O Conceito de Antropologia Jurídica

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Vamos de início ver o conceito sobre Antropologia: antropologia é a

ciência que estuda o homem e as implicações e características de sua

evolução física (Antropologia biológica), social (Antropologia Social), ou

cultural (Antropologia Cultural).

A palavra antropologia deriva das palavras gregas antropos (humano, ou

homem) +logos (pensamento ou razão).

Esta é uma ciência tardia que surgiu, ou se constituiu como disciplina

científica, em meados do século XIX a partir das descobertas de Darwin e

sua teoria evolucionista quando se concentrava na elaboração de teorias

sobre a evolução do homem, sua sociedade e cultura. O homem não era

mais fruto da criação Divina, então os cientistas começaram a procurar pela

sua origem: o chamado “elo perdido”, que ligaria o homem moderno a seus

ancestrais hominídeos. Com o tempo os estudos sobre o homem ganhou

forma, os cientistas começaram a se interessar pelos grupos humanos

primitivos e seus costumes, cultura e características, passando a entender o

homem não mais como uma criação de Deus, mas da natureza.

Antropologia Jurídica: a antropologia jurídica dedica-se ao estudo do Direito

das sociedades “simples”,das instituições do Direito da sociedade

contemporânea, do Direito Comparado e do pluralismo jurídico. Shirley

(1987,p.14) divide o estudo da antropologia jurídica em três tipos: a

antropologia legal, “é o trabalho clássico do antropólogo legal [...], o estudo

da ordem social, de regras e sanções em sociedades ‘simples’,o ‘direito

primitivo’ na terminologia mais antiga”. A antropologia Jurídica “ é o emprego

de métodos antropológicos de pesquisa, observação participante e

comparação com modernas instituições de Direito. Trabalhos nesta linha têm

sido feitos na polícia, na magistratura e até em prisões”.

O Direito Comparado é o estudo e comparação de diferentes sistemas

jurídicos, simples e complexos, em que a colaboração do antropólogo é

imprescindível “para auxiliar nesta espécie de trabalho, pelo alcance de seu

conhecimento multicultural e de sua consciência de muitos tipos diferentes de

instituições jurídicas que não as das sociedades modernas ocidentais”.

Inicialmente é importante esclarecer que para se pensar em Antropologia

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Jurídica temos que desvincular o Direito do Estado e da escrita, ou seja,

desmitificar o monismo jurídico, representado pelo Direito Ocidental como um

paradigma incontestável

,assegurado por um aparato estatal e apresentado por uma codificação

escrita. Isto não significa que o Direito estatal positivado não seja

considerado Direito para a Antropologia, mas é apenas mais uma forma de

Direito.

O monismo jurídico foi instituído na sociedade ocidental por volta dos

séculos 17 e 18, sob a influência do absolutismo monárquico e da burguesia

revolucionária, havendo um processo de racionalização do poder e de

centralização burocrática. Após a revolução Francesa são incorporados “os

múltiplos sistemas normativos sob a base da igualdade de todos perante o

Direito nacional uno e comum”. Assim, eliminou-se a “estrutura política

corporativa ”e minimizaram-se “as experiências de pluralismo legal e

processual” (WOLKMER, 2006, p. 638).

O Direito Ocidental é dotado de um sistema de representações

específicas em que “as diferenças são negadas em nome da justiça e da

igualdade, a unidade tende a confundir- se com a uniformidade” (ROULAND,

2003, p.83).

Na realidade todos os indivíduos agem de acordo com a comunidade a que

pertencem. Inicialmente a família, depois a rede de amizades e a esfera

profissional. Cada qual tem suas regras próprias de moral, de polidez e de

condutas que são cobradas independentemente da interferência de Direito

oficial (ROULAND, 2003, p. 83-88).

Pelo estudo do Direito de outras sociedades a Antropologia Jurídica nos

permite compreender melhor o sistema jurídico da nossa própria sociedade.

Inicia-se com as micro análises de grupos específicos, depois, “no plano

global, as diferenças entre as diversas tradições culturais retomam toda a

sua força: um chinês, um europeu e um iraniano não fazem a mesma idéia

de Direito” Com relação a esta questão, os empresários têm utilizado os

trabalhos dos antropólogos para entenderem esta diversidade no momento

de estabelecerem relações comerciais internacionais (ROULAND, 2003,

p.89).

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O objeto de estudo da Antropologia Jurídica clássica é o Direito das

sociedades “simples”, sem escrita e sem Estado- ou distante dele. Embora

muitos autores relacionem o Direito apenas com o Estado, a Antropologia

moderna provou que existe Direito em sociedades sem Estado.

Antropologia jurídica: gênese, autonomia e importância

O nascimento da Antropologia ocorreu em meio à expansão colonial

européia do século XIX. Temos, portanto, a ligação da antropologia social e,

conseqüentemente, da antropologia jurídica com o imperialismo europeu, que

emerge, segundo Hannah Arendt, do colonialismo motivado pela dimensão

expansionista, o que difere-se das políticas de formação de impérios aos

moldes de Roma.

Assim, o imperialismo é caracterizado por aquilo que se denomina

“bulimia territorial”, mas não somente, pois, segundo Eric Hobsbawm, o

imperialismo, que se inicia em 1880, condensa-se em um novo tipo de império,

fundamentado na divisão do mundo entre países “avançados” e “atrasados”.

Nesse contexto social, caracterizado pela política de massas, o Estado

nacional europeu precisava fundamentar sua legitimidade, demandando

esforços para angariar o apoio popular à expansão imperialista. Assim, a idéia

de superioridade racial, já bastante difundida na sociedade européia em face

das demais sociedades, torna-se a mais eficaz ferramenta de legitimação da

expansão imperial. À época, a idéia de superioridade de raças já podia ser

encontrada na obra, acerca da hierarquia das raças, Essai sur l'inégalité des

races humaines, de Gobineau, à qual faz alusão o poema.

No entanto, a ideologia da superioridade necessitava de argumentos

para atestar seu convencimento e, assim, a Antropologia, recém-nascida,

torna-se um instrumento de grande valia no tocante ao exercício da dominação

nos contextos coloniais.

Cabe ressaltar que, entre o conhecimento antropológico e a

administração colonial, fora estabelecida uma “afinidade eletiva” de tal modo

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que a administração colonial apoiaria o desenvolvimento da antropologia e os

antropólogos forneceriam, em última análise, conhecimentos que se prestariam

à validação da dominação política.

O Evolucionismo, primeira grande corrente da Antropologia no século

XIX, tinha um caráter etnocêntrico, permitindo a utilização da suposta ciência

como instrumento de dominação. Segundo Norbert Rouland, a escola

evolucionista parte das seguintes premissas: as sociedades humanas formam

um conjunto coerente e unitário subordinado às leis gerais e globais de

transformação; todos os grupos humanos passam por estágios idênticos e

sucessivos no desenvolvimento de suas organizações econômicas, sociais e

jurídicas; há uma concepção linear do tempo que aponta para a idéia de

teleologia histórica.

A antropologia com enfoque jurídico também se manifesta inicialmente

nesse contexto imperialista, cujos maiores expoentes formularam suas teses

sob o influxo da dominação colonial. Dentre os “pais fundadores” da

antropologia jurídica, temos: Lewis Morgan, que postulou a lei geral de

desenvolvimento, na qual as sociedades evoluem passando pela selvageria até

a barbárie para, por fim, atingir a civilização; e, ainda, Henry Sumner Maine,

que estabeleceu a lei geral de evolução, caracterizada pela transmissão do

status, fundado na cosmologia social, para o contrato.

Tendo por base a análise da gênese da disciplina, Orlando Villas Bôas

Filho, em seu texto intitulado “A constituição do campo de análise e pesquisa

da antropologia jurídica”, estabelece o objeto, modo e finalidade do campo de

análise e pesquisa da antropologia jurídica do século XIX: consiste no estudo

das “sociedades primitivas” fundamentado no pressuposto etnocêntrico da

superioridade da sociedade européia em relação às demais, tendo um caráter

meramente instrumental e constituindo-se num saber voltado à gestão de

populações, expressão que Robert Weaver Shirley denomina de “dimensão

pragmática” da antropologia.

O evolucionismo, escola que representou a Antropologia no século XIX, foi

muito criticado pelas escolas posteriores e, sob essa ótica, a Antropologia foi

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questionada como ciência em relação ao seu objeto, modo e finalidade. Dentre

as correntes avessas às premissas evolucionistas, temos a difusionista norte-

americana, cujo maior representante é Franz Boas, pensador aludido no

poema.

As críticas de Boas em relação ao evolucionismo podem ser resumidas

em alguns tópicos:

As sociedades são essencialmente diversas. Não são partes de um

conjunto coerente e unitário subordinado a leis gerais de desenvolvimento.

Rompe-se, assim, a perspectiva linear e teleológica da história. Portanto, não

existe lei única para explicar o desenvolvimento das sociedades;

Cada grupo cultural possui uma história própria e única, de modo que é

mais importante esclarecer os processos que ocorrem concretamente em cada

sociedade do que propor leis gerais de desenvolvimento das civilizações;

homem não herda senão as potencialidades, cujo desenvolvimento

depende de um dado ambiente físico e social, donde decorre a não aceitação

da idéia de que a evolução está baseada na passagem por estágios idênticos e

sucessivos;

Não se pode explicar a complexidade da vida cultural baseando-se

apenas num único conjunto de condições ou causas, donde decorre que as

explicações raciais são, necessariamente, parciais e redutoras, para não se

dizer equivocadas. O elemento raça não é suficiente para explicar as

diferenças entre as mais variadas sociedades;

Não há raças mais evoluídas que outras, o que quebra a premissa

evolucionista da existência de povos com mentalidade infantil e povos com

mentalidade madura, o que está na base jurídica de tutela de uma sociedade

sobre outra;

direcionamento do método antropológico deve estar voltado para a

unidade empírica do indivíduo em relação com a cultura que o envolver, daí

sua perspectiva culturalista.

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Franz Boas acenava para o estudo da história cultural e foi um dos

principais representantes do difusionismo norte-americano, além de ter sido

professor de Gilberto Freyre na Universidade de Columbia, Nova York. Conta

Freyre, no prefácio de Casa-Grande & Senzala, a profunda impressão que lhe

causaram os ensinamentos de Boas, traduzidos no poema de Manuel Bandeira

(“Que importa? É lá desgraça?/Essa história de raça,/Raças más, raças boas/-

Diz Boas –”).

Outro crítico da corrente evolucionista foi Claude Lévi-Strauss, que

lança as bases do Estruturalismo, desvinculando a Antropologia da bio-política

para relacioná-la à ciência da cultura, de modo a recuperar e aprofundar o

pensamento de Boas. Ao refutar as leis gerais de desenvolvimento, premissa

da escola evolucionista, estabeleceu que as culturas humanas diferem-se de

vários modos, tanto na relação entre sociedades distintas quanto no âmbito de

uma mesma sociedade; e também apresentou a idéia de que o Homem não

exerce a sua natureza numa humanidade abstrata, mas sim em culturas

concretas.

As críticas ao Evolucionismo repercutiram no âmbito jurídico e

tornaram-se evidentes quanto à rejeição às leis universais da história,

atingindo, no seu conseqüente desenvolvimento no campo jurídico,

principalmente Sumner Maine. Ainda, se as sociedades são diferentes uma das

outras e, devido a isso, se organizam juridicamente de formas distintas, temos

a propositura da diversidade de sistemas jurídicos, que não se resumem,

portanto, à maquinaria estatal de força vinculante.

Não obstante, segundo Shelton Davis, “a Antropologia do Direito é a

investigação comparada de definição de regras jurídicas, da expressão de

conflitos sociais e dos modos através dos quais tais conflitos são

institucionalmente resolvidos. Como tal, a Antropologia do Direito tem como

ponto de partida que os procedimentos jurídicos e as leis não são coincidentes

com códigos legais escritos, tribunais de justiça formais, uma profissão

especializada de advogados e legisladores, polícia e autoridade militar etc.” Ou

seja, a Antropologia jurídica atualmente situa-se na problematização do direito,

no campo das investigações zetéticas, cujo objeto transcende o direito nas

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sociedades sem Estado, sendo, por vezes, questionado por supostamente

adentrar ao campo da Sociologia jurídica.

Antropologia Jurídica no Brasil: Movimentos Sociais, Direito Oficial e

Dialética Normativa

Uma História do Direito no Brasil: Pontos de Partida

Não é possível se discutir antropologia jurídica no Brasil, sem se discutir os

pontos de partida. O ponto de partida de qualquer discussão jurídica é a

história do direito. A primeira premissa é enxergar a história como um

processo, não linear e sujeito a tropeços.

Ou seja, a história não é exata, não é um dado único, não é um fato único, ela

é complexa, contraditória, sujeita a ida e vindas, a tropeços e retrocessos.

Aqui a história será observada como longa duração, criticando-se a visão dos

grandes feitos, dos grandes momentos e dos grandes homens: a história não

se resume a datas específicas, à supostas explosões de acontecimentos, ela

é um turbilhão de vários acontecimentos simultâneos ou não, é composta de

vários homens e mulheres, soldados e cidadãos, e não apenas de reis ou

generais.

A Independência brasileira, por exemplo, não aconteceu apenas no dia 07 de

setembro de 1822, ela é a luta do Marquês do Maranhão3 , é a luta de morte

de mais de dez mil baianos contra os portugueses4 , são as batalhas no norte,

no nordeste, em todo o Brasil. Ela é um complexo de fatos que aconteceram

antes desse período e, em especial, é uma construção posterior desse

período. A tentativa, desse trabalho, é trazer à tona essas discussões para a

antropologia jurídica no Brasil. Outra premissa é o questionamento da história

e dos discursos oficiais, para evitar uma narrativa contada da exclusivamente

“perspectiva do vencedor”: Ou seja, da perspectiva das elites sociais,

econômicas e políticas; perspectiva essa que não apenas despreza a visão

dos oprimidos, mas fecha os olhos para as lutas sociais por direitos e por

reconhecimento da cidadania, que não podem ser reduzidas a meras

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concessões paternalistas.

Nesse sentido, Eduardo Galeano é esclarecedor: Não há História muda. Por

mais que a queimem, por mais que a rasguem, por mais que a mintam, a

História humana se nega a calar a boca. O tempo que foi continua pulsando,

vivo, dentro do tempo que é, ainda que o tempo que é não o queira ou não o

saiba. O direito de lembrar não figura entre os direitos consagrados pelas

Nações Unidas, mas hoje é mais do que nunca necessário reivindicá-lo e pô-

lo em prática: não para repetir o passado, mas para evitar que se repita (...)

Quando está realmente viva, a memória não contempla a História, mas

convida a fazê-la. Mais do que nos museus, onde a pobre se entedia, a

memória está no ar que respiramos; e ela, no ar, nos respira.

Os livros e os discursos oficias não podem calar as histórias. A reconstrução,

a revalorização, o questionamento dos pressupostos e das narrativas faz parte

da história. Uma história só persiste se ela é questionada, criticada,

contraditada ou confirmada. Uma história só existe se ela é viva, se ela é

alterada, questionada constantemente.

A história é viva pois seus reflexos estão no ar, seus desdobramentos estão

no dia a dia. Uma história maquiada, criada tende a dissolver-se no ar, pois os

reflexos do passado são vividos no futuro, no momento e na relação entre

esses dois tempos.

Daí José Carlos Reis afirmar: “o conhecimento histórico possui uma

legitimidade social, é útil porque põe em contato os homens do presente com

os do passado (...) ela (a história) restabelece o diálogo entre o presente e o

passado, entre os homens mortos, que recuperam a vida, e os homens vivos,

que reconhecem a morte. Tal é a sua imensidade”

Da História para e com a Antropologia Jurídica

O objetivo aqui é “explorar as tensões presentes” nas práticas jurídicas

cotidianas e reconstruir os “fragmentos de uma racionalidade normativa já

presente e vigente nas próprias realidades sociais e políticas.”8 Ou seja,

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conhecer o direito como experiência jurídica, como prática cotidiana, virando o

texto constitucional contra a exclusão9 e contra os males que assolam a

sociedade brasileira.

Mas, para tanto, será necessário conhecer o que permeia junto a esse direito

como experiência jurídica. É preciso conhecer o direito oficial e de onde ele

vem.

Historicamente, no Brasil o direito oficial vem do Estado. Mas não só dele:

esse direito estatal é sujeito a pressões, a influências, a questionamentos

constantes.

Entretanto, usualmente, a população sempre foi excluída da participação

oficial do Estado. Exclusão essa que sempre ocorreu de diversas formas na

história brasileira: com o voto censitário no Império, com o requisito de

alfabetização para votar em 1881, com as violências e a força dos coronéis,

com o complexo sindicalista estatal organizado por Vargas10, seguido das

ditaduras militares e da força do dinheiro no Brasil democrático. Ou seja, se

poucas vezes o povo brasileiro pode votar livremente, imagine-se se o acesso

aos cargos eletivos era dado ao povo.

Os eleitos pertenceram a uma elite, que não necessariamente corresponde a

população que o mesmo representa. Resumindo: o representante do povo não

se parece com o povo.

Logo, o direito positivo, sempre foi feito por uma elite (inicialmente agrária e

depois urbana) que não fazia parte da maior parte da população brasileira:

pobre, analfabeta e carente de direitos sociais: daí a dificuldade de discutir-se

cidadania em um país de escravidão e latifúndios,11 onde alguns homens

valem mais e outros menos, onde alguns tem tudo e outros não tem nada.

Mas se a grande parte da população brasileira não participava de sistema

eleitoral (corrupto na Primeira República, manipulado no Governo Vargas,

fantoche na Ditadura Militar) como a grande parte da população agia

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politicamente? Ou não agia? Se o voto (instrumento de participação política)

era uma farsa, como a população agia politicamente?

A hipótese que defende-se é que a população agia sim, mas não através dos

canais oficiais, não através do voto, mas por outros instrumentos, sendo um

deles as revoltas: o povo participou da elaboração do direito não pelos canais

oficiais (voto, plebiscitos, referendos... – esses instrumentos foram facilmente

manipulados pelos donos do poder), mas participou ativamente por outros

canais, como as greves da primeira república que estão diretamente

relacionadas com os direitos trabalhistas reconhecidos na década de trinta,

assim como as revoltas que aceleraram a derrubada dessa mesma república,

como a bandeira dos pracinhas que foi usada pelos generais para derrubar

Vargas, como as greves, a luta armada e todos os meios que demonstram

que “os cidadãos não assistiram “bestializados”, como meros

espectadores/expectadores, aos acontecimentos, mas os constituíram, por

meio de canais, instituições e organizações múltiplos, e não redutíveis ao

Estado.

Palavras Finais

A população é excluída da participação política pelos canais oficiais do

Estado. Os governantes, em vários momentos, não representam o povo que o

“elegeu”. Pelo sistema jurídico brasileiro, oficialmente, o direito é criado pelos

canais oficias do Estado. Ocorre que, por mais que a população não participe

da elaboração oficialmente do direito – são raros e louváveis os casos de

audiências públicas para discussão de leis e julgamentos – essa população

participa politicamente da elaboração do direito e da vida política não pelos

canais oficiais, mas sim pelos canais não oficias. É pressionando o Estado

com greves, revoltas, barricadas... que a população se manifesta em um

sistema de exclusão, ou melhor, em um sistema de não apoia, usualmente, a

sua participação. Paralelamente essa população se utiliza de regras jurídicas

que não aquelas oficiais, positivadas pelo Estado, para regular a sua vida

social. São as regras de direito não oficial, no qual, ante a ausência ou

despreparo das regras estatais a população busca nos meios de regulação da

vida.

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Nesse contexto a importância de compreender o direito não apenas como

direito positivado pelo Estado, mas direito como experiência jurídica. Direito

como experiência jurídica é o direito aplicado nas ruas, nas praças, nos

mercados, no dia-a-dia das pessoas. Ele abarca, claro, o direito oficial,

positivado, mas não apenas esse. Ele vai além do direito oficial, ele busca

formas alternativas, busca adequá-lo a realidade brasileira, com seus

problemas e contradições. Da mesma forma importante é entender a dialética

normativa que existe no direito brasileiro. Essa dialética se apresente em dois

momentos principais: primeiramente, quando o direito oficial coexiste no

mesmo espaço e no mesmo tempo que o direito não oficial, tratando de

assuntos diversos ou dos mesmos assuntos.

A dialética nesse momento se impõe quando duas fontes de direito, a princípio

contraditórias e muitas vezes opostas coexistem, mas não necessariamente

se excluem. Elas podem coexistir, uma pode ser mais forte em um

determinado momento, em determinada sociedade, mas ambas podem se

alterar. A dialética consiste na existência e na alteração entre as duas. O sim

e o não coexistem, coexistem em tensão, negando, elevando, sofrendo

rupturas, continuidades, avanços, retrocessos, sem fórmula fixa, sem critério

pré-determinado. O segundo momento da dialética se impõe quando um

direito teoricamente igualitário é construído para diferenciar as pessoas.

É criado um direito para os pobres e um direito para os ricos, mas que é

vendido com a bandeira de igualdade, com bônus da liberdade. Só há

liberdade quando há escolha e, em vários momentos, parece que não há. Por

isso a critica a um direito que nega a realidade e que ainda é fundamento para

uma das grandes mazelas do Brasil: a corrupção. Os grandes “vilões” estão

soltos e grande parte dos oprimidos presos. O crime contra o patrimônio

individual – o crime das “classes pobres”, já que o crime contra o patrimônio

coletivo, público, usualmente é o “crime das classes altas” – ainda é o que

mais leva cidadãos à cadeia no Brasil.