O Crime Elegante
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Avaliação do Professor – Filosofia e Ética – Faculdade Borges de Mendonça – Prof. Saulo
O crime "elegante" – Por Walter Ceneviva. Folha de S. Paulo, 6.2.1981
Os temas da violência urbana são importantes, mas estão permitindo que se tire de foco outra violência cujas consequências
são muito mais sérias para a sociedade como um todo: a dos criminosos de paletó e gravata. Essa desfocagem é gravíssima. O grupo
social está consciente do perigo do "trombadinha". Tem raiva do ladrão. São muitos os que proclamam as vantagens da pena de morte
para assassinos e estupradores. Todavia, encara com indiferença e até com desalentada passividade que o grande golpista dos dólares,
o despudorado ladrão de ações, o cínico criminoso das empresas públicas, o impiedoso manipulador do mercado imobiliário fiquem
impunes. Essa é uma atitude irracional e primária. Entretanto, aparentemente, inevitável. O canalha colunável que se sustenta em
sucessivos golpes, ao preço da infelicidade e do patrimônio alheio, muitas vezes levando famílias inteiras à ruína, é encarado como
aventureiro ousado e, às vezes, até mesmo como provido de um certo charme. O "trombadinha", ainda que menor de idade, ao tirar
uma carteira e sair em disparada, sempre encontra quem o queira linchar. Sobre ele se abate, com facilidade, a baba do ódio que está
alojada nos sentimentos do povo.
A causa aparente do absurdo está na indiferença ante o grande dano coletivo e a fúria cada vez mais agravada contra a ofensa
individual. O mundo inteiro é evidente que sob o impacto de cobertura maciça da imprensa escrita e da televisão - se sensibilizou até
as lágrimas com o caso dos reféns americanos. Todavia, são muito poucos os que se afligem com as dezenas de crianças que
diariamente morrem de inanição neste nosso Brasil. Do ponto de vista do direito essa atitude repercute em leis que tendem a ser cada
vez mais rigorosas com o pequeno criminoso individual, ainda que brutal e impiedoso, e cada vez mais generosas com os "assaltantes"
que ouvem Bach, que distinguem Picasso de Miró, a um primeiro olhar, ou que, simplesmente, tendo amealhado fortuna, sentem -se
desobrigados de qualquer gesto de respeito pelo patrimônio alheio ou pela dignidade. A lei, pelo tratamento benévolo que dá a esses
delitos, incentiva -os. Isto, sem falar em sua proverbial impunidade. Tende a lei a não ser alterada, porque o grupo social não consegue
sensibilizar-se para a imensa fonte de danos que tais delitos provocam. Diversamente portanto do que acontece com os crimes
individuais geralmente praticados pelo maloqueiro e pelo favelado, e, por isso, juridicamente "pequenos".
Alguns exemplos ilustram o que quero dizer. O cidadão que, por culpa, provoque poluição de uma fonte de água potável
sujeita-se a detenção de seis meses a dois anos, embora ponha em risco a vida e a saúde de muita gente, como se tem visto em casos
repetidos. Aquele que corrompa, adultere ou falsifique substância alimentícia destinada ao consumo público sujeita -se a uma pena
máxima de seis anos. Ou seja, dois anos mais que a do autor de apropriação indébita de uma caneta -tinteiro. Todavia, dois anos
menos que o criminoso do furto qualificado, ainda que o produto seja de umas poucas centenas de cruzeiros. O funcionário público,
prevaricador - tanto o pequeno quanto o grande potentado do serviço público -, que retarde ou deixe de praticar indevidamente ato de
ofício, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, corre o risco máximo - rarissimamente aplicado - de um ano de detenção, seja
qual for a relevância social do ato praticado. A formulação da lei tem um defeito de origem, como se demonstraria com mais outros
exemplos, se fossem necessários. Os que aí ficaram são, porém, suficientes para evidenciar outro aspecto relevante: é a elite que faz a
lei. Escreve -a a seu gosto, voltada para seus principais interesses. Os únicos, aliás, de que tem compreensão adequada. Só assim é
possível entender que a fraude no comércio, consistente em enganar intencionalmente o adquirente ou o consumidor, vendendo
mercadoria falsificada ou deteriorada como se fosse verdadeira, merece apenas detenção de seis meses a dois a nos, pouco importando
qual o prejuízo causado ou quais sejam os enganados. Porém, para o rufião, que explora uma prostituta, a pena é de reclusão de uma
quatro anos. O pequeno comerciante, porém. pode até ser levado a ajoelhar -se diante do juiz, como aconteceu há pouco. É a punição
que recebe por ser pequeno...
A óptica social está errada. A atitude da sociedade é burra, quando fecha os olhos para o criminoso de punhos de seda, cuja
conduta tem um terrível subproduto ainda insuficientemente avaliado. Subproduto consistente na contribuição para o agravamento das
condições sócio - econômicas da maioria do povo, geradores principais das agressões urbanas. E, paradoxo dos paradoxos: algumas
das vozes mais calorosas do combate à violência assustadora mas nascida no submundo da metrópole certamente seriam caladas se
fosse possível punir a grande e desumana violência dos criminosos de paletó e gravata. Isso porque algumas dessas vozes pertencem a
eles. Essa é uma realidade que ainda não atingiu a consciência do povo.
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Atividade: Redija um texto dissertativo, com aproximadamente 30 linhas, embasado em reflexões dos filósofos que estudamos neste
bimestre e no texto de Walter Ceneviva. É permitida consulta.