O conceito de revolução

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Boito Jr

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  • 1Cena poltica e interesse de classe na sociedade capitalista - comentrio em comemorao

    ao sesquicentenrio da publicao de O Dezoito Brumrio de Luis Bonaparte

    Armando Boito Jr.

    O trabalho terico de Marx opera, na anlise econmica, social e poltica, com a

    distino entre, de um lado, uma realidade aparente ou superficial e, de outro lado, uma

    realidade essencial ou profunda. sabido que essa distino no exclusiva do marxismo.

    Ela , em suas diversas modalidades, milenar na histria da filosofia e na histria da

    cincia. Contudo, apenas as concepes que apresentam a realidade superficial como um

    vu que desempenha uma funo particular, qual seja, a funo de ocultar a realidade

    profunda, apenas essas encontram-se num terreno prximo ao do marxismo.

    muito conhecido e comentado o modo como tal distino opera no incio do

    volume 1 de O Capital, mais exatamente na passagem da segunda seo (A transformao

    do dinheiro em capital) para a terceira seo (A produo da mais-valia absoluta).

    Analisando as relaes entre o operrio e o capitalista como relaes entre vendedor e

    comprador de mercadoria, Marx comea pela realidade superficial e enganosa do mercado,

    realidade econmica regulada pelo direito burgus. Nesse plano, os proprietrios de

    mercadorias, inclusive o trabalhador que vende a sua fora de trabalho, aparecem, todos,

    como homens livres, iguais e trocando equivalentes. A seguir, Marx introduz a realidade do

    processo de produo capitalista e, nesse momento, a explorao de classe desfaz a

    liberdade, a igualdade e a troca de equivalentes. Observa-se, ento, que o trabalhador, longe

    de usufruir da liberdade de ir e vir, est prisioneiro no interior da unidade produtiva, seu

    tempo e seus passos so controlados, ele, longe de ser tratado como um igual, o

    Professor do Departamento Cincia Poltica da Unicamp

  • 2subalterno que deve obedincia ao capitalista e a seu preposto, e a utilizao de sua fora de

    trabalho, ao invs de agregar apenas um valor correspondente ao que lhe foi pago a ttulo

    de salrio, gera um valor excedente que apropriado pelo capitalista. O trabalhador

    assalariado , de fato, juridicamente livre, o que o distingue do escravo e do servo. A

    proclamao de liberdade , como diria Althusser, uma aluso realidade. Mas, essa

    mesma proclamao , tambm e principalmente, uma iluso, na medida em que oculta a

    relao de explorao e de dominao de classe. Trata-se, ento, de uma iluso ideolgica,

    porque desorganiza a classe operria e interessa classe capitalista. a anlise cientfica

    que pode desvelar a realidade profunda encoberta pela realidade aparente. O observador

    que se ativer, como o economista vulgar, esfera da circulao, produzir idias

    superficiais e mistificadoras.

    Essa distino geral, que est presente no conjunto da obra de maturidade de Marx,

    opera de um modo importante, e talvez no suficientemente destacado e desenvolvido, na

    sua anlise da cena poltica nas sociedades capitalistas. Na verdade, at a dcada de 1970,

    os dirigentes e intelectuais da escola comunista e, em menor medida, da escola

    socialdemocrata, tinham o cuidado de distinguir, na cena poltica das sociedades

    capitalistas, o mundo das aparncias, onde cada contendor proclama seus nobres princpios

    e seus pretensos valores universais, do mundo profano dos interesses econmicos e

    polticos, onde valores e interesses se trocam uns pelos outros no porque ningum tenha

    princpios, mas porque todos os princpios esto vinculados a interesses. Entretanto, ao

    longo das ltimas dcadas, com a crise e declnio dos antigos movimentos socialista e

    comunista, a concepo burguesa, vulgar, da cena poltica nas sociedades capitalistas, essa

    /concepo disseminou-se amplamente, sendo contrabandeada, inclusive, para o campo dos

    intelectuais socialistas. Hoje, no mais das vezes, considera-se desnecessrio ou

  • 3improcedente o esforo intelectual para detectar os interesses de classe que se ocultam atrs

    das correntes e partidos polticos que disputam o poder. Numa conjuntura como essa, vale a

    pena, ento, retomar a questo.

    A conhecida obra de Marx O Dezoito Brumrio de Luis Bonaparte, obra cuja

    publicao est completando 150 anos, d um tratamento pioneiro e exemplar a essa

    matria**. Essa obra encerra uma fase do colossal trabalho de Marx de fundao da anlise

    cientfica da poltica e, particularmente, da anlise da poltica nas sociedades capitalistas

    a fase iniciada com a ruptura terica de A ideologia Alem e encerrada com o balano

    poltico da experincia das revolues de 1848. Utilizemos, ento, esse sesquicentenrio

    para tirarmos algumas lies.

    A cena poltica dissimula os interesses e conflitos de classes

    Em O Dezoito Brumrio e tambm no Lutas de classes na Frana, livro que o

    antecedeu e lhe serviu de base, Marx concebe a cena poltica nas sociedades capitalistas,

    que o espao de luta entre partidos e organizaes polticas, como uma espcie de

    superestrutura da luta de classes e de fraes de classe, que formam aquilo que poderamos

    denominar a base scio-econmica da cena poltica. A cena poltica uma realidade

    superficial, enganosa, que deve ser desmistificada, despida de seus prprios termos, para

    que se tenha acesso realidade profunda dos interesses e dos conflitos de classes. Podemos

    conceber, aqui, uma diferena com a cena poltica e as instituies representativas nas

    sociedades pr-capitalistas. O Senado Romano ou os Estados Gerais da Frana medieval

    so, como parlamentos pr-capitalistas, e seguindo as caractersticas escravista e feudal do

    Estado romano e do Estado francs, instituies particularistas cujos vnculos sociais so

    ** Foi Danilo Martuscelli quem me chamou ateno para o sesquicentenrio da publicaodo Dezoito Brumrio, o que me estimulou a produzir este texto.

  • 4evidentes por si s. No Senado Romano, antes da criao da figura do tribuno, s entram os

    patrcios e nos Estados Gerais franceses s os homens livres tm assento. Mas as

    caractersticas da cena poltica na sociedade capitalista decorrem das caractersticas gerais

    do Estado capitalista e, desse modo, a aparncia universalista desse Estado, fruto do direito

    igualitrio e da burocracia profissional formalmente aberta a todas as classes, essa

    aparncia contamina todos os partidos polticos burgueses e pequeno-burgueses e todas as

    correntes de opinio. A sociedade burguesa uma sociedade annima e os seus partidos

    polticos devem manter esse anonimato de classe. Para esclarecermos essa idia e, ao

    mesmo tempo, fazermos uma referncia crtica ao conceito gramsciano de sociedade civil,

    diramos que as figuras bsicas da ideologia da sociedade civil so produzidas e difundidas

    pelo prprio aparelho repressivo do Estado (pelo direito e pela burocracia).

    Pois bem, os partidos burgueses e pequeno-burgueses no anunciam abertamente os

    interesses que representam e organizam. Na verdade, eles representam e, ao mesmo tempo,

    dissimulam interesses de classe. As idias, valores e programas desses partidos cumprem a

    dupla funo de organizar seus representados e iludir a classe operria. Veremos, no final

    deste comentrio, que outra (e deve ser outra) a relao dos partidos operrios com a

    classe que representam. Por ora, contudo, o que interessa destacar que a anlise poltica

    marxista das sociedades capitalistas s comea quando, e somente quando, o analista

    evidenciar os laos complexos que unem a cena poltica aos interesses econmicos e aos

    conflitos de classe. Praticar anlise poltica designando os agentes presentes na cena

    poltica pelos nomes e objetivos que eles prprios se do permanecer na superfcie

  • 5enganosa do fenmeno e muitos marxistas incorrem nesse erro, tpico da cincia poltica

    vulgar (1).

    No espao desse breve comentrio, no possvel analisar todas as mltiplas

    relaes entre, de um lado, os partidos e agrupamentos presentes na cena poltica francesa

    de meados do sculo XIX e, de outro lado, os interesses das diferentes classes (burguesia,

    classe operria, pequena burguesia e campesinato), fraes de classe (indstria, finanas,

    agricultura etc.) e camadas sociais (o lumpemproletariado), tal qual essas relaes so

    pensadas, com riqueza de detalhes, nas obras O Dezoito Brumrio e Luta de classes na

    Frana. Por isso, vale a pena apresentar, de sada, um quadro geral e esquemtico dessas

    relaes. Ele poder servir de referncia para o leitor e para nossa argumentao (2).

    1 Nem vale a pena se referir aqui s anlises que se restringem aos nomes dos polticosprofissionais ou s suas siglas partidrias. Mas lembremos que mesmo aqueles analistas quetentam dar um passo frente, caracterizando correntes de opinio e escolas de pensamento,procedimento to comum no pensamento de esquerda brasileiro, mesmo os que procedemassim so vtimas dessa realidade superficial e enganosa. Imaginam que as lutas polticasopem, pura e simplesmente, a esquerda direita, os progressistas aos conservadores, osdesenvolvimentistas aos liberais, os nacionalistas aos entreguistas e assim por dainte.Nunca se perguntam que interesses de classe ou frao tais correntes representam eporque.2 H uma anlise ampla e detalhada das relaes entre classes e partidos na obra O DezoitoBrumrio no livro de Nicos Poulantzas Pouvoir Politique et Classes Sociales - Paris,Franois Maspero, 1968.

  • 6LUTA DE CLASSES E CENA POLTICA,

    FRANA (1848 1851)

    CLASSES,

    FRAES E

    CAMADAS

    SOCIAIS

    PARTIDOS E

    TENDNCIAS

    EVIDNCIAS DA

    RELAO DO

    PARTIDO COM A

    CLASSE OU

    FRAO

    GRUPO PAR-

    LAMENTAR

    PLATAFORMA

    POLTICA

    - proleta-

    riado

    Blanqui, Cabet,

    Raspail, Blanc,

    Albert, Barbs,

    ala esquerda da

    Social-

    democracia

    Republicanismo

    radical, criao

    das Oficinas

    Nacionais e do

    Ministrio do

    Trabalho e ao

    insurreicional.

    Ala esquerda da

    Nova Montanha

    Repblica Social

    Pequena

    burguesia

    Social-

    democracia

    Conciliao,

    triunfalismo e

    hesitaes

    Montanha Repblica

    Democrtica

    -Burguesia

    republicana

    Republicanos

    Puros

    Ideologia

    republicana e

    composio

    social

    Republicanos

    Puros

    Repblica

    Parlamentar

    Grande

    burguesia

    Monarquistas

    orleanistas

    A poltica da

    monarquia

    Orleanistas,

    Partido da

    Defesa

    doutrinria da

  • 7financeira,

    indu23strial e

    comercial

    (Conde de Paris,

    Luis Felipe

    dOrleans)

    constitucional

    dos Orleans, em

    1830-1848.

    Ordem monarquia,

    aceitao prtica

    da Repblica

    Burguesia

    agrria e

    proprietrios de

    terra em geral

    Monarquistas

    legitimistas

    (Conde de

    Chambord,

    pretenso

    Henrique V)

    A tradio e a

    poltica da

    monarquia dos

    Bourbons

    entre1815 e

    1830.

    Legitimistas,

    Partido da

    Ordem

    Defesa

    doutrinria da

    monarquia,

    aceitao prtica

    da Repblica

    Campesinato

    conservador,

    lumpem e

    exrcito

    Bonapartistas,

    Sociedade 10 de

    Dezembro

    Tradio,

    eleies e

    regime poltico

    bonapartista

    Bonapartistas,

    Partido da

    Ordem

    Restaurao do

    Imprio

    Fontes: Karl Marx, O Dezoito Brumrio de Luis bonaparte e As Lutas de Classes

    na Frana (1848 1850)

  • 8No quadro acima, a terceira coluna apresenta o que seriam, para Marx, as provas da

    relao de representao existente entre, de um lado, determinados partidos polticos,

    grupos parlamentares, associaes e correntes de opinio e, de outro lado, certos interesses

    de classe, de frao de classe e de camadas sociais. Observando essa terceira coluna, v-se

    que, para detectar as relaes de representao de interesses, Marx opera em dois planos.

    Num plano objetivo, procura estabelecer correspondncias entre, de um lado, os programas

    e as prticas dos partidos polticos e, de outro lado, os interesses potenciais ou efetivos de

    classes e fraes; num plano subjetivo, procura detectar a existncia de identificao entre

    os partidos, de um lado, e determinadas classes e fraes, de outro. Ele pensa, alis, dois

    tipos de identificao (subjetiva). O campesinato identifica-se com Bonaparte porque v

    nele a possibilidade de restaurao de um passado mtico e, em conseqncia, vota nele; a

    Montanha representa a pequena burguesia porque suas hesitaes e bravatas correspondem

    situao de classe intermediria da pequena burguesia, dilacerada entre as duas classes

    antagnicas. Feitas essas observaes, passemos ao ponto que nos interessa.

    Marx se serve amplamente da metfora teatral em seu texto, como j destacaram

    diversos comentadores: drama, comdia, tragdia, ato, entreato, personagem, cena,

    proscnio etc. Metforas so, muitas vezes, o indicador da existncia de idias e conceitos

    de uma teoria nova, que no cabem nas noes e na terminologia tradicionais. Tais figuras

    pecam pela impreciso, mas ajudam a avanar mais rpido no territrio selvagem de uma

    nova cincia. As metforas de O Dezoito Brumrio indicam, a todo momento, que a cena

    poltica das sociedades capitalistas deve ser pensada por referncia a algo que se encontra

    fora dela. Polemizando com a viso que os democratas possuam da Revoluo de 48 na

    Frana e das lutas subseqentes, Marx procura desmistificar os conflitos entre republicanos

  • 9e monarquistas e, no campo dos monarquistas, entre os monarquistas legitimistas e os

    orleanistas ver o Captulo III do Dezoito Brumrio. Nesses dois casos, as lutas, tal qual se

    apresentam na cena poltica, dividindo republicanos e monarquistas e subdividindo esses

    entre legitimistas e orleanistas, essas lutas entre partidos e correntes de opinio, embora

    existam, sejam reais, elas, ao mesmo tempo, ocultam uma realidade mais profunda, que a

    realidade da luta entre classes e fraes de classe. Marx anuncia, com a simplicidade dos

    clssicos, essa sua descoberta cientfica e revolucionria nos seguintes termos:

    Antes de prosseguirmos com a histria parlamentar dessa poca,

    devemos fazer aqui algumas observaes para evitar as iluses correntes sobre

    o carter do perodo que estudamos. Observando as coisas do ponto de vista

    dos democratas, tratar-se-ia, tanto no perodo da Assemblia Legislativa quanto

    no da Assemblia Constituinte, de uma mera luta entre republicanos e

    monarquistas. (....) Mas, se examinamos mais de perto a situao e os partidos,

    desaparece essa aparncia superficial que dissimula a luta de classes e a

    fisionomia particular desse perodo. (3)..

    O trabalho de anlise da cena poltica nas sociedades capitalistas um trabalho de

    desmascaramento. A argumentao de Marx para desfazer a dissimulao clara. Os

    monarquistas aceitaram a Repblica, enquanto essa se revelou adequada para a dominao

    burguesa. Marx diz: agem como burgueses, e no como monarquistas ou como

    representantes do regime burgus, no como paladinos de princesas errantes.

    3 Karl Marx, Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte, Paris, Editions Sociales, coleoClassiques du Marxisme, 1976, pp. 46-47. (Traduo e grifos meus, ABJ.)

  • 10

    Acrescentaramos: agem como classe, no como corrente de opinio. Os monarquistas

    falam muito em restaurao da monarquia, mas postergam sine die a restaurao

    monrquica. Marx desce aos detalhes da crnica poltica na sua argumentao. Destaca

    que, cada vez que os parlamentares legitimistas e orleanistas visitavam os membros de suas

    respectivas dinastias, os Bourbon e os Orleans, esses externavam o sentimento de que eram

    trados por aqueles que deveriam lutar pela restaurao do trono.

    Vejamos agora quanto valiam os grandes princpios republicanos. Marx destaca que

    os denominados republicanos puros uniram-se aos monarquistas para sufocar a

    insurreio operria de junho de 1848 e tambm para sufocar a insurreio pequeno-

    burguesa de junho de 1849. Ora, se a luta entre republicanos e monarquistas dividisse a

    poltica francesa, tal aliana seria inconcebvel. Essa prtica poltica, lembra Marx, mostra

    que havia, para os republicanos, um valor maior que a Repblica a ser preservado, valor

    que na verdade s era valor no sentido financeiro do termo. Diz Marx:

    (....) (a insurreio operria de junho de 1848) havia mostrado, ao

    mesmo tempo, que na Europa se colocavam outros problemas alm daquele da

    repblica ou da monarquia. (Karl Marx, Le 18 Brumaire..., op. cit., p. 25).

    Portanto, a alternativa repblica ou monarquia , em primeiro lugar, limitada. Em

    segundo lugar, a insurreio pequeno-burguesa de junho de 1849 era republicana e, no

    entanto, os denominados republicanos puros uniram-se aos monarquistas contra ela.

    Fazendo um balano: se monarquistas aceitam a repblica, se republicanos aliados a

    monarquistas lutam contra republicanos, se a revolta operria e popular vai alm da

    alternativa repblica versus monarquia, a diviso entre republicanos e monarquistas deve

  • 11

    ser repensada e remetida, segundo sustenta Marx, sua base de classe. Os monarquistas

    burgueses podem se unir aos republicanos burgueses para derrotar os republicanos

    pequeno-burgueses, porque os dois primeiros so burgueses e esses ltimos so pequenos

    burgueses, isto , porque uns e outros se guiam de acordo com sua posio de classe. A

    ao desses partidos e correntes de opinio demonstrou que o fundamental para eles era o

    interesse de classe e no a doutrina poltica e o compromisso abstrato com esta ou aquela

    forma de Estado (monarquia ou repblica). Esse trabalho de desmascaramento no uma

    imputao arbitrria, mas, sim, uma concluso decorrente da anlise do discurso e da

    prtica dos partidos polticos.

    A cena poltica representa e articula

    os interesses e conflitos de classe

    interessante acompanhar ainda o desvelamento do conflito no interior do campo

    monrquico, conflito que opunha legitimistas e orleanistas, porque nesse caso Marx indica

    que os personagens acreditam em sua prpria fantasia. A relao entre aparncia e essncia

    no pensada por Marx como uma relao simples entre a mentira e a verdade. A

    aparncia faz parte da realidade, tem a sua espessura prpria.

    Na anlise de Marx, cada uma dessas correntes representa uma frao das classes

    dominantes. Defendem interesses econmicos concorrentes e no o direito que esta ou

    aquela dinastia teria de ocupar o trono. Os legitimistas representam os interesses da

    propriedade da terra e os orleanistas, os interesses do capital (financeiro, comercial e

  • 12

    industrial). Carlos X, monarca Bourbon (1824-1830), o ramo defendido pelos legitimistas,

    radicalizara durante o seu reinado a poltica conhecida como de restaurao, em defesa dos

    interesses dos grandes proprietrios de terra indenizao da aristocracia emigrada pelas

    perdas provocadas pela Revoluo, supresso do direito de voto dos comerciantes e

    industriais, supresso da liberdade de imprensa. Os orleanistas foram oposio a Carlos X

    e, quando assumiram o poder graas Revoluo de Julho de 1830, colocaram Luis Felipe

    Io no trono e governaram em nome da burguesia implantaram uma reforma eleitoral

    ampla o suficiente para integrar a burguesia ao corpo de eleitores da cmara dos deputados,

    mas suficientemente restrita para manter as profisses liberais, os pequenos burgueses, os

    camponeses e os operrios excludos do sistema eleitoral, suprimiram a hereditariedade dos

    postos na cmara aristocrtica (Chambre des Pairs) e a prerrogativa real de emitir

    ordonnances (decretos-lei). Seguramente, so indcios como esses que Marx tem em mente

    quando afirma que no reinado de Carlos X, a propriedade rural era a fora hegemnica no

    Estado, enquanto que no reinado de Luis Felipe Io, tal posio seria ocupada pela burguesia.

    Entretanto, o apego a uma ou a outra casa dinstica no concebido por Marx como

    um mero despiste manipulado pelos parlamentares monarquistas. Tal apego funciona, de

    fato, como elemento de coeso para cada uma das faces rivais. Cada dinastia, na verdade,

    organiza uma frao da classe dominante. Tais fraes existem como fraes diferenciadas

    tambm graas atuao poltica das famlias reais. Para ilustrar, vale a pena fazermos

    outra longa citao. Nesse trecho Marx parte da realidade superficial do conflito dinstico,

    aponta o conflito entre fraes burguesas que se oculta num plano mais profundo e,

    finalmente, retorna ao conflito superficial para indicar que ele tambm faz parte da

    realidade.

  • 13

    Os legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas

    grandes faces do partido da ordem. O que ligava estas faces aos seus

    pretendentes e as opunha uma outra seriam apenas as flres-de-lis e a

    bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa de Orleans, diferentes matizes

    do monarquismo? Sob os Bourbons [1815-1830, ABJ], governara a grande

    propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orleans [1830-

    1848, ABJ], a alta finana, a grande indstria, o alto comrcio, ou seja, o

    capital, com seu squito de advogados, professores e oradores melfluos. A

    Monarquia Legitimista foi apenas a expresso poltica do domnio hereditrio

    dos senhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a expresso

    poltica do usurpado domnio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas

    faces, portanto, no era nenhuma questo de princpios, eram suas condies

    materiais de existncia, duas diferentes espcies de propriedade, era o velho

    contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifndio.

    Que havia, ao mesmo tempo, velhas recordaes, inimizades pessoais, temores

    e esperanas, preconceitos e iluses, simpatias e antipatias, convices,

    questes de f e de princpio que as mantinham ligadas a uma ou a outra casa

    real quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as

    condies sociais de existncia, ergue-se toda uma superestrutura de

    sentimentos, iluses, maneiras de pensar e concepes de vida distintas e

    peculiarmente constitudas. (....) O indivduo isolado, que as adquire atravs da

    tradio e da educao, poder imaginar que constituem os motivos reais e o

    ponto de partida de sua conduta. (4).

    4 Karl Marx, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, in Karl Marx e Friedrich Engels,

  • 14

    A respeito dessa dialtica entre realidade superficial e realidade profunda,

    ilustrativa a anlise feita por Marx das tentativas empreendidas por diversos parlamentares

    legitimistas e orleanistas para unificar as duas casas dinsticas, isto , para unir os

    monarquistas em torno de um s pretendente ao trono a ser restaurado. Eles fracassaram, na

    avaliao de Marx, porque o problema era mais complicado que simplesmente convencer

    este ou aquele pretendente ao trono a abdicar em favor do outro. O fundo do problema seria

    a impossibilidade de conciliar o capital com a propriedade da terra. Ou seja, muitos

    parlamentares monarquistas acreditam de fato que so apenas as pretenses familiares de

    duas dinastias rivais que os dividiriam. Mas a dinmica do jogo de interesses, cuja natureza

    profunda pode escapar conscincia dos prprios agentes envolvidos, a dinmica desse

    jogo impe-se a essa crena. A realidade superficial faz sim parte da realidade, mas est

    subordinada realidade profunda, independentemente da conscincia dos parlamentares.

    Os diplomatas do partido da ordem pensavam que podiam solucionar a

    contenda [sobre o direito de sucesso, ABJ] atravs do amlgama das duas

    dinastias, por meio de uma suposta fuso dos partidos monarquistas e de suas

    casas reais. (....) Era a pedra filosofal que os doutores do partido da ordem

    quebravam a cabea para descobrir. Como se a monarquia legitimista pudesse

    converter-se na monarquia da burguesia industrial e a monarquia burguesa

    converter-se na monarquia da tradicional aristocracia da terra. Como se o

    latifndio e a indstria pudessem irmanar-se sob uma s coroa, quando a coroa

    Obras Escolhidas, volume 1, So Paulo, Editora Alfa-mega, s/d, p. 224. (Os grifos so dooriginal do original.)

  • 15

    s podia descer sobre uma cabea (....). Se Henrique V morresse no dia

    seguinte, o conde de Paris no se tornaria por isso rei dos legitimistas, a menos

    que deixasse de ser rei dos orleanistas. Os filsofos da fuso, entretanto, (....)

    consideravam que toda a dificuldade provinha da oposio e rivalidade entre as

    duas dinastias. (....) Os adeptos da fuso percebem tarde demais que os

    interesses das duas faces burguesas no perdem seu exclusivismo, nem

    adquirem maleabilidade, quando acentuados na forma de interesse de famlia,

    interesses de duas casas reais. (5)

    Os diplomatas dos legitimistas e dos orleanistas, aqueles parlamentares que

    realizavam misses entre uma e outra casa dinstica como mensageiros e artfices da fuso,

    desconheciam, segundo a anlise de Marx, os interesses econmicos de frao de classe

    que os separava. Os representantes no tinham conscincia clara dos interesses que

    representavam. Os parlamentares monarquistas que defendiam a proposta de fuso das

    duas dinastias julgavam que eram apenas valores, relaes pessoais, costumes e smbolos

    que distinguiam as duas correntes monarquistas. Por ignorar a base material do conflito no

    qual estavam envolvidos, foi que esses indivduos propuseram a fuso dos partidos

    monrquicos. Contudo, na anlise de Marx em O Dezoito Brumrio, a dinmica do

    interesse econmico de frao acaba corrigindo a ao dos parlamentares partidrios da

    fuso das casas dinsticas.

    A determinao da cena poltica pelos interesses e conflitos de classe e de frao de

    classe aparece tambm nas mudanas que ocorrem no processo poltico. Os partidos,

    5Karl Marx, O Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte, in Karl Marx e Friedrich Engels, op.cit., p. 261.

  • 16

    organizaes e correntes de opinio que ignoram os interesses de classe ou de frao que

    representam, seja por abandonarem antigas posies polticas sem que a situao o

    justifique, seja por permanecerem aferrados a antigas posies num momento de mudana

    que atinge sua base social, tais partidos e organizaes podem ser condenados ao declnio e

    ao desaparecimento o que de fato ocorreu em 1851, quando a massa da classe burguesa

    abandonou os republicanos, os legitimistas e os orleanistas, bem como o parlamento que

    essas correntes burguesas controlavam, e passou a apoiar a soluo ditatorial para a crise

    poltica, que era a soluo representada por Luis Bonaparte processo que Marx analisa no

    captulo VI de O Dezoito Brumrio.

    Cena poltica:

    marxismo, liberalismo e teoria das elites

    O desvelamento da cena poltica nas sociedades capitalistas um procedimento

    metodolgico prprio do marxismo, mas somente se tal desvelamento evidenciar os

    interesses de classe e de frao de classe que esto na base das lutas partidrias e de idias.

    Os pensadores liberais concebem a cena poltica como algo transparente. Pensemos

    no caso de John Stuart Mill. Para esse clssico do liberalismo, os partidos e correntes de

    opinio que aparecem na cena poltica so, de fato, o que dizem ser, no representando

    nada de oculto ou dissimulado. Atravs do debate e do voto, o eleitor, indivduo racional,

    escolhe, na vitrine transparente que a cena poltica, a corrente que melhor se adapta aos

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    seus valores e objetivos (6). Temos, ento, a luta entre conservadores e reformistas, liberais

    e autoritrios, monarquistas e republicanos etc., etc. Cada uma dessas correntes congregam

    indivduos livres e racionais, partidrios, por mera escolha e convico pessoal, dos valores

    que as caracterizam como correntes de opinio. A cena poltica o espao da disputa entre

    correntes ou projetos e s.

    muito instrutivo e oportuno para a nossa discusso comparar a anlise feita por

    Marx da cena poltica francesa em 1848-1851 com a anlise de Alexis de Tocqueville.

    Tocqueville um liberal conservador, foi deputado monarquista na Assemblia Nacional

    francesa, e nos legou a sua anlise da Revoluo de 1848 na conhecida obra Souvenirs (7).

    Tocqueville, tal qual os grandes historiadores liberais da Revoluo Francesa, opera com o

    conceito de classe e luta de classes. Tais conceitos, como se sabe no so apangio do

    marxismo. Para esse pensador liberal, as Jornadas de Julho de 1830, quando foi deposto

    Carlos X, foram uma revoluo da burguesia em luta contra a aristocracia e a Revoluo de

    1848 foi uma revoluo (....) das classes que trabalham com as mos. (8). Contudo, na

    anlise de Tocqueville, as classes e a luta de classes no aparecem de modo orgnico na

    cena poltica. Nessa esfera, desfilam as correntes de opinio: os conservadores, os

    radicais, a oposio dinstica, a oposio republicana, a oposio moderada, o

    centro-esquerda, a esquerda, a coroa, e, ao fundo, o rudo disforme das ruas a

    canalha, a turba, o populacho, as classes que trabalham com as mos. Para o

    liberal, pode haver luta de classes, mas a cena poltica no parte integrante desse conflito.

    6 Basta ver as idias desenvolvidas por John Stuart Mill em Consideraes Sobre oGoverno Representativo, Braslia, Editora da Universidade de Braslia, ColeoPensamento Poltico.7 Utilizo a traduo brasileira feita por Modesto Florenzano. Ver Alexis de Tocqueville, Lembranas de 1848,as jornadas revolucionrias em Paris, So Paulo, Companhia das Letras, 1991.8 Op. cit., p. 91.

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    J os partidrios da teoria das elites invertem os sinais da concepo liberal da cena

    poltica. Apresentam-se como pensadores realistas e como crticos mordazes da concepo

    liberal, que seria idealista e ingnua. Eliminam o indivduo racional e a poltica

    transparente e introduzem a massa irracional e a cena poltica sempre opaca. Numa

    democracia, as propostas polticas e os programas dos partidos, longe de defender os

    valores, idias e objetivos proclamados, seriam meros signos, manipulados pelos polticos

    profissionais, com o nico objetivo de angariar voto do eleitorado. As elites disputam entre

    si o voto do homem comum e fazem dos programas partidrios um instrumento de

    manipulao da massa. O eleitorado, para os partidrios da teoria das elites, no age

    racionalmente e sequer tem condies intelectuais de se apropriar das informaes

    necessrias para tomar uma posio racionalmente fundamentada em matria poltica (9).

    Marx, como deve ter ficado claro na anlise de O Dezoito Brumrio, difere tanto da

    concepo liberal quanto da elitista. Tal qual os partidrios da teoria das elites, Marx rejeita

    a concepo liberal. Considera a cena poltica uma realidade superficial e enganosa e

    tampouco avalia que os indivduos ajam de modo livre e consciente. Por isso, a filiao

    direta e mecnica da obra de Marx filosofia iluminista seria, segundo nos parece,

    problemtica. Porm, a concepo de Marx distinta tambm da concepo dos elitistas. A

    opacidade da cena poltica remete dissimulao e representao dos interesses de classe,

    no se circunscrevendo, portanto, ao universo dos interesses dos polticos profissionais

    uma classe poltica ou uma elite dotada de interesses prprios e exclusivos. Os

    9 Essa a tese desenvolvida por Schumpeter na sua conhecida obra Capitalismo,Socialismo e Democracia, na qual ele critica a concepo liberal da poltica. Esclareo queStuart Mill, quando analisa o comportamento dos trabalhadores manuais no livro quecitamos na nota anterior, acaba introduzindo, pela porta dos fundos de seu sistema, essamesma noo elitista de massa irracional. Tal desvio doutrinrio, contudo, no comprometeo carter essencialmente liberal da obra Consideraes sobre o governo representativo.

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    indivduos esto determinados por sua situao de classe e de frao. Fazem escolhas, mas

    essas escolhas tambm refletem interesses e condies que, no mais das vezes, eles

    prprios ignoram. Uma prtica no transparente, ao contrrio do que pretendem os liberais,

    mas na qual os indivduos, seguindo seus instintos de classe, podem, ao contrrio do que

    pretendem os elitistas, acabar se situando de modo racional. O partido representa

    interesses que esto fora dele, fora da cena poltica, enraizados na produo social. Mas, de

    um lado, os membros desse partido, que so os representantes, e, de outro laod, os

    indivduos que integram as classes sociais, que so os representados, todos podem ignorar

    as razes profundas dessa relao de representao. Nem liberal, nem elitista, a concepo

    de Marx de representao poltica e de cena poltica um produto sofisticado e,

    importante indicar, revolucionrio.

    Dizemos revolucionrio, porque, para Marx, os critrios para analisar a cena poltica

    no so os mesmos que se deve utilizar na anlise dos partidos operrios. A opacidade da

    cena poltica pode ser superada, ao contrrio do que apregoam os partidrios da teoria das

    elites. Os partidos do proletariado, para representarem os interesses dessa classe,

    necessitam faze-lo abertamente. A sua relao de representao exclui qualquer relao de

    dissimulao. Ao proceder assim, os partidos operrios lanam uma luz nova sobre o

    conjunto da cena poltica. Fazem com que cada partido aparea, aos olhos do operariado

    organizado, como aquilo que ele realmente , a despeito do trabalho da ideologia que

    encobre os interesses profundos de cada partido e de cada corrente poltica burguesa e

    pequeno-burguesa. No episdio memorvel e pioneiro da Comuna de Paris de 1871, o

    Comit Central da Guarda Nacional, eleito pelo operariado, ao organizar a insurreio de

    18 de maro e tomar o poder, proclamou abertamente que o fazia em nome de uma classe

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    social - em nome do proletariado de Paris. Isso dizer tudo - sobre si prprio e sobre

    todos os demais.