O Conceito de Bem Jurídico Como Instrumento de Crítica Legislativa Submetido a Exame
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Desde há mais ou menos dez anos, a questão de se é possível colocar limites ao poder
punitivo do Estado limitando a lesão ou comprometimento de bens jurídicos volta a
ser objeto de uma viva discussão na Alemanha. Hefendehl registrou a recente evolução
ocorrida até o ano de 2006. Depois, o debate adquiriu uma maior relevância pelo fato
de que o Tribunal Constitucional Federal afirmou no ano de 2008 que do princípio do
bem jurídico não cabe deduzir limites para a faculdade de criminalização do legislador.
Em 2010 tomei posição abundantemente sobre a recente evolução do debate sobre o
bem jurídico, insistindo que há de se manter a função crítica da legislação para o
pensamento do bem jurídico.
Também internacionalmente, a questão de se o dever do Direito penal pode ser
determinada através da proteção de bens jurídicos encontra grande interesse e um
eco em que intervêm muitas vozes distintas. Assim, por exemplo, escreve Bacigalupo
que na Itália e na Espanha “se atribui ao bem jurídico uma função de legitimação
decisiva”. Essa afirmação se vê confirmado pelo fato de que entre os escritos
devotados a mim no ano de 2011, Romano, Polaino Navarrete e Gimbernat se
ocuparam da função de bem jurídico no Direito Penal. Também na Grécia a questão se
discute amplamente. Enquanto Androulakis nega ao princípio da proteção de bens
jurídicos toda força limitadora de punibilidade, Kaiafa-Gbandi opina que “a teoria da
ciência do Direito penal alemã sobre o bem jurídico como elemento essencial que não
só fundamenta a punibilidade, mas, sobretudo, a limita, constitui... um de seus legados
mais importantes para a cultura jurídica europeia.”
É certo que o conceito de bem jurídico é irrelevante, por exemplo, na França ou nos
EUA. Porém, o penalista norteamericano Dubber reitera, ao menos, que seria “positivo
que a doutrina, a legislação e a jurisprudência nos Estados Unidos se refiram a um
conceito de bem jurídico sistematicamente unitário”. Por outro lado, o harm príncipe
(princípio do dano), desenvolvido no Direito penal anglo-americano – isto é, a
limitação da sanção jurídico-penal a modalidades de comportamento que gerem um
dano - é próximo ao princípio da proteção de bens jurídicos.
A atualidade do tema e extremamente debatido – como agora – de todas as questões
que dizem respeito justificam voltar de novo à questão do bem jurídico. Em todo o
caso, como é natural, não é meu desejo reiterar manifestações anteriores, motivo por
que me limitarei ao essencial ao entrar em debate com sugestões e críticas formuladas
sobre tudo na bibliografia mais recente que demandam uma tomada de posição.
Para isso, me apoio em quatro questões:
1. O Direito Penal tem, como questão de princípio, a tarefa de proteção (de bens
jurídicos), ou só há de confirmar a vigência da norma?
2. Se se pena que o objeto do Direito penal é a proteção de bens jurídicos, como
se determina o conceito de bem jurídico de tal modo que ofereça resultados
concretos?
3. A teoria de bens jurídicos é refutada pela necessidade de infrações de mera
atividade (delitos de proteção de sentimentos)?
4. O postulado de que o Direito penal deve permanecer limitado à proteção de
bens jurídicos só tem relevância político-criminal, ou depende – ao menos em
alguns casos- também da constitucionalidade, e, com ela, a validade jurídica de
uma disposição penal?
II. O Direito Penal tem como fim a proteção de bens jurídicos ou a confirmação da
vigência da norma?
O primeiro pressuposto de um reconhecimento da função limitadora do Direito penal
do pensamento da proteção de bens jurídicos está, como é natural, em se reconhecer
que a proteção de bens jurídicos é o papel do Direito penal. Já esse ponto de partida
não é completamente aceito. Jakobs e seus discípulos sustentam a opinião de que o
Direito penal não protege bens jurídicos, mas sim a vigência da norma. Ass im, por
exemplo, o relevante de um homicídio para o Direito penal não é “a lesão da carne da
vítima ou a extinção de sua consciência, mas sim a afirmação, contida de modo
conclusivo e objetivada no fato, de não ter que respeitar a integridade física e a
consciência... Mediante essa afirmação, se põe em causa a norma. O delito, portanto,
é desafiar a norma.” Em consequência, não se protege o que chamamos de bem
jurídico, isto é, a vida como fato empírico, mas sim exclusivamente a proibição de
matar (a vigência da norma). “O fato é a lesão da vigência da norma; a pena é a sua
eliminação.”
Contudo, esta visão se apoia em um normativismo exacerbado. Certamente, a pena
contribui para a estabilização da norma, ainda que – contrariamente a Jakobs – não
seja seu único fim. Porém, a estabilização da norma não é um fim em si mesmo, mas
tem a intenção de contribuir para que no futuro não se produzam lesões reais,
individuais ou sociais (isto é, lesões de bens jurídicos). Em consequência, serve, em
última instância, à proteção de bens jurídicos, e não teria sentido sem essa finalidade.
Autores espanhóis também formularam críticas próximas da concepção de Jakobs.
Assim, Mir Puig escreve: “Enquanto que o conceito político-criminal de bem jurídico
depende da legitimidade de uma norma penal de que sirva para apoiar valores
merecedores de proteção, a concepção de Jakobs de certo modo inverte esse ponto
de partida, e converte a norma per se em um objeto legítimo de proteção: de
instrumento, que precisa ser legitimado para seu fim, a norma passa a ser um fim
legitimador por si mesmo.” Se afirma com razão que desse modo se perde o efeito
limitador do pensamento de bem jurídico.
Também um autor tão próximo a Jakobs como Polaino Navarrete argumenta no
mesmo sentido quando afirma que “o Direito penal protege bens jurídicos, para
prevenir lesões precisamente daqueles bens jurídicos mediante os quais confirma a
autoridade da norma enquanto elemento da estrutura social.” “A norma não
pretende... proteger a si mesma, mas sim os bens e valores nela contidos.”
O próprio Jakobs, sob pressão da crítica, ainda que não tenha se desvinculado
expressis verbis de sua tese de que a pena só serve como a confirmação da norma, o
fez materialmente. Agora reitera que a confirmação da norma, se se pretende que
tenha um efeito “direcionador da conduta”, deve estar “sustentada cognitivamente” e
explica essa afirmação abstrata mediante o exemplo de que ninguém “se tranquiliza...
ao passar a noite no parque municipal por pensar que não é permitido o roubo ou até
o assassinato, pelo contrário, pensará – se é que vá ao parque – também de que é
muito improvável que isso ocorra.” Isso, no entanto, significa que o Direito penal, para
poder dirigir a conduta, persegue o fim de evitar lesões reais aos bens jurídicos.
Com isso, caberá arquivar a objeção deduzida do efeito de estabilização da norma que
emana da pena contra a tarefa da pena e do Direito penal de proteger bens jurídicos.
III. É possível um conceito de bem jurídico que ofereça efeito prático na crítica da
legislação?
1. A caracterização de uma concepção de bem jurídico crítica da legislação
Em meu tratado foi dito a respeito: “A missão do Direito penal está em assegurar a
seus cidadãos uma convivência livre e pacífica, garantindo todos os direitos
estabelecidos jurídico-constitucionalmente. Se essa missão é denominada, a modo de
síntese, proteção de bens jurídicos, por bens jurídicos serão entendidas todas as
circunstâncias e finalidades que são necessárias para o livre desenvolvimento do
indivíduo, à realização de seus direitos fundamentais e ao funcionamento de um
sistema estatal edificado sobre essa finalidade.”
Essa concepção tem –sujeito a certas diferenciações- faz algum tempo apoiantes de
renome, aos quais só posso me referir de modo genérico. Ainda, também encontra
novos promotores decididos nos últimos anos, entre os quais quero mencionar
especialmente Schünemann, Steinberg, Frister e Kaspar, sobre cujos desenvolvimentos
retornarmos depois.
A inferência decisiva de tal teoria de bem jurídico, de garantia da liberdade, é que as
normas penais são ilegítimas quando têm como objeto um comportamento que não
afeta o livre desenvolvimento do indivíduo ou de seus pressupostos sociais (por
exemplo, uma Administração de Justiça e administração íntegras). Nesse sentido,
disse, por exemplo, também Frister: “Tanto os bens jurídicos individuais como os bens
jurídicos da coletividade servem em última instância às possibilidades de
desenvolvimento do indivíduo.” Em sua opinião, a diferença estaria tão somente em
que a lesão de um bem jurídico individual afeta imediatamente a possibilidade de
desenvolvimento de um determinado ser humano, enquanto que a lesão de um bem
jurídico da coletividade afeta de modo mediato as possibilidades de desenvolvimento
de todas as pessoas. Também Frister infere disso que o espaço de configuração do
legislador se encontra limitado na medida em que “um comportamento que não afeta
de nenhum modo as possibilidades de desenvolvimento de outros não deve s er
valorado como injusto jurídico-penal”.
2. Tal conceito de bem jurídico é indeterminado demais para tornar possível
uma limitação do Direito penal?
Uma das objeções mais frequentes contra um conceito de bem jurídico crítico frente à
legislação aponta que este seria vago demais, podendo oferecer uma atuação limitada.
Nesse sentido, Dubber chega à conclusão, depois de examinar distintos tipos delitivos
controvertidos, de que “a teoria do bem jurídico... de Roxin... em última instância
mostra que precisa bastante de incisividade.” Ainda no ano de 2011, Stuckenberg
escreve: “O topos ‘proteção de bens jurídicos’ persegue, certamente, um objetivo que
é sem dúvida alguma desejável, o de uma política criminal racional e de um Direito
penal liberal e humano, mas não é uma concepção científica dotada de potência
analítica, ao contrário, é mais um instrumento para obscurecer as atitudes valorativas
que estão por trás, às vezes difusas e mais bem sentidas do que definidas com
precisão.” A estas e a outras críticas similares existem muitos argumentos de oposição:
a) A relevância da concepção de bem jurídico para a solução de problemas
jurídicos atuais
A tese de que a concepção de bem jurídico não possui relevância prática essencial é
errônea. Quero mostrar isso com base em seis exemplos em que uma legislação ou
uma jurisdição constitucional (não só da Alemanha!) se ocuparam do problema da
admissibilidade de uma pena criminal, e dos quais cinco seguem no centro da
discussão.
A controvérsia mais antiga se refere à punibilidade das condutas homossexuais
praticadas por adultos. Estas se encontravam ameaçadas de pena na Alemanha até o
ano de 1969, o projeto de Lei do Governo que devia preparar um novo Código Penal
(Strafgesetzbuch, StGB) pretendia manter a punibilidade, e nosso Tribunal
Constitucional havia confirmado a constitucionalidade da criminalização. No entanto, é
evidente que tal conduta, se ocorre de modo consentido no âmbito privado, não afeta
a liberdade de desenvolvimento de ninguém, não perturbando uma convivência das
pessoas em liberdade de nenhuma maneira. Por consequência, um conceito de bem
jurídico crítico em face da legislação conduz ao postulado da impunidade dos
comportamentos homossexuais consentidos em pessoas adultas.
O legislador alemão seguiu a tendência de reforma apoiada sobretudo pelos redatores
dos “projetos alternativos”, e aboliu o preceito penal em 1969. Certamente, alguns
críticos afirmam que isso foi devido não ao reconhecimento de uma concepção de bem
jurídico crítica em face da legislação, mas sim a uma mudança geral das ideias sobre o
merecimento de pena da homossexualidade. Gimbernat rejeitou – com base em sua
própria experiência, pois vivia naquele momento na Alemanha – esse ponto de vista
com razão. Que as ideias haviam mudado é a consequência, e não o pressuposto da
política de reforma daquele momento. Além disso, há de se levar em conta que as
convicções acerca do merecimento de pena de um comportamento só podem
experimentar mudança mais ou menos rápidas naqueles casos em que a base da
ameaça da pena não se trata de um bem jurídico a proteger, mas sim de uma mera
convicção moral. Tratando-se de delitos contra a vida e a integridade corporal, em
detenções ilegais ou em um roubo seria impensável que tenha havido uma mudança
nas convicções que conduziram à impunidade, já que em sua base se encontram bens
jurídicos cuja proteção a sociedade não pode renunciar.
Um segundo exemplo está na punibilidade da possessão de determinadas drogas para
o consumo próprio, um caso em que também está ausente toda afetação de outros e
cuja impunidade é demandada pelos representantes de um conceito de bem jurídico
crítico face à legislação. Nosso Tribunal Constitucional também teve de ocupar-se
dessa questão, e manteve a punibilidade impondo a condição de que se possa
renunciar à imposição de pena em casos de pouca gravidade. Este é um passo na
direção certa, mas cria uma insegurança jurídica que se havia evitado se se houvesse
declarado como nula a norma. Em vez disso, a Corte Suprema da Argentina declarou
em 25/08/2009 a inconstitucionalidade da proibição penal do próprio consumo.
Um terceiro caso, que também ocupou o Tribunal Constitucional, se refere à doação
de órgãos inter vivos. De acordo com o Direito alemão em relação a transplantes, só é
admissível entre familiares e pessoas que se encontram em uma relação próxima.
Portanto, quem quer salvar a vida de outra pessoa, por altruísmo – na maioria dos
casos, até de modo anônimo- não tem direito a isso. O médico que extrair um órgão
infringindo essa proibição incorre em responsabilidade penal. Posto que aqui também
se encontra ausente toda afetação a outro, e a doação do órgão serve especificamente
a fins socialmente úteis, a criminalização não possui aqui também uma legitimação
através de bens jurídicos.
Apesar disso, nosso Tribunal Constitucional também declarou admissível essa norma.
Nesse sentido, argumenta que certamente, também é colocado em perigo o “exercício
do direito fundamental à liberdade”. Mas isso não mudaria em nada o fato de que “é
um interesse legítimo de bem comum preservar as pessoas para que não causem a si
mesmas um dano pessoal considerável.”
Isso, no entanto, é errôneo em sua aplicação ao caso concreto, e em um sentido duplo.
Pois por um lado, ninguém irá defender a opinião de que o Estado pode submeter a
pena uma conduta de vida que se mostra lesiva para a saúde. E, por outro lado, uma
doação de órgão, se é realizada após um cuidadoso exame e assistência médica, não
envolve um “dano pessoal considerável”. A expectativa de vida de um ser humano que
só tem um rim não é inferior à média da população. A decisão do Tribunal, em
consequência, é geralmente rejeitada, e possivelmente leva a uma reforma legal.
A quarta constelação em que a concepção de uma proteção de bens jurídicos crítica
em face à legislação se põe no centro da discussão, e que ultimamente vem sendo
mais discutida, se refere ao incesto entre irmãos. Conforme o Direito alemão, isso é
suscetível a pena. Também aqui – no caso de que os irmãos atuem livres de coação, de
modo consentido e sendo plenamente responsáveis- está ausente toda afetação das
possibilidades de desenvolvimento pessoais, de modo que o princípio da proteção de
bens jurídicos demanda impunidade.
Frente a isso, nosso Tribunal Constitucional afirmou no ano de 2008 que a norma
penal é “compatível... com a Lei Fundamental”, a Constituição alemã. Nesse caso
tomou pela primeira vez posição a respeito de um possível efeito limitador do
ordenamento penal que deriva do princípio de proteção de bens jurídicos, afirmando a
respeito que as faculdades legislativas não podem ser “restringidas... invocando os
bens jurídicos.” Em sua opinião, os requisitos que o efeito de uma norma penal
persegue “não podem ser deduzidos da teoria jurídico-penal de bem jurídico”. No
entanto, entrando em uma contradição peculiar, o Tribunal logo busca identificar
determinados bens jurídicos como protegidos pelo preceito penal – a família, a
autonomia sexual e a saúde genética-. Posto que é fácil refutar essas fundamentações,
a decisão recebe uma rejeição generalizada.
Um quinto problema, que também se mostra altamente explosivo do ponto de vista da
proteção de bens jurídicos, é o da negação de fatos históricos que ocorre em
determinados casos em certos Estados (como, por exemplo, a negação do Holocausto
ou de outros genocídios). O § 130 p. 3 do Código penal alemão pune a negação ou a
trivialização de atos de genocídio cometidos na época do nacional-socialismo, quando
resulta em perturbação da paz pública, e de modo público ou com ocasião de uma
reunião. Também existe uma Decisão Marco da União Europeia do ano de 2007 que
exige a punição da aprovação pública, a negação ou trivialização grosseira do
genocídio, dos delitos contra a humanidade ou de crimes de guerra.
Frente a isso, o Tribunal Constitucional espanhol declarou inconstitucional em
07/11/2007 a punição da negação de genocídio. Também a punição da negação de
genocídio cometido, na opinião do legislador francês, entre 1915 e 1917 pelos turcos
contra os armênios, foi declarada inconstitucional em 28 de fevereiro desse ano pelo
Conseil d’État francês, o órgão constitucional máximo do país, por infringir a liberdade
de opinião e supor uma intromissão inadmissível no trabalho da ciência da História.
Do ponto de vista de um princípio de bem jurídico crítico frente a legislação, a punição
da aprovação de tais atos é perfeitamente legítima, pois ameaça a segurança dos
grupos de população – que ainda vivem entre nós – que foram afetados por esses atos.
No entanto, isso pode ser punido na Alemanha conforme o § 130 p. 1 StGB enquanto
incitação ao ódio contra parte da população.
Ao contrário, na medida em que sem agitação e discriminação o que se faz é discutir
sobre fatos históricos, haverá que se recusar melhor a ocorrência de uma lesão de um
bem jurídico. Pois a liberdade de expressão acarreta também na manifestação de
opiniões completamente extraviadas. Na medida em que tais casos são objeto de
debate histórico, isso deve ser decidido pela ciência histórica, e não pelo Direito penal.
Ao contrário, na medida em que – como é o caso dos delitos violentos nacional-
socialistas – se encontram provados, no interesse do clima de opinião social é melhor
refutar contundentemente tais insinuações, em lugar de permitir que neguem o
Holocausto, ou o trivializem, transvistam mártires ou afirmem que o Estado reprime a
discussão histórica com ajuda do Direito penal.
Enquanto última disposição penal afetada pelo bem jurídico, gostaria de mencionar o
tipo penal de pornografia juvenil, introduzido no Código penal alemão com base em
uma Decisão Marco da União Europeia no ano de 2008 (§ 184c StGB). Me limitarei ao
parágrafo quarto desse preceito, conforme o qual se penaliza “quem consiga a
possessão de escritos de pornografia juvenil, que reproduzam um acontecer real, ou
quem possui tais escritos”. Posto que as imagens equivalem aos escritos conforme o
disposto no § 11 p. 3 StGB, será punível um jovem de 18 anos se portar com o
consentimento de sua noiva, de 17 anos de idade, uma foto com ela com conotação
sexual. Posto que as relações sexuais entre ambos são permitidas pelo Direito, não se
compreende por que a jovem não pode permitir ao seu noivo capturar tal retrato
íntimo, ou até mesmo lhe dar. Com razão, Manfred Heinrich considera que isso é
“sinceramente inaceitável do ponto de vista da proteção de bens jurídicos”.
Dos exemplos descritos – que poderiam facilmente serem incrementados – deriva em
minha opinião com clareza que Dubber erra quando afirma que “os tipos que não
superam o teste de bem jurídico de Roxin são exóticos ou obsoletos”. Todos os casos
problemáticos mencionados, ao contrário da afirmação transcrita, são objeto de uma
viva discussão, e, com exceção do último, ocuparam tribunais constitucionais de vários
países; no caso do exemplo do âmbito da pornografia juvenil, a ausência de
pronunciamentos judiciais se deve provavelmente apenas ao fato de que o preceito
ainda não vigora há muito tempo. E só um dos tipos mencionados é “obsoleto”, no
sentido de que a criminalização do comportamento homossexual de pessoas adultas
foi revogada. No entanto, parece claro que não resulta em uma objeção ao conceito
crítico de bem jurídico o fato que, nesse caso, foi imposto ao legislador.
b) O caráter necessariamente abstrato dos princípios jurídicos supremos
Em segundo lugar, à objeção de que há um grau elevado de indeterminação em um
conceito de bem jurídico crítico frente à legislação, há de ser posto que os princípios
supremos de um ordenamento jurídico não são suscetíveis a serem apreendidos em
uma definição apta para a subsunção, mas sim tão somente caracterizam um critério
reitor que há de se desenvolver e se realizar na matéria jurídica. Minha definição de
bem jurídico antes oferecida (III. 1., inicialmente) unicamente pretende indicar esse
critério, e este mostra sua utilidade já na análise, necessariamente breve, dos meus
seis exemplos.
Para alcançar soluções mais concretas, há de se recorrer ao “esquema em três escalas
de proteção de bens jurídicos” que recentemente desenvolveu Manfred Heinrich,
conforme o qual há de se examinar cada uma das normas penais duvidosas quanto à
sua legitimidade com detalhamento do que é o que se pretende proteger, a quem e
frente a quê. Tão somente ao final dessa análise se alcança a conclusão de se o
comportamento incriminado afeta o livre desenvolvimento do indivíduo ou os
pressupostos sociais do mesmo.
A concreção do princípio de proteção de bens jurídicos, também, se vê facilitada pela
formulação de pelo menos nove diretrizes para apoiar esse trabalho. Não posso
explica-las aqui, embora possa ao menos enuncia-las de modo sintético: as leis penais
arbitrárias, motivadas exclusivamente pela ideologia ou que interferem em direitos
fundamentais não protegem bens jurídicos; uma conduta imoral ou reprovável não
fundamenta como tal uma lesão de um bem jurídico, a proteção de sentimentos só
pode ser reconhecida como proteção de um bem jurídico quando ocorrem temores
realistas de serem objetos de ameaça; a autolesão consciente, torna-la possível ou
auxiliá-la não violam bens jurídicos (externos); as normas jurídico-penais
predominantemente simbólicas não têm uma função de proteção de bens jurídicos; os
tabus não são bens jurídicos; os objetos de proteção de tal abstração que resultem
inapreensíveis não podem ser reconhecidos como bens jurídicos. Sobre os bens
jurídicos coletivos, Greco recentemente elaborou uma concepção convincente,
conforme a qual não está permitido “postular um bem jurídico coletivo como objeto
de proteção de um determinado preceito quando a afetação desse bem jurídico
sempre implica simultaneamente na violação de um bem jurídico individual.”
Penso que sobre a base desses pontos de partida, o conceito de bem jurídico pode se
mostrar útil na determinação da legitimidade de normas penais. Com razão disse Mir
Puig a respeito do conceito de bem jurídico: “O certo é que todos os princípios gerais
necessitam de uma concreção através do debate público. Princípios como os da
democracia ou o princípio da igualdade são tão gerais que permitem concreções
completamente diferentes, mas nenhuma pessoa razoável extra deles a conclusão de
que seria preferível não invocar tais princípios.”
c) O reconhecimento de um âmbito de configuração crítico em face da legislação
não desvaloriza o conceito de bem jurídico
A encenação de Mir Puig mostra algo que frequentemente não é advertido pelos
críticos do conceito de bem jurídico: que aquilo que há de ser valorado como bem
jurídico não mostra limites completamente claros, contundentes, mas sim que a
referência a um bem jurídico de um preceito pode estar desenvolvida em maior ou
menor medida. Nos casos em que ainda é possível mostrar a conexão com o bem
jurídico, a margem de manobra do legislador cobre tanto uma criminalização como a
criação de uma infração administrativa ou a renúncia a toda s anção. Gostaria de deixar
isso claro com base em alguns exemplos que tomarei da bibliografia mais recente.
Assim, por exemplo, sustenta Romano, em debate com a minha concepção, a opinião
de que o legislador tem de se manter no marco de uma “política criminal orientada em
atenção aos bens jurídicos”, e que uma norma penal seria inadmissível quando “na
realidade” não protege “nada de nada”. No entanto, acredita ser perfeitamente
aceitável que o legislador introduza a “obrigação de levar capacete para os motoristas
ou o dever de utilizar o cinto para os motoristas”, apesar de que isso protege antes de
tudo o próprio condutor. “A rejeição unívoca de formas moderadas de paternalismo
jurídico, nada infrequente nos sistemas jurídicos anglo-saxões, não me parece
defensável.”
Quanto à conclusão alcançada, dou razão a Romano, mas considero que a legitimidade
de um dever de utilizar o cinto ou o capacete proveniente de uma sanção não pode ser
explicada com base no perigo causado pelo próprio condutor, mas sim da possível
lesão de terceiros. Contudo, parece duvidoso que os custos sociais a que se refere
Romano, devidos ao “tratamento médico e das estadias no hospital”, sejam suficientes
nesse sentido, pois caso o acidentado pague tais gastos, desaparece a razão. Por outro
lado, essas consequências frequentemente são reguladas pelo seguro de doenças e de
acidentes. Provavelmente, nenhum legislador terá que penalizar um modo de vida que
lese a saúde, ou a prática de esportes perigosos, pelos custos que podem gerar.
No entanto, como um motorista que não utiliza o cinto de segurança perde com maior
facilidade o domínio de seu veículo do que um que utiliza o cinto, e com isso pode
gerar danos externos, se mostra justificado o dever de utilizar o cinto. Isso também
inclui os passageiros do veículo, na medida em que podem ser lançado para fora do
automóvel sem cinto de segurança, assim como os ciclistas e motoristas que não usam
capacete geram o risco para outros implicados em um acidente, podendo ser punidos
por um homicídio imprudente ou por lesões graves, enquanto que se houvessem
utilizado o capacete, não teria ocorrido nenhuma lesão, ou ao menos, uma mais leve.
Já a anulação do risco de responsabilidade de terceiros tem para estes um caráter
protetor da liberdade, e, com isso, de um bem jurídico; desse modo, os protege de
afetações que emanam da preguiça de outros.
Logo, nesse caso uma intervenção legislativa ainda entra no marco da proteção de
bens jurídicos. No entanto, posto que a proteção de bens jurídicos tem um
desenvolvimento mais fraco, devido ao componente paternalista de tais preceitos em
comparação com os delitos que buscam uma proteção “pura” dos bens jurídicos, do
ponto de vista político-criminal resulta preferível tratar essas modalidades de conduta
como infrações administrativas. Em todo o caso, se torna parte da função do legislador
a previsão de uma pena de multa limitada, ou a renúncia de toda regulação
sancionatória. Assim, por exemplo, na Alemanha até o momento não foi introduzida a
obrigação de levar capacete para os ciclistas.
A situação é similar ao caso, já tratado, de negação do Holocausto. Romano disse:
“Também sustento a opinião de que não é adequado tentar resolver o problema de
negacionismo mediante uma norma penal.” No entanto, considera que é aceitável
“que as modalidades de comportamento proibidas (aprovação, negação ou
trivialização dos crimes do Holocausto) só são puníveis a partir de que sob o ponto de
vista temporal e espacial ocorram circunstâncias que coloquem em perigo concreto a
paz pública.”
Penso que isso é correto, mas o certo é que em tais casos bens jurídicos claramente
são colocados em perigo. Ele demanda a impunidade só em casos de “mera negação
sem caráter de agitação”, afirmando que é adequada a punição quando alguém
“aprova esses assassinatos ou... afirma que foram inventados por parte dos judeus
para zombar dos alemães.” Essa classe de agitação põe em perigo a liberdade e
segurança dos judeus que vivem na Alemanha; e provavelmente são casos com essas
características que Romano quer apreender. Em consequência, me parece que um
pensamento de bem jurídico crítico em face da legislação nesse caso não se mostra
errado, mas, ao contrário, torna possível realizar diferenciações adequadas à matéria.
Explicarei isto com um exemplo ulterior: a posse de escritos ou imagens de pornografia
infantil, que resulta em punição conforme o § 184𝑏 𝑝. 4 inc. 2º StGB. Em um dos
comentários mais importantes se afirma a respeito: “É difícil compreender a razão da
criminalização”. A evitação de uma consequência posterior não constitui razão
suficiente. Pois o receptor não é ferido, e o grave abuso cometido contra menores que
está na produção dessa produção já ocorreu.
No entanto, se for possível – a diferença do caso antes tratado de pornografia juvenil –
estabelecer uma relação com o bem jurídico que legitima a penalização, se admite que
o preceito pretende evitar o fomento da produção de pornografia infantil e os abusos
que essa comporta. Seguindo Fr.-Chr. Schroeder, que expôs isso com maior detalhe em
outro lugar, e aqui só posso remeter à ideia básica de que se diminui a demanda por
pornografia infantil quando se castiga a aquisição. Isso – a diferença do caso da
possessão de drogas- tem pleno sentido, posto que os produtores não atuam em redes
internacionais inapreensíveis, mas sim, como Schroeder expõe, atuam de
predominantemente como “pequenos empresários” privados, e, por isso, depende de
que haja clientes dispostos a adquirir. Cabe dentro do marco do espaço de
configuração do legislador perseguir essa intenção protetora de bens jurídicos através
do Direito penal.
d) O princípio da subsidiariedade como complemento imprescindível do
pensamento de bem jurídico
Finalmente, há de se levar em conta que a necessidade de uma lesão ou perigo aos
bens jurídicos não constitui, em absoluta, o único princípio limitador do alcance da
criminalização. Posto que também o Direito civil, o Direito público e especialmente o
Direito administrativo sancionador protegem bens jurídicos, nos casos em que ocorre
uma afetação de um bem jurídico, segue a questão de se sua evitação deve se realizar
mediante o Direito penal ou outras formas de regulação jurídica (por exemplo,
indenização, deveres de autorização ou medidas de controle).
A maioria da doutrina opina que uma ameaça de pena, enquanto sanção mais grave,
só será considerada quando as regulações menos danosas não se mostrem eficientes.
O princípio da subsidiariedade que se estabelece desse modo tem uma categoria
plenamente equivalente ao princípio de proteção de bens jurídicos e ocorre com este
com uma relevância político-criminal ao menos igual. Em consequência, cabe
caracterizar a tarefa do Direito penal como “proteção subsidiária de bens jurídicos”.
Portanto, não é feita objeção alguma ao princípio da proteção de bens jurídicos na
recente manifestação de Achenbach no sentido de que, tendo em vista “os bens
jurídicos supraindividuais do Direito penal econômico”, a teoria de bem jurídico nesse
âmbito não ofereceria “critérios verdadeiramente capazes de oferecer critérios de
diferenciação entre tipos penais legítimos e ilegítimos”. Ele mesmo se refere ao âmbito
de competência do princípio da subsidiariedade ao afirmar que “a teoria das
alternativas ao Direito penal para mim sempre foi um capítulo central do Direito penal
econômico.”
Disso deriva a necessidade de demandar uma “ciência da subsidiariedade” autônoma,
a se desenvolver junto com a teoria do bem jurídico. Plantei essa demanda há alguns
anos, me referindo com isso a um estudo interdisciplinar e institucionalizado da
questão de quais são os mecanismos de regulação que tornariam possível a proteção
de determinados bens jurídicos que a sociedade deseja de modo mais eficaz, e, ao
mesmo tempo, mais respeitoso da liberdade possível.
Este é um campo problemático muito complexo e, em grande medida, ainda sem
solução, que aqui não pode ser tratado, mas que sempre há de se ter em mente
quando se trata da limitação da legislação penal.
Algumas das questões centrais nesse âmbito são objeto de um debate particularmente
intenso. É este o caso, por exemplo, da tese de Tiedemann de que uma ameaça de
pena em determinados casos pode se mostrar menos danosa do que um sistema de
controle que cerceie de modo considerável a liberdade de ação. Também é necessária
uma discussão urgente da tese desenvolvida por Theile, da “pretensão de direção
social do Direito penal”, que no Direito penal econômico pode conduzir à criação de
novos bens jurídicos pelo Direito penal, enquanto que outros querem fazer retroceder
energicamente ao Direito penal com ajuda do princípio da subsidiariedade.
Recentemente, Trendelenburg apresentou alguns amplos “estudos anteriores a uma
futura ciência da subsidiariedade, com base no exemplo do Direito penal econômico”.
IV. A ideia fundamental de uma teoria de bem jurídico crítica à legislação refuta a
necessidade de delitos de mera conduta?
Uma corrente crítica deduz a negação da teoria do bem jurídico não da sua falta de
idoneidade para uma limitação do Direito penal claramente definida, mas sim de uma
concepção completamente divergente sobre a legitimidade das ameaças penais. Seu
porta-voz na discussão alemã mais recente é Stratenwerth, para quem “como
fundamente da criminalização” não entra em consideração “a lesão de determinados
bens jurídicos, mas sim exclusivamente a violação de normas de conduta fundamentais
para o consenso básico de uma sociedade”. De acordo com esse ponto de vista, o que
se mostra decisivo para a criminalização é “a posição fundamental, reconhecida social
e legislativamente, de querer manter uma determinada norma, ou, por outro lado,
sinceramente não desejar um determinado comportamento.”
Há três objeções a essa posição. Em primeiro lugar, de que da circunstância de que
uma maioria da população não está disposta a tolerar uma conduta que a desagrada
não decorre a dedução de que esta poderá ser castigada ainda que não afete em nada
a sua liberdade de desenvolvimento. Wohlers pergunta, apesar de ele mesmo adotar
uma posição bem mais crítica em relação à teoria do bem jurídico, com razão, se “uma
vez que se abandone o ‘dogma do bem jurídica’ se poderá satisfazer a pretensão de
fundar racionalmente as normas jurídico penais”. E salienta com razão que “uma
convicção não deve se reconhecer como merecedora de proteção apenas porque está
‘ali’”. Também Seelmann constata: “A pena... só é necessária quando alguém... reduziu
como autor o status de outro, da vítima.” Portanto, cabe dizer que a punição dos
comportamentos homossexuais consentidos entre adultos era – de acordo com o
Tribunal Constitucional Federal – ilegítima já em uma época em que foram valorados
por parte do Projeto de Governo de 1962 como “conduta abominável conforme a
convenção geral”.
Em segundo lugar, na nossa sociedade atual multicultural é impossível encontrar, em
relação à afetação de um bem jurídico, um “consenso fundamental” sobre a
necessidade de pena de um determinado comportamento. Isso mostram os seis
exemplos mencionados antes (III., 2., a) nos quais apesar de o legislador ter mantido
em sua maioria as suposições da criminalização de infrações de mera conduta órfãs de
bem jurídico, seu tratamento é extremamente controvertido.
Finalmente, em terceiro lugar, se mostra impossível um “consenso fundamental” sobre
a punibilidade de comportamentos que não afetam bens jurídicos, desde um princípio,
também porque o consenso fundamental em nossa sociedade vá mais na direção de
que todos têm direito a desenvolver sua personalidade com base em suas preferências
pessoas, na medida em que isso não afete o desenvolvimento do outro, ou aos
pressupostos jurídicos deste. Wohlers expressou com grande acerto: “Nas sociedades
que se sustentam sobre os valores do pluralismo e do individualismo normativo, o
consenso normativo fundamental vai em direção... de que competem diversas
concepções sobre o bem no mercado de ideias, livre da gerência estatal, devendo o
Estado se limitar a garantir as condições que constituem a estrutura dentro da qual
esse mercado pode funcionar.”
A posição de Stratenwerth encontrou um novo partidário em Volk, que acrescenta um
argumento extraído da teoria dos fins da pena. Invoca o fim da pena de prevenção
geral positiva e faz referência ao “efeito de confiança” por mim constatado, que surge
“quando o cidadão observa que o Direito se impõe”, e o “efeito de pacificação que se
produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza por razão da sanção de
violação do Direito.”
Volk deduz disso que “o fim do Direito penal é a proteção de sentimentos. A confiança,
tranquilizar uma consciência jurídica agitada... não são outra coisa senão sentimentos.
Essa teoria sobre os fins da pena não é compatível exceto com as teorias de bem
jurídico. Existem poucas coisas que inquietam mais a gente que a violação de um
tabu...”. Por isso, não quer – nessa medida, com alguma diferença em relação a
Stratenwerth – abandonar o conceito de bem jurídico, mas sim ampliá-lo, estendendo-
o para os sentimentos.
Nesse sentido, se mostra partidário de “abrir” o conceito de bem jurídico,
considerando “uma tarefa estatal legítima” a de “proteger também tabus, expectativas
eticamente fundadas, ‘sentimentos’’. No entanto, não quer reclamar “de modo
automático” uma proteção jurídico-penal para tais sentimentos. Tão somente
pretende mudar a fundamentação da legitimidade da intervenção penal “para outro
lugar, isto é, à proporcionalidade ou subsidiariedade”. “Uma vantagem, e não
pequena, seria a harmonização com a teoria dos fins da pena, que aponta à
consciência social e... quer reforçar ‘sentimentos’”. De modo similar se pronuncia
Androulakis em sua defesa de um “princípio da indignação”.
Existem dois argumentos que advogam contra esse raciocínio.
Em primeiro lugar, o fim da preservação geral positiva não é o de se alcançar o efeito
de confiança e de pacificação sobre quaisquer sentimentos e expectativas. O cidadão
só deve poder confiar em que se garantissem sua segurança e os pressupostos
institucionais desta, e em que está permitido fazer tudo aquilo que não afete de
maneira indevida a liberdade de desenvolvimento de outros. De fato, uma proteção
jurídico-penal que fosse mais além dessas expectativas e sentimentos não geraria
efeito pacificador algum, já que limitaria a liberdade de ação de outros, provocando
assim conflitos sociais.
Em segundo lugar, uma mudança da fundamentação que toma como ponto de
gravidade não a ausência de uma afetação ao bem jurídico, mas sim a subsidiariedade
e a proporcionalidade, transformaria um postulado politico-criminalmente claro
(“devem ser impunes as modalidades de conduta que não afetem um bem jurídico”)
em suposições de grande insegurança sobre qual decisão se tomar. Pois se fariam
intermináveis discussões sobre quando uma proteção jurídico-penal de sentimentos –
uma que é admitida – se mostra desproporcional, e quando pode ser substituída, no
caso, por outra regulamentação jurídica, ou quando cabe abrir mão por completo de
mecanismos de proteção.
Outros autores, apesar de professarem um pensamento de bem jurídico que exclui
uma proteção generalizada dos sentimentos, sustentam que há de se reconhecer sua
validade em casos excepcionais ou em suposições específicas que vão mais além de
legítimas necessidades de segurança.
Nesse sentido, Hefendehl, um dos mais importantes defensores do conceito de bem
jurídico crítico à legislação, é partidário de admitir excepcionalmente que se ameaça a
pena a violação “de convicções valorativas e relativas à conduta, enraizadas na
sociedade e homogêneas, ainda que não gere um dano”.
É certo que desse modo cabe explicar de maneira mais ou menos plausível um tipo
penal como o de maltrato de animais, que sempre foi um problema para a teoria do
bem jurídico. No entanto, Gimbernat objeta com razão frente a Hefendehl que então,
“também seria justificada a proibição penal da homossexualidade com base em uma
determinada sociedade em que exista o sentimento majoritário de que esse
comportamento é reprovável”. O próprio Hefendehl confirma essa objeção quando
justifica a descriminalização da homossexualidade teve lugar em um momento em que
não existia “um ‘domínio social’ sobre a reprovação dessa modalidade de conduta”.
No entanto, a função liberal do pensamento do bem jurídico reside precisamente em
que protege as minorias também contra uma situação de domínio de opinião da
maioria. Também de se levar em conta que a opinião pública relativa a aprovação ou
reprovação de determinadas condutas que não afetam bens jurídicos, especialmente
se tratando de questões que concernem ideias políticas, religiosas ou sexuais, é
inconstante e suscetível de manipulação. Sobre essa base não se pode fundar uma
política jurídico-penal racional.
Recentemente, Gimbernat empreendeu uma tentativa muito original de chegar a um
tratamento diferenciado da proteção de sentimentos no marco da teoria do bem
jurídico. Se declara expressamente partidário “da teoria do bem jurídico” e coincide
em todas as posições com a posição por mim defendida. No entanto, em alguns casos
surge como fundamento a suposição de que seria lícito proteger “sentimentos
legítimos” como bens jurídicos.
Nesse sentido, o “mal estar” que produz tanto na Espanha como na Alemanha o mal
trato de animais seria um sentimento legítimo, de modo que “a proibição geral de
práticas cruéis contra animais” estaria justificada. Sua legitimidade derivaria de que
um Convênio europeu do ano 1986 estabelece a obrigação de “respeitar” todos os
vertebrados, “tendo em conta de maneira adequada sua capacidade de sofrimento e
de memória”. A partir da perspectiva alemã caberia acrescentar também o art. 20ª da
Lei Fundamental que proclama a proteção dos animais.
No caso da criminalização – que existe em ambos países – da “perturbação da paz dos
defuntos” (§§ 167a, 168 StGB), na opinião de Gimbernat seria “o mal estar ou a
indignação que provocam os atos de profanação de tumbas o bem jurídico protegido
por esses tipos”, pois o “respeito aos defuntos” seria uma modalidade da “liberdade
ideológica ou relifiosa (também da ideologia ateia)”.
Finalmente, a partir desse ponto de vista, os deveres de fazer uso do capacete ou do
cinto de segurança, cuja violação na Espanha dá lugar a uma sanção administrativa,
não “protegem a vida e a saúde dos infratores, mas sim o sentimento compreensível e
legítimo que aflige os cidadãos quando sobre o número de vítimas de trânsito...”.
Ao contrário, a partir de seu ponto de vista, por exemplo, o castigo da
homossexualidade, da blasfêmia ou da “mentira de Auschwitz” seria errado, porque os
sentimentos de indignação provocados são ilegítimos. A razão da ilegitimidade estaria
em que a esses sentimentos se opõem os direitos, constitucionalmente, reconhecidos,
à atividade sexual, assim como à liberdade de manifestação e opinião.
Este é um ponto de partida extremamente interesse, e merece aprovação quanto à
referência às decisões valorativas tomadas na Constituição. No entanto, está em
questão se são realmente “sentimentos” o que constitui o objeto de proteção.
Desde logo, parece claro que proibição do maltrato a animais não pretende, como
objetivo prioritário, respeitar nossos sentimentos, mas sim evitar sofrimentos
desnecessários para os animais. Todas as regulações jurídicas da proteção de animais
se referem à proteção dos animais, e não a uma finalidade de preservar as pessoas
frente à ansiedade. Se as coisas fossem de outro modo, um maltrato que ocorresse
sem chegar a conhecimento público e que não escandalizaria ninguém, deveria ser
impune. Posto que os animais estão protegidos por convenções europeias e pelo
Direito constitucional alemão, não tenho problema para considerar sua capacidade de
sofrimento o bem jurídico protegido. Se reconhecemos aos animais superiores, com os
que podemos nos comunicar e cuja experiência de dor é equivalente à nossa, como
parte merecedora de proteção de nosso mundo vital, é apenas coerente processar seu
sofrimento, quando é provocado por seres humanos, como violação de um bem
jurídico.
Desde logo, desse modo, uma teoria de bem jurídico puramente antropocêntrica se
amplia – de uma maneira muito limitada, pois a proteção dos animais é mínima em
comparação com a proteção de que desfrutam os seres humanos – a uma teoria de
bem jurídico “criacionista”, isto é, se protege os animais enquanto “congêneres na
criação”. No entanto, a estrutura antes mencionada, no plano europeu e
constitucional, o justifica. Gimbernat recusa tal concepção argumentando que “os
animais não possuem bens jurídicos subjetivos”; o certo é, no entanto, que a afetação
a um bem jurídico não pressupõe necessariamente a lesão de direitos subjetivos, como
mostram, por exemplo, os delitos contra o meio ambiente.
Também há de se considerar que um tratamento respeito em relação aos defuntos é
parte de uma vida digna de um ser humano em nossa sociedade. A profanação de uma
tumba ou um tratamento que denigra ou insulte um cadáver afetam negativamente a
convivência e os direitos de personalidade subsistentes do falecido. As reações
emocionais são somente supõe o reflexo dessas afetações. E sobre o dever de usar
capacete ou cinto de segurança, tentei expor em que medida são protegidos bens
jurídicos reais.
Por conseguinte, pelo meu ponto de vista, nos casos mencionados, os sentimentos
legítimos de indignação de terceiros não são o próprio bem jurídico, mas sim apenas
uma reação justificada à sua lesão.
V. Bem jurídico, política criminal e Constituição
Ainda que se parta – como foi exposto – de que uma teoria de bem jurídico crítica à
legislação oferece conclusões suficientes claras, o certo é que continua sendo uma
questão de máxima controvérsia que geram uma criminalização de modalidades de
conduta que não supõem uma afetação a um bem jurídico. Os partidários do princípio
do bem jurídico não têm sido capazes de esclarecer se o postulado da afetação a um
bem jurídico supõe uma diretriz político-criminal a oferecer ao legislador, mas que não
o vincula, ou se, ao contrário – e, nesse caso, sob que pressupostos – a falta de
conexão com um bem jurídico pode conduzir à ineficácia de uma disposição penal.
Que a segunda alternativa não está completamente desencaminhada já demonstra o
fato de os tribunais constitucionais na Alemanha, Espanha e Argentina se ocuparam de
tais preceitos, e que os tribunais estrangeiros chegaram em casos expostos
anteriormente a uma declaração de nulidade.
1. Sobre a relevância político-criminal do pensamento de bem jurídico
Eu mesmo afirmei, coincidindo com a maioria dos representantes da teoria do bem
jurídico: “os partidários de um conceito de bem jurídico crítico à legislação se
dirigem... antes de tudo ao legislador, propondo postulados político-criminais, sem ter
respeito às suas propostas... que resultam em postulados jurídico-constitucionalmente
vinculantes em todos os casos.”
Essa classe de relevância político-criminal da teoria de bem jurídico com frequência é
conhecida também por autores que rejeitam que exista uma vinculação do legislador
às conclusões alcançadas. Assim, por exemplo, disse Dubber ao se mostrar partidário
da recepção do conceito de bem jurídico na América do Norte: “Mesmo que fosse para
se chegar à conclusão de que o conceito de bem jurídico não se funda na Constituição,
e, por isso, carece de mordaz destrutivo em um Estado de Direito democrático
moderno, pode ter um papel construtivo na teoria geral do Direito penal, cumprindo,
além disso, uma função de diretriz – mas não vinculante – para o legislador e os
tribunais.
Não se deve subestimar a função político-criminal da teoria do bem jurídico. Assim,
por exemplo, quando o legislador alemão reduziu – ao menos, enquanto tendência –
os antigamente denominados delitos contra a honestidade, desde as reformas de
19691973, aos ataques “contra a autodeterminação sexual” (§§ 174 e ss. StGB), o
conceito de bem jurídico crítico para a legislação promovido pelos Projetos
Alternativos desempenhou um importante papel. Também em outras controvérsias
tratadas ante o Tribunal Constitucional (por exemplo, no Direito a medicação ou a
transplantes, ou no caso de incesto entre irmãos) poderia haver um apoio essencial
para o legislador.
2. Bens jurídicos e Constituição
A questão ulterior de se um preceito penal pode chegar a ser inválido se não protege
um bem jurídico é resolvido de forma muito divergente. Assim, não é infrequente que
se negue toda vinculação para o legislador. Assim, por exemplo, Bacigalupo considera
que as deduções do princípio de bem jurídico que ele propôs são “corretas do ponto
de vista da política legislativa”. “No entanto, é claro que nenhuma teoria sobre o
objeto de proteção do Direito penal dispõe de um critério que fixe os limites da
limitação da liberdade mediante o Direito penal em uma sociedade fundada na
mesma.” “Os bens jurídicos penalmente protegidos são uma criação do legislador.”
De modo similar, recentemente sustentou Stuckenberg que “na medida em que se
quer prescrever sob a perspectiva científica ao legislador quais são os fins que devem
ser eleitos e quais não devem, é perfeitamente possível e necessário enquanto
proposta no discurso político-criminal, que idealmente deva estar dirigido pela
capacidade de convicção dos argumentos. No entanto, a ideia de que o legislador está
juridicamente vinculado, por exemplo, a criminalizar exclusivamente comportamentos
lesivos de bens jurídicos, não é compatível com a liberdade de atuação do legislador
democrático, a menor que se possa fazer um argumento de necessidade jurídico-
constitucional, o que não ocorre. Por mais desagradável que seja, dificilmente poderá
se fundamentar jurídico-constitucionalmente que se proíba a uma maioria
parlamentar penalizar um comportamento ‘meramente imoral’”.
Com isso se identifica o ponto decisivo, pois é óbvio que ao legislador não se pode por
limites por meio da opinião de determinadores professores, mas somente pela
Constituição. Os representantes da teoria de bens jurídicos nunca afirmaram algo
diferente. Assim, por exemplo, pode-se ler em um texto de minha autoria, invocando a
Stächelin e Hasseme:: “O ponto de conexão jurídico-constitucional da
inadmissibilidade desses preceitos penais é a proibição do excesso, a partir do
princípio da proporcionalidade.”
Nem ao menos é certo que se possa substituir o princípio de proteção de bens
jurídicos pelo princípio da proporcionalidade, como parecer imaginar, por exemplo,
Weigend quando diz que como conceito crítico para a legislação, o bem jurídico é
“inferior ao topos, jurídico constitucionalmente apoiado, da proporcionalidade das
intervenções estatais”. Ao contrário, o que ocorre é que ambos se complementam
mutuamente, como se descreve, corretamente, no Comentário de Schönke/Schröder:
“No âmbito da questão de que finalidades podem ser perseguidas com a legislação
penal, a teoria de bem jurídico e dos requisitos jurídico-constitucionais... se
entrelaçam; o princípio da proporcionalidade enquanto ponto de referência, por sua
vez, pressupõe um bem a proteger, para o qual a teoria de bem jurídico pode oferecer
pontos de partida, sem que com isso, no entanto, se faça prefixada a conclusão a se
alcançar depois de um exame jurídico-constitucional.”
Também Kaspar chega em sua monografia fundamental sobre o princípio da
proporcionalidade à conclusão de que é necessário combinar ambos pontos de
partida. Nesse contexto, em sua opinião “caberia integrar também os postulados
materiais da teoria de bem jurídico sem fissura alguma no exame jurídico-
constitucional. Ao menos tal entendimento do exame de proporcionalidade se subtrai
da censura de não oferecer critério algum para o conteúdo das leis penais.”
De fato, nem sequer é possível uma concepção diferente, pois, como é sabido, não
existe uma proporcionalidade em si mesma, mas há que necessariamente se por em
relação a intervenção estatal com os objetivos por ela perseguidos, para o qual as
características e a dimensão da proteção de bens jurídicos desempenham um papel
importante.
Ainda, cabe afirmar que é majoritária a tese da necessidade e possibilidade de vincular
a teoria de bem jurídico crítica à legislação à Constituição. Assim, por exemplo, Frister
assinala que “o conceito de bem jurídico se define na atualidade também na ciência do
Direito penal até o Direito constitucional.” De acordo com Steinberg, os
representantes atuais de uma teoria de bem jurídico crítica para a legislação estão “em
grande medida de acordo no objetivo de que... não é desejável estabelecer uma
concepção externa da Constituição paralela à mesma, ou inseri-la nela, mas sim que se
trata de concretizar as afirmações da própria Constituição no âmbito jurídico-penal,
servindo para a implementação da concepção de bem jurídico.”
Por conseguinte, nosso Tribunal Constitucional tem razão quando diz que o poder de
configuração do legislador não pode ser restringido por instâncias externas à
legislação. “Pelo contrário, este encontra seus limites – tanto no campo do Direito
penal como em outros – só na própria Constituição...”. No entanto, o Tribunal erra
quando opina que os representantes de uma teoria de bem jurídico crítica para a
Constituição sustentam outra opinião. Certamente, a teoria do bem jurídico pode
desenvolver suas ideias político-criminais com independência da Constituição e
oferece-las ao legislador. No entanto, a nulidade de uma norma, como é óbvio, só
pode ser deduzida a partir de uma violação à Constituição.
Em consequência, a controvérsia se condensa na questão de se – e em caso afirmativo,
sob que pressupostos – um preceito penal que não afete as possibilidades de
desenvolvimento de outros ou dos pressupostos institucionais destas – pode ser
inconstitucional. Para Stuckenberg, como já foi exposto, “não é difícil ver... um
argumento de necessidade jurídico-constitucional”, e também ao nosso Tribunal
Constitucional de que a teoria de bem jurídico “não estabelece critérios materiais que
necessariamente devem ser incorporados ao Direito constitucional...”.
Frente a isso, os partidários da teoria de bem jurídico crítica à legislação se remetem
de modo predominante ao princípio fundamental para o Estado de Direito da
proporcionalidade (idoneidade, necessidade, proporcionalidade) das intervenções do
Estado. Nesse sentido, se afirma que um preceito penal que não protege bens jurídicos
pode chegar a ser inconstitucional enquanto intervenção inadequada, excessiva e, com
isso, desproporcional na liberdade do cidadão. Quando esse é o caso concreto, no
entanto, é pouco claro. Isso supõe – até agora – um inegável ponto fraco de uma
posição que queira atribuir isso ao pensamento de bem jurídico, mais além de sua
função político-criminal, também uma relevância jurídico-constitucional. Por isso,
merece plena aprovação Neumann quando afirma que “é necessário desenvolver
esquemas diferenciados de argumentação de tornem possível a aplicação do princípio
da proporcionalidade a constelações concretas.”
Não se poderá dizer que qualquer punição de atos que não ferem bens jurídicos viola o
princípio da proporcionalidade, sendo por isso inconstitucional. Assim, por exemplo,
quando alguém “realiza atos sexuais em público” (§ 183ª StGB), não fere um bem
jurídico alienígena; pois não afeta negativamente as possibilidades de
desenvolvimento de ninguém. Por isso, sob o ponto de vista político-criminal, seria
mais adequado seu tratamento jurídico como infração administrativa. No entanto,
uma pena criminal moderada não passa a ser inconstitucional, pois não cabe vedar o
legislador a sancionar as infrações contra os costumes e à decência quando essas se
produzem de modo escandaloso e em público. Essa opinião encontro apoio no art. 2 p.
1 da Lei Fundamental, conforme o qual o livre desenvolvimento da personalidade deve
se limitar mediante a “moralidade pública”. Algo similar diz respeito à chamada
“proteção diante à confrontação” (§ 184 p. 1 nº 6 StGB), que ameaça punir o envio não
solicitado de material pornográfico.
Em contraposição a isso, no entanto, existem diversas disposições a respeitos das
quais uma ponderação conduz à conclusão de que uma intervenção através da pena
criminal se mostra desproporcional. Diz, ao contrário do sustentado pelo Tribunal
Constitucional Federal, por exemplo, respeito à representação da variação do preço de
filmes pornográficos; pois nesse caso, sempre que os espectadores são avisados da
natureza da película, não se expõe a ninguém contra a sua vontade uma imagem
pornográfica. E a proteção da juventude que se pretende realizar através do preceito
pode ser alcançada sem esforço algum através do controle de documentos de
identidade. Também é desproporcional que o § 184ª StGB ameace de pena quem dê
acesso a outros a um escrito ou imagem de pornografia animal. Pois se um adulto
deseja contemplar algo assim, não faz mal a nada ou ninguém, de modo que a ameaça
de até três anos de pena supõe uma clara violação da proibição de excesso, já que nem
sequer a realização direta de atos sexuais com animais é punível. Não se deve também
recorrer ao argumento da “moralidade pública” nos casos mencionados, já que a
pornografia como tal está permitida, e ninguém se escandaliza por esses
acontecimentos. O mesmo diz respeito do caso, antes abordado, de que alguém
possua uma fotografia de conotação sexual de sua noiva de 17 anos.
Na minha opinião, também são desproporcionais a proibição e a criminalização – ainda
que limitada ao médico que realiza a intervenção – da doação de órgãos inter vivos
quando não se trata de familiares ou pessoas fortemente ligadas entre si (supra III. 2.
A.), terceiro caso), pois falta a intervenção na liberdade de desenvolvimento dos
intervenientes. Os riscos de uma possível falta de liberdade ou de um tráfico de órgãos
podem ser neutralizados de outro modo. Sendo assim, no entanto, a negação do
salvamento de uma vida, valioso tanto social como eticamente, por meio do Direito
penal, está fora de toda proporção em relação aos fins perseguidos pelo legislador.
Nessa estrutura presente não é possível examinar a constitucionalidade de todas as
disposições em que não se pode demonstrar a existência da lesão de um bem jurídico
sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade. No entanto, os exemplos
mencionados quiseram mostrar que uma análise detalhada de todos os preceitos que
entram em consideração podem oferecer soluções suscetíveis de uma fundamentação
racional convincente, adicionando em alguns casos a afirmação de
inconstitucionalidade.
Além disso, também existem outros limites constitucionais à criminalização de
modalidades de conduta que não afetam bens jurídicos, limites que, ao serem
subtraídas de toda a ponderação, vinculam o legislador de modo próprio mais intenso
que o princípio da proporcionalidade. É este, especialmente, o caso das intervenções
no “âmbito nuclear da configuração viral privada”, que o Tribunal Constitucional
Federal deduziu da dignidade humana e declarou como intangível. Portanto, uma
intervenção do legislador nesse âmbito nuclear conduz à inconstitucionalidade.
Fazem parte do âmbito nuclear sem dúvida alguma também o comportamento sexual
das pessoas, na medida em que se desenvolve fora do âmbito público e não afete a
autodeterminação sexual de outros sujeitos. Disso segue que as relações
homossexuais entre adultos, e também o incesto entre irmãos, não devem ser
penalizados.
Essa ideia também sustenta a tese de que é inconstitucional ameaçar de pena a posse
de drogas que exclusivamente estão destinadas ao autoconsumo, como o faz o § 29 p.
1 da Lei de drogas (BtMG). Pois como alguém usa substâncias de abuso (como
também, por exemplo, o álcool e o tabaco) é assunto de sua configuração vital pessoal
e afeta seu âmbito nuclear, já que é parte de sua autorrealização. Como já foi
mencionado, por consequência, a Corte Suprema da Argentina disse ser
inconstitucional a proibição penal da posse de drogas para o autoconsumo. Afirmou a
concorrência de uma violação ao art. 19 da Constituição argentina, que afirma que as
questões privadas são assunto exclusivo de Deus e não do Direito penal.
Recentemente, Greco desenvolveu uma “fundamentação na teoria da autonomia” da
limitação jurídico-constitucional do poder punitivo estatal e sustenta que “é superior à
teoria do bem jurídico”. “O respeito frente a autonomia do indivíduo significa que se
reconhece um Âmbito sobre o qual só compete decidir ao indivíduo. Que essa reflexão
coincide em grande parte com a... figura do âmbito nuclear intangível da configuração
vital privada é evidente.”
Nesse contexto, é certo que a tese do âmbito nuclear dá fundamento à
inconstitucionalidade de algumas suposições de preceitos penais de bens jurídicos. No
entanto, isso não torna supérflua, de modo algum, a teoria do bem jurídico; pois, em
primeiro lugar, a atribuição ao âmbito nuclear da esfera privada implica a ausência de
afetação a bens jurídicos externos. Em segundo lugar, a inconstitucionalidade de uma
penalização de condutas que não prejudicam bens jurídicos também pode se inferir de
princípios constitucionais distintos da dignidade humana que garante o âmbito nuclear
(concretamente, do princípio da proporcionalidade ou de direitos fundamentais
especiais). E em terceiro lugar, o princípio do bem jurídico também tem uma
considerável importância político-criminal nos casos em que deixa-lo de lado não leva
a inconstitucionalidade.
Outro direito fundamental cuja lesão, por exemplo, acarreta na dedução de
inconstitucionalidade de uma punição de “negacionismo”, é falar, da mera negação,
nem discriminatória nem de agitação, de fatos históricos, é a liberdade de opinião,
que de fato invocam expressamente Romano e Gimbernat, assim como os tribunais
constitucionais espanhol e francês antes mencionados.
Desse modo fica claro que nos seis casos que antes (III. 2. A) serviram como exemplos
especialmente controvertidos da punibilidade de um comportamento que não
prejudica bens jurídicos cabe fundamentar muito solidamente a inconstitucionalidade.
Outros casos estão, por exemplo, nas violações da liberdade religiosa que podem advir
da criminalização, baseada em motivos religiosos, de modalidades de conduta que não
supõem a afetação a um bem jurídico. Não é possível realizar aqui uma análise de
todas as normas penais cuja legitimidade é discutida. Mas Hefendehl tem razão
quando diz que “a verdadeira construção da teoria do bem jurídico... próprio está por
vir.”