formulaes dos projetos tecnoassistenciais,mesmo que se sustentem em saberes tecnolgicos,produzem, antes de tudo, projetos polcos;

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    - um modelo precisa descrever o que considera comoproblema de sade, denir as prcas que prope e suamaneira de organizao em servios, com seus respecvostrabalhadores e usurios;

    - instucionalmente, os modelos expressamdeterminadas conguraes de Estado;

    - ao disputar polcas, um modelo precisa construiruma concepo dos outros projetos.

    Na presente pesquisa, no tomo por objeto

    a compreenso sobre a formulao de modelostecnoassistenciais, entretanto, pego de emprsmo algumaspremissas e caminhos metodolgicos desenvolvidos nesteestudo de Merhy (1992), a m de compreender melhor asquestes que me interessam. Isto porque, como o objevode Merhy era analisar as relaes que levavam a que a sadepblica fosse formulada e implementada como polcapblica, em seu estudo, entre outros aspectos, este autordeu nfase: s relaes entre os formuladores de polcas,os decisores das arenas instucionais e os implementadoresdas polcas; tambm, s arculaes entre este campo eas polcas sociais globais do Estado capitalista nascenteno Brasil, em especial no estado de So Paulo, na primeirametade do sculo XX.

    Para o atual estudo, procuro outra perspecva deanlise, em que trago o foco mais para a compreenso deaspectos especcos das formulaes de certos grupos quedisputam no campo da sade. Sendo assim, reconhecendoas diversas mediaes entre formuladores, decisorese implementadores, bem como todos os movimentosno campo da polca para que tais formulaes sejamefevamente implementadas, me interessa aqui aprofundarmais em algumas dimenses das formulaes em si.

    Acredito, com isto, no fugir do debate polco, sejaporque o autor cuja obra analisarei mais dedamente euo tomo como formulador de polcas, mesmo quando noest diretamente escrevendo manifestos ou programaspardrios para determinados governos. Bem como, porconcordar com a armao de Merhy (1992, p.26), paraquem as formulaes no se apresentam apenas comosaberes tecnolgicos, pois se colocam, antes de tudo, comoestratgias de polcas pblicas, ou seja, como projetos deorganizao social das aes de sade enquanto servios.

    Isto posto, rearmo meu interesse em aprofundarum estudo sobre a gesto do cuidado em sade que, noslmos anos, tem se tornado um tema central para diversosformuladores do campo da sade. Os autores que tm sedebruado sobre esta questo o fazem na perspecva decriar ofertas capazes de contribuir com a transformao darealidade sanitria em nosso pas. Eles acabam por formulararranjos para a gesto do cuidado que so coerentes comsuas concepes polcas e com suas compreenses sobreo modo como se produz o cuidado, bem como, formulamno sendo de mediar os disntos interesses e disputaspresentes neste campo. (MERHY, 2007a; 2003; CECCIM;FERLA, 2006; FEUERWERKER, 2005; CAMPOS, 2003;FRANCO; BUENO; MERHY, 1999)

    Estes diversos autores, no momento em que analisamos avanos e desaos da implantao do SUS, emborano se esquivem de pensar questes relacionadas aonanciamento, gesto do trabalho e da educao, stransformaes do Estado brasileiro, entre outras, tm dadocentralidade maneira como se oferta o cuidado nos serviosde sade e como todos os sujeitos envolvidos realizama gesto do cuidado. Mesmo idencando diferenasde nfase em relao a alguns aspectos, poderamosconsiderar que tais autores comparlham referenciais,

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    perspecvas e at mesmo vocabulrios comuns quandose debruam sobre esta questo. De certa forma, emborano possamos classic-los todos como membros de umanica escola de pensamento, necessrio reconhecera inuncia nestes autores da produo terica que teveincio com o Laboratrio de Planejamento e Administraodo Departamento de Medicina Prevenva e Social daUniversidade Estadual de Campinas, analisada por Silva Jr.(1998) sob a denominao de modelo tecnoassistencial emdefesa da vida.

    Tais formulaes tm encontrado eco entre sujeitospresentes em servios de sade, em algumas instncias degesto do SUS, bem como entre pesquisadores e docentesinseridos em parte das instuies acadmicas. Entretanto,outros autores tm apresentado formulaes disntas, emque se ofertam proposies diferentes para instrumentalizaros sujeitos que se colocam diante de desaos semelhantes.

    Entre as vrias correntes de pensamento presentesno campo da sade, neste estudo, analiso a formulaopresente entre autores da educao popular em sade.No desenvolvimento do estudo, opto por tomar um dosautores mais relevantes desta matriz de pensamento,como havia armado anteriormente, que o EymardVasconcelos2.4A interrogao que lano no sendo deanalisar a formulao deste autor sobre cuidado e gesto docuidado, bem como que arranjos concretos so ofertadospor ele para desenvolver a gesto do cuidado na sade.

    A inteno de procurar por estes aspectos naobra deste autor se d em virtude de minha j armadaconcordncia com o que se apresentou at aqui, no sendode que fundamental abordar a produo e a gesto do

    24Os aspectos relacionados a esta escolha, bem como uma descriomais detalhada da vida e produo acadmica deste autor esto naseo seguinte, que trata das opes metodolgicas do estudo.

    cuidado para superar os desaos postos na implementaodo SUS. Mas por que pesquisar a educao popular emsade?

    Em primeiro lugar, a inteno em pesquisar entreautores da educao popular em sade se d em virtudedo reconhecimento da fora que tem esta matriz tericano campo da sade. Um primeiro indicador disto poderiaser a reconhecida inuncia de suas formulaes entrepesquisadores da sade presentes na academia brasileira.Suas construes tericas tm apresentado a capacidade

    de produzir signicado e constuir novos sujeitos nestecampo.

    Um segundo aspecto que me leva a estudar commais profundidade esta corrente de pensamento se d pelofato de que muitas das formulaes desenvolvidas nestecampo de produo terica tm sido agregadas em diversasexperincias concretas onde se tenta implementar o SUS.Seria impossvel, e desnecessrio, tentar especicar todas assituaes em que as formulaes dos autores da educaopopular em sade contriburam para os prossionais queestavam atuando diretamente na ateno sade dapopulao ou ento nas instncias de gesto formal do SUS.

    Outro movo que, em parte das experincias

    de implementao do SUS que se basearam em suasformulaes, diversos autores desta matriz tericase envolveram diretamente. Certamente, isto tendoreedo, em termos prxicos, em seus movimentos de (re)formulaes tericas.

    Por m, concordando com Gilles Deleuze (OABECEDRIO..., 1988-1989), para quem s escrevemos algoporque nos necessrio, de certa forma, com este estudo,dialogo com algumas das vivncias em que parcipei.Mdico sanitarista de formao, atuei, na Paraba, emSergipe e na Bahia, como trabalhador no cuidado e na gesto

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    em mbito municipal e estadual, bem como na funo dedocente, qual estou me dedicando com mais intensidadeatualmente. Nas vrias inseres como prossional emilitante, a educao popular em sade sempre tem seapresentado como uma das frentes que mais tem agregadonovos sujeitos polcos na sade, as obras de seus autoresso intensamente acessadas por muitos companheiros eeles sempre se colocaram, direta ou indiretamente, comointerlocutores necessrios e privilegiados. Sendo assim, apesquisa que se segue busca compreender a maneira como

    o debate sobre a produo e a gesto do cuidado apareceentre os autores da educao popular em sade, mesmoque se tome apenas um deles para aprofundamentoanalco e como fonte para a produo de debates.

    Mas apresento aqui uma primeira diculdade, queexigiu uma reexo e elaborao de alternava de cunhometodolgico: na produo dos autores desta corrente depensamento no se idenca diretamente a maneira comoeles se inserem neste debate sobre a gesto do cuidado. Emuma leitura desatenta, onde se procuraria a presena destanoo em suas obras, pode at parecer que eles desviamdeste tema, ou pelo menos, no o tomam como central paraos desaos que esto encarando. Sendo assim, desenvolviesta pesquisa por considerar, inicialmente, a hiptese de

    que, mesmo que no comparlhem certo vocabulriocom outros autores da sade, estes formuladores acabamconstruindo noes que permitem uma leitura de suasobras no sendo de realizar um dilogo (que, muitasvezes, pode at permanecer implcito) com os que estomais diretamente debatendo a gesto do cuidado em suasobras. De certo modo, tento aprender novamente comDeleuze (O ABECEDRIO..., 1988-1989), que procurava emseus estudos de histria da losoa no a abstrata evoluodos conceitos em si, mas a que problemas concretos osconceitos criados pelos lsofos eram dirigidos e como,

    em suas criaes, eles se propunham a super-los. Tento,assim, analisar no o que Eymard Vasconcelos denominapor gesto do cuidado, mas de que maneira ele pensa ecria ofertas para os sujeitos que se encontram diante danecessidade de produzir e de fazer a gesto do cuidado(ele optando, ao nal, pelos nomes que considerar maisadequados).

    Na anlise das obras que serviram de referncia paraeste estudo, tento encontrar apontamentos que permitamresponder as seguintes questes:

    - Qual a formulao para o cuidado em sade presenteneste autor?

    - Que arranjos concretos so propostos para a gestodo cuidado em suas formulaes?

    -Em suas obras, como ele dialoga com autores quedefendem outras perspecvas tericas?

    - Que possibilidades de interlocuo com outrosautores que discutem o cuidado podem ser idencadas eque ele no desenvolve em seus textos?

    Tento, com estas questes, delimitar a produodeste autor, no sendo de idencar a maneira como elese coloca neste debate, bem como especicando suas

    contribuies para estas questes. Para o desenvolvimentodesta pesquisa, foi necessria a arculao de diversasestratgias metodolgicas, as quais explicito melhor naseo seguinte.

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    Algumas opes metodolgicas

    Este estudo pode ser caracterizado como umapesquisa de natureza qualitava, de nvel exploratrio ede carter analco. Segundo Gil (1999, p. 43), a pesquisaexploratria tem como principal nalidade desenvolver,esclarecer e modicar conceitos e ideias, tendo em vistaa formulao de problemas mais precisos ou hiptesespesquisveis para estudos posteriores. Entre as diversastcnicas de pesquisa qualitava possveis para obteno dos

    dados, foram ulizados mtodos de pesquisa bibliogrca.A pesquisa bibliogrca um apanhado geral sobre osprincipais trabalhos j realizados, revesdos de importnciapor serem capazes de fornecer dados atuais e relevantesrelacionados com o tema. (MARCONI; LAKATOS, 2008,p.12)

    Inicialmente, realizei um levantamento bibliogrcopreliminar, onde tentei idencar as caracterscas geraisda educao popular em sade. Para tanto, realizei revisode argos publicados em revistas indexadas e disponveisna pgina virtual da base de dados da Scienfc ElectronicLibrary OnlineScielo, por disponibilizar os textos na ntegrade uma grande quandade de peridicos de reconhecidaqualidade. A idencao do material foi realizada atravs

    de buscas com a ulizao das seguintes palavras-chaves:educao popular em sade; educao popular e sade;educao em sade; educao em sade bucal; educaoem sade na escola; educao em sade pblica; educaoem servios de sade; educao para sade; educaosanitria; educao sanitria odontolgica.

    Foram idencados, inicialmente, 375 argos,os quais veram seus tulos, autores e resumos lidos,resultando em uma segunda seleo de 90 argos quepoderiam apresentar relao com o objevo deste

    levantamento bibliogrco preliminar e que foramselecionados para leitura exploratria, na tentava deidencar os que nham provvel capacidade de contribuircom a caracterizao da matriz terica da educao popularem sade. A parr disto, foram realizadas uma leituraseleva e posterior leitura analca dos 27 argos maisrelevantes para os objevos deste estudo. Atravs destesargos, foram idencados livros e captulos de livros,alm de mais 10 argos que no constavam na Scielo, queeram citados com mais relevncia, e que levaram a uma

    segunda seleo de materiais que totalizaram 37 argos,15 livros e 25 captulos de livros. Todo este material passoupor etapas semelhantes de leituras exploratria, selevae analca. As primeiras leituras foram necessrias paraselecionar, entre toda a produo, os materiais que teriampotencial de contribuir com a caracterizao das questescentrais para esta corrente de pensamento. As leituras maisprofundas foram realizadas j com a inteno de analisare interpretar o material selecionado, com a nalidade deconstruir snteses capazes de expor a construo tericapresente na educao popular em sade. medida que asleituras foram se sucedendo, realizamos apontamentos echamentos, os quais foram armazenados digitalmente,sendo posteriormente organizados logicamente a m de

    permir a redao do texto nal. (GIL, 2002)A parr desta pesquisa bibliogrca inicial, elaborei

    uma primeira sistemazao da produo da educaopopular em sade e, a parr dela, optei por realizar umestudo mais aprofundado da produo de um autor degrande relevncia desta corrente. Vale salientar queconheo as limitaes de uma amostra no probabilscaintencional (MARCONI; LAKATOS, 2008), como a que foirealizada aqui, mas considero que ela capaz de trazer ascontribuies adequadas para cumprir com os objevosdesta pesquisa. Sendo assim, optei por realizar uma anlise

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    mais aprofundada da obra de um autor especco porconsider-lo como um pico intelectual orgnico destaperspecva: trabalhei com a produo de Eymard MouroVasconcelos.

    Eymard mdico de formao, tendo concludoseu curso de graduao em 1975, cursou o mestrado emEducao, concludo em 1986, bem como o doutoradoem Medicina Tropical, concludo em 1997, todas estasformaes realizadas na Universidade Federal de MinasGerais. Realizou ps-doutorado em sade pblica pela

    Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca da FundaoOswaldo Cruz - ENSP/FIOCRUZ, entre os anos de 2003 e2005. professor do Departamento de Promoo da Sadeda Universidade Federal da Paraba, onde alm de cursosde graduao da sade, tem atuado nos programas de ps-graduao em educao e de ps-graduao em cinciasda religio e no projeto de extenso educao popular e aateno sade da famlia. Em seu currculo, disponvel naplataforma Laes do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCienco e Tecnolgico (CNPQ), refere ter experincia narea da sade coleva, com nfase em educao popular esade comunitria, atuando principalmente nos temas de:educao em sade, educao popular, ateno primria sade, espiritualidade na sade e extenso universitria.

    Entre as linhas de pesquisa que esto destacadas no seucurrculo, encontram-se: educao popular em sade;espiritualidade no trabalho em sade; educao popular eformao prossional em sade. Ele ainda se apresenta noLaes como membro avo da Rede de Educao Popular eSade.

    Em virtude de aspectos operacionais, e considerandoque o debate sobre a produo e a gesto do cuidadoem sade somente foi se tornando mais relevante hrelavamente pouco tempo, com as principais referncias

    surgindo a parr de meados da dcada de 1990, decidi,como critrio de leitura da obra deste autor, acessar todaa sua produo realizada nos anos de 1994 a 2009 e que seencontrasse disponvel em livros e captulos de livros, bemcomo em argos publicados em peridicos. Para idencaros argos, pesquisei todos os textos em que este autorparcipa da autoria, neste perodo, e que se encontravamdisponveis na pgina virtual com a base de dados dasrevistas indexadas no Centro Lano-Americano e do Caribede Informao em Cincias da Sade da Organizao

    Panamericana de Sade (Bireme). Para a idencao doslivros e captulos de livros, acessei principalmente o currculodeste autor, disponvel na pgina virtual da plataformaLaes do CNPQ, embora parte das publicaes tambmesvesse disponvel na Bireme. Ainda, realizei buscas napgina virtual Google Acadmico, com a nalidade delocalizar todas as publicaes disponveis neste perodo emque ele aparecia como autor ou coautor, a m de cruzaras informaes com as encontradas na Bireme e no seucurrculo Laes, no sendo de garanr que idencassetodas as publicaes deste autor no perodo de interesse.Entre as obras anteriores a este perodo, somente foramconsultadas as que ele mesmo referenciara, nas publicaesinicialmente selecionadas, como sendo relevantes para

    contribuir com suas reexes.Assim como no levantamento bibliogrco

    preliminar, aps localizao e obteno do material,realizou-se primeiro uma leitura exploratria, seguida deleituras seleva, analca e interpretava. As primeirasleituras foram necessrias para selecionar, entre toda aproduo, os materiais que teriam relao com as questeslevantadas neste estudo. As leituras mais profundas foramrealizadas j com a inteno de analisar e interpretar omaterial selecionado, com a nalidade de construir sntesescapazes de expor a construo terica presente nelas sobre

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    as questes centrais trabalhadas neste estudo. medidaque as leituras foram se sucedendo, realizei apontamentose chamentos, os quais foram armazenados digitalmente,sendo posteriormente organizados logicamente a m depermir a redao do texto dissertavo. (GIL, 2002)

    Nas obras deste autor, procurei compreender: qual aconcepo de cuidado e de gesto do cuidado elaborada porele; que arranjos concretos so ofertados para desenvolvera gesto do cuidado; a maneira como aparece o dilogocom autores que apresentam outras compreenses sobre

    a produo e a gesto do cuidado; as possibilidades deinterlocues com outros autores que discutem o cuidadoem sade.

    Para realizao da leitura analca e interpretava,ulizei como referncia alguns aspectos tericosda hermenuca losca. Para esta perspecva, acompreenso de algo a prpria interpretao, vista comouma condio do ser humano e no como resultado daaplicao criteriosa e padronizada de determinado mtodoa priori. Para tanto, esta corrente de pensamento admiteque, para se produzir uma compreenso, necessrioreconhecer o engajamento dos sujeitos, pois a parr dodilogo de suas concepes com aquilo que tenta entenderque a compreenso negociada, testando-se a inclusivenossas ideias e preconcepes. No existe um signicadoobjevo, o qual tentamos alcanar nos distanciando do quesomos para assimil-lo imparcialmente. Sendo assim, noh uma interpretao correta das aes humanas e dostextos; no se desvenda algo; no se reproduz algo pelainterpretao; sempre se constri uma compreenso nodilogo com o que j se traz. Neste sendo, a compreensotorna-se, em si, uma experincia prca, humana, deixandode ser um movimento em etapas de algo que assimiladopara depois ser aplicado. (SCHWANDT, 2006)

    Uma ma descrio de procedimentosmetodolgicos de tratamento de texto que podem serrelacionados abordagem hermenuca encontrada emtexto onde se analisa o debate que se trava entre Habermase Gadamer, este lmo um dos grandes pensadores quecontribuiu com a sistemazao terica na perspecvada hermenuca losca. Tal texto se encontra emMinayo (1996), em que so retomados os pressupostosmetodolgicos da hermenuca para as cincias sociais,quais seriam:

    [...] o pesquisador tem que aclarar para simesmo o contexto de seus entrevistadosou dos documentos a serem analisados.Isso importante porque o discursoexpressa um saber comparlhado comoutros, do ponto de vista moral, culturale cognivo. b) O estudioso do texto (otermo textoaqui considerado no sendoamplo: relato, entrevista, histria de vida,biograa etc.) deve supor a respeito detodos os documentos, por mais obscurosque possam parecer primeira vista, umteor de racionalidade e de responsabilidadeque no lhe permite duvidar. O intrpretetoma a srio, como sujeito responsvelo ator social que est diante dele. c) O

    pesquisador s pode compreender ocontedo signicavo de um texto quandoest em condies de tornar presentes asrazes que o autor teria para elabor-lo.d) Por outro lado, ao mesmo tempo emque o analista busca entender o texto, temque julg-lo e tomar posio em relaoa ele. Isto , qualquer intrprete deveassumir determinadas questes que otexto lhe apresenta como problemas noresolvidos. E compenetrar-se do fato deque no labor da interpretao no existelma palavra. e) Toda interpretao bem

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    sucedida acompanhada pela expectavade que o autor poderia comparlhar daexplicao elaborada se pudesse penetrartambm no mundo do pesquisador. Tantoo sujeito que comunica como aquele queo interpreta so marcados pela histria,pelo seu tempo, pelo seu grupo. Portanto,o texto reete esta relao de formaoriginal. (MINAYO, 1996, p.221-22)

    Tentei tomar estes passos como uma das refernciasno trabalho com o material bibliogrco selecionado

    para este estudo. Tambm, considerei algumas sugestesmetodolgicas propostas por Umberto Eco, em especialem relao maneira de organizar a leitura de materialbibliogrco e de como organizar os chamentos,omizando a etapa de redao da verso nal do texto.(ECO, 2001)

    No tratamento do material referente s obras deEymard Vasconcelos, procurei no me prender ao que elearma ou nega em relao a determinadas concepes deoutros autores. Tentei compreender e explicitar a mquinaconceitual que Eymard est construindo e nos ofertando,no sendo de ver as construes de gesto do cuidado queele est formulando.

    Busquei no iniciar o estudo sobre sua obra comuma srie de categorias analcas denidas a priori. Apsrealizao da leitura analca e elaborao de chamentos,constru categorias a parr dos prprios conceitos porele desenvolvidos que permissem compreender asconnuidades, desconnuidades e comunicaes existentesnas formulaes deste autor e fui redigindo o textodissertavo, agregando os conceitos a m de evidenciar asconcepes tericas sobre as questes que interessam aeste estudo.

    Em seguida, selecionei autores do campo da sade,

    na quase totalidade das vezes, com quem ele no dialogadiretamente, mas que produzem formulaes sobreo cuidado em sade. Busquei tambm pensadores deoutros campos de produo do conhecimento e que soreferncias para os pesquisadores que vm debatendo otema do cuidado de forma mais direta. Com estes autores,fui produzindo um debate, tentando compreender eexplicitar os momentos em que eles se aproximam, bemcomo em que pontos eles divergem.

    Por m, considerando que conceitos funcionam,

    necessariamente, em trama, e que no possvel fazerum recorte de um autor sem considerar os elementos quepermitem que ele realize a sua produo discursiva, tenteiidencar algumas referncias e premissas marcadorasda produo de enunciaes realizada por Eymard. Nestaperspecva, trabalhei com alguns conceitos que, nos seusenunciados, aparecem quase como axiomcos, comoaspectos a priori, caracterscas de sua reexo que noso negociveis, no esto em discusso. Com este lmomovimento, tentei delimitar alguns dos aspectos maisrelevantes a parr dos quais e com os quais este autorconstri suas formulaes.

    Para melhor apresentao do texto, separei aproduo resultante da pesquisa bibliogrca preliminar(em que busquei sistemazar as formulaes mais geraisda educao popular em sade), que foi agregada deforma sintca como uma seo parte, com o objevo dedelimitar o campo de produo acadmica e de lutas sociaisda educao popular em sade, terreno em que EymardVasconcelos est inserido e atuando de forma intensa. Naseo que se segue a esta, apresento os resultados dasanlises especcas da obra daquele autor. Para concluir,resgato alguns elementos analisados em momentosdiferentes do texto, com a inteno de produzir algumassnteses e apontar possibilidades de dilogos futuros.

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    Desenvolvimento

    Nas pginas que se seguem, encontram-sesistemazadas as reexes possibilitadas a parr da anliseda produo dos autores da educao popular em sade. Naprimeira seo, apresento o texto que foi fruto do estudo dereviso de literatura realizado, que permite compreendero processo que levou constuio da educao popularcomo uma das mais relevantes matrizes tericas do campoda sade no Brasil. Na seo seguinte, apresento as anlises

    realizadas a parr da leitura da obra de Eymard MouroVasconcelos.

    Compreendendo a educao popular em sade

    Nesta seo, fao um resgate do processo histricode constuio da educao popular em sade como frutoda atuao de diversos movimentos sociais, realizo umadescrio das caracterscas gerais da educao popularem sade, suas grandes pautas, a maneira como os autoresdesta perspecva compreendem a atuao educava dosservios de sade junto populao, suas crcas e disputascom o modo hegemnico de se organizar a educao e a

    ateno sade, bem como algumas contribuies queagregam aos que se propem a seguir suas bases e preceitos.Diante dos objevos deste estudo, esta seo consegueapresentar algumas das formulaes mais relevantesdos autores desta matriz, bem como fundamental paracompreender o contexto terico e polco de onde falaEymard Vasconcelos, de quem aprofundo as anlises emrelao formulao sobre a gesto do cuidado na seoseguinte.

    A educao popular em sade no Brasil: entremovimento social e ferramenta metodolgica

    O percurso das aes de educao em sade noBrasil tem suas razes nas primeiras dcadas do sculo XX.As campanhas sanitrias da 1 Repblica e a expansoda medicina prevenva para algumas regies do pas, aparr da dcada de 1940, no Servio Especial de SadePblica apresentavam estratgias de educao em sadeautoritrias, tecnicistas e biologicistas, em que as classes

    populares eram vistas e tratadas como passivas e incapazesde iniciavas prprias. (VASCONCELOS, 2001)

    At a primeira metade da dcada de 1970, a prcade ateno sade se resumia quase exclusivamente medicina privada, para os que podiam pagar, e nos hospitaisda previdncia social, para os trabalhadores que nhamcarteira assinada, em ambas situaes desenvolvendoprcas de carter basicamente curavas. As aesprevenvas e educavas em sade se davam de formaisolada. As condies de sade das classes pobres erampssimas e no reeam o crescimento econmico que opas apresentara nos lmos anos. A crescente insasfaopolca desencadeou um processo de instabilidade socialque obrigou o Estado a voltar um pouco sua ateno aos

    problemas mais bsicos da populao. a parr da que,na tentava de oferecer uma medicina curava para osmais carentes, comea a ser implementada no Brasiluma proposta de medicina comunitria que empregavatcnicas simplicadas, de baixo custo, e valorizava osaspectos prevenvos da sade. Nesta polca de sade,so criados vrios postos e centros de sade em muitasregies e cidades perifricas dos grandes e mdios centrosde desenvolvimento. Nestes espaos, os prossionais desade se viram diante da necessidade de atuar prximosda realidade das pessoas que eles atendiam e passaram

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    a se integrar na dinmica da vida das classes populares.(VASCONCELOS, 1997)

    O lento processo de abertura polca do pas se deu aparr da segunda metade da dcada de 1970. Sem pardose sindicatos onde se aglunar para resisr e construir umnovo modelo para a sociedade, a populao busca novasformas de se organizar. A Igreja Catlica, em virtudedas formulaes dos tericos da teologia da libertaoe por escapar em alguns aspectos da rede direta derepresso mobilizada pelo Estado, foi uma das instuies

    que permiu a reunio de pessoas com objevostransformadores e possibilitou trocas de experincias entrediversas reas do conhecimento e segmentos da sociedade.Neste perodo, foram muitos os movimentos aos quais osprossionais de sade se engajaram, vrios deles baseadosem uma relao menos vercal entre os prossionais e asociedade, inspirados nos conceitos da educao popular,sistemazados inicialmente por Paulo Freire e depois seabrindo toda uma rea de produo de conhecimentosvinculados s suas prcas, denominada educao popularem sade. (VASCONCELOS, 2008)

    O processo de reforma sanitria se deu atravs de vriaslutas polcas e instucionais que se intensicaram durantetoda a dcada de 1980, contando com a parcipao devrios prossionais que haviam desenvolvido experinciasinovadoras na organizao da ateno sade, muitos dosquais passaram a ocupar posies de gesto em algumasadministraes pblicas mais progressistas. Este movimentotambm contou com a colaborao de algumas lideranaspolcas e de organizaes da sociedade civil.

    No ano de 1986, realizou-se a VIII Conferncia Nacionalde Sade, grande marco polco e terico do processo dereestruturao da sade pblica da dcada de 1980. A parrdas propostas surgidas l, criou-se, em 1987, o Sistema

    Unicado e Descentralizado de Sade (SUDS), que garanuatendimento universal nos servios de ateno bsica erede de hospitais pblicos e conveniados, iniciando umprocesso de descentralizao de poder e desconcentraode recursos ao fortalecer as gestes estaduais. (MERHY,2002a; ELIAS, 1999)

    A Constuio Federal de 1988 arma, no seu argo196, a sade como um direito universal e responsabiliza oEstado pela realizao de polcas pblicas intersetoriaisque a garantam. (BRASIL. CONSTITUIO, 1988) Com ela,

    criado o Sistema nico de Sade, o qual foi regulamentadoatravs da Lei Federal n. 8080, de 19 de setembro de1990, conhecida como Lei Orgnica da Sade, que deniaentre os princpios e diretrizes do SUS: universalidade eequidade do acesso; integralidade da ateno; parcipaoda comunidade na gesto do sistema; descentralizaopolco-administrava com regionalizao e hierarquizaoda rede de servios de sade. Alguns aspectos de suaregulamentao passaram por vetos presidenciais, e foramrevistos a parr da Lei Federal n. 8142, ainda em 1990, emespecial os que tratam da parcipao popular na gesto econtrole do sistema.

    A dcada de 1990 seria de lutas pela efevaimplementao e expanso do SUS e foi marcada por vriasconferncias de sade municipais, estaduais e nacionais,alm da regulamentao mais detalhada da estrutura efuncionamento do SUS atravs de inmeras portarias, leis edas normas operacionais bsicas. (ELIAS, 1999)

    Em 1991, prossionais de sade, lideranas demovimentos sociais e pesquisadores envolvidos em diversasexperincias que se baseavam nos princpios da educaopopular se organizaram em torno da Arculao Nacionalde Educao Popular em Sade, que foi constuda noI Encontro Nacional de Educao Popular em Sade, que

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    ocorreu em So Paulo. Em 1998, a Arculao muda denome para Rede de Educao Popular e Sade, a qual passaa representar um espao importante de integrao polca,de troca de experincias e de formulao de teorias e depropostas alternavas para o funcionamento dos serviosde sade. Segundo Stotz, David e Wong-Un.

    A unidade de propsitos dos parcipantesdo movimento consiste em trazer, parao campo da sade, a contribuio dopensamento freiriano, expressa numapedagogia e concepo de mundocentrada no dilogo, na problemazaoe na ao comum entre prossionais epopulao. importante ressaltar, naidendade do pensamento de Paulo Freiree a dos parcipantes do movimento deeducao popular e sade, a convergnciade ideologias aparentemente dspares,quais sejam, o crisanismo, o humanismoe socialismo. (STOTZ; DAVID; WONG-UN,2005, p. 53)

    No ano de 2003, com o auxlio do Ministrio daSade no primeiro ano do governo do presidente LuisIncio Lula da Silva, realizou-se uma nova conguraoentre os movimentos sociais que se arculavam em tornoda luta pela sade. Com uma parceria com a Rede deEducao Popular e Sade, entre diversos sujeitos polcos,realizaram-se encontros estaduais que culminaram emum encontro nacional no qual se constuiu a ArculaoNacional de Movimentos e Prcas de Educao Popular eSade, que cou conhecida por ANEPS. (PEDROSA, 2007)

    A Rede de Educao Popular e Sade connuoua exisr de forma autnoma e, a parr de arculaesprovenientes de seus membros, tambm constui-se aRede de Estudos sobre Espiritualidade no Trabalho emSade e na Educao Popular. Esta rede agrega sujeitos que,

    parcipando ou no das outras arculaes, se interessamem aprofundar-se na temca da espiritualidade em sade.

    Nos lmos anos, o Ministrio da Sade temapresentado setores especcos para construo de polcase incenvo a avidades no campo da educao popular emsade e tambm foi criado um grupo de trabalho especcojunto Associao Brasileira de Ps-graduao em SadeColeva, rgo que congrega as endades acadmicasbrasileiras que produzem no campo da sade coleva.(ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004; VASCONCELOS, 2004)

    At que em novembro de 2013, publicada peloMinistrio da Sade a portaria 2.761, que instui a PolcaNacional de Educao Popular em Sade no mbito doSUS. Tal polca apresenta os seguintes princpios: odilogo; a amorosidade; a problemazao; a construocomparlhada do conhecimento; a emancipao; e ocompromisso com a construo do projeto democrcoe popular. Como eixos estratgicos, essa polca dene:parcipao, controle social e gesto parcipava;formao, comunicao e produo de conhecimento;cuidado em sade; e intersetorialidade e dilogosmulculturais. (BRASIL. MINISTRIO DA SADE, 2013)

    Este sucinto resgate histrico se fez no intuito de

    demonstrar que, mais do que sujeitos que produzemuma reexo acadmica, no campo da educao popularem sade, nos deparamos com colevos que vmdesenvolvendo intensa militncia polca e social. Paramuito alm disto, so colevos que apresentam grandedinamicidade e que tm a capacidade de constuir redesde arculao poderosas em suas capilaridades. Nestesmovimentos, foram sendo formuladas novas maneiras dese compreender e de realizar processos educavos no setorsade.

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    A educao em sade , muitas vezes, entendidacomo um modo de fazer as pessoas do povo mudaremseus hbitos para assimilarem prcas higinicas erecomendaes mdicas que evitariam o desenvolvimentode um conjunto de doenas. Entretanto, para parterelevante dos autores que se baseiam na educao popular,educar para a sade justamente ajudar a populao acompreender as causas destas doenas e a se organizarpara super-las. (VASCONCELOS, 1997)

    A educao popular toma como ponto de parda

    os saberes prvios dos educandos. Estes saberes vosendo construdos pelas pessoas medida que elas voseguindo seus caminhos de vida e so fundamentais paraque consigam superar, em diversas ocasies, situaes demuita adversidade. Algumas perspecvas da educaopopular fazem uma aposta pedaggica na ampliaoprogressiva da anlise crca da realidade por parte doscolevos medida que eles sejam, por meio do exerccioda parcipao popular, produtores de sua prpria histria.(VASCONCELOS, 2004; FREIRE, 1996)

    Segundo alguns autores, a educao popular, alm delevar incluso de novos atores no campo da sade, permitetambm que as equipes de sade ampliem suas prcas,dialogando com o saber da populao. (ALBUQUERQUE;STOTZ, 2004) A educao popular em sade, assim, buscaempreender uma relao de troca de saberes entre o saberpopular e o cienco, em que ambos tm a enriquecerreciprocamente. Segundo diversos autores, esta propostatorna-se cada vez mais necessria, medida que vem sendoproduzido um distanciamento cultural entre as instuiesde sade e a populao, fazendo com que uns nocompreendam o modo que os outros operam. A educaopopular em sade, em determinadas perspecvas, temcomo balizador ecopolco os interesses das classespopulares, cada vez mais heterogneas, considerando

    os movimentos sociais locais como seus interlocutorespreferenciais. (VASCONCELOS, 1998; 1997)

    Diversos autores da educao popular em sadebuscam no apenas a construo de uma conscinciasanitria capaz de reverter o quadro de sade da populao,mas a intensicao da parcipao popular radicalizandoa perspecva democrazante das polcas pblicas. Paraestes autores, ela representa um modo brasileiro de sefazer promoo da sade. (VASCONCELOS, 2004)

    Atualmente, a convivncia nos servios de sade e osmeios de comunicao de larga escala tm representadoas grandes conexes que permitem o desenvolvimento derelaes educavas entre os trabalhadores de sade e apopulao. (VASCONCELOS, 2008)

    Contribuies da educao popular para a educaoem sade

    As anlises realizadas a parr da educao popularapontam para a leitura de que a medicina no temse dedicado a compreender os saberes, estratgiase signicados que as classes populares desenvolvem

    diante dos processos de adoecimento para, a parr da,estruturar modos de agir que integrem o saber populare os conhecimentos tecnicociencos. Via de regra, ouse cona no bom senso do prossional de sade ou seproduzem trabalhadores especcos para desenvolvermedidas sanitrias desarculadas dos atendimentosindividuais, gerando pouco impacto na situao de sadedos colevos. Contrapondo-se a isto, a educao em sadetem sido o setor que tem feito buscas no sendo de superartais prcas, desenvolvendo diversas estratgias de dilogoentre os pensares e fazeres da populao e dos prossionaisde sade. (VASCONCELOS, 2008)

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    Entretanto, hegemonicamente, as aes de educaoem sade tm se apresentado como importantesinstrumentos de dominao e de responsabilizao dosindivduos pelas suas condies de vida. (ALBUQUERQUE;STOTZ, 2004) Para superar tal situao, prope-se reorientaras prcas de sade, de modo que a educao em sadedeixe de ser apenas mais uma oferta pontual dos serviospara ser algo inerente s suas prcas, construindo assima parcipao popular no seu codiano. (VASCONCELOS,2008; 2004)

    Para Valla, Guimares e Lacerda (2006), a redepblica de servios de sade existente muito importantepara a manuteno da sade das classes populares, e isso reconhecido por elas; entretanto, segundo estes autores,h tambm a concepo de que muitas questes essenciais sua sade no podem ser solucionadas nestes serviosquando funcionam do modo como tradicionalmente elestm se estruturado.

    Neste contexto, armam que a populao vemapontando outras formas de se organizar para solucionarseus problemas de sade, aliviar o sofrimento e construirformas terapucas de cuidado integrais. Os usurios tm,cada vez mais, buscado prcas das como alternavasque permitam compreend-los e impactar em melhorias desade de forma integral. E embora existam diversas prcasque se colocam com tal perspecva, muitas delas noesto disponveis nos servios de sade ou esto apenas disposio de parcelas mais abastadas da populao. Porisso, tornar-se-ia importante compreender e valorizar omodo como estas classes vm construindo suas alternavasde enfrentamento dos problemas de sade atravs dediversas estratgias. (VALLA; GUIMARES; LACERDA, 2006;LACERDA; VALLA, 2005a)

    Nesta perspecva, a postura do prossional de sadepara com a medicina popular deveria ser de respeitoe dilogo, idencando e apontando situaes que setem conhecimento de malecios causados populaopor algumas tcnicas e medicamentos populares, masvalorizando as prcas que representam uma sistemazaode conhecimentos que vo se acumulando ao longode vrias geraes. Seria relevante salientar o papel dediversos agentes informais de sade, os quais apresentamgrande respaldo popular e que portam saberes baseados

    em uma forte cultura, a qual se aprende na dinmica social.Estes atores podem apresentar alto poder educavo, comoos erveiros, as parteiras e as rezadeiras; entretanto, hpessoas que buscam ganhos nanceiros, como renomadosbalconistas de farmcias e prcos odontolgicos, quepodem ser orientados para evitar danos populaocorrigindo eventual m tcnica. (VASCONCELOS, 1997)

    Prcas como o uso de chs tm sido bastantecomuns em reas de servios de ateno bsica, sendocompreendidas como medidas de autocuidado, com grandeautonomia da populao para isto. (MACHADO; PINHEIRO;GUIZARDI, 2006) Alm de seu carter terapuco, segundoCelerino Carriconde, o uso de plantas medicinais apresentarelevncia: a) antropolgica, por resgatar os saberes

    populares e, assim, elevar a autoesma de populaes,muitas vezes, marginalizadas; b) pedaggica, por permira instuio de uma relao dialgica entre trabalhadoresde sade e usurios que dominam os usos destasplantas medicinais; c) econmica, permindo o acessoao medicamento toterpico; d) ecolgica, garanndo amanuteno de plantas que em muitas situaes vm sendoeliminadas pelas plantaes com interesse meramentelucravo. (CARRICONDE, 2002) A este conjunto de valores,acrescento aqui a sua relevncia social e polca, pois, paraconseguir as plantas, geralmente, as pessoas as procuram

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    junto aos seus vizinhos, fortalecendo a rede de apoio sociale permindo a discusso sobre o adoecimento e estratgiasde sua superao na e pela comunidade.

    A relao de dilogo diante de prcas como atoterapia relevante, pois idencando os usos dasplantas por parte da populao, os prossionais podemenriquecer seus arsenais terapucos; ao mesmo tempo,podem orientar algumas incorrees no manejo de plantasmedicinais que j foram ciencamente comprovadas,como efeitos adversos e contraindicaes de determinadas

    substncias. Esta relao permiria o surgimento de umterceiro saber, fruto da interao entre os conhecimentosdos prossionais de sade e da populao. (MEDEIROS;CABRAL, 2001)

    Outra ao educava muito comum so as palestras,modo mais frequente de realizao de prcas colevas emservios de sade. Elas precisariam ser reorientadas paraque, ao invs do repasse de normas e orientaes de higienee boas condutas, tais iniciavas se apresentassem comooportunidades de dilogo entre trabalhadores e usurios,onde os aspectos colevos da dinmica comunitriapudessem ser enfazados. (VASCONCELOS, 1997)

    A formao de grupos de pessoas com determinadas

    caracterscas que as aproxima, seja uma condiode vida, como pertencer a certa faixa etria, ou serportador de determinada doena, estratgia tambmcomumente ulizada para desenvolver processos deeducao nas unidades de sade. Em algumas situaes,sendo interessante, por exemplo, estruturar um cursosobre determinada temca como mote para se iniciarum grupo com as pessoas envolvidas nestas avidades.(VASCONCELOS, 1997) Um caso pico a realizao decursos de gestantes que tero seus primeiros lhos, paratrocar experincia com mulheres experientes e, a parr

    da, desenvolver um processo de discusso das condiescomuns entre estas mulheres. Nem todos os grupos,entretanto, encerrariam a mesma capacidade educava.Seria preciso, para criar um grupo, primeiro idencar osinteresses que mobilizam e os problemas mais relevantesde uma populao. Nos grupos organizados a parr depatologias especcas, sua fora estaria no no foco nadoena, e sim na circulao de emoes, nas trocas que seefetuam no comparlhamento de medos, tristezas, dorese afetaes de diferentes modos que se desenvolvem no

    processo de adoecimento e cura. A circulao destes afetosfavoreceria o fortalecimento dos laos e vnculos sociais.(LACERDA; VALLA, 2005a)

    Uma estratgia muitas vezes vista como interessante a exposio na, unidade de sade, de fotos em que seidencam problemas ou onde se registram atuaescolevas da populao para resolver determinadosproblemas, como um muro. Em outros casos, expor frasesde pessoas da comunidade que tenham a ver com algumacaractersca da dinmica social local. Tais medidas visamesmular as pessoas a pensarem e dialogarem quando vm unidade de sade, quaisquer que tenham sido os movosque as trouxeram. (VASCONCELOS, 1997)

    Estratgias de realizao de diagnsco eplanejamento parcipavos das aes de sade podem servistos como relevantes para mobilizao e conscienzaoda populao, mas tambm como necessrios para que aperspecva dos moradores possa corrigir distores frutosda lgica tecnicista, que muitas vezes leva a equvocosrelevantes por parte dos prossionais de sade. Nestesendo, o diagnsco e planejamento parcipavosrepresentariam uma possibilidade de ampliao dodilogo entre o saber popular e o saber tecnicocienco.(ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004)

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    Em relao s aes colevas realizadas fora do serviode sade, arma-se que elas variam desde as mais tcnicasat as mais polcas. Nelas, as equipes de sade podemter carter mais direvo ou serem pracamente convocadaspela populao para parcipar. Quanto mais autnomase mais voltadas para processos colevos da dinmica devida, geralmente, mais polizada estaria a populao.Entretanto, como as aes colevas, independentementede quem as coordena ou do que as mova, podem tantopromover desenvolvimento social como dicult-lo,

    seria importante que fossem bem preparadas e que setomassem os encaminhamentos adequados para quese desenvolva seu potencial educavo. Geralmente, osgrupos que so formados pela populao se apresentariamcom caracterscas de prestadores de servios, deaes reivindicatrias ou de realizao de mures.(VASCONCELOS, 1997) Uma possibilidade desaadoraseria atuar na perspecva do duplo caminho onde, aomesmo tempo em que se reivindica e se responsabilizamos governantes, tenta se solucionar os problemas com osrecursos que consegue mobilizar autonomamente. (VALLA,1999)

    Progressivamente, entretanto, a criao de grupose movimentos especcos de sade foi deixando de ser a

    estratgia prioritria desenvolvida pelas classes populares,passando a ser mais comum a estruturao de grupos quediscutem o tema da sade diversicando a atuao dentrode organizaes mais amplas das classes trabalhadoras.(VASCONCELOS, 1997)

    Um desao que se reconhece que, alm daatuao junto aos grupos da populao, muitas vezes,se faz necessrio que as equipes de sade desenvolvamaes polcas junto a instuies locais e lideranaspolcas; sejam as que podem estar relacionadas com o

    desenvolvimento da comunidade, ou ento as que tm opapel de manter o servio para viabilizar o seu adequadofuncionamento. A relao com estas lideranas deveriaser respeitosa, ao mesmo tempo em que se precisaria terclareza dos processos em negociao, a m de evitar amanipulao das avidades dos servios pblicos de sadepor parte de grupos polcos com interesses privastas.(VASCONCELOS, 1997)

    Um importante meio de comunicao que propostopara ampliar a interlocuo com a populao o rdio.

    Alm de apresentar elevado alcance, permindo angirum grande pblico de uma s vez, principalmente naspopulaes mais pobres, geralmente as emissoras de rdioesto acessveis aos prossionais de sade e permitemo dilogo com o ouvinte, dinamizando, arculando eaproximando o processo educavo da realidade daspopulaes. (VASCONCELOS, 1997) Esta estratgia tende ase tornar mais potente em virtude da grande expanso dasrdios comunitrias ocorrida, nos lmos anos, em todo opas.

    Uma das aes vistas como relevantes para permiro dilogo e troca de saberes a realizao ou parcipaoem mobilizaes que esto ligadas diretamente ao lazere interao social, como a organizao de festas eeventos comemoravos, bingos, entre outras avidades.Tais aes fortaleceriam a felicidade como projeto devida para populaes que, geralmente, tm muito poucaoferta deste po nas reas onde moram, e demonstrariamuma abertura da equipe para ampliar a concepo desade com que atua. (MACHADO; PINHEIRO; GUIZARDI,2006) Brinquedotecas, clubes da terceira idade, rdioscomunitrias, ocinas de arte, msica e dana, exibio devdeos, teatros de mamulengo e de rua so algumas dasaes no setor da cultura popular vistas como iniciavas

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    que poderiam potencializar avidades na perspecva daeducao popular em sade e que vo para muito almdos muros dos servios de sade. (ALBUQUERQUE; STOTZ,2004)

    A educao popular em sade ajudando acompreender e lidar com as iniciativas autnomas dapopulao: as redes de apoio social no territrio

    Para diversos autores, problemas como o desemprego,a precarizao das relaes de trabalho, a iniquidade nadistribuio de renda, a violncia e a retrao de redessociais contribuem para a intensicao de um ciclo quegira em torno da pobreza, isolamento e adoecimento e tmlevado ao desenvolvimento de um certo sofrimento difusona populao. Este sofrimento difuso estaria elevando ademanda de ateno sade e demonstrando os limitesdo atual modo de se estruturar a ateno sade noBrasil. (VALLA; GUIMARES; LACERDA, 2006; LACERDA;VALLA, 2005b) A atuao dos prossionais de sade quese baseia na realizao de procedimentos vem produzindouma limitada oferta de aes para lidar com os problemascomplexos que se apresentam. (LACERDA; VALLA, 2005a)

    O sofrimento difuso se caracterizaria por umasensao de mal-estar generalizado com uma diversidadede sintomas, tais como irritabilidade, insnia, nervosismo,ansiedade, angsa, dores no corpo, acrescido da falta deperspecva de vida. (LACERDA et al., 2007, p.250) Uma dascondutas mais comumente ulizadas diante destas situaes a medicalizao (tratando com benzodiazepnicos, porexemplo), o que no resolve o problema, leva cronicaodo quadro clnico, apresenta uma srie de efeitos adversose no permite a explicitao dos problemas de base,

    dicultando ainda mais o desenvolvimento de estratgiascolevas de superao dos problemas.

    De acordo com Victor Valla (apud LACERDA; VALLA,2005a), os prossionais de sade precisam reconhecer que,diante da diculdade de se lidar com situaes de sofrimentodifuso, a crise de interpretao nossa. Para este autor,por parrmos de ideias preconcebidas que consideramosportadoras de verdade, no escutamos adequadamenteas falas da populao, no nos atemos aos seus discursose no nos abrimos a compreender o modo como operam

    seus saberes. Colocando nossos conhecimentos ciencos- e no a vida dos sujeitos - como centro do processo detrabalho, estaramos construindo modos de operar otrabalho em sade que se desconectam da realidade vividapelas classes populares. (VASCONCELOS, 2008; VALLA;GUIMARES; LACERDA, 2006; LACERDA; VALLA, 2005a;2006)

    Tornar-se-ia essencial compreender a dinmica do quea prpria populao tem estruturado em suas estratgiasautnomas de produo de vida, evitando julgamentosmorais por parte dos prossionais de sade. Nos lmosanos, por exemplo, as igrejas evanglicas tm representadouma das buscas mais comuns realizadas pelas classespopulares. Ao mesmo tempo em que as igrejas podem estarrelacionadas a prcas indesejveis de disciplinarizaoe controle (FOUCAULT, 2004a; DELEUZE, 1992), emcertas situaes, para alguns autores, elas tambm seapresentariam como lugares: em que as pessoas podemser acolhidas e cuidadas; que trabalham com as emoese afetos, gerando sensao de pertencimento a colevos;em que se constroem redes de solidariedade capazes deresolver problemas de mbito nanceiro e afevo; ondese armam relaes que se baseiam em valores s vezescontrrios aos interesses gerais da sociedade capitalista

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    que os oprime e com os quais os sujeitos no queremse idencar; tambm, onde se consegue encontrarexplicaes para as coisas desordenadas e que passama dar sendo s suas vidas. (LACERDA et al., 2007; 2006;VALLA; GUIMARES; LACERDA, 2006; VASCONCELOS,2006a; LACERDA; VALLA; GUIMARES, 2005) Lacerda, Vallae Guimares (2005) chegam a idencar vrias semelhanasentre os trabalhos desenvolvidos nas classes populares pelospastores evanglicos e os papis que vm desempenhandoos agentes comunitrios de sade das equipes de sade

    da famlia. Sendo assim, seria importante construir dilogocom os agentes religiosos presentes nos grupos sociais,independentemente da opo religiosa do prossional desade. relevante idencar o modo como estas instuiesreligiosas podem ou no representar e fortalecer buscas demelhorias para a vida das pessoas e produzir as parceriasnecessrias para minimizar possveis propostas que tendama dicultar a construo de alternavas colevas para osproblemas de sade da populao. (LACERDA; VALLA;GUIMARES, 2005; VASCONCELOS, 1997)

    Lacerda e Valla (2005a) consideram o apoio social comoum trabalho que busca o autocuidado ou o desenvolvimentode ambientes saudveis, como uma das dimenses deprcas ou de sistemas de sade que se orientam atravs

    da perspecva da promoo da sade. No conceito de apoiosocial, agrega-se um conjunto de avidades que podem terresultados favorveis no enfrentamento dos problemasde sade-doena, e que se estruturam atravs de diversasrelaes solidrias que se estabelecem entre os sujeitos.Essas relaes podem se desenvolver ao se mobilizaremsistemacamente o conjunto de recursos emocionais,materiais e de informao a parr de relaes nmase familiares ou at em grupos sociais maiores. As vriasestratgias que desenvolvem o apoio social buscam ajudarna constuio de sujeitos que tenham capacidade de denir

    os rumos de suas prprias vidas, de ampliar sua autonomia.Esta situao leva os sujeitos a terem maior possibilidadede responder aos fatores estressantes e passam a lidarmelhor com as adversidades da vida, levando a melhoriasna sade sica e mental. Ao trabalhar com a concepode que a origem das doenas, bem como a sua superao,necessariamente, est relacionada com as emoes queso mobilizadas pelos sujeitos, o apoio social se suportaem abordagens que privilegiam a totalidade corpo-mente,no considerando estas como dimenses disntas dos

    sujeitos. O apoio social apresenta carter de reciprocidade,trazendo efeitos favorveis para todos os envolvidos,estejam aparentemente oferecendo ou recebendo o apoio,fortalecendo a compreenso de que as pessoas necessitamumas das outras para construrem relaes de cuidadointegrais. (VALLA; GUIMARES; LACERDA, 2006; LACERDA;VALLA, 2005a; VALLA, 1999)

    Nesta perspecva, o apoio social se desenvolveriae se potencializaria atravs da arculao em uma redesocial, que se congura atravs de uma teia que agregae conecta os indivduos; uma teia de vnculos sociais quepermite a circulao dos recursos tangveis e intangveismobilizados pelo apoio social. O apoio social desenvolvidoem redes de solidariedade possibilitaria o fortalecimento

    da singularidade dos sujeitos e os tensionaria a seremportadores de projetos para a prpria vida, alm de quereforaria laos que criam uma sensao de pertencimentocolevo, melhorando sua sade de modo integral emmbito individual e colevo. (LACERDA; VALLA, 2006; 2005)

    Reconhece-se que as redes de apoio social,geralmente, se desenvolvem a parr de arculaesautnomas dos usurios; mesmo assim, os prossionaisde sade poderiam potencializar o apoio social: ajudandoa desarcular redes sociais prejudiciais; idencando as

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    redes sociais que circundam os usurios e esto envolvidasno seu adoecimento ou podem ser ulizadas para facilitaro enfrentamento de seus problemas; fortalecendo redessociais posivas existentes; esmulando a congurao denovos arranjos colevos entre a populao e os recursosdisponveis. Tais atudes ajudariam no processo terapucoao tornar conscientes, para os usurios, processos muitasvezes no idencados pelos mesmos, e permir aosprossionais atuar em campos ainda no explorados em suainterveno. Dependendo da complexidade do problema,

    os prprios prossionais de sade tambm precisariamestar arculados em redes que ampliassem o cuidado aosusurios e seus familiares. (VALLA; GUIMARES; LACERDA,2006; LACERDA; VALLA, 2005a; VALLA, 1999)

    Sendo assim, a relao prossional de sade-usuriopoderia ser compreendida como produtora de apoiosocial, seja como apoio informavo ou apoio emocional.(LACERDA; VALLA, 2005a) O apoio informavo se estruturana relao dialgica que se estabelece no trabalho em sade,enquanto o apoio emocional se desenvolve a parr domodo como se conguram as relaes a parr das atudesdo prossional diante do usurio. Na verdade, ambasdimenses do apoio esto intrinsecamente arculadas,pertencendo a um mesmo processo, e elas poderiam ser

    potencializadas quando o prossional centra suas aes nonos conhecimentos que domina, e sim nas tecnologias levesdo trabalho vivo operando em ato. (MERHY, 2002b) Tratar-se-ia de permir que os afetos e afetaes desencadeadasna relao zessem parte e orientassem as condutas doprossional de sade. (LACERDA; VALLA, 2005a)

    A Terapia Comunitria uma tcnica de trabalhocom grupos que se baseia no relato da histria de vidados parcipantes e do modo como cada um lida com suasdiculdades do codiano. Para alguns autores, o relato

    e a escuta atenta permiria que as emoes circulasseme fossem ressignicadas pelos sujeitos, fortalecendo-ose os processos colevos em que se inserem. A TerapiaComunitria integraria, assim, as aes de preveno epromoo sade que tomam como foco o sujeito e no asdoenas. (LACERDA et al., 2007) Entretanto, importantesalientar que prcas de Terapia Comunitria no podemser desenvolvidas de forma desarculadas de outrosmodos de luta social, para evitar que seu resultado sejamera resignao ou culpabilizao dos sujeitos.

    Na anlise de Lacerda e Valla (2005b), o apoiosocial se aproxima do paradigma sistema da ddiva, quese estrutura na obrigatoriedade da trade dar-receber-retribuir, fazendo com que os bens materiais e simblicospossam uir em trocas sistemcas entre os diferenteslaos e vnculos das redes sociais que se constuem.

    Para fazer avanar a educao popular nos serviosde sade

    Alguns autores que produzem na perspecva daeducao popular em sade reconhecem que h muitos

    avanos no sendo de ela se desenvolver junto aosservios de sade; entretanto, tais avanos no teriamainda sido sucientes para mudar o modo como o modelohegemnico vem sendo implantado, pois seria necessrioque exisssem mais do que apenas alguns trabalhadoresdesempenhando este papel. (VASCONCELOS, 2004)Haveria, entre os prossionais de sade, a compreensode que no preciso aprender a fazer educao em sade,bastando para tanto o seu conhecimento clnico; somar-se-ia a isso a pouca oferta de formao e de processos deeducao permanente no conjunto dos municpios, fruto da

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    inexistncia de polca com tal nalidade. (ALBUQUERQUE;STOTZ, 2004) Tal situao estaria limitando o avano dasaes de educao popular em sade. Seria necessrio odesenvolvimento de polcas mais intensivas de formaode prossionais de sade que considerassem a educaopopular como mtodo nas suas formaes. (VASCONCELOS,2004)

    feita a crca de que, muitas vezes, as experincias deeducao popular em sade so desenvolvidas apenas poriniciava dos prossionais, sem que houvesse uma polca

    especca de induo por parte dos gestores municipais,chegando mesmo a ocorrer resistncias por parte destes.(ALBUQUERQUE; STOTZ, 2004) Diante destas situaes,seria importante construir estratgias de disputa dosdisntos projetos polcos junto sociedade. Tal caminhose torna ainda mais dicil, entretanto, quando encontramosos trabalhadores com vnculos empregacios precrios,por fragilizar estes atores diante dos que ocupam posiode governo; infelizmente, esta situao extremamentecomum em diversas localidades do pas.

    A tentava de incorporar a educao popular ateno sade nos grandes centros urbanos temenfrentado tanto o poder polco como o econmicodominante, hegemnicos na lgica de funcionamento dosservios de sade, como a injusta distribuio de recursospor parte do Estado, que na maioria das vezes no privilegiaos setores sociais. (VASCONCELOS, 2008) A expanso daeducao popular em sade exigiria que, aos movimentosdesencadeados pelos trabalhadores nos servios de sade,se somassem iniciavas de gestores nas trs esferas degoverno. (VASCONCELOS, 2004)

    A gesto do cuidado em sade na obra de Eymard Mouro

    Vasconcelos

    Nesta seo, apresento a sistemazao daproduo sobre gesto do cuidado em sade presente naobra de Eymard Moro Vasconcelos; como j armadoanteriormente, concentro a anlise sobre as publicaesrealizadas entre os anos de 1994 e 2009. Antes de entrarnas suas formulaes, entretanto, considero necessriodelimitar alguns aspectos sobre a maneira como este autor

    se relaciona com sua produo e, em seguida, explicitarum pouco mais alguns elementos para que que clara aperspecva conda nesta seo.

    Inicialmente, quero salientar que Eymard no secoloca, em nenhum dos seus escritos, como um pesquisadorasspco. Em tudo que escreve, explicita sua vinculaocom os interesses do que ele, geralmente, denomina porclasses populares. Mas, para alm desta demarcaopolca, neste momento, importante salientar que ele um pesquisador que toma sua prpria implicao comoelemento para anlise e produo de conhecimentos.

    Em seu texto o conhecer militante do sujeito implicado:o desao em reconhec-lo como saber vlido, EmersonMerhy discorre sobre a necessidade de se produziremnovos modos de construir e validar o conhecimento. Elechama ateno para o fato de que h dois modos em geralde se lidar com a produo do conhecimento: o sujeito seprotege ou se isola do seu estudo atrs de um referencialepistemolgico e metodolgico, ou ento, na outraperspecva, ele assume que no h isolamento possvel,reconhecendo que as opes so mediadas pela viso demundo dos pesquisadores. Entretanto, tais possibilidadesno tm conseguido responder a um conjunto de estudosem que o pesquisador parte do que est estudando e a

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    prpria pesquisa vai modicando o que ele estuda. Diantedestas situaes, prope que se coloquem as implicaes dossujeitos como parte central do desenvolvimento de algunsestudos, os quais reconheceriam esta singularidade, no sepropondo a validar sua produo a parr de um conjuntode aproximaes metodolgicas a um determinado saberepistemologicamente legimado. Tais estudos exigiriamque os sujeitos implicados debatessem as suas contribuiesa parr de seu lugar de militante pesquisador que tentaofertar ferramentas para outros militantes, pesquisadores

    ou no, que comparlham suas perspecvas ou que estocom ele implicados na construo daquilo que se estestudando. (MERHY, 2004) De maneira muito prxima aoque pretende Alcindo Ferla: