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O comércio transatlântico de escravos: condução da mão-de-obra negra para Pernambuco entre os séculos XVI e XIX 1 Débora de Souza Leão Albuquerque 2 Resumo Dados apurados na última década mostram que Recife foi o quinto maior centro mundial de tráfico escravista. No entanto, o tráfico para Recife é ainda pouco pesquisado. Em 2007, a divulgação dos novos dados sobre o tráfico atlântico ampliou muito as informações sobre o tráfico escravista brasileiro, especialmente no Norte e Nordeste, o que permitiu um mapeamento do tráfico pernambucano muito mais pormenorizado do que antes possível. Houve, por exemplo, um incremento de 1.282% no número de desembarcados em Pernambuco o que possibilitou uma melhor investigação de questões como os portos de embarque de escravos, na África; a duração média das viagens; o tamanho médio das embarcações utilizadas; a mortalidade média durante as viagens, etc. A relação desses pontos com as atividades econômicas desenvolvidas na capitania é evidente no trabalho. Palavras-chave: Mão-de-obra, Tráfico, Escravismo, Nordeste, Brasil. 1 A pesquisa de que decorre o trabalho teve o apoio do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (PRONEX), financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Assistente de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- Ipea. Graduada em economia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. A autora agradece ao professor Flávio Rabelo Versiani, seu orientador na monografia de graduação.

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O comércio transatlântico de escravos: condução da mão-de-obra negra para

Pernambuco entre os séculos XVI e XIX1

Débora de Souza Leão Albuquerque2

Resumo

Dados apurados na última década mostram que Recife foi o quinto maior centro

mundial de tráfico escravista. No entanto, o tráfico para Recife é ainda pouco

pesquisado. Em 2007, a divulgação dos novos dados sobre o tráfico atlântico ampliou

muito as informações sobre o tráfico escravista brasileiro, especialmente no Norte e

Nordeste, o que permitiu um mapeamento do tráfico pernambucano muito mais

pormenorizado do que antes possível. Houve, por exemplo, um incremento de 1.282%

no número de desembarcados em Pernambuco o que possibilitou uma melhor

investigação de questões como os portos de embarque de escravos, na África; a duração

média das viagens; o tamanho médio das embarcações utilizadas; a mortalidade média

durante as viagens, etc. A relação desses pontos com as atividades econômicas

desenvolvidas na capitania é evidente no trabalho.

Palavras-chave: Mão-de-obra, Tráfico, Escravismo, Nordeste, Brasil.

1 A pesquisa de que decorre o trabalho teve o apoio do Programa de Apoio a Núcleos de

Excelência (PRONEX), financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal

(FAPDF) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Assistente de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- Ipea. Graduada em

economia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. A autora

agradece ao professor Flávio Rabelo Versiani, seu orientador na monografia de graduação.

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Introdução

O comércio Atlântico de escravos foi um dos mais complexos negócios

conhecidos e envolveu a maior migração transoceânica na história até aquele momento

(Klein, 1999). Ao todo, embarcaram em navios negreiros mais de 12 milhões e meio de

africanos e, com destino o Brasil, foram mais de 5 milhões e meio de embarcados. Esse

tráfico movimentava, entre outras atividades, a indústria naval, o sistema financeiro e de

crédito europeu além da indústria armamentista francesa que, segundo Williams (1994),

fora completamente dependente do comércio africano durante épocas de paz na Europa.

Nesse contexto, é evidente a importância de Recife como centro de tráfico de

escravos. Como ressaltado por Silva & Eltis (2008:122) Recife foi o quinto ou sexto

maior centro organizado de tráfico transatlântico de escravos do mundo. Os novos

dados disponíveis na nova base de dados proporcionaram uma reavaliação dessa

importância; é uma novidade, no contexto da literatura sobre o tráfico de escravos

africanos para as Américas.

A base de dados mais atualizada e completa até 2007 foi patrocinada pela

Universidade de Harvard e coligia grande volume de dados de diversas fontes sobre o

tráfico total de africanos para as Américas, essa base de dados foi lançada em 1999 e

trazia como informação que, para todo o período do tráfico de escravos para

Pernambuco, desembarcaram nessa região 61.800 escravos em 183 viagens realizadas

para tal capitania. Já a nova base de dados, disponibilizada em 2007, patrocinada pela

Universidade Emory, dos Estados Unidos, Instituto Du Bois e pela Fundação Nacional

para as Humanidades (NEH) e disponível no site www.slavevoyages.org, informa que,

para todo o período do tráfico para Pernambuco, houve um desembarque de 853.833

africanos nessa região conduzidos em 1.376 viagens realizadas para tal capitania.

Dessa forma, percebemos um incremento de 1.282% no número de

desembarcados em Pernambuco e de 651% no número de viagens, permitidos pelos

dados da nova base de dados: “Voyages Database”. Assim, não é difícil concluir que a

nova base de dados bem como sua análise são de extrema importância no estudo recente

do tráfico de escravos para Pernambuco.

Apesar da nova base de dados estar disponível na internet, sua utilização por

pesquisadores brasileiros não tem sido muito ampla. Nesse sentido, Eltis e Richardson,

no artigo introdutório do livro Extending the Frontiers (2008), falam na expectativa de

que a literatura sobre o tráfico africano possa se expandir amplamente, com a

divulgação dos novos dados. É visando essa expansão e uma continuidade ao trabalho

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da autora apresentado na Paraíba (2010) que o presente trabalho analisa o porto de

embarque dos cativos que se dirigiam para Pernambuco, a mortalidade dentro dos

navios, a quantidade média de escravos desembarcados por navio, a duração média das

viagens e a quantidade de escravos desembarcados por ano, sempre contextualizando

esses pontos com aos acontecimentos políticos e econômicos da época.

O emprego da mão-de-obra

Em Pernambuco a mão-de-obra negra era utilizada no cultivo da cana, mais

comum na Zona da Mata, extensa área próxima da costa com clima quente e úmido, e

também nas fazendas de criação de animais no Sertão, região mais a oeste em

Pernambuco e de clima semi-árido que abastecia com essa criação a área açucareira.

Também era utilizada no Agreste, região intermediária entre Zona da Mata e Sertão. No

Agreste foi explorada tanto a pecuária como diversas culturas alimentares, o algodão

também se fez crescentemente presente nessa região a partir da segunda metade do

século XVIII (Versiani & Vergulino, 2003). Além disso, as áreas urbanas também

alocavam os imigrantes na execução de variados serviços como carpintaria e alfaiataria,

por exemplo.

Apesar de a mão-de-obra negra ter sido empregada em todas essas regiões de

Pernambuco, a literatura clássica tende a concentrar o emprego dessa mão-de-obra na

Zona da Mata. Nas palavras de Versiani & Vergolino (2003: 360):

A literatura freqüentemente transmite a impressão de que o uso da

mão-de-obra escrava na região, ao longo do século XIX, estava

fundamentalmente concentrado na Zona da Mata, o que é reforçado

pelos conhecidos relatos de viajantes estrangeiros que estiveram nessa

parte do País no século XIX, como Henry Koster (1942[1816])- tão

citado por Gilberto Freyre-, e que se referem, preponderantemente, à

sociedade e economia litorâneas, e à escravidão do açúcar.

Segundo esses autores, 30 a 40% da mão-de-obra cativa em Pernambuco não

estava alocada na Zona da Mata, portanto não estavam ligados à indústria açucareira.

Apesar dessas constatações, o tráfico de escravos para Pernambuco decorreu

basicamente das necessidades de mão-de-obra da lavoura de açúcar. Em 1542, Duarte

Coelho, primeiro donatário da capitania de Pernambuco, solicitou ao Rei autorização

para importação de africanos e foi justamente nessa mesma capitania que o primeiro

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navio negreiro desembarcou no Brasil, em 1560. O tráfico para Pernambuco terminaria

em 1851 e para o Brasil apenas em 1856.

Porto de Embarque

Como afirma Klein (1989:17),

Apesar de uns 2.2 milhões de escravos terem sido embarcados antes

de 1700, foi apenas no início do século XVIII, que os escravos se

tornaram a principal exportação da África. Foi no século XVIII e na

primeira metade do XIX, que quatro quintos de todos os escravos

foram transportados para América.

Os números da nova base de dados mostram que 62,73% do número total de

escravos desembarcados em Pernambuco, para todo o período do tráfico, embarcaram

em Luanda, atualmente capital de Angola. Dessa forma, podemos afirmar que a maior

parte dos escravos desembarcados em Pernambuco teve sua compra efetuada em

Luanda.

O segundo maior porto de embarque de escravos foi a Costa da Mina, definida

por Verger como o trecho da Baía de Benim do Rio Volta até Cotonu, no Daomé (hoje

Benim), ou seja, cerca de metade daquela baía. Na Costa da Mina foram comprados

9,46% dos escravos desembarcados em Pernambuco. Porém, é importante ressaltar que

em alguns momentos a Costa da Mina foi mais influente na oferta de escravos para

Pernambuco que Luanda. Por exemplo, durante o primeiro terço do século XVIII Costa

da Mina chegou a ser responsável por 25,37% da oferta de escravos enquanto que

Luanda era responsável por apenas 11,57%. O destaque nessa época era de Elmina na

Costa do Ouro, responsável, no mesmo período, por 33,56% da oferta de mão-de-obra

escrava.

O ano de 1758 foi o último em que houve mais de mil escravos desembarcados

em Pernambuco cuja origem havia sido Costa da Mina, ou seja, Costa da Mina deixava

definitivamente de ser uma região de expressiva importância para a oferta de mão-de-

obra para essa capitania do Brasil. Segundo Miller (1988), os traficantes da Bahia

excluíram os traficantes de Pernambuco da região de embarque na Costa da Mina,

processo ocorrido aproximadamente em 1750. Dado que Recife não poderia competir

com a dominação de Benguela exercida pelos traficantes do Rio de Janeiro, a alternativa

viável seria a importação a partir de Luanda. Nas palavras desse autor: “Pernambuco´s

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commercial weakness forced its traders to seek slaves where the strong and autonomous

slavers of Bahia and Rio de Janeiro left openings for them.” Miller (1988:487).

Para o período de 1788 a 1815, dos cativos desembarcados na região em

questão, 69,22% haviam embarcado em Luanda e apenas 2,06% haviam embarcado na

Costa da Mina. No tratado de 1815 entre Portugal e Inglaterra, houve a supressão do

tráfico ao norte do Equador. Os números do novo banco de dados indicam que de 1816

a 1851, o total de escravos desembarcados provenientes da Costa da Mina representa

menos de 1% do total, já os de Luanda representam mais de 71%. Essa queda na

contribuição de mão-de-obra da Costa da Mina pode estar relacionada tanto ao fato de o

tráfico ao norte do Equador ter se tornado mais arriscado e por isso seria menos atrativo

aos traficantes comprarem escravos em regiões como Costa da Mina, quanto ao viés na

amostra devido à falta de registros de viagens provenientes do norte do Equador nesse

período dado que os traficantes não registravam, por precaução, onde compravam a

mão-de-obra posteriormente transportada em decorrência da proibição do Tratado. Ou

registravam falsamente a origem como tendo se dado ao sul do Equador, como mostrou

Verger, no caso do tráfico para a Bahia.

Os traficantes baianos, segundo Miller (1988:462) trocavam tabaco produzido na

própria Bahia por escravos na África, o fumo baiano era muito apreciado pela

população local. Já para o tráfico de Pernambuco, a mercadoria que era trocada pelos

escravos na áfrica, ainda é uma incógnita que precisa ser melhor investigada. Talvez a

cachaça, confeccionada a partir do açúcar produzido nessa região, foi o bem de troca

por escravos.

Mortalidade

Eram significativos os altos índices de mortalidade dos africanos capturados

tanto a caminho do porto de embarque quanto a caminho do Brasil. Segundo Miller

(1988), esses facilmente adoeciam por não serem imunes às novas doenças trazidas pelo

branco europeu, pela mudança em seus hábitos alimentares, pela falta de vegetais e

frutas frescas durante a viagem e pela ingestão insuficiente de água. Juntamente com a

insalubridade dos porões e constantes contaminações da água para beber, os cativos

frequentemente sofriam de diarreia, escorbuto, gripe, doenças causadas por parasitas

entre outras. Como nota Miller (1988:384),

One experienced Luanda merchant reported that slavers toward the

second half of the eighteenth century expected to lose about 40 percent of

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their captives to flight and death between the time they purchased them in

the interior and the time they put them aboard the ships in Luanda.

Manuel Correia de Andrade (1973) menciona que assim que chegavam ao

Recife os escravos eram expostos à venda no mercado de escravos e vendidos na maior

parte das vezes a prazo. Segundo o mesmo, as companhias obtinham grandes lucros

oriundos da diferença de preço de compra e venda dos escravos.

Algumas normas foram elaboradas visando uma melhora no tratamento dado aos

escravos durante as viagens no Atlântico. No Alvará de 1813, assinado por D. João,

foram fixadas regras sobre alimentação e o fornecimento mais adequado de água.

Fixaram-se ainda prêmios, a serem pagos ao Mestre e Cirurgião do navio, caso a

mortalidade durante a viagem fosse inferior a 2%. Segundo Versiani (2008), tais

medidas adotadas seriam antes uma resposta às pressões abolicionistas da Inglaterra do

que uma proposta de redução do sofrimento dos cativos.

Terão produzido algum efeito os prêmios oferecidos, no Alvará de 1813, para

taxas de mortalidade menores? Analisando os números da nova base de dados

poderíamos afirmar que não. Isso porque a média das taxas de mortalidade observadas

no período anterior ao Alvará, em navios escravistas desembarcados em Pernambuco

entre 1800 e 1813, foi de 9,9% (com desvio padrão de 1,4%). Comparando essa média

com a referente ao período posterior ao Alvará, entre 1814 e 1823, vê-se que neste

último período a mortalidade foi maior do que antes: 17% (desvio padrão: 10,67%).

A média percentual de escravos embarcados que morreram durante a viagem

com destino Pernambuco foi de 12,6%. A variação dessa média ao longo do tempo pode

ser observada na figura abaixo.

Figura 1. Mortalidade percentual dos escravos nas viagens

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Fonte: Voyages Database.

O gráfico sofre uma distorção em 1844 porque houve apenas uma viagem

registrada nesse ano e nessa viagem 350 escravos embarcaram e apenas 130

desembarcaram, portanto o percentual de mortos foi de 62,86%. Provavelmente uma

epidemia se fez presente nessa viagem. Nas palavras de Klein (1989):

As astronômicas taxas de mortalidade alcançadas em algumas viagens

deviam-se a surtos de varíola, sarampo e outras doenças altamente

contagiosas, que não estavam relacionadas com o tempo de

permanência no mar, nem com as condições de estoques de alimento e

de água, e nem com a higiene ou as práticas sanitárias. Era a própria

casualidade destas doenças epidêmicas que impedia capitães

experientes e eficientes de eliminar as altas taxas de mortalidade de

algumas viagens.

Exceções como nenhuma morte registrada durante a viagem da África ao Brasil

também aconteceram. Em 15 de outubro de 1789, por exemplo, o brigue “Netuno

pequeno” foi visitado por agentes médicos em Salvador após um mês de viagem da

Costa da Mina, com uma pequena escala em Recife. Nenhuma morte foi registrada

nessa viagem e seu capitão e dono, Pedro Gomes Ferreira, informou aos burocratas do

porto que dois novos escravos nasceram a bordo (Ribeiro, 2008). Essa foi uma

ocorrência incomum no tráfico de negros. Durante a travessia os africanos estavam

muito mais sujeitos à morte que ao nascimento.

Além de epidemias, tempestades e atrasos podiam aumentar o índice de

mortalidade a bordo. Eram comuns também mortes causadas pelo “banzo”, designado,

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em 1799 na Academia Real de Ciências de Lisboa, como doença aguda e crônica que

freqüentemente acometia os negros recém-tirados da África. Os sintomas mais notáveis

eram tristeza, falta de vontade de falar e de se alimentar.

É importante lembrar que enfermidades não só atingiam os escravos do navio,

mas também afetavam a tripulação. Além disso, as populações das cidades cujos portos

recebiam desembarques de navios negreiros sofriam constantemente de doenças

introduzidas pelos desembarcados (Ribeiro, 2008).

A mortalidade claramente não terminava com o desembarque dos cativos.

Muitos africanos sobreviventes da travessia do atlântico chegavam tão fracos e doentes

que tinham que ficar de quarentena por um longo período após o desembarque.

Escravos nessas condições davam perdas aos traficantes, e mesmo depois de vendidos,

africanos doentes tinham que receber um cuidado especial (Ribeiro, 2008).

Quantidade Média de Escravos Desembarcados por Navio, entre 1788 e 1851

Ao longo de todo o período do tráfico para Pernambuco, a média de escravos

desembarcados por navio girou em torno de 312. Já para o período de 1788 a 1851,

classificado por Furtado (1959) como o período do declínio do açúcar e início do café, a

média foi um pouco maior: 327,12 escravos por navio. A Figura 2 mostra a média de

desembarques para esse último período.

Figura 2. Média de escravos desembarcados por navio (1788-1851)

Fonte: Voyages Database.

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Através da observação do gráfico acima, é possível discordar do que afirma

Marcus Carvalho (2002:132) acerca do tamanho dos navios. De acordo com esse autor,

os navios que desembarcavam em Pernambuco, foram diminuindo de tamanho e a

década de quarenta teria sido o apogeu das pequenas embarcações. Segundo o mesmo,

no período do tráfico ilegal para o Brasil, houve um declínio na utilização de navios

enormes, comuns no século XVIII, com mais de mil escravos a bordo. A estratégia de

utilização de navios menores estaria ligada a vantagem de aproximação da costa no

momento de desembarque, uma operação, na época, de risco. Além disso, o autor

argumenta que o tempo de viagem seria menor com embarcações diminutas dado que o

tempo de espera nos portos africanos para que a carga ficasse completa para a travessia

seria reduzido.

Manolo Florentino (1997:147) também faz afirmativas nessa direção: “o

incremento da participação de pequenas naus, em princípio mais velozes [...] pode ter

sido a causa maior do encurtamento das viagens e, portanto, da queda da mortalidade a

bordo”. Dessa forma, Florentino e Carvalho defendem a ideia de que o tamanho dos

navios negreiros estava diminuindo com o tempo, afirmativa não respaldada pela análise

dos novos dados.

Analisando os dados da nova base percebemos que as médias de escravos

desembarcados nas décadas de 20, 30 e 40 do século XIX foram, respectivamente, de

315,09; 328,46; 362,87 por navio. A análise dessas informações nos leva a conclusão de

que os tamanhos dos navios estavam aumentando e não diminuindo.

Há indícios de que a tonelagem3 média dos navios foi crescente no século XIX,

o que reforça a ideia discorrida acima. Segue abaixo o gráfico da tonelagem média dos

navios ao longo dos anos no período de 1788 a 1851.

Figura 3. Tonelagem média dos navios, que desembarcaram em Pernambuco, por

ano (1788-1851)

3 De acordo com o glossário do site www.slavevoyages.org, “Tonnage: The amount of cargo a vessel is

able to carry expressed in imperial tons. Slaving vessels were typically smaller in tonnage than their non-

slaving”.

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Fonte: Voyages Database.

As tonelagens médias dos navios nas décadas de 20, 30 e 40 foram de 143;

148,37 e 166,52. Klein (1999:143) já tinha percebido esse aumento no número de

escravos desembarcados por navio e já havia relacionado isso a um aumento na

tonelagem e tamanho dos mesmos: “there was a progressive increase of slaves carried

per ship as average tonnage increased […]” (p. 143); e, com referência específica a

navios portugueses: “the average number of slaves carried per trip was constantly on the

increase over the course of [the 18th century]” provavelmente pelo uso de “larger

vessels, rather than changes in crowding slaves” (Klein,1999:148).

O porquê do crescimento, em média, do número de escravos transportados e da

tonelagem das embarcações, no século XIX, poderá ser desvendado a partir de

pesquisas mais detalhadas sobre o tráfico nesse período. Porém, a expectativa dos

traficantes em terem lucros maiores com a venda posterior ao desembarque de um

volume maior de mão-de-obra escrava nos portos, parece ser uma explicação plausível

para essa indagação. Além disso, a expectativa do fim do tráfico pode ter funcionado

como estímulo ao desembarque de um volume maior de escravos nos portos. Nos

estudos de Versiani & Vergulino (2002:9), obtemos a informação de que houve um

aumento significativo do preço dos escravos em Pernambuco em 1830-1845 e, mais

especialmente, durante a década de 1850. Ora, o fato dos escravos estarem valendo

mais, estimula os traficantes a desembarcarem mais escravos por viagem realizada.

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Segundo Eltis (1977), as mortes de escravos nas viagens variavam de forma

direta com o número de dias no mar. As rotas eram muitas vezes determinadas pelos

ventos e correntes marítimas que ajudavam o tempo de viagem encurtar. Devido à

vulnerabilidade da vida dos escravos aos atrasos, os traficantes compartilhavam um

interesse em comum: a redução do tempo das viagens. O custo da viagem também

variava diretamente com esse tempo, como os salários dos tripulantes e capitães a bordo

e fundos emprestados para a viagem (Miller, 1988). Dessa forma, era importante

otimizar o tempo desde a saída do navio do porto de origem até sua chegada ao porto de

desembarque.

Apesar da redução do tempo de travessia do Atlântico ser importante para os

traficantes da época, o tempo despendido nos portos africanos até o momento de

embarque de cativos era a fonte maior de preocupação dos donos de navios. Os atrasos

nos portos de embarque eram rotineiros, muitas vezes provocados por rivais já que

havia disputa pelos escravos que seriam embarcados. Nas palavras de Miller

(1988:318), “The economics of slaving voyages on the swiftness of the turnaround

Atlantic, reduced to their most abstract terms, hinged on the swiftness of the turnaround

in Angola, and all these pressures therefore converged on the hectic rough-and-tumble

of the colony´s port.”

Segundo Jaime Pinsky (1994), as feitorias existentes ao longo da costa da África

serviam para aglomerar os cativos que chegavam de diversas partes do continente até o

momento da chegada de um navio que os transportariam para o Brasil. Ocorria também

a espera dos navios no porto até haver número suficiente de escravos para tornar a

expedição lucrativa.

A nova base de dados revela o seguinte: para todo o período do tráfico, o tempo

médio da viagem era de 240,88 dias, ou seja, da saída do porto de origem até a chegada

ao porto de desembarque, levava-se 8 meses e 27 dias em média.

Das 1.376 viagens com destino Pernambuco de que se tem registro na nova base

de dados, 74 indicam o tempo de travessia do oceano Atlântico. O tempo médio dessa

travessia para todo o período do tráfico foi de 47,8 dias.

De 1564 a 1777 a média de dias gastos na travessia do Atlântico era de 52,43. Já

para o período de 1788 a 1851, o tempo médio da travessia passou a ser 50,30 dias, isso

está de acordo com argumentos expostos na literatura que afirmam ter o tempo das

viagens regredido na medida em que se avançava a tecnologia, os navios ficavam mais

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velozes e as correntes marítimas juntamente com os ventos eram melhor estudados e

aproveitados.

Quantidade de escravos desembarcados por ano

A quantidade de escravos desembarcados por ano em Pernambuco não foi

homogênea para todo o período do tráfico. O ano de 1810 foi o ano de maior

movimentação no porto do Recife: nesse ano desembarcaram 11.518 escravos. Já os

anos de 1.631, 1632, 1.634, 1.635, 1.648, 1.651, 1.653 e 1.654 são os anos em que não

houve nenhum escravo desembarcado. É interessante notar que essas últimas datas se

situam no período da invasão holandesa em Pernambuco (1630-1654). Observe gráfico

abaixo.

Figura 4. Número total de escravos desembarcados em Pernambuco por ano

Fonte: Voyages Database.

Nota-se uma queda brusca no número de desembarcados no inicio da ocupação

holandesa de Pernambuco. Após a expulsão desses, em 1654, o número de

desembarcados eleva-se substancialmente.

As exportações de açúcar do nordeste holandês foram significativas durante

apenas 8 anos, de 1638 a 1645, já a partir de 1645 essas declinam bruscamente (Silva &

Eltis, 2008). É justo no período de maior exportação que se verifica o expressivo

volume de cativos desembarcados no período holandês. Entre 1636 e 1645, chegaram ao

Brasil 90% dos escravos trazidos por esse povo.

O pico no gráfico de 1642 a 1645 ocorre provavelmente porque, nesse período,

os holandeses obtinham o acesso à maior parte dos mercados de escravos africanos na

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2000

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6000

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de

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África, inclusive Angola. Entre essas datas, o desembarque estimado de escravos se

aproxima do volume estimado para o tráfico do período anterior a invasão holandesa.

Dessa forma, observa-se que a invasão e expulsão holandesa impactaram

profundamente a dinâmica do tráfico de escravos para a região em foco. Veja a tabela a

seguir.

Figura 5. Quantidade de desembarcados em Pernambuco, por quinquênio

Período N° de escravos desembarcados

1561-1565 573

1566-1570 792

1571-1575 1.096

1576-1580 1.516

1581-1585 2.099

1586-1590 2.906

1591-1595 4.022

1596-1600 5.567

1601-1605 7.993

1606-1610 10.665

1611-1615 14.763

1616-1620 20.439

1621-1625 23.200

1626-1630 19.294

1631-1635 300

1636-1640 6.421

1641-1645 17.526

1646-1650 1.438

1651-1655 2.069

1656-1660 9.323

1661-1665 9.000

1666-1670 10.992

1671-1675 9.879

1676-1680 12.500

1681-1685 12.500

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1686-1690 12.500

1691-1695 12.500

1696-1700 33.221

1701-1705 25.539

1706-1710 27.322

1711-1715 20.000

1716-1720 20.000

1721-1725 17.887

1726-1730 20.827

1731-1735 12.203

1736-1740 10.973

1741-1745 12.066

1746-1750 17.361

1751-1755 14.427

1756-1760 15.780

1761-1765 13.567

1766-1770 14.599

1771-1775 12.280

1776-1780 9.519

1781-1785 12.720

1786-1790 14.536

1791-1795 18.382

1796-1800 19.348

1801-1805 23.965

1806-1810 29.904

1811-1815 37.213

1816-1820 44.246

1821-1825 34.687

1826-1830 34.405

1831-1835 8.125

1836-1840 27.033

1841-1845 12.202

1846-1850 7.273

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1851 350

Total 853.833

Fonte: Voyages Database.

A lei portuguesa de 18 de março de 1684, conhecida como lei da “arqueação dos

navios negreiros” estabeleceu a proporção da quantidade de negros a serem embarcados

com a capacidade, em tonelada, da embarcação e também com as características dos

cômodos (Florentino, 1997). Ao que parece, essa lei não trouxe muitos efeitos sobre a

quantidade de negros conduzidos por ano a Pernambuco, visto que a quantidade de

desembarcados foi de 2.500 nos 10 anos antecedentes e nos 10 anos posteriores a lei.

A bibliografia recente sobre o tráfico atlântico destaca que no final da segunda

década do século XIX houve um aumento na importação de escravos na América

portuguesa, motivada pela capacidade de aquisição dos produtores do sudeste e pela

perspectiva de proibição da atividade negreira. Esta conjuntura foi classificada como

“crise de oferta africana”, segundo a periodização proposta por Manolo Florentino

(1997), com base nas entradas de navios negreiros no porto do Rio de Janeiro. Em

Pernambuco, com base na tabela e gráfico acima, podemos perceber um aumento no

número de desembarcados nos anos próximos ao fim do tráfico. Possivelmente, a

expectativa da proibição do tráfico pode ter causado esse aumento.

A partir de 1810, a Coroa portuguesa assinou uma série de tratados com a Grã-

Bretanha visando à abolição do tráfico atlântico de escravos. Em 23 de novembro de

1826, foi assinado um tratado que estipulava um prazo de três anos para o Império do

Brasil decretar a extinção do tráfico atlântico. Tal resolução foi adotada a partir de 13 de

março de 1830 e através da Lei de 7 de novembro de 18314 foram declarados livres

todos os escravos que entrassem no território e portos do Brasil e o tráfico foi designado

como pirataria devendo, portanto, ser combatido. A Lei anti-tráfico de 1831, foi

invocada nos tribunais brasileiros e apropriada pelos escravos, seus representantes e por

juízes abolicionistas para sustentar ações de liberdade e constituiu-se em tema central de

uma série de debates no Senado do Império quanto a sua vigência ou não a partir das

décadas de 1850 e 1860 (ZUBARAN, 2006). Contudo, ela teve pouca ou nenhuma

efetividade no combate à importação de escravos africanos: o tráfico negreiro

4 CARTA DE LEI de 7 de novembro de 1831: disponível

em:http://www.icmc.usp.br/ambiente/saocarlos/?historia/o-processo-de-abolicao-e-a-vinda-dos-

imigranteseuropeus/lei-de-1831, consultado em 04.02.2011.

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permaneceu ativo e foi definitivamente encerrado apenas em 1850, através da chamada

“Lei Eusébio de Queiroz”5.

Pela figura 5 podemos perceber que a partir de 1831 há uma queda acentuada no

número de escravos desembarcados, isso provavelmente está associado ao fato dos

traficantes tentarem não deixar vestígios dessa atividade, que passara a ser ilegal a partir

dessa data. Também há um declínio no número de viagens realizadas para Pernambuco

a partir de 1831. Dessa forma, podemos supor que não apenas os traficantes passaram a

maquiar a quantidade de escravos conduzidos em seus navios, mas também a não mais

registrar suas viagens.

Já o preço dos escravos em Pernambuco é crescente na década de 30, e é de

supor que os obstáculos ao tráfico, após sua proibição legal em 1831, aumentasse o

custo das importações de africanos. Nas palavras de Versiani & Vergolino (2002:4):

Os números (...) indicam, até o final da década de 1820, um aumento

médio de preços da ordem de 15% por quinquênio. Esse ritmo de

incremento de preços mais do que dobra, nos anos trinta, de tal forma

que o nível preços ao redor de 1840 é cerca de duas vezes o de dez

anos antes; na primeira metade da década de 1840, os preços

aumentam ainda cerca de 20%.

Por último, seria importante destacar que no período de vigência do tráfico no

Brasil (1560-1856) desembarcaram aproximadamente 4 milhões e 800 mil africanos no

país e 850 mil africanos em Pernambuco. No Brasil, 2 milhões, ou 40%, desembarcaram

no período de 1801 a 1850. Em Pernambuco, 260 mil, ou 30%, desembarcaram entre

1801 e 1850, perfazendo uma média de 5 mil desembarcados por ano.

Comparativamente, nos séculos XVIII e XVII a média era de 3.300 e 2.500 ao ano,

respectivamente. O fato de o volume de importação de escravos no século XIX ser bem

mais expressivo que o volume de importação de escravos nos séculos anteriores em

Pernambuco, sugere que as atividades econômicas nessa região estavam aquecidas visto

que o aumento no número de desembarcados não pode ser explicado pelo tráfico interno

de escravos, que só ganha importância depois de 1870, como Slenes (1975) mostrou em

sua tese.

De fato, a produção de açúcar estava aquecida e se expandiu durante a maior

parte do século XIX e, segundo Luna & Klein (2010):

5 LEI Nº. 581 de 4 de setembro de 1850: disponível em:

http://www.icmc.usp.br/ambiente/saocarlos/?historia/o-processo-de-abolicao-e-a-vinda-dos-

imigranteseuropeus/lei-eusebio-de-queiroz, consultado em 04.02.2011.

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O fabuloso crescimento de Pernambuco no século XIX teve origem na

revitalização da economia local ocorrida em fins do século XVIII. O

trabalho da companhia monopolista pombalina na capitania fora

eficaz, deixando-a em posição vantajosa para aproveitar o boom pós-

1791 nos preços do açúcar. Expandiram-se os engenhos tanto nas

áreas tradicionais como nas de fronteira; ao mesmo tempo, o tráfico de

escravos intensificou-se, e a população cativa local aumentou para

quase 100 mil pessoas na segunda década do século XIX. A produção

de açúcar cresceu a cada década, e em meados do século Pernambuco

já ultrapassava a Bahia.

Figura 6. Produção de açúcar em Pernambuco (em toneladas) por ano-safra e

tendência linear, 1800 a 1850

Fonte: Denslow Jr. (1974).

A produção de açúcar é crescente não só em Pernambuco no século XIX, mas

em todo o território nacional. Como afirmam os mesmos autores, em 1805 o Brasil era

responsável por 15% da produção mundial de açúcar e essa commodity permaneceu até

1830 como a principal cultura de exportação brasileira em valor de produção. Nesse

mesmo ano, o Brasil tornou-se o segundo maior produtor da América. Com relação ao

preço desse insumo agrícola, podemos verificar seu comportamento na figura 7.

Figura 7. Preço de exportação do açúcar brasileiro (mil-réis/tonelada) e tendência

linear, 1821 a 1850

-10.000

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10.000

20.000

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produção de açúcar Linear (produção de açúcar)

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Fonte: IBGE (1986).

Figura 8. Taxa de câmbio média do comércio exterior (mil-réis/ £) e tendência

linear, 1821 a 1850

Fonte: IBGE (1986).

Conforme a linha de tendência linear da figura 7, o preço de exportação do

açúcar brasileiro é suavemente decrescente no período destacado. Porém, a moeda

nacional estava sofrendo desvalorização como mostra a figura 8. Dessa forma, pode-se

supor que o câmbio desvalorizado justificaria a produção agrícola mesmo com os preços

internacionais em queda.

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50

100

150

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preço do açúcar Linear (preço do açúcar)

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taxa de câmbio Linear (taxa de câmbio)

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Sobre a produção de algodão que, segundo Manuel Correia de Andrade

(1973:151), foi um dos principais produtos nordestinos e único que enfrentou a cana-de-

açúcar com algum êxito na disputa às terras e aos braços, sua quantidade exportada pela

alfândega de Pernambuco decresce de forma suave na primeira metade do século XIX

conforme a tendência linear da figura 8. Já o preço de exportação do algodão brasileiro

(mil-réis/tonelada) também tem tendência linear levemente decrescente, conforme a

figura 9. Mais uma vez, a taxa de câmbio ascendente parece ter justificado a produção

do insumo, mesmo estando os preços internacionais em queda.

Figura 8. Quantidade exportada de algodão pela alfândega de Pernambuco e

tendência linear, 1801 a 1850 (inclui a produção das províncias vizinhas)

Fontes: De 1801 a 1830 e 1840/41 a 1849/50: SOARES (1977). De 1831 a 1839: dados interpolados

proporcionalmente à variação das exportações totais de algodão do país retiradas de IBGE (1986).

Figura 9. Preço de exportação do algodão brasileiro (mil-réis/tonelada) e tendência

linear, 1821 a 1850

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1.000.000

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exportação de algodão Linear (exportação de algodão)

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Fonte: IBGE (1986).

Somando-se ao fato do número de escravos desembarcados em Pernambuco ser

crescente na primeira metade do século XIX o fato do preço dos cativos também sofrer

crescimento nesse período, concluímos que as atividades econômicas em Pernambuco

estavam aquecidas. Conforme relatado acima, a produção de açúcar estava em

vertiginosa ascensão, apesar dos preços dessa commodity apresentar leve declínio. A

taxa de câmbio, por sua vez, foi crescente no período, o que encorajou as exportações de

insumo agrícola. A produção de algodão, bem como seu preço no mercado

internacional, também não apresenta queda brusca, sendo, inclusive, justificada pela

desvalorização da moeda nacional. Todo esse quadro não condiz com a “etapa de

dificuldades econômicas que se iniciara com a decadência do ouro” nem com a

afirmação de que na primeira metade do século XIX “As províncias do norte- Bahia,

Pernambuco e Maranhão- atravessaram uma etapa de sérias dificuldades econômicas(...)

Na Bahia e em Pernambuco, e ainda mais no Maranhão, a renda per capita deve haver

declinado substancialmente nesse período.” Furtado (1959: 93 e 96).

A tese da estagnação econômica do país entre o fim da prosperidade da

mineração, ao redor de 1870, e o início da fase de maior lucratividade da lavoura

cafeeira, a partir de 1850 tem lugar de relevo no quadro geral da evolução da economia

brasileira traçado por Furtado em Formação Econômica do Brasil. O autor baseou-se

essencialmente em dados de exportação (disponíveis desde 1821) e, relativamente ao

fluxo de tráfico negreiro, em apenas alguns dados e estimativas gerais, sem citar a fonte,

para afirmar que o atraso relativo da economia brasileira em relação aos países mais

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600

preço do algodão Linear (preço do algodão)

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desenvolvidos, no momento em que escrevia, tinha origem “não no ritmo de

desenvolvimento dos últimos cem anos [ou seja, desde 1850], o qual parece haver sido

razoavelmente intenso, mas no retrocesso ocorrido nos três quartos de século

anteriores.” (p. 150). Porém, segundo Versiani (2009:15),

Implícita nessa argumentação está a hipótese de que o crescimento da

economia brasileira dependia, no período, basicamente da produção para

exportação. O atraso relativo do Brasil decorreria de o País não ter conseguido

“integrar-se nas correntes em expansão do comércio mundial durante [a] etapa de

rápida transformação das estruturas econômicas dos países mais avançados” — ou

seja, durante a Revolução Industrial (p. 150). Em contraste, os Estados Unidos

haviam logrado tal integração, quando se tornaram grandes fornecedores da

matéria-prima fundamental do crescimento industrial inglês do período, o algodão.

Além disso, o autor não teve acesso a estudos que mostrassem a importância das

correntes de comércio interno para o escoamento da produção do país, como, por

exemplo, Brown (1986), Barickman (1998), Libby (1997), que mostram tal dinâmica

em Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais respectivamente. Porém, é significativo que

não haja estudos detalhando a dinâmica do mercado interno em Pernambuco nesse

período e a inserção do imigrante africano nesse contexto. Essa é uma área ainda pouco

explorada onde novas pesquisas poderão ampliar significativamente nosso

entendimento da evolução da economia no século XIX nessa região. De tal ampliação

resultará, possivelmente, uma diminuição da ênfase na atividade exportadora como o

“centro dinâmico” da economia e um destaque maior dos agentes nacionais como

dinamizadores da produtividade e da renda.

Conclusão

As consequências da migração forçada de mão-de-obra da África para

Pernambuco são, ainda hoje, evidentes na sociedade desse Estado. A cor da pele de

muitos dos residentes dessa região é escura devido à miscigenação ocorrida ao longo

dos anos. Além de aspectos visíveis como esse, as consequências da migração dos

negros são latentes na cultura do povo pernambucano e nordestino. Muito da dança, da

culinária, do folclore, da poesia e da música do povo pernambucano é resultado da

mistura de povos, inclusive dos povos africanos que se dirigiram para lá. O maracatu, o

manguebeat, a cachaça, acarajé, caruru, moqueca de crustáceo e de peixe, lombo de

porco assado, mocotó, vatapá, munguzá, são exemplos de expressões culturais regionais

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que receberam influência desses imigrantes (Cavalcanti, 2010). Além disso, nas

palavras de Gilberto Freyre (1987):

Sem escravidão não se explica o desenvolvimento, no Brasil, de uma

arte de doce, de uma técnica de confeitaria, de uma estética de mesa,

de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de complicações e até de

sutilezas, e exigindo tanto vagar, tanto lazer, tanta demora, tanto

trabalho no preparo e no enfeite dos doces, dos bolos dos pratos, das

toalhas e das mesas

Apesar de todo o impacto social, cultural, econômico e político da imigração

africana no Brasil, proporcionada pelo tráfico negreiro, esse tema ainda é pouco

estudado e carece de mais investigações. Como relata Klein (1999:XVII):

Despite its central importance in the economic and social history of

Western expansion, its fundamental role in the history of America,

and its profound impact on African society, the Atlantic slave trade

remained one of the least studied areas in modern Western

historiography (…)

Dessa forma, esse trabalho vem com a proposta de esclarecer algumas questões

relativas ao funcionamento do tráfico que levava a mão-de-obra da África à

Pernambuco e de chamar atenção à importância da continuidade da investigação

científica nesse tema de estudo.

Com relação à origem dos cativos que desembarcavam na localidade em

questão, a nova base de dados apontou Benguela como o principal porto de embarque

para todo o período do tráfico. A média percentual de escravos embarcados que

morreram durante a viagem com destino Pernambuco foi de 12,6%. A quantidade média

de escravos desembarcados por navio, sugerida nas análises acima, era de 312. Nos

dados examinados acima, não se observou uma diminuição do tamanho dos navios,

como apontado na literatura atual. O tempo médio de travessia no atlântico parece ter

sido de 47,8 dias, porém foi observada uma queda na quantidade de dias ao longo do

tempo, possivelmente consequência do avanço tecnológico.

Com relação à média de escravos desembarcados por ano, para todo o período

do tráfico, essa foi de 2.934,13 com desvio padrão igual a 2.208,75 apesar de terem

existido 8 anos em que nenhum escravo desembarcou nessa região e, por outro lado, um

ano em que desembarcaram 11.518 cativos. Dessa forma, vemos que a quantidade de

africanos conduzidos a Pernambuco ao longo dos anos de vigência do tráfico foi bem

heterogênea. Conforme relatado acima, 30% dos africanos que vieram de forma forçada

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para Pernambuco, nos quase 300 anos de vigência do tráfico, chegaram na primeira

metade do século XIX, isso, entre outros indícios, sugere que as atividades econômicas

estavam aquecidas nessa região.

Bibliografia

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