O CAMPONÊS E SEU CORPO, Bourdieu
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O CAMPONÊS E SEU CORPOPierre Bourdieu
O texto é baseado num estudo da década de 1960, realizado em Béarn
(França). Ele se propõe a analisar de qual forma as posições socioeconômicas
impactam no crescimento da taxa de celibato em uma sociedade camponesa focada na
primogenitura.
O estudo é uma combinação de história, estatística e etnografia.
Bourdieu foi a campo para verificar 1) se os dados estatísticos e a observação
estabelecem correlação entre a tendência para permanecer solteiro e a residência nos
hameaux; 2) se a perspectiva histórica permite considerar na oposição entre o bourg e
os hameaux a reestruturação do sistema de trocas matrimoniais como uma
manifestação da transformação global da sociedade.
A partir dessas hipóteses, Bourdieu quer saber se existe uma relação direta
com a tendência para permanecer solteiro e quais mediações vinculadas ao fato de
residir no bourg ou nos hameaux, bem como as condições socioeconômicas e
psicológicas vinculadas a esse que fato podem atuar no mecanismo de trocas
matrimoniais. Os questionamentos são levados para uma perspectiva de gênero: essas
vinculações são as mesmas em homens e mulheres? Existem diferenças substanciais
entre as pessoas que casam e as que permanecem solteiras?
Bourdieu discorre sobre a mudança de natureza das relações matrimoniais,
antes mediada pela família e, na época de seu estudo, já uma decisão individual e
como isso contribuiu para a separação radical entre a sociedade masculina e a
feminina. Diante desse quadro, o autor quer compreender o motivo pelo qual o
camponês hameaux é tão desfavorecido na competição da busca por um par e mais
precisamente esse camponês é tão mal adaptado nas ocasiões institucionalizadas de
encontro entre os sexos.
Bourdieu relata que os bailes são a principal ocasião em que esses encontros se
dão e que eles são frequentados predominantemente por solteiros (estudantes
secundaristas e dos colégios dos vilarejos vizinhos, provenientes do bourg). Bourdieu
relata sobre o cenário em que os bailes se dão: vestimentas, comportamento,
disposição espacial dos participantes. Dentre esses participantes, existem aqueles que
apesar de solteiros são “incasáveis” (idade) e eles têm consciência de que fazem parte
desse grupo.
Segundo o autor, o baile é o momento onde se constata o choque de
civilizações, porque nessa ocasião o mundo da cidade (modelos culturais, música,
dança, técnicas corporais) irrompe na vida camponesa. Os modelos urbanos passam a
ser referência adotada na estrutura tradicional do campo.
No que se refere às técnicas corporais, Bourdieu se atém à hexis apreendida
pela “observação popular” como fundamento aos estereótipos, tais como a forma
“pesada” de andar, a posição das pernas e dos braços que conforma uma determinada
postura e atitude. Bourdieu chama atenção para o fato dessa descrição não se tratar
de uma constatação antropológica, mas uma etnografia espontânea dos moradores da
aldeia.
O autor exemplifica essa etnografia espontânea usando o exemplo das danças
como o charleston e o tcha-tcha-tcha, no qual os parceiros se movimentam um diante
do outro por movimentos de mãos e pulinhos ritmados, mas sem jamais chegarem a
concretizar o abraço. Para o camponês, essas danças causavam estranheza, uma vez
que ele ficava constrangido com a falta de leveza e jeito de seu corpo. Essa
constatação é demonstrada na mera observação e nas entrevistas aos habitantes da
aldeia.
Apesar dessa dificuldade, dessa falta de habilidade para a dança, os solteiros
ainda assim frequentam os bailes, já que eles representam a oportunidade de sair da
condição de solteiro.
Além da disposição para a dança, Bourdieu nos relata que as moças dão
bastante importância para a aparência, porque ela é percebida como símbolo da
condição econômica e social. A hexis corporal, segundo o autor, é antes de tudo um
signo social que denomina o jeito camponês de ser, mesmo para aqueles mais abertos
ao mundo moderno, ou seja, os que são mais dinâmicos e inovadores nas atividades
profissionais. Todas essas coisas somadas são critérios de desvalorização para as
moças, que julgam os camponeses segundo critérios urbanos e que lhe são alheios.
O camponês, julgado dessa forma, introjeta uma imagem que os outros fazem
de seu corpo, causando constragimentos e embaraços em relação ao seu próprio
corpo. “Não é exagero presumir que a tomada de consciência de seu corpo é, para o
camponês, a ocasião privilegiada da tomada de consciência da condição camponesa”.
Bourdieu conclui que a condição econômica e social influencia a tendência para
o casamento, por meio da consciência que os homens adquirem dessa situação (no
sentido pejorativo). Por esse motivo, o baile não deixa de ser um ocasião de
sentimentos paradoxais: é o momento do encontro, da oportunidade de se
estabelecer as relações matrimoniais ao mesmo tempo que é um evento angustiante
porque o camponês experimenta o embaraço potencializado em relação ao seu
próprio corpo .
Bourdieu também chama atenção para o fato de que as normas culturais que
regem a expressão dos sentimentos contribuem para agravar o encontro, porque os
afetos não passam pela construção verbal. Se há desconforto nas relações de
intimidade entre familiares, nas relações entre sexos, tudo se agrava, porque os
sentimentos não são temas sobre os quais os camponeses discorram. Para piorar mais,
as moças esperam que os rapazes sejam capazes de expressar uma linguagem
estereotipada dos sentimentalismo da cidade, uma vez que elas absorvem esse padrão
das revistas femininas e dos romances de folhetim.
Segundo Bourdieu, as mulheres são mais propensas a adotar modelos culturais
urbanos porque 1) a cidade representa esperança de emancipação; 2) na lógica das
trocas matrimoniais, as mulheres circulam de baixo para cima, logo, é pelo casamento
que elas esperam realizar suas expectativas e consequentemente se adaptam
adotando a aparência da mulher urbana; 3) detém “o monopólio do juízo do gosto”
(moda, indústria cosmética, hexis corporal).
As mulheres também porque podiam se dedicar mais ao aprendizado, como
forma de preparação para o casamento, eram cada vez mais atraídas para as cidades.
Essa imersão nos valores da cidade provocava uma construção no imaginário feminino
acerca do mundo urbano, criando expectativas em relação ao tipo de homem ideal,
que o camponês não conseguia preencher.
Nem mesmo o domínio da modernização da técnica por uma nova elite rural
era suficiente para favorecer o casamento, porque esse domínio ainda se localizava no
universo rural.
Sem perspectiva de futuro, de estender a descendência, houve uma decadência
das fazendas, das propriedades rurais, que resignados com seu “destino”,
abandonavam. Somado a isso, para acentuar o drama do solteiro, surge a pressão
familiar por ver o filho na situação de celiibatário.
“De todo modo, o celibato é a ocasião privilegiada para se verificar a miséria da
condição camponesa (...) O celibato dos homens é vivenciado por todos como indício
da crise mortal de uma sociedade incapaz de assegurar aos primogênitos, depositários
da patrimônio, (...) a possibilidade de perpetuar a linhagem”.
CONCLUSÃO
Bourdieu aponta para a tarefa do sociólogo, que de certo modo denota uma
arrogância acadêmica em relação ao saber espontâneo de uma sociedade, ignorando
que pode existir consciência nesse saber. Essa análise confere ao sociólogo quase o
papel de demiurgo social, em que a premissa é de que os sujeitos estudados não
trazem para o estudo sua interpretação dos fatos, cabendo ao sociólogo restituir a
esses sujeitos o sentido de suas ações.
Hexis – é a dimensão que possibilita a internalização das conseqüências das práticas sociais e, também, a sua exteriorização corporal, através do modo de falar, gesticular, olhar e andar dos agentes sociais.