Bourdieu, p. Coisas Ditas

116
6/2/2018 Bourdieu,p.CoisasDitas-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/bourdieu-p-coisas-ditas 1/116

Transcript of Bourdieu, p. Coisas Ditas

  • livraria brasilienses.a.RuaEmlia Marengo,216- Tatuap- CEP 03336-000- SoPaulo- SP

    Fone/Fax(Oxx11)6675-0188

    CopyrightbyditionsdeMinuit, 1987Ttulo originalemfancs:ChosesDites

    Copyrightdatraduobrasileira:EditoraBrasilienseS.A.

    Nenhumapartedestapublicaopodesergravada,armazenadaemsistemaseletrnicos,fotocopiada,

    reproduzidapormeiosmecnicosououtrosquaisquersemautorizaoprviadaeditora.

    ISBN: 85-11-08069-41a edio,1990

    I' reimpresso,2004

    Copydesk:Mineo TakamaReviso:CarmemT.S. CostaeShizukaKuchiki

    Capa:Isabel Carballo

    DadosInternacionaisdeCatalogaonaPublicao(CIP)(CmaraBrasileirado Livro, SP,Brasil)

    Bourdieu,Pierre,1930-2002.

    Coisasditas/ PierreBourdieu; traduoCssiaR. daSilveiraeDeniseMorenoPegorim; revisotcnicaPaulaMontero.- SoPaulo:Brasiliense,2004.

    Ttulooriginal:Chosesdites

    1areimpr.da 1.ed.de 1990ISBN 85-11-08069-4

    1.Bourdieu,Pierre,1930- 2002 2.Cientistassociais- Frana-BiografiaI. Ttulo.

    04-3329

    ndicesparacatlogosistemtico:1.Cientistassociais: Biografia 923

    editorabrasilienses.a.RuaAiri, 22- Tatuap- CEP 03310-010- SoPaulo- SP

    Fone/Fax:(Oxx11)6198-1488E-mail:[email protected]

    www.editorabrasiliense.com.br

    CDD-923

    Sumrio

    Prlogo 9

    PrimeiraParte:ITINERARIO

    "Fieldwork in phi1osophy" 15Pontos de referncia, 49

    SegundaParte:CONFRONTAES

    Da regras estratgias 77,A codificao 96Socilogosda crenae crenasde socilogos 108Objetivaro sujeitoobjetivante 114A dissoluodo religioso 119O interessedo socilogo 126Leitura,leitores,letrados,literatura 134

    TerceiraParte:ABERTURAS

    Espao social e poder simblico 149O campo intelectual:um mundo parte .169Os usos do "povo" 181A delegaoe o fetichismopoltico 188Programaparauma sociologia do esporte 207A sondagem:uma "cincia"semcientista 221

    ndice remissivo 229

  • memriademeupai

    Prlogo

    "O espritodafortalezaa pontelevadia."

    RenChar

    J disseo bastantesobreas dificuldadesparticularesdaescritaemsociologia,e os textosdestelivrotalvezfalemsobreissoemdemasia.Maselasjustificam,creio,a publicaodessastranscries- aliviadasdasrepetiese inabilidadesmaisgri-tantes- de palestras,entrevistas,confernciase comuni-caes.O discursoescrito um produtoestranho,que seinventa,no confrontopuroentreaquelequeescrevee "o queele tema dizer", margemde qualquerexperinciadiretadeumarelaosocial, margemtambmdos constrangimentosedas solicitaesde uma demandaimediatamentepercebida,quese manifestapor todotipode signosde resistnciaou deaprovao.No precisomencionaras virtudesinsubstituveisdessefechamentosobresi:claroque,entreoutrosefeitos,elefundaa autonomiadeumtextodo qualo autorseretiroutantoquantopossvel,levandoconsigoos efeitosretricosapropria-dos paramanifestarsua intervenoe seu comprometimentocom o discurso(nemque sejapelo simplesuso da primeirapessoa),comoparadeixarinteiraa liberdadedo leitor.

    Masnemtodososefeitosdapresenadeumouvinte,e so-bretudodeum auditrio,sonegativos,principalmentequan-do setratade comunicarao mesmotempoumaanlisee umaexperinciae de retirarobstculos comunicaoque,muitasvezes,situam-semenosna ordemdo entendimentodo quenaordemda vontade:se a urgnciae a linearidadedo discursofaladoacarretamsimplificaese repeties(favorecidastam-

  • 10 PIERRE BOURDIEU PRLOGO 11

    bmpeloretomodasmesmasquestes),asfacilidadespropor-cionadaspelafala,quepermiteir rapidamentede um pontoaoutro,queimandoas etapasque um raciocniorigorosodevemarcaruma por uma, autorizamcontraes,abreviaes,aproximaes,favorveis evocaode totalidadescomplexasquea escritadesdobrae desenvolvena interminvelsucessode pargrafosou captulos.A preocupaode fazer-seperce-ber ou de fazer-secompreender,impostapelapresenadiretade interlocutoresatentos,incitaaovaivmentrea abstraoe aexemplificaoe encorajaa buscade metforasou analogiasque,quandose podefalarde seuslimitesno instantemesmoemqueestosendousadas,permitemdarumaprimeiraintui-o aproximativados maiscomplexosmodelose introduzirassima umaapresentaomaisrigorosa.Mas,acimade tudo,ajustaposiode proposies,muitodiversaspelassuascircuns-tnciase pelosseusobjetos, capaz,ao mostraro tratamentode ummesmotemaemdiferentescontextosou a aplicaodeum mesmoesquemaa diferentesdomnios,de revelarummododepensamentoemaoquea obraescrita,muitoacaba-da,recuperamal,quandonoo dissimulaporcompleto.

    A lgicada conversa,que,em maisde um caso,toma-seum verdadeirodilogo,temcomo efeitosuspenderumadasmaiorescensurasimpostaspelofatodesepertencera umcam-po cientfico,e quepodeestartoprofundamenteinteriorizadaquenemmesmo sentidacomotal:a censuraqueimpedederesponder,na prpriaescrita,s perguntasque,do pontodevistado profissional,nopodemservistassenocomotriviaisou inaceitveis.Alm:disso,quandouminterlocutorbem-inten-cionadoexpecomtodaa boa-fsuasreticnciasou resistn-cias,ou quandoassume,comoadvogadodo diabo,objeesou crticasqueleuou ouviu,de podefornecera oportunidadede que enunciemsejaproposiesabsolutamentefundamen-tais- queas elipsesda altivezacadmicaou os pudoresdodecorocientficolevama silenciar- sejaesclarecimentos,des-mentidosou refutaesqueo desdmou a aversosuscitadapelassimplificaesautodestrutivasda incompreensoe daincompetnciaou pelasacusaestolasou baixasda m-flevama recusar(notereia crueldade,umpouconarcisista,deapresentaraqui uma antologiadas acusaesque me so

    feitas,emformades/oganse dennciaspolticas- determinis-mo,totalitarismo,pessimismo,etc.-, e quemechocamsobre-tudopelo seufarisasmo: muitofcil,almde compensador,fazer-sepassarpor guardiodosbonssentimentose dasboascausas,arte,liberdade,virtude,desprendimento,contraalgumque se pode impunementeacusarde odi-Iosporquerevela,semmesmodarmostrasde deplor-Io,tudoaquiloqueo pon-to de honraespiritualisi:aordenaesconder).O atoda interro-gao,queinstituiumademanda,autorizae encorajaa explici-taodas intenestericase de tudo o que as separadasvisesconcorrentes,bemcomoa exposiomaisdetalhadadasoperaesempricas,e das dificuldades,muitasvezesimper-ceptveisno protocolofinal,queelastiveramde superar,infor-maesque a recusa,talvezexcessiva,da complacnciae danfaselevamcomfreqnciaa censurr.

    Masa virtudemaiordo intercmbiooralestligadaacimade tudo ao prpriocontedoda mensagemsociolgicae sresistnciasque ela suscita.Muitasdas proposiesapresen-tadasaquis ganhamplenosentidose referidasscircunstn-cias em que foram pronunciadas,ao pblico aque foramdirigidas.Partede suaeficciaresultacom certezado esforode persuasodestinadoa superara extraordinriatensoqueaexplicitaode umaverdaderejeitadaou recalcadas vezescria.GershomScholemme disseum dia:eu notratoos pro-blemasjudeusda mesmaformaquandofaloa judeusde NovaYork, a judeusde Parise a judeusde Jerusalm.Do mesmomodo,a respostaqueeu poderiadarsperguntasquemesofeitascommaisregularidadevariasegundoos interlocutores-socilogosou nosocilogos,socilogosfrancesesou socilo-gosestrangeiros,especialistasemoutrasdisciplinasou simplesleigos,etc.O que no querdizerque no hajaumaverdadesobrecadaumadessasquestese queessaverdadenemsem-pre devaser dita:Mas quandose pensa,como eu, que emcadacaso precisochegaraopontoondeseesperao mximode resistncia,o que exatamente(j oposto da intenodemaggica,e dizer a cadaauditrio,sem provocao,mastambmsemconcesso,o aspectodaverdadequeparaele omaisdifcildeadmitir,ou seja,o queacreditamossera suaver-dade,servindo-nosdo conhecimentoque acreditamoster de

  • 12 PIERRE BOURDIEU

    suasexpectativas,no paraadul-Ioe manipul-Io,maspara"fazerdigerir",comosediz,o queeletecimaisdificuldadeemaceitar,em engolir,ou seja,o quediz respeitoa seusinvesti-mentosmaisprofundos,sabe-seque semprese estsujeitoavera scio-anlisetransformar-seemsociodrama.

    As incertezase imprecisesdessediscursodeliberada-menteimprudentetmassim,comocontrapartida,o tremordavoz, que a marcados riscoscompartilhadosem todatrocagenerosae que,seforpercebido,por menorqueseja,natrans-crioescrita,parece-mejustificarsuapublicao.

    PrimeiraParte:

    ITINERRIO

  • "Fieldworkin philosophy"*

    P. - Qualeraa situaointelectualquandoo senhoresta-vaestudando:marxismo,fenomenologia,etc.?

    R. - Quando eu era .estudante,nos anos 50, a fe-nomenologia,na suavarianteexistencialista,estavano auge,eeu tinhalido muitocedoO sereo nada,depoisMerleau-Pontye Husserl;o marxismonoexistiapropriamentecomoposiono campointelectual,aindaque pessoascomoTranDuc-Taoconseguissemfaz-Ioexistircolocandoa questoda sua re-laocoma fenomenologia.Dito isto,eu haviafeitonaquelemomentouma leitura escolarde Marxj eu me interessavasobretudopelo jovemMarx e estavaapaixonadopelas TesessobreFeuerbach.Mas era a pocado stalinismotriunfante.Muitosde meuscondiscpulosque hojese tomaramviolentosanticomunistasestavamno Partido Comunista.A pressostalinistaera to exasperadora,que, por volta de 1951,fun-damosna EscolaNormalSuperior(ali estavamBianco,Comte,Marin,Derrida,Parientee outros)um Comitde DefesadasLiberdades,quete RoyLaduriedenunciou cluladaescola...

    A filosofiauniversitrianoeraentusiasmante...Aindaquehouvessepessoasmuito competentes,como Henri Gouhier,comquemfiz uma"dissertao"(umatraduocomentadadasAnimadversones,de Leibniz),GastemBachelardou Georges

    EntrevistacomA. Honneth,H. Kocybae B. Schwibs,realizadaem'Parisemabrilde 1985e publicadaemalemosobo ttulo"DerKampfumdiesymboli-scheOrdnung",A.sthetikundKommunikation,Frankfurt,16,n261-62,1986.

  • 16 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 17

    Canguilhem.ForadaSorbonne,e sobretudonaEscoladeAltosEstudose no Colgio de Frana,havia tambmEric Weil,AlexandreKoyr, MartialGuroult,cujoscursosacompanheiquandoentreina EscolaNormal,Todasessaspessoasestavamforado cursoregular,masfoi um poucograasa elas,ao queelasrepresentavam,ou seja,umatradiorigorosade histriadas cinciase da filosofia(e graastambm leituradeHusserl,na pocaaindamuitopoucotraduzido),queeu tenta-va,juntamentecomaquelesque,comoeu,estavamum poucocansadosdo existencialismo,ir almdaleituradosautorescls-sicose darum sentido filosofia.Eu faziamatemtica,histriadas cincias.Homenscomo GeorgesCanguilhem,e tambmJulesVuillemin,foramparamim,e paraalgunsoutros,autnti-cos "profetasexemplares",no sentidode Weber.No perodofenomenolgico-existencialista,quando no eram muito co-nhecidos,eles pareciamindicara possibilidadede um novocaminho,de umanovamaneirade realizaro papelde filsofo,longedosvagosdiscursossobreos grandesproblemas.Haviatambma revistaCritique,nos seusmelhoresanos,onde sepodiaencontrarAlexandreKoyr,EricWeil,etc.,e umainfor-maoao mesmotempoamplae rigorosasobreos trabalhosfrancesese sobretudoestrangeiros.Eu eramenossensveldoque outros,provavelmentepor razessociolgicas, vertenteBataille-Blanchotda Critique.A intenode ruptura,maisdoque de "transgr~sso",orientava-seno meu caso para ospoderesinstitudos,e especialmentecontraa instituiouniver-sitriae tudoo queelaencobriadeviolncia,de impostura,detolicecanonizada,e, atravsdela,contraa ordemsocial,Issotalvezporqueeunotivessecontasa acertarcoma famliabur-guesa,comooutros,e me achasse,portanto,menosinclinadoparaasrupturassimblicasquesoevocadasemLes hritiers.Mas acho que a vontadede nicht mitmachen,como diziaAdorno,a recusade comprometimentoscom a instituio,acomearpelasinstituiesintelectuais,nuncameabandonou.

    Muitasdasdisposiesintelectuaisque tenhoem comumcoma gerao"estruturalista"(especialmenteAlthussere Fou-cault)- naqualnomeincluo,primeiroporqueestousepara-do delapor umageraoescolar(fui alunodeles)e tambmporquerejeiteio quemepareceuserumamoda- se expli-

    cam pela vontadede reagircontrao que o existencialismohaviarepresentadoparaela:o "humanismo"frouxoqueestavano ar,a complacnciaemrelaoao "vivido"e essaespciedemoralismopolticoquesobrevivehojeemdiacomBsprit.

    p - O senhornuncaseinteressoupeloexistencialismo?R. - Li Heidegger,muito,e comum certofascnio,espe-

    cialmenteasanlisesde Seinund Zeitsobreo tempopblico,a histria,etc.,que,juntocomasanlisesdeHusserlem Ideen11,meajudarammuito- assimcomoSchtzmaistarde- nasminhastentativasde analisara experinciacomumdo social,Mas nuncaparticipeido moodexistencialista.Merleau-Pontyocupavaumlugar parte,a meuver,pelomenos.Ele se inte-ressavapelascinciashumanas,pela biologia,e dava umaidiado quepodeserumareflexosobreo presenteimediato- comseustextossobrea histria,por exemplo,sobreo Par-tido Comunista,sobreos processosde Moscou- capazdeescapardassimplificaessectriasda discussopoltica.Elepareciarepresentaruma das possveissadaspara fora dafilosofiatagareladainstituioescolar.L,,]

    P - Mas naquelemomentoum socilogodominava'afilosofia?

    R. - No, era um simplesefeitode autoridadeinstitu-ciona!.E nossodesprezopela sociologiaera duplicadopelofatode queum socilogopodiapresidira bancado concursoparadocentesuniversitrios.de filosofiae nos imporseuscur-sns, que considervamosuma nulidade, sobre Plato eRousseau.Essedesprezopelascinciassociaisperpetuou-seentreos alunosdefilosofiadaEscolaNormal- querepresen-tavama "elite",logo,o modelodominante-, pelomenosatos anos60.Na poca,existiaapenasumasociologiaempricamedocre,seminspiraonemtericanememprica.E a segu-ranadosalunosde filosofiaerareforadapelofatode queossocilogossadosdo entreguerras,Jean Stoetzelou mesmoGeorgesFriedmann,queescreveraum livro muitofracosobreLeibnize Spinoza,eramvistospor elescomoprodutode umavocao.negativa.Isso era aindamais claro em relaoaos

    Trata-sedeGeorgesDavy,ltimosobreviventedaescoladurkheimiana.

  • 18 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 19

    primeirossocilogosdos anos 45, que, com rarasexcees,no haviamtrilhadoo caminhoreal- EscolaNormale con-'cursoparadocentesuniversitrios- e que,em certoscasos,haviamsidoatmesmodevolvidosparaa sociologiapor causadeseufracassoemfilosofia.

    P - Mascomoseoperoua mudanadosanos60?R. - O estruturalismofoi muitoimportante.Pelaprimeira

    vez,umacinciasocialse impscomodisciplinarespeitvel,eat dominante.Lvi-Strauss,que batizousua cinciade an-tropologia,emvezdeetnologia,reunindoo sentidoanglo-saxoe o velhosentidofilosficoalemo-:-.Foucaulttraduziu,quaseno mesmomomento,a Anthropologie,deKant-, enobreceuacinciado homem,assimconstituda,graas refernciaa Saus-suree lingstica,comocinciareal, qualos prpriosfilso-fos eramobrigadosa se referir.Esse o momentoem queseexerceucomtodaa forao queeu chamode efeito-Iogia,emrefernciaa todososttulosqueusamessadesinncia,arqueolo-gia,gramatologia,semiologia,etc.,expressovisveldo esforodosfilsofosno sentidodeembaralhara fronteiraentreacinciae a filosofia.Nuncativemuitasimpatiapor eS6asreconversespelametade,quepermitemacumularpelomenorcustoasvan-tagensda cientificidadee as vantagensligadasao estatutodefilsofo.Pensoque naquelemomentoeraprecisocolocaremjogoo estatutodefilsofoe todososseusprestgiosparaoperarumaverdadeirareconversocientfica.E, de minhaparte,mes-mo tentandoaplicaro modode pensamentoestruturalou rela-cionalna sociologia,resisticomtodasasforassformasmun-danasdo estruturalismo.E eu estavatantomenosinclinadoindulgnciaparacom as transposiesmecnicasde SaussureouJakobsonparaaantropologiae a semiologiaqueforamprati-cadasnos anos60,na medidaem quemeutrabalhofilosficomelevaramuitocedoa leratentamenteSaussure:em1958-1959dei um curso sobreDurkheime Saussure,no qual tentavalocalizaros limitesdastentativasdeproduzir"teoriaspuras".

    P - Masprimeiroo senhorsetornouetn610go?R. - Eu tinhafeitopesquisassobrea "fenomenologiada

    vidaafetiva"ou, maisexatamente,sobreas estruturastempo-

    raisda experinciaafetiva.Eu queria,paraconciliara preocu-paode rigore a pesquisafilosfica,fazerbiologia,etc.Eumepensavacomofilsofo,e medemoreimuitoparaconfessara mimmesmoque tinhametornadoetnlogo.O novoprest-gio queLvi-Straussderaa essacinciacertamentemeajudoumuito.[...] Fiz tantopesquisasquesepoderiachamaretnolgi-cas, sobreo parentesco,o ritual,a economiapr-capitalistaquantopesquisasquepoderiamserconsideradassociolgicas,especialmentepesquisasestatsticasrealizadascommeusami-gosdo INSEE,Darbel,Rivete Seibel,quemuitomeensinaram.Eu queria,por exemplo,estabelecero princpio,jamaisclara-mentedeterminadonatradioterica,da diferenaentrepro-letariadoe subproletariado;e, analisandoas condieseco-nmicase sociaisdo surgimentodo clculoeconmico,nosemmatriadeeconomiamastambmdefertilidade,etc.,tenteimostrarque o princpiodessadiferenasitua-seno nvel dascondieseconmicasde possibilidadedas condutasde pre-visoracional,das quaisas aspiraesrevolucionriascons-tituemumadimenso.

    P - Mas esseprojetotericoera inseparvelde umametodologia...

    R. - Sim.Reli, claro, todos os textosde Marx - emuitosoutros- sobrea questo(essa semdvidaa pocaemqueeu maisli Marx,atmesmoa pesquisade Lninsobrea Rssia).Eu trabalhavatambmsobrea noomarxistadeautonomiarelativa,em conexocom as pesquisasque estavacomeandosobre o campoartstico(um livrinho- Marx,Proudhon,Picasso-, escritoemfrancsno entreguerrasporum emigradoalemo,chamadoMarx, me haviasido muitotil).Tudo issoantesdo retornocomforatotaldo marxismoestruturalista.Maseu queriasobretudosairda especulao-na poca,os livrosde FranzFanon,especialmenteLesdamnsdeIa terre,estavamna modae mepareceramao mesmotem-po falsose perigosos.

    P - Ao mesmotempo o senhor fazia pesquisasemantropologia.

    R. - Sim.E asduasestavamestreitamenteligadas.Porque

  • 20 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK 1NPHILOSOPHY" 21

    eu tambmqueriacompreender,atravsde minhasanlisessobrea conscinciatemporal,as condiesde aquisiodehabituseconmico"capitalista"entrepessoasformadasnumcosmospr-capitalista.E tambmaquipor meioda observaoe da medida,e no por umareflexode segundamosobrematerialde segundamo.Queriatambmresolverproblemaspropriamenteantropolgicos,emespecialos quea abordagemestruturalistamecolocava.Na introduoaoSenspratique,con-teicomodescobricomestupefao,recorrendo estatstica,oqueraramentese faziaem etnologia,queo casamentoconsi-deradotpicodassociedadesrabe-berberes,ou seja,o casa-mentocoma primaparalela,representavacercade trsa qua-tro por cento dos casos,e de cinco a seis por cento nasfamliasmorabitas,maisrgidas,maisortodoxas.Issomeobri-gavaa reflexessobrea noode parentesco,de regra,deregrasde parentesco,que me levavamaos antpodasdatradioestruturalista.E a mesmaaventurameaconteceucomo ritual:coerente,lgico,atcertoponto,o sistemade opo-siesconstitutivasdalgicaritualrevelava-seincapazde inte-grartodasos dadoscoletados.Mas foi precisomuitotempopararomperrealmentecomcertospressupostosfundamentaisdo estruturalismo(queeu usavasimultaneamenteemsociolo-gia,pensandoo mundosocialcomoespaoderelaesobjeti-vas transcendenteem relaoaos agentese irredutvelsinteraesentreos indivduos).Primeiro,foi precisoque eudescobrisse,peloretornosreasdeobservaofamiliares,deum lado a sociedadebearnesa,de ondesou originrio,e, deoutro,o mundouniversitrio,os pressupostosobjetivistas-como o privilgiodo observadorem relaoao indgena,fadado inconscincia- que estoinscritosna abordagemestruturalista.E emseguidafoi preciso,acho,sairda etnologiacomomundosocial,tornando-mesocilogo,paraque certosquestionamentosimpensveisse tornassempossveis.Aqui,no estoucontandominhavida: estoutentandotrazerumacontribuio sociologiada cincia.O fatode se pertenceraum grupo profissionalexerceum efeitode censuraque vaimuitoalmdascoaesinstitucionaise.pessoais:h questesque-nosocolocadas,quenopodemsercolocad.as,porquetocamnascrenasfundamentaisqueestonabaseda cincia

    e do funcionamentodo campocientfico.Isso o que Witt-gensteinsugerequandolembraque a dvidaradicalesttoprofundamenteidentificadacoma posturafilosfica,que umfilsofobem-informadonempensaemcolocaressadvidaemdvida.

    p - O senhorcitamuitasvezesWittgenstein.Por qu?R. - Wittgenstein certamenteo filsofoquemefoi mais

    til nosmomentosdifceis. umaespciede salvadorparaosperodosde grandeangstiaintelectual:quandose tratadequestionarcoisastoevidentescomo"obedecera umaregra".Ou quandose tratade dizercoisastosimples(e, ao mesmotempo,quaseinefveis)comopraticarumaprtica.

    P - Qual era a origemde sua dvida em relaoaoestruturalismo?

    R.- Eu queriareintroduzirde algummodoos agentes,que Lvi-Strausse os estruturalistas,especialmenteAlthusser,tendiama abolir,transformando-osem simplesepifenmenosda estrutura.Faloemagentese noemsujeitos.A aonoa simplesexecuode umaregra,a obedinciaa umaregra.Os agentessociais,tantonas sociedadesarcaicascomo nasnossas,no sc>apenasautmatosreguladoscomorelgios,segundoleis mecnicasque lhes escapam.Nos jogos maiscomplexos- as trocasmatrimoniais,por exemplo,ou asprticasrituais-, elesinvestemos princpiosincorporadosdeum habitusgerador:essesistemadedisposiespodeserpen-sadopor analogiacom a gramticagerativade Chomsky-com a diferenade que se tratade disposiesadquiridaspela experincia,logo,variveissegundoo lugare o momen-to. Esse"sentidodo jogo",comodizemosemfrancs, o quepermite gerar uma infinidade de "lances" adaptadosinfinidadede situaespossveis,que nenhumaregra,pormais complexaque seja, pode prever.Assim, substituasregrasde parentescopor estratgiasmatrimoniais.Onde todomundofalavade "regras",de "modelo",de "estrutura",quaseindiferentemente,colocando-senumpontodevistaobjetivista,o de Deus Pai olhandoos atoressociaiscomo marionetescujosfios seriamas estruturas,hoje todo mundofala de es-

  • 22 PIERRE BOURDIEU "FIEIDWORK IN PHILOSOPHY" 23

    tratgiasmatrimoniais(o queimplicasituar-seno pontodevistadosagentes,semporissotransform-Iosemcalculadoresracionais). precisoevidentementeretirardessapalavrasuasconotaesingenuamenteteleolgicas:ascondutaspodemserorientadasemrelaoadeterminadosfinssemserconsciente-mentedirigidasa essesfins,dirigidasporessesfins.A noodehabitusfoi inventada,digamos,paradarcontadessepara-doxo.Do mesmomodo,o fatode asprticasrituaisseremprodutodeum"sensoprtico",e nodeumaespciedecl-culoinconscienteou daobedinciaa umaregra,explicaqueosritossejamcoerentes,mascomessacoernciaparcial,nun-catotal,queacoernciadasconstruesprticas.

    P - Essarupturacomo paradigmaestruturalistanocriao riscodefaz-Iocairdenovono paradigma"individualista"doclculoracional?

    R. - Retrospectivamente, possvelcompreender- naverdade,as coisasno acontecemassimna realidadedapesquisa- o recursonoodehabitus,umvelhoconceitoaristotlico-tomistaquerepenseicompletamente,comoumamaneirade escapardessaalternativado estruturalismosemsujeitoe da filosofiado sujeito.Tambmaqui,algunsfe-nomenlogos- o prprioHusserl,quedestinaumpapelnoode habitusna anliseda experinciaantepredicativa,ou Merleau-Ponty,e mesmoHeidegger- abriamcaminhoparaumaanlisenemintelectualistanemmecanicistadare-laoentreo agentee o mundo.Infelizmente,aplicamsmi-nhasanlises- e esta a principalfontedemal-entendidos- asprpriasalternativasqueanoodehabitusvisadescar-tar,asdaconscinciae do inconsciente,daexplicaopelascausasdeterminantesou pelascausasfinais.Assim,Lvi-Straussvnateoriadasestratgiasmatrimoniaisumaformadeespontanesmoe umretorno filosofiadosujeito.Outros,aocontrrio,veroa formaextremado queelesrecusamnomododepensamentosociolgico,determinismoeaboliodosujeito.Masprovavelmente Jon Elsterquemapresentaoexemplomaisperversode incompreenso.Em vez de meatribuir,comotodomundo,umdostermosdaalternativaparalhe contraporo outro,ele me imputauma espciede

    oscilaoentreume outro,e assimpodemeacusardecon-tradioou, maissutilmente,de reunirexplicaesmutua-menteexcludentes.Posiotantomais surpreentinoentreo

  • 24 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 25

    a naturalidadeque a marcada chamadadistino"natural":basta-Ihessero que soparasero que precisoser,isto,naturalmentedistintosdaquelesque no podem fazer aeconomiada buscade distino.Longede ser identificvelcondutadistinta,comoacreditaVeblen,a quemElstererronea-menteme assimila,a buscade distino a negaodessaconduta:primeiro,porqueela encerrao reconhecimentodeuma falta e a confissode uma aspiraointeressada,eporque,comoficabemclarono casodo pequenoburgus,aconscinciae a reflexividadeso ao mesmotempocausaesintomada faltade adaptaoimediata situaoquedefineo virtuose.O habitusmantmcomo mundosocialqueo pro-duz uma autnticacumplicidadeontolgica,origemde umconhecimentosemconscincia,de umaintencionalidadesemintenoe de um.domnioprticodasregularidadesdo mun-do quepermiteanteciparseufuturo,semnemmesmoprecisarcolocara questonessestermos.Encontramosaqui o funda-mentoda diferenaqueHusserlestabelecia,em IdeenI , entrea protensoomoaspiraoprticade um porvir inscritonopresente,.logo,apreendidocomoj estandoaquie dotadodamodalidadedxicado presente,e o projetocomoposiodeumfuturoconstitudocomotal, isto, comopodendoaconte-cer ou no; e por no ter compreendidoessadiferena,esobretudoa teoriado agente(por oposioao "sujeito")quelhe d fundamento,que Sartreenfrentava,em sua teoriadaao,e especialmenteemsuateoriadasemoes,dificuldadesidnticass que Elster(cujaantropologiaestmuitoprximada sartriana)tentaresolvermedianteuma espciede novacasusticafilosfica:como posso me libertarlivrementedaliberdade,dar livrementeao mundoo poderde me determi-nar,comonasituaodemedo,etc.?MaseutrateilongamentedetudoissoemLesenspratique.

    P. - Porquea retomadadessanoode habitus?R. - A noode habitusj foi objetode inmerosusos

    anteriores,por autoresto diferentescomo Hegel, Husserl,Weber,Durkheime Mauss,de uma formamais ou menosmetdica.No entanto,parece-meque,emtodosos casos,aque-les que utilizaramessa noo inspiraram-senuma mesma

    intenoterica,ou,pelomenos,indicavamumamesmadireode pesquisa:quer se tratede romper,como em Hegel,queempregatambm!com a mesmafuno,noescomo hexis,ethos,etc., com o dualismokantianoe reintroduziras dis-posiespermanentesquesoconstitutivasda moralrealizada(Sittlichkeit)- por oposioaomoralismodo dever- ou que,comoemHusserl,a noode habituse diversosconceitosvizi-nhos, como Habitualitdt,marquema tentativade sair daftlosofiadaconscincia,ou aindaque,comoemMauss,setratede explicaro funcionamentosistemticodo corposocializado.Retomandoa noode habitus- a propsitodePanofsky,queemArchitecturegothiquetambmretomavaum conceitonativoparaexplicaro efeitodo pensamentoescolstico-, eu queriatirarPanofskydatradioneokantiana,na qualelepermaneciaaprisionado(isso aindamaisntidoem Laperspectivecommeformesymbolique),tirandopartidodo uso absolutamenteaci-dental,e emtodocasonico,queele haviafeitodessanoo(LucienGoldmannpercebeubemisso,e mereprovouenergica-mentepor empurrarpara o materialismoum pensadorque,segundoele,sempreserecusaraa ir nessadireopor "prudn-cia poltica"- essaeraa suamaneirade ver as coisas...). Euqueria,acimadetudo,reagircontraa orientaomecanicistadeSaussure(que,comomostreiem Le senspratique,concebeaprticacomosimplesexecuo)e do estruturalismo.Aproximan-do-menestecasode Chomsk:y,emquemeu encontravaa mes-mapreocupaode darumaintenoativa,inventiva, prtica(ele foi consideradopor algunsdefensoresdo personalismocomoumbastioda liberdadecontrao determinismoestrutura-lista),eu queria insistirnas capacidadesgeradorasdas dis-posies,fican

  • 26 PIERRE BOURDffiU "FIELDWORK IN PlflLOSOPHY" 27

    Fichtefalava,e explicitarascategoriasespecficasdessarazo(o quetentei fazeremLe senspratique).Ajudou-memuito,menospat refletirdo que para ousar avanarna minhareflexo,a famosaTesesobreFeuerbach:"Oprincipaldefeitodetodosos materialistasanteriores,incluindoo de Feuerbach,resideno fatode queneleso objeto concebidoapenassobaformade objetode percepo,masnocomoatividadehuma-na,comoprtica".Tratava-sede retomarno idealismoo "ladoativo"do conhecimentoprticoque a tradiomaterialista,sobretudocoma teoriado "reflexo",haviaabandonado.Cons-truira noode babituscomosistemade esquemasadquiri-dos que funcionano nvel prticocomo categoriasde per-cepoe apreciao,ou como princpiosde classificaoesimultaneamentecomoprincpiosorganizadoresda ao,sig-nificavaconstruiro agentesocialna suaverdadede operadorprticodeconstruodeobjetos.

    P. - Todaa suaobra,e emparticularascrticasqueo se-nhorfaz ideologiado domou, no planoterico, intenoprofundamenteantigenticado estruturalismo, inspiradapelapreocupaode reintroduzira gnesedasdisposies,ahis-triaindividual.

    R. - Nessesentido,se eu gostassedo jogo dos rtulos,que muitopraticadono campointelectualdesdeque certosftlsofosintroduziramneleasmodase os modelosdo campoartstico,eu diria que tento elaborar um estruturalismogentico:a anlisedasestruturasobjetivas- asestruturasdosdiferentescampos- inseparvelda anliseda gnese,nosindivduosbiolgicos,das estruturasmentais(que so emparteprodutoda incorporaodas estruturassociais)e daanliseda gnesedas prpriasestrtiturassociais:o espaosocial,bemcomoos gruposquenelese distribuem,sopro-dutode lutashistricas(nasquaisos agentessecomprometememfunode sua posiono espaosociale das estruturasmentaisatravsdasquaiselesapreendemesseespao).

    p. - Tudo isso parecemuito distantedo determinismorgidoe do sociologismodogmticoquesvezesatribuemaosenhoc .

    R. - Nopossoreonhecer-menessaimageme no pos-so impedir~m~de encontraruma explicaoparaela numaresistncia anlise.Emtodocaso,achobastanteridculoquesocilogosou historiadores,que nem sempreso os maispreparadosparaentrarnessasdiscussesfilosficas,reacen-dam hoje esse debatepara eruditosdecadentesda Bellepoquequequeriamsalvaros valoresespirituaisdasameaasda cincia.O fatode que nose encontrenadamaisdo queumatesemetaflSicaparacontrapora umaconstruocientficaparece-meum sinalevidentede fraqueza. precisosituaradiscussono campoda cincia,se quisermosevitarcair emdebatespara pr-universitriose semanriosculturais,ondetodosos gatosfilosficosso pardos.O mal da sociologiaqueeladescobreo arbitrrio,a contingncia,ali ondeas pes-soasgostamde vera necessidadeou a natureza(o dom,porexemplo,que, comose sabedesdeo mito de Er de Plato,no fcil conciliarcom uma.teoriada liberdade);e quedescobrea necessidade,a coaosocial,ali onde se gostariade ver a escolha,o livre-arbtrio.O babitus esseprincpiono escolhidode tantasescolhasque desesperaos nossoshurnanistas.Seriafcil estabelecer- eu levo semdvidaodesafioum pouco longe- que a escolhadessaftlosofiadalivreescolhanosedistribuiao acaso...Umacaractersticadasralidadeshistricas quesempre possvelestabelecerqueas coisaspoderiamter sido diferentes,que sodiferentesemoutroslugares,emoutrascondies.O que querdizerque;ohistoricizar,a sociologiadesnaturaliza,desfataliza.Mas ento

    . ela acusadade encoraJarumdesencantocnico.Assim,evita-se colocar,numterrenoondeela teriaalgumachancede serresolvida,a questode saberse o queo socilogoapresentacomo uma constataoe no como uma tese,a saber,porexemplo,queo consumoalimentare os usosdo corpov~riamsegundoa posioque se ocupa no espaosocial, ver-dadeirooufalso e como se pode explicaressasvariaes.Mas,por outrolado,paradesesperodosque precisochamarde absolutistas,esclarecidosou no, e que denunciamesserelativismodesencantador,o socilogodescobrea neces~i-dade,a coaodascondiese doscondicionamentOssociais,at no ntimodo "sujeito",sob a forma do que chamode

  • 28 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 29

    habitus.Emsuma,elelevao humanistaabsolutistaaocmulodo desesperoao mostrara necessidadena contingncia,aorevelaro sistemade condiessociaisquetornoupossvelumadeterminadamaneiradeseroudefazer,assimnecessita-damasnemporissonecessria.MisriadohomemsemDeuse semdestinodeeleio,queo socilogoapenasrevela,traz luzdo dia,e peloqual responsabilizado,comotodososprofetasdadesgraa.Maspode-semataro mensageiro,o queeleanunciaficadito,eentendido.

    Sendoassim,comonoverque,aoenunciarosdetermi-nantessociaisdasprticas,especialmentedasprticasintelec-tuais,o socilogooferecea possibilidadedeumacertaliber-dadeemrelaoaessesdeterminantes? atravsdailusodeliberdadeem relaos determinaessociais(ilusoque,comoeuj dissemilvezes, a determinaoespecficadosintelectuais)queseda liberdadedeseexerceremasdeter-minaes.sociais.Aquelesqueentramdeolhosfechadosnodebate,comumapequenabagagemfilosficadosculoXIX,fariambememprestaratenoa isso,senoquiserem,ama-nh,daroportunidadesformasmaisfceisdeobjetivao.Assim,paradoxalmente,a sociologialibertalibertandodailusodeliberdade,ou,maisexatamente,dacrenamalcolo-cadanasliberdadesilusrias.A liberdadenoumdado,masumaconquista,e coletiva.E lamentoque,emnomedeumalibido narcisistaqualquer,estimuladapor umadenegaoimaturadasrealidades,possamosnosprivardeuminstrumen-to quepermiteconstituirmo-nosverdadeiramente- ou umpoucomais,emtodocaso- comosujeitoslivres,medianteumtrabalhode reapropriao.Tomemosumexemplomuitosimples:atravsde um amigo,obtiveas fichasdos alunosfeitasporumprofessordefilosofianumaclassedeliceuquepreparavaparao cursodeletras;nelashaviaa foto,a profis-sodospais,a avaliaodasdissertaes.Temosaquiumdocumentosimples:um professor(de liberdade)escreviaarespeitodeumaalunaqueelatinhaumarelaoservilcomafilosofia;acontecequeessaalunaerafilhadeumafaxineira(eeraanicadesuaespcienessapopulao).O exemplo,que real, evidentementeumpoucofcil,maso atoelementarqueconsisteemescrevernumtrabalhodeescola"semprofun-

    didade","servil","brilhante","srio",etc., a aplicaodeta-xionomiassocialmenteconstitudas,queemgeralsoa inte-riorizaodeoposiesexistentesnocampouniversitriosoba formadedivisesemdisciplinas,emsees,e tambmnocamposocialglobal.A anlisedasestruturasmentais uminstrumentodelibertao:graasaosinstrumentosdasociolo-gia, possvelrealizarumadaseternasambiesdafilosofia,que conhecerasestruturascognitivas(nocaso,ascategoriasdo entendimentoprofessoral)e aomesmotempoalgunsdoslimitesmaisbemescondidosdo pensamento.Eu poderiadarmilexemplosdedicotomiassociaisqueserevezamnosistemaescolare que,tornando-secategoriasdepercepo,impedemouaprisionamo pensamento.Tratando-sedeprofissionaisdoconhecimento,a sociologiadoconhecimento o instrumentode conhecimentoporexcelncia,o instrumentode conheci-mentodosinstrumentosdeconhecimento.Noconceboquesepossadispens-Ia.Nomefaamdizerqueela o nicoinstrumentodisponvel. um instrumentoentreoutros,aoqualacreditotercontribudoparadarmaisforae queaindapodeserfortalecido.Cadavezquesefizerhistriasocialdafilosofia,histriasocialdaliteratura,histriasocialdapintura,etc.,aperfeioaremosesseinstrumento;novejoemnomedeque se possaconden~lo,a no ser por umaespciedeobscurantismo.Acreditoqueasluzesestodo ladodaquelesqueajudamadescobrirosantolhos...

    Paradoxalmente,essadisposiocrtica,reflexiva,nodemodoalgumevidente,sobretudoparaosfilsofos,quesofreqentementelevadospeladefiniosocialdesuafuno,epelalgicadaconcorrnciacomascinciassociais,arecusarcomoescandalosaahistoricizaodeseusconceitosoudesuahetanaterica.Tomareio exemplo(porqueele permiteraciocinarafortion')dosfilsofosmarxistas,que,pelapreocu-paocomo "altonvel"oucoma "profundidade",soleva-dos,porexemplo,a eterhizar"conceitodeluta"comoespon-tanesmo,centralismo,voluntarismo(haveriaoutros),e a trat-los comoconceitosfilosficos,isto , trans-histricos.Porexemplo,acabadeserpublicadonaFranaumDictionnairedu marxismeemquenomnimotrsquartosdasentradassodessetipo(aspoucaspalavrasquenopertencemaessacate-

  • 30 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PillLOSOPHY" 31

    goriaforaminventadaspeloprprioMarx):trata-secommuitafreqnciade injrias,.de insultosproduzidosnas lutas,paraas necessidadesda luta.Ora, muitosdos chamadosfilsofos"marxistas"eternizamessesconceitos,retiram-nosda histriaeosdiscutemindependentementedeseuempregooriginal.

    Por que esseexemplo interessante?Porquese percebeque as coaes,os interessesou as disposiesassociadasaofatode sepertencerao campoftlosficopesamcommaisfo~sobreos ftlsofosmarxistasdo que a ftlosofiamarxista.Se humacoisaque a ftlosafiamarxistadeveriaimpor, a atenocoma histria(e coma historicidade)dosconceitosutilizadosparapeilsara histria.Ora, o aristocratismoftlosficofaz comqueseesqueade submeter crticahistricaconceitosvisivel-mentemarcadospelascircunstnciashistricasde suaproduoe de suautilizao(osalthusserianosforammestresno gnero).O marxismona realidadede seu uso socialacabasendoumpeilsamentocompletamenteprotegido.contraa crticahistrica,o que um paradoxo,dadasas potencialidadese mesmoasexignciasqueo pensamentodeMarxencerrava.Marxforneceuos elementosde uma pragmticasociolingstica,particu-larmentena Ideologiaalem(ftz refernciaa isso emminhaanlisesociolgicado estiloe da retricade Althusser).Essasindicaespermaneceramletramorta,porquea tradiomar-xista.sempredeixoumuitopoucoespaoparaa crticareflexiva.A favordosmarxistas,eu diriaque,emborase possamtirardesuaobraos princpiosde umasociologiacrticada sociologiaedos instrumentostericosque a sociologia,sobretudoa mar-xista,utilizaparapensaro mundosocial,o prprioMarxnuncautilizoumuitoacrticahistricacontrao prpriomarxismo...

    .P. - Lembro-mede que em Frankfurttentamosdiscutircertosaspectosde Ia distinction:o senhordiriaque as estru-turassimblicassoumarepresentaodasarticulaesfunda-mentaisdareIidadesocialou queessasestruturassoemcer-tamedidaautnomase produzidasporumespritouniversal?

    R. - Sempreme sentiincomodadocoma representaohierrquicadasipstnciasestratificadas(infra-estruturalsuperes-trutura),que insepaclvelda questodas relaesentreasestrufurassimblicase as estruturaseconmicasquedominou

    a discussoentreestruturalistase marxistasnosanos60.Cadavezmaismeperguntose asestruturassociaisde hojenosoas estruturassimblicasde onteme se, por exemplo,umadeterminadaclasseque ns constatamosno empartepro-dutodo efeitodeteoriaexercidopelaobradeMarx.Claro,nochegoa pontode dizerquesoas estruturassimblicasqueproduzemas estruturassociais:a foracom que se exerceoefeitode teoriaaumentana medidaem que preexistememestadopotencial,"empontilhado",na realidade,comoum dosprincpiosde divisopossveis(queno nec~ssariamenteomaisevidenteparaa percepocomum),asdivisesquea teo-ria,enquantoprincpiode visoe de diviso,ala existnciavisvel.O certo que, dentrode certoslimites,as estruturassimblicastmum extraordinriopoder de constituio(nosentidoda ftlosofiae da teoriapoltica)quefoi muitosubesti-mado.Mas essasestruturas,mesmoque certamentedevammuitos capacidadesespecficasdo espritohumano,comooprpriopoderde simbolizar,de anteciparo futuro,etc.,pare-cem-medefinidasem sua especificidadepelas condieshistricasdesuagnese.

    P. - A intenode rupturacomo estruturalismosemprefoi, portanto,muitoforteno senhor,juntamentecoma intenodetrazerparao terrenoda sociologiaasaquisiesdo estrutu-ralismo,intenoqueo senhordesenvolvenumartigode 1968,"Structuralismandtheoryof sociologicalknowledge",publica-do emSocialResearcb.

    R. - A anliseretrospectivada gnesede meusconceitosquevocconVidaa fazer umexerccionecessariamenteartifi-cial,quetrazo riscode mefazercairna "ilusoretrospectiva".Na origem,as diferentesescolhastericasforamcertamentemaisnegativasdo quepositivas,e provvelqueelastambmtivessemporprincpioa buscadesoluesparaproblemasquesepoderiaconsiderarpessoais,comoa preocupaodeapreen-dercomrigorproblemaspoliticamentecandentes,preocupaoquecertamenteorientouminhasescolhas,dostrabalhossobre.aArgliaao Homdacademicus,passandopor Lesbritiers,ouessasespciesdepulsesprofundase parcialmenteconscientesquenos levama sentirafinidadeou aversoemrelaoa essa'

  • 32 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 33

    ou quelamaneiradeviveravidaintelectuale,portanto,a sus-tentarou a combateressaou aquelatomadadeposiofilosfi-ca ou cientfica.Creio tambmque minhasescolhassempreforamfortementemotivadaspelaresistnciaaosfenmenosdamodae sdisposies,queeupercebiacomofrivolase mesmodesonestas,dosquesetornavamseuscmplices:por exemplo,muitasdasminhasestratgiasde pesquisainspiram-sena preo-cupaode recusara ambiototalizanteque comumenteidentificadacoma filosofia.Do mesmomodo,sempremantiveumarelaobastanteambivalentecoma escoladeFrankfurt:asafinidadessoevidentes,e, no entanto,eu experimentavaumacertairritaodiantedo aristocratismodessacriticaglobalizantequeconservavatodosostraosdagrandeteoria,provavelmentepela preocupaode no sujar as mos nas cozinhasdapesquisaemprica.Isso aconteciatambmem relaoaosalthusserianos,ea essasintervenesaomesmotemposimplis-tase peremptriasqueaexcelnciafilosficaautoriza.

    Foi a preocupaodereagircontraaspretensesdagrandecriticaque me levoua "dissolver"as grandesquestesreme-tendo-asa objetossocialmentemenoresou mesmoinsignifi-cantes,mas,emtodocaso,bemcircunscritos,logo,passveisdeseremapreendidosempiricamente,comoasprticasfotogrficas.Mas eu ~bm reagiacontrao empirismomicrofrnicodeLazarsfelde seusepgonoseuropeus,cujafalsaimpecabilidadetecnolgicaescondiaa ausnciade umaautnticaproblemticaterica,gerandoerrosempricoss vezes'absolutamenteele-mentares.(Parnteses:seriana verdadeabusivoconcederchamadacorrentehard da sociologiaamericanao reconheci-mentodo rigorempricoque ela se atribui,contrapondo-sestradiesmais "tericas", muitasvezes identificadascom aEuropa. precisotodo o efeitode dominaoexercidopelacinciaamericana,e tambma adesomaisou menosenver-gonhadaou inconscientea umafilosofiapositivistada cincia,paraquepassemdesperebidasasinsuficinciase oserrostcni-cosquea concepopositivistadacincia'acarreta,emtodososnveisda pesquisa,'desdea amostragemata anliseestatsticadosdados:soincontveisoscasosemqueplanosdeexperin-cias que arremedamo rigor experimentaldisfarama totalausnciadeumautnticoobjetosociologicamenteconstrudo.)

    I,I'Ii'

    tiii,IIII

    P. - E, no caso do estruturalismo,como evoluiu.suarelaoprticacomessacorrente?

    R. - Tambmnesseponto,paraserhonesto,creioquefuiguiado,nosporumaespciedesentidoterico,mastambme talvezacimadetudopelarecusa,bastantevisceral,daposturaticaquea antropologiaestruturalistaimplicava,darelaoalti-vae distantequese instauravaentreo cientistae seuobjeto,ouseja,os'simplesleigos,graas teoriada prtica,explcitanocasodosalthusserianoS,quetransformavao agentenummero"suporte"(Trager) da estrutura(a noo de inconscientepreenchiaa mesmafunoemLvi-Strauss).Assim,rompendocomo discursolvi-straussianosobreas "racionalizaes"ind-genas,quenosocapazesdeesclareceremnadao antroplo-go quantosverdadeirascausasou s verdadeirasrazesdasprticas,obstinava-meemcolocaraosinformantesa questodoporqu.O queme obrigoua descobrir,a propsitodos casa-mentos,por exemplo,queasrazesparase realizarumames-macategoriade casamento- nestecaso,o casamentocomaprimaparalelapatrilinear- podiamvariarconsideravelmentedeacordocomos agentese tambmsegundoascircunstncias.Eu estavano caminhoda noode estratgia... E, paralela-mente,comeavaa suspeitarque o privilgioconcedidoanlisecientfica,objetivista(a anlisegenealgica,por exem-plo), em relao visoindgenatalvezfosseuma ideologiaprofissional.Emsuma,eu queriaabandonaro pontode vistaacavaleirodo antroplogoque elaboraplanos,mapas,diagra-mas,genealogi~.Tudo issomuito bom,e inevitvel,comoum momento- o momentodo objetivismo- da abordagemantropolgica.Masnosedeveesquecera outrarelaoposs-velcomo mundosocial,a dosagentesrealmenteenvolvidosnomercaddo qualfaoum mapa,por exemplo. preciso,por-tanto,elaborarumateoriadessarelaonoterica,parcial,umpoucoterra-a-terra,como mundosocial,que o da'experin-cia cotidiana.E umateoriada relaoterica,de tudoo queestimplicado- a comearpelarupturada adesoprtica,doinvestimentoimediato- na relaodistante,afastada,quedefmea posturacientfica.

    Essavisodascoisas,queestouapresentandonumaforma"terica",provavelmenteoriginou-senumaintuioda irredu-

  • 34 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 35

    tibilidadeda existnciasocialaos modelosque delase possafazer,ou, parafalaringenuamente,dairredutibilidadedo "turbi-lhodavida",dadistnciaentreasprticase experinciasreaise asabstraesdo mundomental.Porm,longede transform-Ia em fundamentoe justificaode um irracionalismoou emcondenaoda ambiocientfica,tenteiconverteressa"intui-ofundamental"emprincpioterico,a serconsideradocomofatorde tudoo quea cinciapodedizersobreo mundo. ocaso,por exemplo,de todaa reflexo(queestouretomandoatualmente)sobrea schole,lazere escola,comoprincpiodoqueAustinchamavadescholasticview,e doserrosqueelagerasistematicamente.

    A cincianopodefazernadacomumaexaltaoda ines-gotabilidadeda vida:issono passade um traode tempera-mento,um moodsem interesse,excetopara aqueleque aexprimee queadotaassimos modosliberadosdo apaixonadopelavida(poroposioaocientistargidoe austero).Essesen-timentomuitoagudodo queWeberchamade Vielseitigkeit,apluralidadede aspectosque constituia realidadedo mundosocial,sua resistncia empresade conhecimento,foi comcertezao princpiodareflexoquenuncadeixeide fazersobreos limitesdo conhecimentocientfico.E o trabalhoque estoupreparandosobrea teoriados campos- e que poderiasechamar"a pluralidadedos mundos"- terminarcom umareflexosobrea pluralidadedas lgicascorrespondentesaosdiferentesmundos,ou seja,aos diferentescamposenquantolugaresondeseconstroemsensoscomuns,lugares-comuns,sis-temasdetpicosirredutveisunsaosoutros.

    claroque tudo issoestavaenraizadonumaexperinciasocialparticular:umarelaocoma posturatericaquenoeravividacomonatural,evidente.Essadificuldadeem adotarumpontode vistaa cavaleiro,comonumsobrevo,sobreos cam-ponesescabilas,seuscasamentose seusrituais,com certezarelacionava-seao fatode que eu conheceracamponesesemtudo semelhantes,elaborandodiscursosabsolutamenteseme-lhantessobrea honrae a vergonha,etc.,e queeu podiasentiro quetinhamde artificialtantonavisoqueeu acabavatendoaomecolocarno pontodevistaestritamenteobjetivista- o dagenealogia,por.exemplo- quantona prpriavisoque os

    informantesme propunhamquando,em sua preocupaodejogaro jogo,de estar alturada situaocriadapelainterro-gaoterica,eles,de certaforma,tornavam-setericosespon-tneosde suaprtica.Em resumo,minharelaocrticacomtodasas formasde intelectualismo(e sobretudona suaforma.estruturalista)estligada,sem dvida, formaparticulardeminhainserooriginalno mundosociale relaoparticularcom o mundointelectualque ela favoreciae que o trabalhosociolgicos fez reforar,neutralizandoas censurase osrecalquesvinculadosao aprendizadoescolar- que,por suavez, fornecendo-meos meiosparasuperaras censurasda lin-guagemcientfica,certamenteme permitiramdizer muitascoisasquea linguagemcientficaexclua.

    P. - Trabalhandocom uma lgica estruturalista,demaneiranoortodoxa,o senhorchamoua atenoparao con-ceito de honra e de dominao,sobre as estratgias.paraadquirirahonra;e tambmdeunfase categoriadaprxis.

    R. - Eu gostariade observarquenuncaempregueio con-ceitodeprxis,que,pelomenosemfrancs,temumligeiroarde grandiloqnciaterica- o que muitoparadoxal- eaparentamarxismoconvencional,jovemMarx,Frankfurt,mar-xismoiugoslavo... Semprefalei,simplesmente,de prtica.Ditoisto,asgrandesintenestericas,aquelasque se condensamnosconceitosde habitus,deestratgia,etc.,estavampresentes,sobumaformasemi-explcitae relativamentepoucoelaborada,desdea origemdemeutrabalho(o conceitode campo muitomaisrecente:surgiudo encontroentreaspesquisasdesociolo-gia da arteque eu estavacomeandoa fazer,em meusemi-nriona EscolaNormal,por voltade 1960,e o comentriodocaptuloconsagrado sociologiareligiosaem WirtschaftundGesellschaft).Por exemplo,nasanlisesmaisantigassobreahon.ra(euasreformuleivriasvezes...), vocencontratodososproblemasque me colocoaindahoje:a idiade queas lutaspelo reconhecimentosoumadimenso,fundamentalda vidasociale dequenelasestemjogoa acumulaodeumaformaparticularde capital,a honra no sentidode reputao,deprestgio,havendo,portanto,umalgicaespecficada acumu-laodo capitalsimblico,comocapitalfundadono conheci-

  • 36 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 37

    mentoe no reconhecimento;a idiade estratgiacomoorien-taoda prtica,queno nemconscientee calculada,nemmecanicamentedeterminada,masque produtodo sensodehonraenquantosensodessejogo particularque o jogo dahonra;a idiade queexisteumalgicadaprtica,cujaespeci-ficidaderesidesobretudoemsuaestruturatemporal.Refiro-meaqui crticaque fiz da anliseda trocade dons em Lvi-Strauss:o modeloquefazsurgira interdependnciado domedo contradom destria lgicaprticada troca,que s podefuncionarna medidaem que o modeloobjetivo(todo domatraium contradom)nosejavividocomotal.E issoporqueaestruturatemporalda troca(o contradomno apenasdife-rente,masdiferido)mascaraou denegaa estruturaobjetivadatroca.Pensoqueessasanlisesencerravamemestadovirtualoessencialdo quedesenvolvia partirde ento. por issoquepude passarinsensivelmentee com muitanaturalidadedaanliseda culturaberbere anliseda culturaescolar(alis,entre1965e 1975,fiz comqueasduasatividadescoexistissemnaprtica,j queeutrabalhavaaomesmotempono queresul-taria,por um lado,emLa distinction,e, por outro,em Lesenspratique,dois livros complementaresque do o balanodetodo aqueleperodo):a maiorpartedos conceitosem tornodos quaisse organizaramos trabalhosde sociologiada edu-caoe da culturaquerealizeiou dirigino Centrode Sociolo-gia Europianasceude umageneralizaodasaquisiesdotrabalhoetnolgicoe sociolgicoque realizeina Arglia(issoficaparticularmenteclarono prefcioqueescreviparao livrocoletivosobrea fotografia,Unart moyen).Pensoemparticularnarelaoentreasesperanassubjetivase aschancesobjetivasqueeu haviaobservadonascondutaseconmicas,demogrfi-cas e polticasdos trabalhadoresargelinos,e que tornei aencontrarnos estudantesfrancesese em suasfamlias.Masatransferncia aindamaisevidenteno interessepelasestru-turascognitivas,pelas taxionomiase pela atividadeclassifi-catriadosagentessociais.

    P - E o desenvolvimentode seu interesseemplnCoemdireo educao(Leshritiers):estligado suaposio'nocampointelectual?

    R. - evidentequeminhavisoda culturae do sistemade ensinodevemuito posioqueocupono campouniver-sitrio,e sobretudo trajetriaqueme conduziua ele (o quenoquerdizerquepor essemotivoelaestejarelativizada)e relaocom a instituioescolar- j fiz refernciaa issovriasvezes- queessatrajetriafavorecia.Mastambm evi-denteque, como acabode mostrar,a anlisede instituioescolar- e isso o quenocompreendemos comentadoressuperficiais,quetratammeutrabalhoquasecomosefosseumatomadade posiodo SNESou, no melhor dos casos,umensaioqualquerde um professoruniversitriode gramticarevoltadocontraos delitosdo "igualitarismo"- situava-senuma problemticaterica ou, mais simplesmente,numatradio.especfica,caractersticadascinciashumanase irre-dutvel,pelo menosem parte,s interrogaesda "atualidadeuniversitria"ou dacrnicapoltica.Originalmente,eu planeja-vafazerumaCrticasocialdacultura.Escreviumartigointitula-do "Sistemadeensinoe sistemadepensamento",no qualque-riamostrarque,nassociedadescomescrita,asestruturasmen-tais so inculcadas pelo sistemaescolar,que as divisesdaorganizaoescolarsoo princpiodasformasdeclassificao.

    P - O seJ;lhorestavaretomandoo projetodeDurkheimdefazerumasociologiadasestruturasdo espritoqueKantanalisa.Masintroduzo interessepeladominaosocial.

    R. - Um historiadorda sociologiaamericano,chamadoVogt,escreveuque fazerem relao suaprpriasociedade,comotentofazer,o quefezDurkheima respeitodassociedadesprimitivassupunhauma mudanaconsidervelde ponto de'vista,ligadaao desaparecimentodo efeitode neutralizaoquea distnciado exotismoimplica.A partirdo momentoemqueso colocadosa propsitoda nossasociedade,do nossosis-temade ensino,por exemplo,os problemasgnoseolgicosqueDurkheimcolocavaa respeitodasreligiesprimitivassetornamproblemaspolticos;nose podedeixarde verqueas formasde classificaosoformasde dominao,quea sociologiadoconhecimento simultaneamenteumasociologiado reconhe-cimentoe do desconhecimento,ou seja,dadominaosimbli-ca.(Naverdade,isso vlidomesmoparaassociedadespouco

  • 38 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 39

    diferenciadas,como a sociedadecabila:as estruturasclassifi-catriasque organizamtoda a visode mundoremetememltimaanlise divisosexualdo trabalho.)O fatodecolocararespeitode nossassociedadesquestestradicionaisda etnolo-gia,e de destruira fronteiratradicionalentrea etnologiae asociologia,j eraumatopoltico.(Emtermosconcretos,issosetraduznas reaessuscitadaspelasduasfomiasde trabalho:enquantominhasanlisesdasestruturasmentaisquesoobjeti-vadasno espaoda casacabilasuscitamapenasaprovaoemesmoadmirao,asanlisesquefiz a respeitodas"categoriasdo entendimentoprofessoral",apoiando-meem avaliaesfei-tasporprofessoresdeclassesdepreparaoparao cursodele-trasa propsitode seusalunos,ou nosnecrolgiosdo Anuriodos Ex-Alunosda EscolaNormalSuperior,so vistoscomotransgressesgrosseirasou faltade compostura.)Os esquemasclassificatrios,os sistemasde classificao,asoposiesfunda-mentaisdo pensamento- masculino/feminino,direita/esquer-da,leste/oestee tambmteoria/prtica- socategoriaspolti-cas:a teoriacticadaculturalevanaturalmentea umateoriadapoltica.E a refernciaa Kant,emvezdeserummeiodetrans-cendera tradiohegelianasalvandonelao universal,comofa-zemcertospensadoresalemes, ummeiode radicalizara C-tica,colocandoemtodosos casosa questodascondiesso-ciaisdepossibilidade,incluindoa questodascondiessociaisde possibilidadeda ctica.Essa Selbstreflexionsociologica-mentearmadalevaa umacticasociolgicadacticatericae,portanto,a umaradicalizaoe a umaracionalizaodactica.Porexemplo,a cinciacticadasclassificaes(e da noodeclasse)ofereceumadasnicasoportunidadespararealmentesuperaros limitesinscritosnumatradiohistrica(conceitual,por exemplo);esseslimitesqueo pensadorabsolutoefetivaaoignor-Ios. descobrindosuaprpriahistoricidadequea razoobtmosmeiosparaescapar histria.

    p - O que interessante verno desenvolvimentodesuateoriaumapesquisatericade suasreaesao meioemqueosenhorestinserido.

    R. - Foi dessepontode vistaqueescolhicontarmeuiti-nerrio,ou seja, tentandoforneceros elementospara uma

    anlisesociolgicado desenvolvimentode meutrabalho.Se ofiz, tambmporquepensoqueessaespciede auto-anlisefazpartedascondiesdedesenvolvimentodo meupensamen-to. Sepossodizero quedigohoje,comcerteza porquesem-pre utilizeia sociologiacontraminhasdeterminaese meuslimitessociais;e especialmentepor transformaros estadosdeesprito,as simpatiase as antipatiasintelectuaisque so, euacho,toimportantesnasescolhasintelectuais,emproposiesconscienteseexplcitas.

    Masa posturaquesuaperguntamefazadotar- a daauto-biografiaintelectual- fazcomqueeu sejalevadoa selecionardeterminadosaspectosda minhahistria,quenosonecessa-riamenteos maisimportantesou os maisinteressantes,mesmoemtermosintelectuais(penso,por exemplo,no quelhe dissesobrea pocaemqueeraestudantee sobrea EscolaNormal).Mas,sobretudo,issomelevadeceltaformaa racionalizartantoo desenrolardosacontecimentosquantoo significadoqueelestiveramparamim.Nemquefosseporumaespciedepontodehonraprofissional.Nem precisodizer que muitascoisasquedesempenharamum papel determinanteem meu "itinerriointelectual"caramsobremim por acaso,Minha contribuioprpria,comcertezaligadaa meubabitus,consistiuessencial-menteemtirarpartidodelas,bemou mal(penso,porexemplo,que aproveiteimuitasocasiesquemuitaspessoasteriamdei-

    .xadopassar).Alm disso,a viso estratgicaque suas perguntasme

    impem,convidando-mea mesituaremrelaoa outrostraba-lhos,nodeveesconderqueo verdadeiroprincpio,pelo me-nos ao nvelda experincia,do meuenvolvimentode corpoealma,meiolouco,coma cincia, o prazerdejogar,e de jogarumdosjogosmaisextraordinriosquepodemserjogados- ojogo da pesquisana formaqueelaadquirena sociologia.Paramim,a vidaintelectualestmaisprximadavidade artistadoque as rotinasde umaexistnciaacadmica.No possodizer,como Proust:"Freqentementeme deitavacedo..." Mas essasreuniesde trabalhoque costumavamterminarem horasina-creditveis,primeiroporquenosdivertamosmuito,estoentreos melhoresmomentosde minhavida.E tambmseriaprecisomencionara felicidadedessasentrevistasque, comeandos

  • 40 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 41

    dez horasda manh,prolongam-sedurantetodo o dia; e aextremadiversidadedeumtrabalhoemquesepode,namesmasemana,entrevistarumpatroou umbispo,analisarumasriede quadrosestatsticos,consultardocumentoshistricos,obser-varumaconversade bar,ler artigostericos,discutircomou-trospesquisadores,etc.Eu no teriagostadode batercartodiariamentena BibliotecaNacional.Pensoqueo quedcoesoao grupoque venhocoordenandoh anos esseentusiasmoditocomunicativo,e quesesituaparaalmdadistinoentreosrioe o frvolo,entreo devotamentomodestoa "trabalhoshumildese fceis",que muitasvezesa universidadeidentificacoma seriedade,e a ambiomaisou menosgrandiosaquelevaa borboletearem tornodos grandestemasdo momento.Comopossodizer?A questono escolherentrea liberdadeiconoclastae inspiradano grandejogo intelectuale o rigormetdicoda pesquisapositiva,ou mesmopositivista(entreNietzschee Willamovitz,se quisermos),entreo investimentototalnasquestesfundamentaise o distanciamentocrticoasso-ciadoa umavastainformao'positiva(HeideggercontraCas-sirer,porexemplo).Masnovalea penaprocurartolonge:detodosos trabalhosintelectuais,o de socilogo certamenteoque eu podia fazercom felicidade,em todosos sentidosdapalavra- pelomenos,assimespero.O quenoexclui,muitoaocontrrio,por causadasensaodeprivilgio,dedvidanopaga,um enormesentimentode responsabilidade(ou mesmodeculpa).Masnoseisedeveriaestardizendoessascoisas...

    P. - A capacidadede falardessascoisasdependede suaatualposio?

    R. - Semdvida.A sociologiaconfereumaextraordinriaautonomia,sobretudoquandono utilizadacomoumaarmacontraos outrosou como instrumentode defesa,mascomoumaarmacontrasi mesmo,como instrumentode vigilncia.Mas,ao mesmotempo,parasercapazde utilizara sociologiaato fim, semse protegerem excesso,certamente precisoestarnumaposiosocialem quea objetivaonosejainsu-portveL

    p. - O senhorfezum reportda sociognesede seuscon-

    ceitos,e issonosdeuumavisoglobaldo desenvolvimentodateoriaquetentaestudaraslutassimblicasnasociedade,desdeas sociedadesarcaicasatas nossassociedades.Agora,o se-nhorpoderiadizerqualfoi o papeldesempenhadopor Marx,por Weber,na,gneseintelectualde seusconceitos?O senhorse consideramarxistaquandofala de luta simblica,ou seconsideraweberiano?

    R. - Nuncapenseinessestermos.E costumonorespon-der a essasperguntas.Primeiro,porque,em geral,elasquasesempreso feitas- sei que no o seu caso- com umaintenopolmica,classificatria,paracatalogar,kathegoresthai,acusarpublicamente:"Bourdieu,no fundo,durkheimiano".Oque,do pontodevistade quemdiz isso, pejorativo;significa:ele no marxista,e isso mau.Ou ento:"Bourdieu mar-xista",e isso mau.Trata-sequasesemprede reduzir,ou dedestruir.ComoquandomeperguntamhojesobreminharelaocomGramsci- emquemencontram,comcertezaporquemeleram,muitascoisasques pudeencontrarporque noo tinhalido... (O maisinteressanteem Gramsci,que de fatoli muitorecentemente,soos elementosqueele forneceparaumaso-ciologiado homemde aparelhode partidoe do campodosdirigentescomunistasde suapoca- e tudo issoestmuitolonge da ideologiado "intelectualorgnico"pela qual ele maisconhecido.)Detodomodo,a resposta perguntadesaberseumautor marxista,durkheimianoou weberianonoacres-centapraticamentenenhumainformaosobreesseautor.

    Acho inclusiveque um dos obstculosao progressodapesquisa essefuncionamentoclassificatriodo pensamentoacadmico- e poltico -, que muitasvezesembaraaainvenointelectual,impedindoa superaode falsasantino-miase de falsasdivises.A lgicado rtuloclassificatrioexatamentea mesmado racismo,queestigmatiza,aprisionandonumaessncianegativa.Emtodocaso,elaconstitui,a meuver,o principalobstculoao quemeparecesera relaoadequadacomos textose pensadoresdo passado.De minhaparte,man-tenhocomos autoresumarelaomuitopragmtica:recorroaeles como "companheiros",no sentidoda tradioartesanal,comoalguma quemse podepedirumamonassituaesdifceis.

  • 42 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 43

    P. - Issomelembraa palavra&ricolage,queLvi-Straussempregava:quandotemum problema,o senhorutilizatodasasferramentasquelheparecemteise utilizveis.

    R. - Que seja.Masa Realpolitikdo conceitoque praticono funcionasemumalinha tericaque permitaescapardoecletismopuro e simples.Pensoque s se podealcanarumpensamentorealmenteprodutivosob a condiode se cons-truiros meiosparaalcanarum pensamentorealmenterepro-dutivo.Parece-meque um pouco isso o que Wittgensteinqueriasugerir,nas VermiscbteBemerkungen,quandodiziaquenuncatinhainventadonada,que tudolhe chegarade um ou-tro,Boltzmann,Herz,Frege,Russell,Kraus,Loos,etc.Eu pode-ria apresentaruma enumeraosemelhante,e com certezamaislonga.Os filsofosestomuitomaispresentesem meutrabalhodo quesoucapazde dizer,muitasvezespor medopeparecerque estou pagandotributo ao ritual filosfico dadeclaraode fidelidadegenealgica.Alm disso, eles noestopresentesno meutrabalhosob as formasnormais... Apesquisasociolgicatal comoa concebo tambmum bomterrenoparafazero queAustinchamavadefieldworkin pbi-losopby.

    A propsito, gostaria de aproveitarpara corrigir aimpressoquepossoterdadode discordarda obrade Austinemmeustrabalhossobrea linguagem.De fato,seAustinfosserealmentelido,elequecertamente umdosfilsofosquemaisadmiro,ficariaclaroqueo essencialdo quetenteireintroduzirno debatesobreo performativoj haviasidoditopor ele,ousugerido.Eu visavana verdadeas leiturasformalistasquereduziramas indicaesscio-lgicasde Austin (na minhaopinio,elefoi tolongequantopodia)a anlisesde pural-gica;que, como freqentena tradiolingstica,no pa-raramantesde teremesvaziadoo debatelingsticode todososfatoresexternos,comoSaussurehaviafeito,mas,nestecaso,demodoabsolutamenteconsciente.

    P.- Comosedoessesachados?O queo fazbuscarumdeterminadoautor?

    R. - "Quemprocura,acha",comodiz o sensocomum,mas,evidentemente,noseperguntaqualquercoisaa qualquer

    um.... o papelda culturaapontaros autoresem quese tempossibilidadede encontrarajuda.Existeumsensofilosficoque semelhantea umsensopoltico...A cultura essaespciedesabergratuito,para todosos fins, que se adquireem geralnumaidadeemqueaindanosetmproblemasparacolocar.Pode-sepassara vidaa aument-Ia,cultivando-apor si mesma.Ou, ento,pode-seus-Iacomoumaespciede caixade ferra-mentas,quaseinesgotvel.Os intelectuaissopreparadospelalgicade suaformaoparatratarasobrasherdadasdo passa-do comoumacultura,isto, comoumtesouroquesecontem-pla,quesevenera,quesecelebra- e quepor issomesmoosvaloriza-, emsuma,comoumcapitaldestinadoa serexibidoe a produzirdividendossimblicos,ou simplesgratificaesnarcisistas,e nocomoumcapitalprodutivoquese investenapesquisa,para produzir resultados.Essa viso "pragmtica"pode parecerchocante,a tal pontoa culturaestassociadaidiade gratuidade,de finalidadesemfim. E certamenteeraprecisoterumarelaoumpoucobrbaracom a cultura- aomesmotempomais"sria",mais"interessada"e menosfascina-da, menosreligiosa- paratrat-Iaassim,especialmentenocasoda culturapor excelncia,a filosofia.Essarelaosemfetichismocom autorese textoss foi reforadapela anlisesociolgicada cultura- quese tomoupossvel,comcerteza,por causadela.De fato,essarelaocertamente inseparvelde uma representaodo trabalhointelectualpouco comumentreos intelectuais,queconsisteemconsideraro trabalhointe-lectualcomoum trabalhoigualaos outros,anulandotudo oque a maioriados aspirantesa intelectualse senteobrigadaafazerparase sentirintelectual.H, em todaatividade,duasdimenses,relativamenteindependentes:a dimensopropria-mentetcnicae a dimensosimblica,espciedemetadiscursoprticopeloqualaquelequeage- o casodo aventalbrancodo cabeleireiro- capazde mostrare de fazervalerdetermi-nadaspropriedadesnotveisde sua ao.Isso tambmvaleparaas profissesintelectuais.Reduzira parcelade tempoeenergiaconsagradosao showsignificaaumentarconsideravel-menteo rendimentotcnico;mas,num universoem que adefiniosocialdaprticaimplicaumaparceladesbow,de epi-deixis,comodiziamos pr-socrticos,queeramentendidosnis-

  • 44 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 45

    so,significatambmexpor-sea perderos lucrossimblicosdereconhecirriemoque estoassociadosao exerccionormaldaatividadeintelectual.E como fato,emcontrapartida,dequeasconcesses,mesmoas maislimitadase controladas,ao showbusiness,quetemumaparticipaocadavezmaiorno ofciodeintelectual,implicamriscosdetodaordem.

    Ditoisto,gostariadevoltar questoinicialsobrea relaocomos autorescannicose procurarrespondera elareformu-lando-a,de um modoqueelamepareaperfeitamenteaceit-vel, ou seja, transformando-ana questo,fundamental,doespaotericoem queumautorse situaconscientee incons-cientemente.A funoprimeiradeumaculturaterica(quenosemedepelonmerodejootnotesqueacompanhamos textos) permitirque se leve explicitamenteem contaesseespaoterico,isto , o universodas posiescientificamenteperti-nentesnumdadoestgiodo desenvolvimentoda cincia.Esseespaodastomadasde posiocientficas(e epistemolgicas)semprecomandaas prticas,ou emtodocasosuasignificaosocial,quersaibamosou nodisso- e com certezatantomaisbrutalmentequantomenoso sabemos.E a tomadade cons-cinciadesseespao,isto, da problemticacienrtficacomoespaodospossveis, umadascondiesprimeirasparaumaprticacientficaconscientede si mesma,logo,controlada.Osautores- Marx,Durk:heim,Weber,etc.- representampontosde refernciaqueestruturamnossoespaotericoe nossaper-cepodesseespao.A dificuldadedaescritasociolgicavincu-la-seao fatode que precisolutarcontraascoeresinscritasno espaotericoemdadomomento- e sobretudo,no meucaso,contraasfalsasincompatibilidadesqueelastendema pro-duzir.Isso mesmosabendoque o produtodessetrabalhoderupturaserpercebidoatravsde categoriasdepercepoque,estandoajustadasao espaotransformado,tenderoa reduziraconstruopropostaa um dos termosdasoposiesque elasupera.

    P. - Porquetudoissoestemjogo...R. - Efetivamente.Todotrabalhode superaodasoposi-

    escannicas(entreDurkheime Marx,porexemplo,ou entreMarxe Weber)estsujeito regressopedaggicaou poltica

    (e uma das principaiscoisasque estoem jogo evidente-menteo usopolticode autorese conceitos).O exemplomaistpico a oposio,absolutamenteabsurdaemtermoscientfi-cos, entreindivduoe sociedade,oposioque a noo dehabitusenquantosocial incorporado,logo, individuado,visasuperar.Pormaisquesefaa,a lgicapolticarelanareterna-mentea questo:bastanaverdadeintroduzira polticano cam-po intelectualparafazercomqueexistaumaoposio,questemrealidadepoltica,entrepartidriosdo indivduo("indivi-dualismometodolgico")e partidriosda "sociedade"(cataloga-doscomo"totalitrios").Essapressoregressiva toforteque,quantomaisa sociologiaavanar,maisdifcilserestar alturada heranacientfica,acumularrealmenteasaquisiescoleti-vasdacinciasocial.

    P. - Emseutrabalho,o senhornod nenhumespaoanormasuniversais,aocontrriodeHabermas,porexemplo.

    R. -'- Tenhotendnciaa colocaro problemadarazoe dasnormasde maneiradecididamentehistoricista.Ao invsde meinterrogarsobrea existnciade "interessesuniversais",eu per-guntaria:quemteminteresseno universal?Ou ento:quaissoascondiessociaisquedevemserpreenchidasparaquedeter-minadosagentestenhaminteresseno universal?Comosecriamcertoscamposemqueos agentes,satisfazendoseusinteressesparticulares,contribuampor a mesmoparaproduziro univer-sal(pensono campocientfico)?Ou camposondeosagentessesentemobrigadosa semostrardefensoresdo universal(comoocampointelectualem certastradiesnacionais- por exem-plo, na Franade hoje)?Em suma,em determinadoscampos,numdeterminadomomentoe por um determinadotempo(ouseja,demaneiranoirreversvel),hagentesquetminteressesno universal.Creioque precisolevaro historicismoao limitemximo,por umaespciede dvidaradical,paraver o querealmentepodesersalvo.Pode-se, claro,adotarlogodeincioa razouniversal.Mas creioquevalemaiscoloc-Iaem jogotambm,aceitardecididamenteque a razosejaum produtohistricocujaexistnciae persistnciasoprodutosde umtipodeterminadode condieshistricas,e determinarhistorica-menteo que so essascondies.H umahistriada razo;

  • 46 PIERRE BOURDIEU "FIELDWORK IN PHILOSOPHY" 47

    issonoquerdizerquea razose reduza suahistria,masqueexistemcondieshistricasparao surgimentodasformassociaisdecomunicaoquetomampossvelaproduodaver-dade.A verdade umjogode lutasemtodocampo.O campocientficoquetenhachegadoa um altograude autonomiatemessaparticularidadeque o fatodes termosalgumapossibili-dadede triunfarnelesoba condiode nosconformarmossleis imanentesdessecampo,isto, reconhecerpraticamenteaverdadecomo valore respeitaros princpiose os cnonesmetodolgicosquedefinema racionaldadeno momentocon-siderado,bemcomode investirnaslutasdeconcorrnciatodosos instrumentosespecficosacumuladosno decorrerdas lutasanteriores.O campocientfico um jogo em que precisomunir-sede razoparaganhar.Semproduzirou atrairsuper-homens,inspiradospor motivaesradicalmentediferentesdaquelasdos homenscomuns,ele produze encoraja,por sualgicaprpria,e margemde qualquerimposionormativa,formasde comunicaoparticulares,comoa discussocompe-titiva,o dilogocrtico,ete.,quetendema favorecerde fatoaacumulaoe o controledo saber.Dizerqueh condiesso-ciaisparaa produoda verdadesignificadizerque h umapolticadaverdade,umaaodetodosos instantesparadefen-dere melhoraro funcionamentodosuniversossociaisondeseexercemosprincpiosracionaise ondesegeraaverdade.

    P. - Natradioalem,existeesSavontadede justificar,defundamentar,essapreocupaode justificara crtica,comoemHabermas:h umpontoestvel,umfundamento,capazdejus-tificartodosos meuspensamentos,umpontoquetodomundodevereconhecer?

    R. - Pode-secolocaressaquestode umavez por todas,nocomeo.Emseguida,consider-Iaresolvida.Deminhaparte,creioque precisocoloc-Iade maneiraemprica,histrica.Comcerteza,isso um poucodecepcionante,porquemenos"radical"... Identificar-secoma razo umaposiomuitoten-tadoraparaqualquerpensador.Naverdade, precisoarriscaraprpriaposio de pensadoruniversalpara se ter algumachancede pensarde modoum poucomenosparticular.Quan-do,no meultimolivro,pretendoobjetivara universidade,uni-

    versode quefaopartee ondeseafirmamtodasaspretensOes universalidade,exponho-me,maisdo que nunca, questodo fundamento,da legitimidadedessatentativade objetivao.Essaquestoquenuncamecolocamquandoestoufalandodoscabilas,dosbeamesesou dosdiretoresde indstria, imediata-mentecolocadano momentoem que pretendoobjetivarosprofissionaisda objetivao.Tentocolocara questodo funda-mentoem termosquasepositivistas:quaissoas dificuldadesparticularesque encontramosquandose quer objetivarumespaono qualestamosincludos,e quaissoascondiespar-ticularesque precisopreencherparater chancesde super-Ias?E descubroque o interesseque se pode ter em objetivarumuniversodequesefazparte uminteressepeloabsoluto,a aspiraosvantagensassociadas ocupaode um pontode vistaabsoluto,norelativizvel.O mesmoqueseatribuaopensadoraspiranteaopensamentoautofundador.Descubroquealgumse tomasocilogo,terico,parater o pontode vistaabsoluto,a tbeoria;e que,enquantopermanecerignorada,essaambiorgia,divina, um formidvelprincpiode erro.Demodo que paraescapar,por pouco que seja,do relativo,absolutamentenecessrioabdicardapretensoaosaberabsolu-to, renunciar coroade filsoforei. E descubrotambmque,num campo,em determinadomomento,a lgicado campoconstitui-sede tal modo que determinadosagentestm inte-resseno universal.E, devodizer,pensoqueeste o meucaso.Mas o fato de saberdisso,de saberque invistona minhapesquisapulsespessoais,ligadasa todaa minhahistria,medumapequenachancedeconheceros limitesdeminhaviso.Em suma,o problemado fundamentono podesercolocadoemtermosabsolutos: umaquestodegrau,e possvelcons-truirinstrumentosparasair,ao menosemparte,do relativo.Omaisimportantedessesinstrumentos a auto-anlise,entendidacomoconhecimentonoapenasdo pontodevistado cientista,mastambmde seus instrumentosde conhecimentono queestestmde historicamentedeterminado.Assim,a anlisedauniversidadena suaestruturae suahistria a maisfecundadasexploraesdo inconsciente.Consideroquetereicumpridobemmeucontratode "funcionriodahumanidade",comodiziaHusserl,seconseguirfortalecerasarmasdacrticareflexivaque

  • 48 PIERRE BOURDIEU

    todopensadordeveapontarcontrasi mesmo,parateralgumachancede ser racional.Mas,comovocv, sempretendoatransformaros problemasfilosficosemproblemasprticosdepolticacientfica:e confirmoassima oposioqueMarxfazia,no Manifesto,entreos pensadoresfranceses,quesemprepen-sam politicamente,e os pensadoresalemes,que colocamquestesuniversaisabstratas"sobrea realizaoda naturezahumana"...

    Pontosde referncia*

    P. - Na sociologiaatualcoexistemvrias"escolas",comparadigmase mtodosdiferentes,cujosadeptospor vezessecontestamviolentamente.Em seustrabalhos,o senhortentasuperaressasoposies.Pode-sedizerque o desafiode suaspesquisasestem desenvolveruma snteseque leve a umanovasociologia?

    R. - A sociologiaatualestrepletade falsasoposies,que meutrabalhomelevacomfreqnciaa superar,semqueeu adoteessasuperaocomo projeto.Essasoposiessodivisesreaisdo camposociolgico;elastmum fundamentosocial,masnenhumfundamentocientfico.Tomemosas maisevidentes,comoa oposioentretericose empiristas,ou entresubjetivistase objetivistas,ou aindaentreo estruturalismoe cer-tas formasde fenomenologia.Todas essasoposies(e hmuitasoutras)parecem-meabsolutamentefictciase ao mesmotempoperigosas,porqueconduzema mutilaes.O exemplomaistpico a oposioentreumaabordagemque se podechamarde estruturalista,quevisaapreenderrelaesobjetivas,independentesdas conscinciase das vontadesindividuais,comodiziaMarx,e umaposturafenomenolgica,interacionistaou etnometodolgica,quevisaapreendera experinciaqueosagentesrealmentetmnasinteraes,noscontatossociais,e acontribuioquetrazem construomentale prticadasreali-dadessociais.Muitasdessasoposiesdevemem partesua

    Entrevistacom]. Heilbrone B. Maso,publicadaemholandsemSociolo-gischTijdschrift,Amsterdan,X, 2,outubrode 1983.

  • 50 PIERRE BOURDIEU PONTOS DE REFERNCIA 51

    existnciaao esforoparaconstituircomoteoriaposturasli-gadas possede diferentesespciesde capitalcultural.A so-ciologia,no seuestadoatual, umacinciacomumaambiomuitoampla,e asmaneiraslegtimasdepratic-Iasoextrema-mentediversas.Sobo nomede socilogo,pode-sefazercoexis-tir pessoasquefazemanlisesestatsticas,queelaborammode-los matemticos,quedescrevemsituaesconcretas,etc.Todasessascompetnciasraramenteestoreunidasem um nicohomem,e umadasrazesdasdivisesquesetendea constituircomooposiestericas o fatode os socilogospretenderemimporcomonicamaneiralegtimade fazersociologiaaquelaquelhes maisacessvel.Quaseinevitavelmente"parciais",elestentamimpor uma definioparcial de sua cincia:pensonaquelescrticosquefazemum usorepressivoou castrador dareferncia empiria(quandoeles mesmosno praticamapesquisaemprica)e que, aparentementevalorizandoas pru-dnciasmodestasemdetrimentodasaudciasdostericos,bus-camna epistemologiado ressentimento,que sustentaa me-todologiapositivista,justificativasparadizerque no se devefazero queelesmesmosnosabemfazere paraimporaosou-trosseusprprioslimites.Em outrostermos,pensoque umaboa partedos trabalhosditosde "teoria"ou de "metodologia"soapenasideologiasjustificadorasdeumaformaparticulardecompetnciacientfica.E umaanlisedo campoda sociologiacertamentemostrariaque h uma estreitacorrelaoentreotipode capitalde quedispemos diferentespesquisadorese aformadesociologiaqueelesdefendemcomoa nicalegtima.

    P. - nessesentidoqueo senhordiz quea sociologiadasociologia umadascondiesprimeirasdasociologia?

    R. - Sim,masa sociologiada sociologiatambmtemou-trasvirtudes.Por exemplo,o princpiosimplessegundoo qualtodoocupantede umaposioteminteresseem perceberoslimitesdosocupantesdasoutrasposies,permitetirarproveitodacrticade quesepodeserobjeto.Se omarmoscomoexem-plo asrelaesentreWebere Marx,quesosempreestudadosacademicamente,pode-sev-Iasde outramaneirae perguntardequemodoe porqueumpensadorpermitequesepercebaaverdadedo outro,e vice-versa.A oposioentreMarx,WebereDurkheim,tal comoela ritualmenteinvocadanos cursosedissertaes,mascarao .fatode que a unidadeda sociologia

    talvezestejanesseespaodeposiespossveis,cujoantagonis-mo, apreendidoenquantotal, propea possibilidadede suaprpriasuperao. evidente,por exemplo,queWeberviu oque Marxno via, mastambmque Weberpde ver o queMarx no via porqueMarxviu o que viu. Umasdasgrandesdificuldadesemsociologia que,commuitafreqncia, pre-ciso inscreverna cinciaaquilocontrao que foi construda,numprimeiromomento,averdadecientfica.Contraa ilusodoEstadorbitro,Marxconstruiua noodo Estadocomoinstru-mentode dominao.Mas, contrao desencantamentoque acrticamarxistaopera, precisoseperguntar,comWeber,comoo Estado,sendoo que, consegueimporo reconhecimentodesua dominao,e se no necessrioinscreverno modeloaquilocontrao quese construiuo modelo,isto, a represen-taoespontneado Estadocomolegtimo.E pode-seoperar amesmaintegraode autoresaparentementeantagnicosapropsitoda religio.No por gostodo paradoxoque eudiriaqueWeberrealizoua intenomarxista,nomelhorsentidodo termo,emterrenosqueMaIXnoa tinhaconcretizado.Pen-so emparticularnasociologiareligiosa,queestlongedeseroponto forte de Marx. Weberfez uma verdadeiraeconomiapolticada religio;maisexatamente,ele .deutodaa foraanlisematerialistado fatoreligioso,semdestruiro carterpro-priamentesimblicodo fenmeno.Quando ele coloca,porexemplo,que a Igrejase definepelo monoplioda manipu-laolegtimadosbensde salvao,longede procedera umadessastransfernciaspuramentemetafricasda linguagemeconmicaquese praticoumuitona Frananosltimosanos,eleproduzumefeitode conhecimentoextraordinrio.Essetipode exercciopodeserfeitonos emrelaoao passado,mastambmemrelaoa oposiespresentes.Comoacabode di-zer,todosocilogoteriainteresseemouvirseusadversrios,namedidaemqueestestminteresseemvero queelenov,oslimitesdesuaviso,quepordefiniolheescapam.

    P. - H anos,a "criseda sociologia"foi um temaprivile-giadoentreos socilogos.Aindarecentemente,assinalou-sea"explosodo meiosociolgico".Emquemedidaessa"crise"umacrisecientfica?

  • 52 PIERRE BOURDIEU PONTOS DE REFERNCIA 53

    R. - Parece-meque a situaoatual,que de fatomuitasvezes descritacomosituaode crise, inteiramentefavor-velao progressocientfico.Pensoquea cinciasocial,porumapreocupaode respeitabilidade,paraconsiderar-see sercon-sideradaumacinciacomoas outras,elaborouum falso"pa-radigma".Quer dizer que, finalmente,a espciede alianaestratgicaentreColmbiae Harvard,o tringuloParsons,Mer-ton e Lazarsfeld,sobreo qualrepousouduranteanosa ilusode umacinciasocialunificada,espciede holding intelectualque conduziuumaestratgiade dominaoideolgicaquaseconsciente,desmoronou,e achoqueisso um progressocon-sidervel.Paraverificarisso,bastariaverquemserevoltacontraa crise.Na minhaopinio,so aquelesque foramos benefi-ciriosdessaestruturamonopolstica.Valedizer,em qualquercampo- no camposociolgico,comoemtodosos outros-humalutapelomonoplioda legitimidade.Um livrocomoodeThomasKuhnsobreasrevoluescientficasteveo efeitodeumarevoluoepistemolgicaaos olhosde certossocilogosamericanos(o queabsolutamenteno foi, na minhaopinio),porque serviu como instrumentode luta contraesse falsoparadigmaque um determinadonmerode pessoas- colo-cadasem posiointelectualmentedominantedevido domi-naoeconmicadesuanaoe desuaposiono campouni-versitrio- haviaconseguidofazercomquefossereconhecidoemlargaescalano mundo.

    Seriaprecisoanalisardetalhadamentea divisodo trabalhodedominaoqueseinstitura.Havia,porumlado,umateoriaeclticabaseadanuma reinterpretaoseletivada heranaeuropiae destinadaa fazercom que a histriadas cinciassociaiscomeassenosEstadosUnidos.De certomodo,Parsonsfoi,paraatradiosociolgicaeuropia,o queCcerofoi paraafilosofiagrega:ele pegaos autoresde origeme os retraduznumalinguagemumpoucofrouxa,produzindoumamensagemsincrtica,umacombinaoacadmicade Weber,DurkheimePareto- evidentementenode Marx.Por outrolado,haviaoempirismovienensedeLazarsfeld,umaespciedeneopositivis-mo de visocurta,relativamentecegono planoterico.Entreos dois,Mertonofereciapequenosajustesescolares,pequenassntesessimplese claras,com suasteoriasde mdioalcance.

    Eraumaverdadeirapartilhade competncias,no sentidojurdi-co do termo.E tudo isso formavaum conjuntosocialmentemuito poderoso,que podia fazercrer na existnciade um"paradigina",comonascinciasda natureza.Aqui intervmoque chamode "efeitoGerschenkron":Gerschenkronexplicaqueo capitalismonuncatevenaRssiaa formaquetomouemoutrospases,pelosimplesfatodetercomeadocomumcertoatraso.Grandepartedascaractersticase dificuldadesdascin-ciassociaisdeve-seao fato de que tambmelascomearambem depoisdas outras,de modo que, por exemplo,elaspodemutilizarconscienteou inconscientementeo modelodascinciasmaisavanadasparasimulara cientificidade.

    Nosanos1950-1960,simulou-sea unidadedacincia,comoses houvessecinciaquandohunidade.A sociologia criti-cadapor serdispersa,conflitual.E de talmodosefezcomqueos socilogosinteriorizassema idiade quenosocientistasporqueestoemconflito,controversial,queelestma nostal-gia dessaunificao,verdadeiraou falsa.Na verdade,o falsoparadigmada costalestedos EstadosUnidoseraumaespciede ortodoxia...Ele simulavaa communisdoctorumopinio,queno prpriadacincia,sobretudono seuincio,masde umaIgrejamedievalou deumainstituiojurdica.Emmuitoscasos,o discursosociolgicodosanos50a 60conseguiua proezadefalardo mundosocialcomosenofalassedele.Eraumdiscur-so de denegao,no sentidofreudiano,que respondiademandafundamentaldos dominantesemmatriade discursosobreo mundosocial,que umademandade distanciamento,de neutralizao.Bastaler asrevistasamericanasdosanos50:metadedosartigosconsagrava':'se anomia,svariaesempri-cas ou pseudotericassobre os conceitosfundamentaisdeDurkheim,etc.Era umaespciede disparate.escolare vaziosobreo mundosocial,compouqussimomaterialemprico.Emparticular,o que me impressionava,em autoresmuito dife-rentes,era o uso de conceitosnemconcretosnemabstratos,conceitosque s podemser compreendidosquandose temumaidiado referenteconcretoquetmemmenteaquelesqueos empregam. Elespensavamjet sociologiste diziam"profes-sor universalista".A irrealidadedo discursoatingiaas alturas.Felizmente,haviaexcees,como a escolade Chicago,que

  • 54 PIERRE BOURDIEU . PONTOS DE REFERNCIA 55

    falavados slums,de StreetComerSociety,descreviabandoseos meioshomossexuais,emsuma,meiose pessoasreais...Mas,no pequenotringuloParsoo:s-Lazarsfeld-Merton,no se vianada.

    Assim,paramim,a "crise"de quesefalahoje a crisedeumaortodoxia,e a proliferaodasheresias, em minhaopi-nio,umprogressoemdireo cientificidade.No por aca-so que a imaginaocientficase viu liberadae que todasaspossibilidadesque a sociologiaofereceestejamnovamenteabertas.Agoraest-senovamenteenfrentandoum campocomlutasquetmalgumapossibilidadedesetomaremlutascientfi-cas,isto,confrontosregradosdetalmodoque,paratriunfar,precisosercientfico:nosermaispossveltriunfarunicamentedissertandode modo vago sobre ascriptionlachievementesobrea anomia,ou apresentandoquadrosestatsticosteorica-mente,logo,empiricamentemalconstrudossobrea "alienao"dosworkers.L..l

    P. - Na sociologia,h uma tendnciamuitoacentuadaparaa especializao,s vezesexcessiva.Isso tambm umaspectodo efeitoGerschenkrondequeo senhoracabadefalar?

    R. - Perfeitamente.H um desejode imitaras cinciasavanadas,nas quais as pessoastm objetosde pesquisamuito precisose bem restritos. essaespecializaoexa-geradaque o modelopositivistaexalta,por umaespciedesuspeitaem relaoa toda ambiogeral,percebidacomoumvestgioda ambioglobalizanteda filosofia.Na verdade,ns aindaestamosnumafaseem que absurdoseparar,porexemplo,a sociologiada cultura.Como possvelfazerso-ciologiada literaturaou sociologiadacinciasemrefernciasociologiado sistemaescolar?Por exemplo,quandose fazumahistriasocialdos intelectuais,quasesemprese esquecede levarem contaa evoluoestruturaldo sistemaescolar,quepodeconduzira efeitosde "superproduo"de diploma-dos, imediatamenteretraduzidosno campointelectual,tantoao nvelda produo- por exemplo,com o surgimentodeuma"bomia"sociale intelectualmentesubversiva- quantoao nvel de consumo- com a transformaoquantitativaequalitativado pblicode leitores.Evidentemente,essaespe-

    cializaorespondetambma interesses. uma coisa bemconhecida:por exemplo,numartigosobrea evoluodo di-reito na Itliada Idade Mdia,Gerschenkronmostraque, apartir do momentoem que os juristasconquistaramumaautonomiaem relaoaos prncipes,cada um comeouadividir a especialidadede maneiraa seranteso primeiroemsua aldeia do que o segundoem Roma. Os dois efeitosreunidosfizeramcom que os juristasse especializassemexa-geradamente,comquefossedesqualificadaqualquerpesquisarelativamentegeral, esquecendo-seque nas cincias danatureza,atLeibniz,e mesmoatPoincar,os grandescien-tistaseramsimultaneamentefilsofos,matemticos,fisicos.

    P. - Comomuitossocilogos,o senhorno particular-menteindulgentecom os fJlsofos.No entanto,o senhorfazrefernciasfreqentesa filsofoscomo Cassirere Bachelard,queemgeralsonegligenciadospelossocilogos.

    R. - De fato,svezesdou umasalfinetadasnos filsofosporqueesperomuitoda fJlosofia.As cinciassociaisso aomesmotempomodosde pensamentonovos,s vezesdireta-menteconcorrentesda filosofia(pensoem todaa cinciadoEstado,da poltica,etc.)e tambmobjetosde pensamentoemquea fJlosofiapoderiaencontrarmatriaparareflexo.UmadasfunesdosfJlsofosda cinciapoderiasera de forneceraossocilogosinstrumentosparasedefenderemcontraa imposiode umaepistemologiapositivista,que um aspectodo efeitoGerschenkron.Porexemplo,quandoCassirerdescrevea gnesedo modode pensamentoe dosconceitosquesoempregadospelamatemticaou pelafsicamodernas,eledesmenteintegral-mentea visopositivista,mostrandoqueascinciasmaisavan-adass puderamseconstituir,e emdatamuitorecente,privi-legiandoasrelaese noassubstncias(comoasforasda f-sicaclssica).Ao mesmotempo,elemostraqueaquiloquenosoferecidosobo nomedemetodologiacientficaapenasumarepresentaoideolgicada maneiralegtimade fazera cinciaquenocorrespondeanadaderealnaprticacien(tfica.

    Outro exemplo.Acontece,sobretudona tradioanglo-saxnica,que se critiqueo pesquisadorpor utilizarconceitosque funcionamcomo "marcosindicadores"(signposts),que

  • 56 PIERRE BOURDIEU PONTOS DE REFERNCIA 57

    assinalamfenmenosdignosdeateno,masquesvezesper-manecemobscurose vagos,mesmoque sejamsugestivoseevocadores.Acho que algunsde meusconceitos(penso,porexemplo,no reconhecimentoe desconhecimento)entramnes-sacategoria.Em minhadefesa,poderiainvocartodosos "pen-sadores",toclaros,totransparentes,totranqilizadores,quefalaramdo simbolismo,da comunicao,da cultura,dasrelaesentreculturae ideologia,e tudoaquiloqueessa"obs-curaclareza"obscurecia,ocultava,recalcava.Mas eu poderiatambme sobretudoinvocaraquelesque,comoWittgenstein,falaramdavirtudeheursticadosconceitosabertose denuncia-ramo "efeitode fechamento"dasnoesmuitobemconstru-das,das "definiespreliminares"e outrosfalsosrigoresdametodologiapositivista.Maisumavez,umaepistemologiareal-menterigorosapoderialibertaros pesquisadoresdo efeitodeimposioexercidosobrea pesquisapor uma tradiome-todolgicaquecostumaserinvocadapelospesquisadoresmaismedocrespara "limaras unhasdos leezinhos",como diziaPlato,isto, paradiminuire depreciaras criaese as ino-vaesda imaginaocientfica.Assim,pensoque possvelterumaimpressode "impreciso"diantedecertasnoesqueforjei,se asconsiderarmoscomoprodutode um trabalhocon-ceitual,quandona verdademe empenheino sentidode faz-Iasfuncionaremanlisesempricas,emvezde deix-Ias"giraremfalso":cadaumadelas(penso,por exemplo,na noodecampo),numaformacondensada,umprogramadepesquisase umprincpiodedefesacontratodoumconjuntodeerros.Osconceitospodem- e,emcertamedida,devem- permanecerabertos,provisrios,o quenoquerdizervagos,aproximativosou confusos:todaverdadeirareflexosobrea prticacientficaatestaqueessaaberturadosconceitos,quelhesdum carter"sugestivo",logo,umacapacidadede produzirefeitoscientfi-cos(mostrandocoisasnovistas,sugerindopesquisasa seremfeitas,e noapenascomentrios), prpriade qualquerpen-samentocientficoque estejase formando,por oposiocinciaj formadasobrea qual refletemos metodlogosetodosos que inventamdepoisda batalharegrase mtodosmais prejudiciaisdo que teis. A contribuiode umpesquisadorpode consistir,em maisde um caso,em atraira

    atenoparaum problema,paraalgumacoisaque no eravista porqueevidentedemais,clara demais,porque,comodizemosemfrancs,"saltavaaosolhos".Por exemplo,os con-ceitosde reconhecimentoe desconheciment0.rnram.introduzi-dos no comeoparanomearalgumacoisaque estausentedasteoriasdo poder,ou apenasdesignadade maneiramuitogrosseira(o podervemde baixo,etc.).Elesdesignamefetiva-menteumadireode pesquisa.Assim,concebomeutrabalhosobrea formaqueo poderadquirenauniversidadecomoumacontribuio anlisedos mecanismosobjetivose subjetivosatravsdosquaisse exercemos efeitosde imposiosimbli-ca, de reconhecimentoe desconhecimento.Uma de minhasintenes,nouso que fao dessesconceitos, abolira dis-tinoescolarentreconflitoe consenso,que nos impededepensartodasassituaesreaisemquea submissoconsensualserealizano e peloconflito.Comoentopoderiammeatribuirumafilosofiado consenso?Seibemqueos dominados,atnosistemaescolar,se opeme resistem(eu torneiconhecidosnaFranaos trabalhosde Willis).Mas,numacertapoca,foramtdexaltadasas lutasdosdominados(a pontode a expresso"em luta"acabarfuncionandocomouma espciede eptetohomrico,passvelde seraplicadoa tudoo quesemove,mu-lheres,estudantes,dominados,trabalhadores,etc.),queacabousendoesquecidaumacoisaque todosaquelesque viramdepertosabemperfeitamente,isto, que os dominadossodo-minadostambmem seu crebro. isso que querolembrarquando recorro a noes como reconhecimentoe desco-nhecimento.

    p. - O senhorinsisteno fatode quea realidadesocialde pontaa pontahistrica.Comoo senhorsesituaemrelaoaosestudoshistricos,e por queo senhorempregatopoucoumaperspectivadelongadurao?

    R. - No estadoatualda cinciasocial,a histriade longadurao, a meuver,umdoslugaresprivilegiadosda filosofiasocial.Entreossocilogos,issofreqentementedlugara con-sideraesgeraissobrea burocratizao,sobreo processoderacionalizao,sobrea modernizao,etc.,que trazemmuitasvantagenssociaisa seusautorese poucoproveitocientfico.Na

  • 58 PIERRE BOURDIEU PONTOS DE REFERNCIA 59

    verdade,parafazersociologiacomoeua concebo,seriapre-cisorenunciara essasvantagens.A histriaqueeuprecisariaparameutrabalhomuitasvezesnoexiste.Porexemplo,colo-co-menestemomentoo problemadainvenodoartistae dointelectualmodernos.Comoo artistae o intelectualtornam-sepoucoa poucoautnomos,conquistamsualiberdade?Pararesponderaessaquestodemodorigoroso,precisofazerumtrabalhoextremamentedifcil.O trabalhohistricoquedeveriapermitira compreensodagnesedasestruturastalcomoelaspodemserobservadasemumdadomomentonesseounaque-le campo muitodifcilde serrealizado,porquenonospodemoscontentarnemcomvagasgeneralizaesfundamen-tadasemalgunsdocumentosextradosdemodoerrticonemcompacientescompilaesdocumentriasou estatsticasqueemgeraldeixambrancosnoqueserefereaoessencial.Portan-to, evidentequeumasociologiaplenamenteacabadadeveriaenglobaruma histriadas estruturasque so num dadomomentoo resultadodetodoo processohistrico.Issosobpenadenaturalizarasestruturase detomar,porexemplo,uminventriodadistribuiodosbense serviosentreosagentes(penso,por exemplo,nasprticasesportivas,masa mesmacoisavaleriaparaasprefernciasemmatriadecinema)comoexpressodiretae, sepossodizer,"natural"dasdisposiesassociadassdiferentesposiesno espaosocial( issooque fazemaquelesque queremestabeleceruma relaonecessriaentre"classe"e umestilopictricoouumesporte).Trata-sedefazerumahistriaestruturalqueemcadaestadodaestruturaencontresimultaneamenteo produtodaslutasante-rioresparatransformaroucons