O Comércio De Artefatos Indígenas Na Feira Do Ver-O-Peso ... · As mudanças no cenário...
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3º Encontro da Região Norte da Sociedade Brasileira de Sociologia:
Amazônia e Sociologia: fronteiras do século XXI.
GT 10 – Mercados interculturais na Amazônia: práticas, linguagens e identidades em contexto
de diversidade.
O Comércio De Artefatos Indígenas Na Feira Do Ver-O-Peso Em
Belém/Pará.
Weleda de Fátima Freitas.
Universidade Federal do Pará.
Manaus, 26, 27 e 28 de setembro de 2012
O Comércio De Artefatos Indígenas Na Feira Do Ver-O-Peso Em
Belém/Pará. Weleda de Fátima Freitas.
Resumo: Este estudo de caráter exploratório tem o objetivo de identificar e refletir aspectos
que compõem o processo de comercialização de artefatos indígenas no setor de artesanato da
Feira do Ver-O-Peso em Belém/Pará. A comercialização de artigos e demais produtos de
origem indígena acompanha o desenvolvimento da cidade de Belém desde o século XVII.
Objetos como tipitis, cuias, abanos, peneiras, esteiras, entre outros são até hoje inseridos no
cotidiano da população como utensílios domésticos. As entrevistas realizadas com alguns
comerciantes do setor de artesanato revelam que os artigos de origem indígenas são
compreendidos enquanto elementos representativos da identidade amazônica. Isto apresenta
pelo menos duas implicações: 1- o comércio desses objetos torna-se atrativo para a demanda
turística; e 2- nesse sentido, o Ver-O-Peso passa a ser entendido como um lugar de memória e
representação de identidades coletivas.
Introdução
Muito além de símbolo da Metrópole Amazônica, a Feira do Ver-O-Peso é lugar de
memórias e de praticas sociais revisitadas e exercidas cotidianamente pelos trabalhadores,
pelos fregueses e demais frequentadores do lugar. Desde o século XVII os produtos indígenas
abastecem a cidade de Belém (MEIRA 2007). Muitos objetos, por exemplo, os tipitis, as
cuias, os abanos, os paneiros e peneiras são até hoje inseridos no cotidiano da população
como utensílios domésticos. Enquanto os maracás podem ser apropriados como instrumentos
musicais de percursionistas e também como elemento religioso que marca os rituais de “pena
e maracá” muito difundidos na cidade de Belém.
Objetivou-se neste artigo identificar e refletir sobre alguns aspectos que compõem o
processo de comercialização de artefatos indígenas no setor de artesanato da Feira do Ver-O-
Peso em Belém/Pará. Diante da extensão da Feira e para responder ao objetivo deste trabalho,
optou-se escolher apenas o setor de artesanato para a abordagem do tema. Neste sentido,
foram realizadas entrevistas com os comerciantes do setor além de registros audiovisuais.
As entrevistas realizadas com os comerciantes do setor de artesanato revelaram que os
artigos indígenas são compreendidos enquanto elementos representativos da identidade
amazônica. Isto apresenta pelo menos duas implicações: 1- o comércio desses objetos torna-se
atrativo para uma demanda turística; e 2- nesse sentido, o Ver-O-Peso passa a ser entendido
como um lugar de memória e representação de identidades coletivas.
Inicialmente se faz uma breve descrição da Feira em seus momentos históricos
marcantes. Na sequencia, aborda-se o tema da comercialização de produtos indígenas na Feria
do Ver-O-Peso parindo-se de um recorte sócio econômico e histórico, fundamental para
visualização dos elementos que compõem o circuito de compra e venda de produtos indígenas
não somente na Feira como em outros ambientes. Por fim, realiza-se um passeio pelo setor de
artesanato da Feira, bem como a descrição das entrevistas e das peças existentes nas barracas
dos entrevistados.
A Feira do Ver o Peso
A origem do lugar tradicionalmente denominado Ver-O-Peso remonta aos tempos
coloniais em que no lugar funcionava a Casa do Ver-O-Peso uma espécie de alfândega da
Coroa Real onde eram cobrados impostos sobre o peso dos produtos que chegavam ao porto
geralmente em embarcações, principal meio de transporte das mercadorias que chegavam à
Feira trazendo gêneros para abastecer a cidade. No local existia o igarapé do Piri, cuja
desembocadura era caracterizada como “um ancoradouro natural, [que] permitiu o
desenvolvimento de um ponto de chegada e saída dos barcos e navios que penetravam ora
para o interior da região Amazônica, ora aventurando-se mar a afora” (MEIRA, 1998 apud
CAMPELO, 2010. Grifo meu).
Durante fins do século xix e início do século xx, Belém vivia os tempos áureos da
economia da borracha. Neste período, o intendente Antônio Lemos empreendeu
transformações na dinâmica socioespacial da cidade, por meio das reformas urbanísticas,
expulsando a população das áreas centrais para dar lugar à construção de palacetes, avenidas,
praças, calçamento de ruas. Inserem-se neste contexto a finalização da primeira reforma
urbanística que alcançou o espaço do Ver o Peso, bem como a chegada, da Inglaterra, das
peças que deram forma ao Mercado de Ferro, conhecido como mercado de peixe.
“A área do Ver-O-Peso atual foi concluída em 1913 com o término da construção
do porto de Belém, que aterrou extensa faixa de orla, da antiga doca do Ver-O-Peso
até a doca do Reduto, encampando e demolindo trapiches para dar lugar ao cais e a
Boulevar Castilhos França, uma das avenidas principais do comércio”
(CAMPELO, 2010:43).
A última reforma significativa ocorreu no início dos anos 2000 quando o Ver-O-Peso
teve seu espaço reestruturado e reordenado criando ou redefinindo áreas específicas para a
comercialização de cada tipo de produto:
“Na Feira foram instaladas barracas cobertas com lonado tensionado, cujo tecido é
importado, não inflamável e com durabilidade projetada para 20 anos. os serviços
de infraestrutura incluíram drenagem, reforma do piso, pavimentação e iluminação
de toda a área da Feira. Juntamente com a obra física, houve um investimento nos
trabalhadores do lugar. Os Feirantes passaram por curós de capacitação, como
relações pesoais, marketing e língua estrangeira” (CAMPELO, 2010:60-61).
Com relação à forma de administração do local, Carvalho aponta para a tendência
instituída aos Feirantes pela cultura política da administração municipal do período, baseada
em princípios fundados numa espécie de gestão comunitária:
“A reforma do início dos anos 2000 [...] melhorou instalações de boxes e barracas
ao mesmo tempo em que instituiu novas formas de organização política dos
trabalhadores do mercado, baseadas em princípios associativos e de representação
coletiva que tomaram a forma de um Condomínio Participativo reunindo
representantes eleitos de todos os setores” (CARVALHO & MILEO 2011:12).
As mudanças no cenário político da cidade foram sentidas diretamente nas bases
administrativas populares, formadas pelos princípios da administração participativa. Portanto
mudanças puderam ser observadas no contexto da gestão do Ver o Peso, mas que não cabem
na perspectiva a que se destina este artigo.
Segundo lima,
“A Feira do Ver-O-Peso [...] trata-se de um grande mercado aberto ou Feira livre,
inclusive, constituída por duas Feiras (Feira do Açaí e Feira do Ver o Peso), uma
doca de embarcação (Doca do Ver o Peso), e dois mercados (Mercado de Carne e
Mercado de Peixe). Abrange ainda, espacialmente falando, duas praças (Praça do
Pescador e do Relógio)” (LIMA, 2008 apud Lima 2010:69).
Lima refere-se às estruturas físicas que constituem o chamado Conjunto arquitetônico
e paisagístico do Ver o Peso, assim oficializado e tombado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional/IPHAN na década de 1970. Entretanto a própria autora ressalta
a importância do reconhecimento do Ver-O-Peso como lugar de memória e também de
práticas culturais, tendo em vista a concepção de valorização do patrimônio imaterial
brasileiro que se configura para além das edificações e paisagens.
A comercialização de produtos indígenas na Feira do Ver-O-Peso.
A aquisição de produtos florestais amazônicos sempre foi acompanhada da exploração
da mão de obra indígena seja por meio da escravização empreendida nos descimentos ou pelo
sistema de aviamento intensificado na época da extração do látex. Ribeiro destaca como
acontecia o aliciamento de populações indígenas no Rio Negro:
“Para esta obra de devassamento da floresta tropical e de exploração de seus
produtos, os índios foram aliciados desde a primeira hora, [...] desde o descimento
para as missões e núcleos coloniais até as técnicas mais manhosas, como a de
acostumá-los ao uso de artigos mercantis cujo fornecimento posterior era
condicionado à sua participação nas atividades produtivas como mão de obra para
todo o serviço” (RIBEIRO, 1996: 36).
No período que marca o ciclo da exploração da borracha amazônica intensifica-se na
região o sistema de aviamento que passa a contar com um agente peculiar para o sucesso dos
empreendimentos de exploração de produtos florestais: o regatão, que Ribeiro denominou de:
“Criador de necessidades e instrumento de satisfação, o regatão é o rei do igarapé,
assim como o patrão é o rei do rio. [...] sua empresa maior é a exploração do índio,
que trabalha o ano inteiro juntando a copaíba, a castanha, a canela, o cravo, a
salsaparrilha, a piaçaba, para trocar por pouco mais que nada” (RIBEIRO, 1996: 41).
O que se percebe é o uso intenso da mão de obra indígena na busca de recursos
florestais, e de certa, forma a inserção desses grupos nos sistemas de mercado que até hoje
vigoram na Amazônia.
Lima & Pozzobon, classificam os povos indígenas a partir de suas inserções em
estruturas de mercados e comercialização de produtos: 1- povos indígenas de comércio
esporádico; 2- povos indígenas de comércio recorrente e; 3- povos indígenas dependentes da
produção mercantil.
Os povos indígenas de comércio esporádico seriam aqueles que:
“ocupam as áreas menos acessíveis e que estão mais distantes das rotas de mercado
[...] Em geral, demonstram pouca compreensão sobre o mundo das mercadorias,
podendo ser facilmente enganados pelos garimpeiros e outros intrusos em troca de
“bugigangas” de valor bem inferior à quantidade de trabalho ou produtos que os
índios doam em troca” (LIMA & POZZOBON 2005:54).
A categoria povos indígenas de comércio recorrente, caracteriza-se quando o grupo
passa a:
“compreender bem melhor as operações monetárias e o valor relativo das
mercadorias [...] certas mercadorias passam a ser consideradas indispensáveis (cf.
Hugh-Jones, 1992). Incluem-se nessa rubrica certas ferramentas (como machados,
terçados, facas, anzóis, espingardas), roupas e medicamentos de uso simples
(analgésicos, anti-sépticos, vermífugos etc.) [...] A categoria abrange a maioria dos
povos indígenas da Amazônia, cujo traço comum é o fato de que a produção para a
venda já é incorporada nas práticas culturais. Em geral, trata-se de povos
localizados ao longo das principais vias de comunicação”(LIMA & POZZOBON
2005:55).
Os povos indígenas dependentes da produção mercantil são caracterizados por:
“grupos que, ao perderem sua capacidade de produzir diretamente os principais
recursos para sua sobrevivência, passaram a depender do mercado para obter o
consumo básico” (LIMA & POZZOBON 2005:59).
Os autores também chamam atenção para os tipos de estruturas de mercado
recorrentes na Amazônia nos quais os povos indígenas inserem-se.
Tabela 1: Inserção de povos indígenas em estruturas de mercados na Amazônia.
Sistemas de mercado/características Povos indígenas
1. Aviamento:
É originário do antigo regime do “barracão”, consolidado no final
do século XIX durante o ciclo da borracha. [...] O sistema que
sobreviveu à queda da borracha e se transformou em prática
corrente em todo o oeste da Amazônia, até nossos dias, é usado
para explorar não apenas a borracha natural, mas também outros
produtos florestais como cipó, piaçaba, copaíba, peixes
ornamentais, frescos, secos e salgados, madeiras, peles, farinha de
mandioca e artesanato indígena tradicional.
Ticuna, Tukamo e
Arawak.
2. Extrativismo recente:
2.1. Garimpo:
Na Amazônia, as frentes garimpeiras datam, em sua maioria, da
segunda metade do século XX. Sua presença nas áreas indígenas é
ilegal e sempre resulta de invasões mais ou menos espontâneas.
[...] os efeitos do garimpo são bastante nefastos: além da
depopulação devido às doenças, há o aliciamento de lideranças,
com surgimento de privilégios econômicos em detrimento da
maioria.
Yanomami de
Haximu, Kayapo/PA.
2.2. Exploração madeireira:
Presença ilegal nas áreas indígenas garantida por meio de alguma
violência física contra os índios, sempre abrandada pelo
aliciamento de lideranças através de presentes às vezes bem caros,
como viaturas utilitárias e aviões. [...] cria-se um grupo
privilegiado de lideranças cooptadas, enfraquecendo com isso o
tecido social nativo e as instituições em que se funda a autonomia
econômica e cultural do grupo.
Kayapo/PA,
Guajajara/MA
3. Comercio mediado:
Iniciativas por parte de agências “indigenistas”, visando a
direcionar a produção indígena para o mercado, ou facilitar-lhe o
acesso ao mercado, ou ambas as coisas.
3.1. Mediação tutelar:
Praticada pela Funai e pelas missões religiosas. Inspirados na vaga
idéia de que os índios precisam produzir algo para adquirir as
mercadorias que desejam e animados pelos capitais recentemente
colocados à disposição através de financiamentos internacionais de
Wai Wai
caráter ecológico (Prodeagro, Planafloro, PPG7).
3.2. Mediação com parceria:
Parcerias entre organizações indígenas e ONGs ou institutos de
pesquisa. Ao contrário da mediação tutelar, o que se visa neste
caso é a transferência de novas tecnologias ou adaptação de
tecnologias nativas à exploração ecologicamente sustentável de
produtos que realmente possam igualar os índios aos demais
produtores e demovê-los das alianças com a exploração ilegal e
depredatória de suas áreas.
Xikrin
Fonte: LIMA & POZZOBON, 2005: 56-57-58. Adaptação: Weleda de Fátima Freitas, 2012.
Longe de tentar engessar qualquer tipo de análise, as classificações propostas pelos
autores são bastante úteis para a reflexão acerca dos aspectos que compõem o processo de
comercialização de produtos indígenas na Feira do Ver-O-Peso ou em qualquer outro espaço,
considerando as eventuais especificidades. Devido ao seu caráter exploratório, este trabalho
não permite o desenvolvimento em profundidade da análise sobre os agentes que formam o
circuito de compra/venda de produtos indígenas na Feira do Ver o Peso. Porém é possível
realizar aqui algumas reflexões sobre isto.
Pelos registros históricos que se tem acesso, a troca de mercadorias industrializadas
por artefatos indígenas parecia acontecer de forma menos intensa que a coleta de recursos
naturais. Os maiores interessados nos artefatos eram viajantes e naturalistas, inicialmente
estrangeiros, que recolhiam o material e os transportavam aos museus de seus países origem.
Até início do século xx o procedimento de coleta de artefatos indígenas estava vinculado à
idéia de registro e documentação das variadas formas de vida primitiva e que forneciam pistas
sobre o processo de evolução humana.
Provavelmente os artefatos indígenas comercializáveis possuíam natureza utilitária,
como apontam Wagley e Galvão, na descrição sobre a comercialização de cestarias
Tenetehara:
“O trançado de cestas, peneiras, tipitis e esteiras é uma técnica ainda bastante
difundida [...] a persistência da arte do trançado explica-se pela utilidade desses
objetos e pelo fato de os próprios brasileiros estimularem sua produção. Estes se
utilizam, praticamente, dos mesmos tipos de cestos e esteiras que os fabricados pelos
Tenetehara e dão preferência aos de procedência indígena. A cestaria está
intimamente ligada ao complexo da mandioca” (WAGLEY & GALVÃO,
1961:189).
A observação dos antropólogos demonstra que a comercialização de artefatos
indígenas vinculava-se ao fator utilidade, nada tendo a ver com o senso estética ou
patrimônio, como hoje percebemos em vários discursos de compradores de artefatos ou
artesanatos indígenas. Isso não significa que no Ver-O-Peso jamais tenham sido
comercializados grandes cocares de chefes indígenas adornados com penas de arara real,
tucano, papagaio e demais aves de penas e plumagens de colorido exuberante. Tais práticas,
se existiram, passaram a ser coibidas com a Lei de crimes ambientais de 1998.
Artefatos indígenas na Feira do Ver o Peso.
Observando as barracas de artesanato do Ver-O-Peso percebemos a existência de
artefatos e matérias primas semelhantes às descrições acima. Porém percebemos também
elementos de natureza estética como adornos: colares, coroas, bolsas, flechas, arcos, maracás,
que, segundo os comerciantes, são comprados diretamente de grupos indígenas.
De acordo com Campelo (2010), o Ver-O-Peso está ordenado em 10 setores, são eles:
1- setor de peixe; 2- setor de caranguejo; 3- Mercado de Ferro; 4- setor de hortifruti; 5- setor
de ervas e plantas medicinais; 6- setor de salgados, secos, embutidos, farinhas, mercearia,
tucupi, raízes, pimentas, maniva, animais e plantas ornamentais (atualmente os animais e as
plantas ficam em setores separados); 7- setor de artesanato e cerâmica; 8- setor de polpas de
frutas regionais; 9- setor de refeições e lanches e; 10- setor de industrializados.
O setor de artesanato do Ver-O-Peso fica localizado na parte superior da escadaria,
entre o setor de vendas de sucos e polpas de frutas (setor 8) e a área de alimentação (setor 9),
local onde acontecem as refeições na qual o prato principal é o açaí, que poderá ser
acompanhado de peixe frito, charque frito ou camarão. Na parte inferior da escadaria, em
frente aos artesanatos, está o setor de salgados onde se pode comprar camarão, pirarucu,
charque e algumas carnes embutidas, além da farinha e outros ingredientes da “mesa”
paraenses. À esquerda ficam as frutas, como banana, maracujá, cupuaçu, bacuri, etc.
As barracas de artesanatos estão dispostas em seis “ilhas” cada uma agregando de duas
a quatro barracas. Alguns comerciantes possuem mais de dois “pontos” nos quais empregam
seus cônjuges, filhos, sobrinhos, genros e noras. Por conta da lógica da concorrência
comercial, existe um “ar” de desconfiança entre alguns comerciantes que, ao falarem sobre
originalidade e inventividade na criação de peças o fazem entre os dentes.
As barracas geralmente trabalham com os mesmos materiais, entretanto cada
comerciante, que também é artesão ou artesã, diferencia o seu produto agregando objetos
variados. As matérias-primas recorrentes são todas de origem vegetal: palhas (que são
originadas de folhas de açaizeiros, folhas de pindoveiras, ubim, guarimã, entre outras);
sementes (açaí, muruci, buriti, saboneteira, tento, guaraná, maramara, lágrimas de santa, etc.);
fibras (envira); cabaças; madeiras; miriti; raízes (patchouli); cerâmica; etc.
A palha é matéria prima de variados tipos de cestos, chapéus, bolsas, abanos, tipitis,
peneiras, paneiros, descanso para louças, esteiras. São usadas também para realizar o
acabamento de alguns objetos. Dentre os objetos feitos de semente estão os colares, pulseiras,
brincos. Algumas sementes também são utilizadas para acabamento de peças.
As fibras estão presentes nos colares e nos acabamentos de souvenires. No caso das
cabaças, estas são comercializadas na forma de 1-cuiaté ou cuiapitinga (quando a cabaça já
está em forma de cuia, porém não é pintada); 2-cuias (pintadas e desenhadas, ou somente
pintadas, ou ainda somente com ranhuras) e 3- na forma de pequenos maracás.
As madeiras estão presentes em alguns colares e brincos. A mais recorrente é o miriti,
utilizado para fazer souvenires, miniaturas de berlindas, caixinhas para presentes. Com
relação ás raízes, a única percebida durante a pesquisa foi o patchouli, com a qual se faz
esculturas de animais e pequenos saches perfumados que podem ser utilizados em bolsas,
roupeiro e gavetas. É também utilizado para o acabamento de peças e embalagens.
As cerâmicas são encontradas em formatos de pratos de cozinha, tigelas, copos, jarros,
alguidares, vasos, além de pratos decorativos (a maioria com gravuras de rostos indígenas ou
paisagens naturais). Muitos souvenires são feitos com miniaturas de vasos cerâmicos.
Durante o passeio pelo setor de artesanato observei algumas peças indígenas como
diademas Wajãpi, feito com penas de aves; além de bolsas Guajajara, feitas com fibra de
algodão e taborana. Ao pedir para registrar imagens das peças fui informada que a dona da
barraca não estava no local e somente ela poderia autorizar as imagens. Em outras duas
barracas também fui proibida de registrar os objetos. A desculpa era sempre a mesma:
somente o dono ou a dona da barraca poderia autorizar os registros. No entanto, os
responsáveis nunca estavam presentes.
O comportamento dos comerciantes provavelmente é resultante das ações e
concepções ideológicas empreendidas no Ver o Peso, desde a década de 1990 e, recentemente
pelas ações do Inventário de Referências Culturais do Ver-O-Peso promovido pelo IPHAN.
Os comerciantes utilizam com freqüência o discurso da proteção dos conhecimentos
tradicionais e da proteção de imagem tanto pessoal quanto a de seus objetos. Portanto, não foi
surpresa quando apenas três comerciantes concordaram em conceder entrevista e permitiram
os registros de imagens.
O primeiro informante tem a idade de cinquenta anos. Natural da cidade de Soure, Ilha
do Marajó. Trabalha com artesanato na Feira há trinta anos. Sabe fazer artesanato, porém
também compra para revender. Seus fornecedores em sua maioria moram na cidade de Belém.
Em sua barraca há cuias, cerâmicas, colares, palhas, miritis. Há também artefatos indígenas
como arcos, maracás (que segundo o informante são de origem Wai Wai) e colares feitos com
sementes de capim navalha, saboneteira e acácia (de origem Guajajara).
Segundo o artesão, os índios costumam trazer seus artesanatos em períodos em que a
Feira está bastante movimentada por pessoas “de fora”, por exemplo, na época do Círio. Diz,
ainda que, no passado era comercializado grande quantidade de objetos feitos por indígenas.
Entretanto, hoje o número de peças é reduzido, principalmente por conta de fiscalizações.
O informante explicou como acontece o processo de criação dos colares expostos em
sua barraca. Todo o processo é manual. Após obterem a semente esta deve ser lixada em uma
máquina caseira, criada pelos próprios artesãos para este fim. Em seguida são feitos dois
orifícios nas extremidades da semente, por esses orifícios passa um fio que pode ser de náilon
ou fibra de algodão. Algumas sementes são pintadas com variadas cores, outras permanecem
com seu aspecto natural.
Quadro I: Objetos vendidos na barraca do primeiro informante.
Imagem I: Lança WaiWai. Parte superior enfeitada com
cabaça desenhada e penas de aves. A extremidade oposta é
enfeitada com sementes.
Imagem II: Colar Guajajara. Confeccionado
com sementes de maramara.
Fonte:Weleda Freitas
A segunda informante tem quarenta e nove anos de idade e trabalha na Feira há dez
anos. O esposo trabalha com artesanatos de miriti e cabaça. A Artesã costuma comprar as
peças e matéria prima para confeccionar seus próprios artesanatos como colares, brincos,
pulseiras, enfeites de cabelos, etc. Em sua barraca há cuietés apenas desenhadas. A informante
revela que não gosta de revender artesanatos semelhantes aos vendidos em outras barracas.
Por isso, ela comercializa objetos feitos com materiais pouco encontrados na Feira, como é o
caso do de capim dourado que, segundo a artesã, é comprado diretamente dos índios Xerente.
Quadro II: Objetos comercializados na barraca do segundo informante.
Imagem III: cuias tingidas e desenhadas.
Imagem IV: Pulseira feita com capim dourado
Fonte: Weleda Freitas
O terceiro informante, de trinta e nove anos é natural de Belém. Trabalha na Feira há
cinco anos. Não é artesão, apenas comercializa os produtos feitos por sua sogra, que é a dona
da barraca e também artesã. Na barraca os produtos predominantes são pratos de cerâmica e
telas de fibra pintadas com motivos indígenas. Segundo o informante, as pinturas que
apresentam rostos indígenas agradam os turistas porque são a referencia do lugar, a
Amazônia. Para ele, os turistas buscam lembranças representativas do lugar que visitam.
O comerciante entende que as cerâmicas e as telas pintadas com motivos indígenas são
objetos representativos da Amazônia e do Pará. Sobre esse tema, destacamos Gonçalves:
“Acredito, com Hutton (1987:386), que a capacidade desses objetos-relíquias,
monumentos, etc- de evocar o passado está, de certo modo, fundada na clássica
“arte da memória”, na qual idéias são associadas a espaços imaginários como
recursos mnemônicos (Yates,1966). Na medida em que associamos idéias e valores
a determinados espaços ou objetos, estes assumem o poder de evocar visualmente,
sensivelmente aquelas idéias e valores” (GINÇALVES, 2007:122).
Durante entrevista com o informante (que não autorizou gravação), foi perceptível a
associação de idéias e valores aos objetos de cerâmica pintados com rostos indígenas como
representativos de lugar, de cultura e de identidade.
Gonçalves discorre que o passado e a memória, enquanto fatores construtivos de
identidades são construções do pensamento moderno ocidental:
“Na verdade, a própria idéia de um “passado” ou de uma “memória” como um
dado relevante na construção das identidades pessoais e coletivas poder ser
pensada como uma invenção moderna e que data de fins do século dezoito. É nesse
contexto que emerge o gênero autobiográfico, onde um passado narrativamente
construído é usado como um instrumento de autoconhecimento (Olney,1980). Isto
pode ser feito numa escala pessoal ou coletiva. A segunda metade do século
dezenove e as primeiras décadas do século vinte foram pródigas naquilo que
Hobsbawn chamou “tradições inventadas” (1983: 1-14). Monumentos, relíquias,
locais de peregrinação cívica, cerimônias, festas, mitologias nacionais, folklore,
mártires, heróis e heroínas nacionais, soldados mortos em batalhas, um vasto
conjunto de “tradições” foram inventadas com o objetivo de criar e comunicar
“identidades nacionais” (Mosse,1975; Koselleck,1979; Augulhon,1979;
Herzfeld,1982; Hutton,1981; Ozouf,1976). Nesse contexto, o “passado nacional” é
simbolicamente usado com o objetivo de fortalecer a identidade pessoal e coletiva
presente.” (GONÇALVES, 2007: 122-123).
Do ponto de vista dos comerciantes podemos dizer que os produtos que remetam às
identidades indígenas comercializados na Feira são compreendidos como elementos
representativos da cultura da Amazônia, do Pará e da própria Feira do Ver o Peso. Logo, o
comércio desses produtos tem freguesia certa, os turistas que chegam de todo o país e de
várias partes do mundo, e que desejam levar na bagagem de volta pra casa alguma lembrança
que remeta a principal característica do lugar.
Podemos dizer, então, que a presença na Feira dos objetos indígenas ou que remetem a
esses grupos pode significar um exercício de memória de manutenção de traços culturais que
constituem a identidade paraense e amazônica. O Ver-O-Peso então passa a ser entendido
como um lugar de memória onde estão presentes elementos que compõem a identidade
regional. Pollak, quando ele se refere ao trabalho da própria memória em si “ou seja, cada vez
que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de
coerência, de unidade, de continuidade, da organização” (POLLAK, 1992:206).
Quadro III: Objetos comercializados na barraca do terceiro informante.
Imagem V: Peças de cerâmica com desenhos de rostos
indígenas.
Imagem VI: Peça decorativa com desenho de rosto
indígena.
Fonte: Weleda Freitas.
Considerações
A comercialização de produtos indígenas na Feira do Ver-O-Peso acontece desde os
tempos coloniais constituindo uma prática presente na formação da identidade cultural de
Belém e dos seus habitantes. Portanto, a abordagem desse tema torna-se interessante como
exercício para a compreensão da formação de identidades coletivas, além disso, condiz com a
atual tendência da antropologia em realizar estudos sobre os objetos e suas relações com as
identidades coletivas como afirma Gonçalves:
“Nos últimos anos, antropólogos e historiadores têm realizado estudos sobre objetos, coleções
e seu uso simbólico para construir identidades pessoais e coletivas na moderna história
cultural do Ocidente (Rydell,1984; Stocking,1985; Fabian, 1983; Mullaney,1983;
Stewart,1984; Bunn,1980). [...] Objetos materiais de vários tipos são apropriados e
visualmente dispostos em museus e em instituições culturais com a função de “representar”
determinadas categorias culturais: os “primitivos”, o “passado” da humanidade, o “passado
nacional”, etc. Os chamados patrimônios culturais podem ser interpretados como coleções de
objetos móveis e imóveis, através dos quais é definida a identidade de pessoas e de
coletividades como a nação, o grupo étnico, etc.(GONÇALVES 2007:121).
Nesta pesquisa exploratória tentou-se refletir acerca dos elementos que compõem o
circuito de comercialização de produtos, especialmente artefatos ou artesanatos indígenas na
Feira do Ver-O-Peso em Belém. O comércio de produtos e artefatos indígenas na Feira parece
acompanhar o desenvolvimento da cidade, visto que até hoje é possível encontrar no Ver-O-
Peso produtos in natura semelhantes aqueles comercializados há mais de três séculos.
Um objeto que não raro encontramos na Feira, especialmente comportando açaí e
outras frutas, são os paneiros, provavelmente confeccionados pelos próprios ilhéus que
coletam o açaí, ou seja, os ribeirinhos os quais receberam de seus ascendentes a técnica do
trançado das palhas. Esta é uma das tantas heranças indígenas existentes no lugar, como bem
lembra Lima (2010).
Por esse e outros motivos o Ver-O-Peso justifica-se como lugar de memória. Porém a
memória indígena do setor de artesanato parece somente ser acionada quando há o estímulo
mercadológico, ou seja, são os turistas, portanto potenciais compradores de artefatos e peças
decorativas estilizadas, que incitam o comércio dessas produções. Nos discursos dos
comerciantes do setor de artesanato, a face indígena do Ver-O-Peso é reconhecida no modo de
fazer tradicional de algumas peças, e também na exposição desses produtos em suas barracas.
Mas isso será suficiente para falarmos de uma face indígena do Ver-O-Peso? Será que os
artesãos/comerciantes se identificam com essa suposta face indígena do lugar?
Referencias
BASTOS, Carlos Augusto. Nas Rotas do Grão-Pará e Loreto: Comércio e fugas nas
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