O Amanuense Belmiro - Cyro Dos Anjos

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CYRO DOS ANJOS O AMANUENSE BELMIROromance

7.a edio Nota biobibliogrfica Prefcio de Antnio Cndido

LIVRARIA JOS OLYMPIO EDITORARIO DE JANEIRO1971

Anjos, Cyro dos, 1906 O Amanuense Belmiro, romance- Prefcio de Antnio Cndido. 7.a ed., Rio de Janeiro, Editora Jos Olympio, 1971. Publicado em convnio com o Instituto Nacional do Livro MEC.

OBRAS DO AUTOR : O Amanuense BelmiroRomance1. edio, Editora "Os Amigos do Livro", Belo Horizonte, 1937; 2.", Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1938; 3., Saraiva S/A.. So Paulo, 1949; 4., "Livros do Brasil", Lisboa, 1955; 5.. revista (com a 3. de Abdias), Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1957; 6.a, na Coleo Sagarana, Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1966. NO ESTRANGEIRO: El Amanuense Belmiro Tezontle, Mxico, 1954. Carnevale a Belo Horizonte Fratelli Bocca Editori, Milo, Itlia. 1954. Abdias Romance Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1945; 2." edio. Saraiva S/A., So Paulo, 1956; 3.\ revista (com a 5. de O Amanuense Belmiro), Livraria Jos Olympio Editora, Rio, 1957. Exploraes no Tempo Crnicas (passou a integrar volume de memrias). Ministrio da Educao, Servio de Documentao, 1952. A Criao Literria EnsaioEdio da Revista Filosfica, Coimbra, Portugal, 1954; 2.' edio, Ministrio da Educao. Servio de Documentao, 1956: 3.", Livraria Progresso Editora. Bahia, 1959. Montanha Romance 1." edio, Rio de Janeiro, 1956; 2., 1956, ambas da Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro. O Amanuense BelmiroAbdiasreunidos em um s volume, 1. edio, Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro. 1957. Exploraes no TempoMemrias. Livraria Jos Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1963. Poemas CoronriosEdies de Arte, Universidade de Braslia, 1964.

O AMANUENSE BELMIRONOTA DA EDITORA..................................................................................................................................... ESTRATGIA (Prefcio de Antnio Cndido).............................................................................................. 1. MERRY CHRISTMAS!.............................................................................................................................. 2. O "EXCOMUNGADO"........................................................................................................................... 3. O BORBA ERRADO............................................................................................................................... 4. QUESTO DE OBSTETRCIA.............................................................................................................. 5. ANO-BOM............................................................................................................................................... 6. CARNAVAL............................................................................................................................................ 7. A DONZELA ARABELA........................................................................................................................ 8. O LUAR DE CARABAS TUDO EXPLICA. . ...................................................................................... 9. AS VELHAS............................................................................................................................................ 10. UMA CASA, NUMA RUA.................................................................................................................... 11. O AMANUENSE AMANDO EST..................................................................................................... 12. CONVERSAO COM JANDIRA...................................................................................................... 13. A CONFIDENCIA................................................................................................................................. 14. ANALGSICO, ETC............................................................................................................................. 15. MISSA DE TRIGSIMO DIA............................................................................................................... 16. UM SO JOO QUE VAI LONGE...................................................................................................... 17. QUE OS BORBAS ME PERDOEM...................................................................................................... 18. UM BAILE DAS MOAS EM FLOR................................................................................................... 19. IDIOTA, IDIOTA, IDIOTA................................................................................................................... 20. SILVIANO E O PROBLEMA FUSTICO........................................................................................... 21. UMA DATA IMPORTANTE................................................................................................................ 22. ONDE SE APRESENTA UM REVOLUCIONRIO........................................................................... 23. CHUVAS DE SETEMBRO................................................................................................................... 24. ANLISE ESPECTRAL DE CARMLIA............................................................................................ 25. GIOVANNI E PIETRO.......................................................................................................................... 26. NOVA CONVERSAO COM JANDIRA.......................................................................................... 27. IDIAS DA EMLIA............................................................................................................................. 28. PROBLEMAS DE PROLETRIA........................................................................................................ 29. UM ESPRITO REALISTA................................................................................................................ 30. A PROPSITO DE GLICRIO............................................................................................................. 31. UM DIA BEM-HUMORADO............................................................................................................... 32. OS ACONTECIMENTOS CONDUZEM OS HOMENS...................................................................... 33. RITORNELO.......................................................................................................................................... 34. "DESCULPEM A POEIRA".................................................................................................................. 35. FRANCISQUINHA PIORA................................................................................................................... 36. DE NOVO, CARMLIA........................................................................................................................ 37. O "PERREXIL"...................................................................................................................................... 38. PARABOSCO & FERRABOSCO LTDA............................................................................................. 39. NO INSTITUTO..................................................................................................................................... 40. CHOQUES............................................................................................................................................. 41. MATINADA........................................................................................................................................... 42. UM HOMEM SEM ABISMOS.............................................................................................................. 43. O VELHO BORBA. O SISTEMA BORBA.......................................................................................... 44. REDELVIM TEM, TAMBM, UM DIRIO....................................................................................... 45. EXTRAORDINRIAS DECLARAES DE GLICRIO.................................................................. 46. UM BELMIRO OCENICO................................................................................................................. 47. NENHUM DESEJO NESTE DOMINGO.............................................................................................. 48. FINADOS............................................................................................................................................... 49. JANDIRA SE MOSTRA PRUDENTE..................................................................................................

50. UMA SEMANA QUE PASSA.............................................................................................................. 51. J ANDAM JUNTOS PELA RUA....................................................................................................... 52. UMA EXTRAVAGNCIA DE FRANCISQUINHA........................................................................... 53. FORTALEZA DE EMLIA.................................................................................................................... 54. CASTOS AMORES............................................................................................................................... 55. REDELVIM VAI PRESO...................................................................................................................... 56. ENTRE LUNFAS................................................................................................................................... 57. PARA ALGUMA COISA SERVIRAM ESTAS NOTAS..................................................................... 58. O AMOR, PELO AMOR....................................................................................................................... 59. AINDA O NOIVADO............................................................................................................................ 60. O QUE SILVIANO ME FALOU........................................................................................................... 61. "RODA MORENA"............................................................................................................................... 62. NOVOS RUMOS DE JANDIRA........................................................................................................... 63. LUNFA DE PENOSA............................................................................................................................ 64. UM "FOGO"........................................................................................................................................... 65. E O CASAMENTO PARA J............................................................................................................ 66. TEMA PARA UMA ELEGIA................................................................................................................ 67. NOVA LUZ SOBRE SILVIANO.......................................................................................................... 68. UM PROCURADOR DE AMIGOS...................................................................................................... 69. ENTREVISTA COM REDELVIM........................................................................................................ 70. O HOMEM DO FUNIL.......................................................................................................................... 71. ONDE APARECE O "DOUTOR ANGLICO".................................................................................... 72. PERPLEXIDADE DE GLICRIO......................................................................................................... 73. MAIS UM NATAL................................................................................................................................ 74. SER NO DIA QUINZE....................................................................................................................... 75. NOVAS AQUISIES.......................................................................................................................... 76. ORA BOLAS.......................................................................................................................................... 77. EIS-ME NO RIO.................................................................................................................................... 78. O PROVIDENCIAL IRMO LUSO..................................................................................................... 79. PARTIDA............................................................................................................................................... 80. VOZES ATLNTICAS......................................................................................................................... 81. A VERDADE EST NA RUA ER...................................................................................................... 82. SEO DO FOMENTO ANIMAL....................................................................................................... 83. A VIDA SE ENCOLHE......................................................................................................................... 84. UM "VIRA-LATA"................................................................................................................................ 85. UM POUCO MENOS PESSIMISTA.................................................................................................... 86. SILVIANO E SEU PLANO DECENAL............................................................................................... 87. MOCIDADE........................................................................................................................................... 88. UM DIA COMO OS OUTROS.............................................................................................................. 89. NH BORBA......................................................................................................................................... 90. LAGOA SANTA.................................................................................................................................... 91. ESTO DE VOLTA............................................................................................................................... 92. AGRADEO-VOS OS SALPICOS....................................................................................................... 93. MUNDO, MUNDO................................................................................................................................ 94. LTIMA PGINA.................................................................................................................................

NOTA DA EDITORA DADOS BIOBIBLIOGRFICOS DO AUTOR CYRO VERSIANI DOS ANJOS, 13. entre os quatorze filhos do casal Antnio dos Anjos e Carlota Versiani dos Anjos, nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, a 5 de outubro de 1906. Reunido em torno da "mesa de pereiro branco", o cl Versiani dos Anjos, malgrado o ambiente rural e as longas distncias que o separavam dos mundos urbanos mais atingidos pelo progresso, no estava ausente do gosto pela arte e pela literatura. O patriarca da famlia, fazendeiro e professor, amava a leitura e o debate de idias, entretendo-se com o- latim tradicional entre mineiros e, ainda mais, com escritores e temas contemporneos. Dona Carlota, por sua vez, gostava de msica e na casa sertaneja no faltavam os acordes de Bach e Beethoven, ouvidos ao piano numa poca em que um Pleyel, para alcanar Montes Claros, tinha de fazer acidentada viagem de mais de 30 dias, em carro de bois. Aos 8 anos, j o futuro romancista deixava entrever visveis inclinaes literrias, rabiscando um jornalzinho manuscrito intitulado Horas Vagas, revelador ao mesmo tempo do embrio de jornalista que se formava e da disciplina infantil a que se submetia na vida cotidiana e familiar. Aos 10, Cyro dos Anjos j editava um jornal chamado O Civilista, estimulado por um amigo da famlia dono de tipografia, deixando ver a influncia poltica da primeira campanha de Rui Barbosa, de quem seu pai era ardoroso partidrio. Iniciando os estudos mdios na Escola Normal de Montes Claros, em cuja pequena biblioteca descobriu (aos 15 anos) Machado de Assis, Ea de Queiroz, Alexandre Herculano, Fialho e Camilo Castelo Branco, Cyro dos Anjos transferiu-se em 1924 para Belo Horizonte, onde concluiu o curso secundrio e o de Direito, bacharelando-se em 1932. Dedicando-se ao jornalismo, a fim de prover o prprio sustento, Cyro dos Anjos trabalhou nos jornais Dirio da Tarde (1927), Dirio do Comrcio (1929), Dirio da Manh (1929), e Dirio de Minas (1930). Em 1933, como redator de A Tribuna, publicou sob o pseudnimo de Belmiro Borba, as crnicas que foram o germe de O Amanuense Belmiro. Malograda tentativa de advocacia na cidade natal fez com que desistisse da profisso, voltando imprensa e ao servio pblico em Belo Horizonte- Em 1931 Cyro dos Anjos j era oficial de gabinete da Secretaria de Finanas de Minas Gerais, cargo que marcou o incio de uma carreira pblica onde sempre ocupou funes de destaque. Oficial de gabinete do Governo de Minas (1935-1938), Diretor

da Imprensa Oficial de Minas (1938-1940), Diretor do IPASE (1946-1951), Professor de Estudos Brasileiros nas Universidades do Mxico e Lisboa (1952-1955), Subchefe do Gabinete Civil da Presidncia da Repblica (1957-1960) e, finalmente, Conselheiro do Tribunal de Contas de Braslia, so as etapas que definem a carreira de Cyro dos Anjos no servio pblico estadual e federal, a que se acrescentam os ttulos de fundador da Faculdade de Filosofia de Minas Gerais e da Universidade de Braslia, sendo nesta ltima regente do curso Oficina Literria, que exerce juntamente com os deveres de fiscal dos dinheiros pblicos na capital do pas. Estreando na literatura em 1937, com o romance O Amanuense Belmiro, muito bem recebido pela crtica, Cyro dos Anjos pertenceu ao grupo de escritores em que se destacavam Carlos Drummond de Andrade, Emlio Moura e Joo Alphonsus, os dois ltimos j falecidos, alm de Newton Prates e Guilhermino Csar, este radicado atualmente em Porto Alegre, de cuja vida intelectual participa com intensidade. Seu segundo livro, tambm romance, Abdias, saiu em 1945 e o terceiro, ainda no mesmo gnero, Montanha, em 1956, ambos editados por esta Casa. Mas o romancista Cyro dos Anjos, apesar do sucesso conquistado, inclusive no exterior com as verses espanhola e italiana de O Amanuense Belmiro, ambas de 1954 no Mxico e na Itlia, revelou-se tambm ensasta e memorialista, publicando em 1954 (Coimbra, Portugal) um estudo sobre A Criao Literria e, em 1963, em edio nossa, Exploraes no Tempo, volume de memrias. Seu ltimo trabalho, por sinal, data de 1963 e nele o ensasta e romancista cede lugar ao poeta bissexto dos Poemas Coronrios, publicados pela Universidade de Braslia. Cyro dos Anjos pertence Academia Mineira de Letras e possui vrias condecoraes nacionais e uma de Portugal. Em 1969 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, cadeira n. 24, sucedendo a Manuel Bandeira. Casado em 1932 com D. Zelita Costa dos Anjos, o romancista tem seis filhos: Margarida, Mrcia Antonieta, Martim Afonso, Antnio Joaquim, Joaquim Carlos e Francisco de Assis. Rio, outubro de 1971.

ESTRATGIA (Prefcio de Antnio Cndido) O Sr. Almeida Salles publicou certa vez em Planalto um dos rodaps mais inteligentes que tm aparecido na imprensa peridica de S. Paulo, no qual aplica nossa literatura a distino de Valry entre escritores estrategistas e escritores tticos, alargando-se em reflexes muito agudas e muito justas sobre a natureza da criao literria. Os nossos autores, segundo o Sr. Almeida Salles, pertencem quase na totalidade ao segundo grupo, isto , o composto pelos dotados de talento e habituados a construir segundo o influxo dele, no primeiro movimento da inspirao. Guiando-se quase apenas pelo instinto, opem-se deste modo aos do primeiro grupo, que vem na criao o afloramento definitivo de um largo trabalho anterior, baseado em anos de meditao e de progressivo domnio, dos meios tcnicos. Confiam. numa palavra, menos na fora impulsiva do talento que no domnio vagaroso, mas seguro, dos recursos da sua arte condio primeira para a plena expresso do seu pensamento; e da sua sensibilidade. Lendo o artigo, a primeira pessoa em que pensei foi o romancista mineiro Ciro dos Anjos, que. para falar como o Sr. Almeida Salles (ou Valry, se quiserem), me parece um dos maiores dentre os poucos estrategistas da literatura brasileira contempornea. Segundo me contam, Ciro dos Anjos anda pela casa dos quarenta. H mais de cinco anos publicou o seu nico livroO Amanuense Belmirouma obra-prima, sem dvida alguma. A impresso de acabamento, de segurana, de equilbrio, de realizao quase perfeita, revelam o artista profundamente consciente das tcnicas e dos meios do seu ofcio, possuidor de uma viso pessoal das coisas, lentamente cristalizada no decorrer de longos anos de meditao e estudo. Porque esse romance o livro de um homem culto. No seu subsolo circulam reminiscncias vrias de leitura, ecos de Bergson, de Proust, de Amiel, de autores cuidadosamente lidos ou harmoniosamente incorporados ao patrimnio mental. Por isso que ele ressoa de modo to diferente no nosso meio, com um som de coisa definitiva e necessria, nem sempre produzido pelas obras dos nossos generosos tticos. O Amanuense Belmiro o livro de um burocrata lrico. Um homem sentimental e tolhido, fortemente tolhido pelo excesso de vida interior, escreve o seu dirio e conta as suas histrias. Para ele, escrever , de fato, evadir-se da vida; a nica maneira de suportar a volta s suas decepes, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as, o amanuense estabelece um movimento de bscule entre a realidade e o sonho. "Quem quiser fale mal da Literatura. Quanto a mim, direi que devo a ela a minha salvao. Venho da

rua deprimido, escrevo dez linhas, torno-me olmpico... Em verdade vos digo: quem escreve neste caderno no o homem fraco que h pouco entrou no escritrio. um homem poderoso, que espia para dentro, sorri e diz: 'Ora bolas'." O amanuense infeliz. Chegou quase aos quarenta anos sem nada ter feito de aprecivel na vida. Sonha; carrega nas costas a enorme trouxa de um passado de que no pode se desprender, porque dentro dele esto as doces cenas da adolescncia. De repente, uma noite de carnaval lhe traz a imagem de uma donzela gentil. O amanuense ama, mas sua maneira: identificando a moa de carne e osso, que mal enxerga de quando em vez, com a imagem longnqua da namorada da infncia, ela prpria quase um mitoum mito como o da donzela Arabela. No difcil perceber o mal de Belmiro, literato in erba, lrico no realizado, solteiro nostlgico. A sua desadaptao ao meio levou-o soluo intelectual; esta, que falhou como soluo vital, permanece como fatalidade, e o amanuense, a fim de encontrar um pouco de calor e de vida, empurrado para o refgio que lhe restao passadouma vez que o presente lhe escapa das mos ("[___] bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o esprito abre vo das suas conquistas e o homem procura a infncia, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.") Ora. se fosse s isso, estava tudo muito bem. O drama que o presente se insinua no passado. Se fosse possvel viver integralmente no mundo recriado pela memria, haveria a possibilidade de um modus vivendi, quase normal, a seu jeito, como o do narrador do Temps Perdu. Acontece, porm, que a sensibilidade de Belmiro, jogando-o como uma bola entre o passado e o presente, perturbando este com os arqutipos daquele, desmanchando a pureza daquele com a intromisso das imagens deste, no lhe permite uma existncia atual. "[....] depois de uma infncia romntica e uma adolescncia melanclica, o homem supe que encontrou a sua expresso definitiva e que sua prpria substncia j lhe basta para as combustes interiores; cr encerrado o seu ciclo e volta para dentro de si mesmo, procura de fugitivas imagens do passado, nas quais o esprito se h de comprazer. Mas as foras vitais, que impelem o homem para a frente, ainda esto ativas nele e realizam um sorrateiro trabalho, fazendo-o voltar para a vida, sedento e agitado. Para iludir-lhe o esprito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos, encarnando formas do passado." Belmiro, ento, se entrega ao presente: mas no o vive. Submeto se, e readquire o equilbrio pela auto-analise. Sabe que no lhe adianta pensar em como as coisas seriam se no fossem o que so, e. concluindo que "a verdade est na Rua Er", isto , na sua casinha modesta e o seu ramerro cotidiano, recita com o poeta:

"Mundo mundo, vasto mundo Se eu me chamasse Raimundo... Seria uma rima, no seria uma soluo. Mundo mundo, vasto mundo Mais vasto o meu corao." "Mais vasto o meu corao". Concluso tpica de introvertido, de homem que no lamenta, como Lawrence: "I was so weary of the world. I was so sick of it. Everything was tainted with myself", porque a sua evaso consiste justamente em introjetar o mundo e banh-lo todo nas prprias guas. Belmiro o homem que chegou ao estado de paralisia por excesso de anlise "[....] j lhes contei o que se passa dentro de mim quando comeo a meditar: perco-me num labirinto de antinomias." Isto significa que um candidato ao cepticismo integral e imobilidade atravs do relativismo. Sempre a tomar conscincia plena das suas variaes e dos seus aspecto:; mltiplos, Belmiro o contrrio do homem forte de que fala Balzac. o homem que no se lembra, que cresce num impulso vegetal, sem a peia do passado. H uma circunstncia, porm, que o salva, que o liberta das redes do analista: o senso lrico da vida, que restabelece o equilbrio vital. Falou-se muito em Machado de Assis a propsito de Ciro dos Anjos, insistindo-se sobre o que h de semelhante no estilo e no humorismo de ambos. O que no se falou, porm, foi da diferena radical que existe entre eles: enquanto Machado de Assis tinha uma viso que se poderia chamar dramtica, no sentido prprio, da vida, Ciro dos Anjos possui, alm dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido potico das coisas e dos homens. 0 que admirvel, no seu livro, o dilogo entre o lrico, que quer se abandonar, e o analista, dotado de humour, que o chama ordem; ou, ao contrrio, o analista querendo dar aos fatos e aos sentimentos um valor quase de pura constatao, e o lrico chamando-o vida. envolvendo uns e outros em piedosa ternura. Esta alternncia, que ele emprega tambm como um processo literrio, encontramo-la de captulo a captulo, de cena a cena. na prpria construo do estilo. E a certa altura, o amanuense a torna explcita: "Tais desnivelamentos que compem minha vida e lhe sustentam o equilbrio. A um Belmiro pattico que se expandiu, enorme, na atmosfera caraibanacontemplando a destruio das suas

paisagenssempre sucede um Belmiro sofisticado, que compensa o primeiro e o retifica, ajustando-o aos quadros cotidianos. Chegado sua toca da Rua Er, o Belmiro egresso de Carabas se apalpa, se reajusta e assobia a fantasia do hino nacional de Gottschalk." Esta disposio excepcional, que d uma dignidade humana to grande poesia de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond de Andrade, o fundamento da arte de Ciro dos Anjos, e empresta ao seu romance uma qualidade de vida que superior de Machado de Assis. Para conhecer este psiclogo lrico preciso ler todo o admirvel 33 d'O Amanuense Belmiro, quando ele descobre que o passado que evoca no existe em si, mas uma criao da sua saudade e da sua imaginao deformadora. O amanuense. pela primeira vez, sofre ao perceber que "ali is tainted with myself", e considera tristemente: "No voltarei a Vila Carabas. As coisas no esto no espao, leitor; as coisas esto no tempo. H, nelas, ilusrias permanncias de forma, que escondem uma desagregao constante, ainda que infinitesimal." Se assim , por que escrever sobre um passado que realmente no existe e um presente que cede ante a ponta aguda da anlise? Belmiro escreve porque precisa abrir uma janela na conscincia a fim de se equilibrar na vida, o que no importa em iluso quanto ao verdadeiro significado deste trabalho: "Grande coisa encontrarmos um nome imponente, para definir certos estados de esprito. No se resolve nada, mas ficamos satisfeitos. O homem um animal definidor." Numa ordem mais geral de idias, pode-se dizer que o amanuense uma ilustrao do gravssimo problema dos efeitos da inteligncia, atravs do seu poder de anlise, sobre o curso normal das relaes humanas. Encarando assim o livro, o seu ncleo significativo vai ser encontrado numa pgina do dirio de Silviano, indiscretamente lida por Belmiro: "Problema:O eterno, o Fustico.O amor (vida) estrangulado pelo conhecimento." este, com efeito, o problema central da obra. A atitude belmiriana resulta de uma aplicao do conhecimento aos atos da vida entendendo-se neste caso por conhecimento a atitude mental que subordina a aceitao direta da vida a um processo prvio de reflexo. E assim, Ciro dos Anjos nos leva a pensar no destino do intelectual na sociedade, que at aqui tem movido uma conspirao geral para belmiriz-lo, para confin-lo nas esferas em que o seu pensamento, absorto nas donzelas Arabelas, nas Vilas Carabas do passado, na autocontemplao, no apresenta virulncia alguma que possa pr diretamente em xeque a ela, sociedade organizada. Criando-lhe condies de vida mais ou menos abafantes, explorando metodicamente os seus complexos e cacoetes, os poderosos deste mundo s o deixam em paz

quando ele se expande nos campos geralmente inofensivos da literatura personalista, ou quando entra reverente no seu squito. Coisas em que a gente se pe a matutar, quando v aquele Belmiro to inteligente e to sensvel, slidamente mantido em paz pela magreza do seu ordenado de amanuense, e perfeitamente desfibrado pela prtica cotidiana da introspeco (costume muito estimvel, segundo os cnones). Ou aquele Silviano cheio de seiva, que reduzido a no deixar transbordar seno a sua retrica, uma vez que aceitou como valor eterno uma filosofia que lhe aconselha a blague, cmoda para os negcios pblicos, da autoperfeio pela ascese intelectual. Mas no esta a impresso final que fica do livro de Ciro dos Anjos, cuja releitura fao pela quinta ou sexta vez, o que um deleitoso consolo, como diria o Ea, para a fico mais ou menos frouxa com que o crtico tem no raro de se defrontar. Na pgina 27. Belmiro fala de um tocador de sanfona da sua Vila Carabas, que "[....] tocava apenas por amor arte, ou talvez para chorar as mgoas. E chorava-as to bem que cada um que o cercava, sentia suas mgoas igualmente choradas. O artista se revelava, por esta forma, perfeito, extraindo dos seus motivos individuais melodias ajustadas s necessidades da alma dos circunstantes, que ali iam buscar expresso para sentimentos indefinveis que os povoavam s s se traduziriam por frases musicais. Esse trao da generosidade inconsciente dos grandes artistas se encontrava no sanfonista da Ladeira da Conceio". E assim esse livro, como so em geral os livros dos escritores de Minas. Livros que lidam com os problemas do homem num tom de tal modo penetrante que autor e leitor se identificam, num admirvel movimento de afinao. No so livros que se imponham de fora para dentro, vibrantes, cheios de fora. Insinuam-se lentamente na sensibilidade, at se identificarem com a nossa prpria experincia.*

* O estudo que se acaba de ler do grande crtico paulista foi reproduzido de seu livro Brigada Ligeira, editado pela Livraria Martins Editora, So Paulo, s/d. [1945]. N. da E.

"Les Souvenirs que j'ai de ma vie relle ne sont ni pius coloria ni plus vibrants que eeux de mes vis imaginaires." ................................................ "Pour erire 1'histoire d'un autre, je collabore avec ma propre vie. Qu'on ne cherehe ps savoir ee qui, dans cette fiction, est indubitablement moi. On s'y tromperait. Et mes proches s'y tromperaient autant et plus que les autres." (GEORGES DUHAMELRemarques sur les Mmoires ImaginairesParisMercure de FranceSixime dition.)

A o s B o r b a s, da linha tronco, desde Porfrio at Belarmino.

1. MERRY CHRISTMAS!ALI pelo oitavo chope, chegamos concluso de que todos os problemas eram insolveis. Florncio props, ento, o nono, argumentando que esse talvez trouxesse uma soluo geral. ramos quatro ou cinco, em torno de pequena mesa de ferro, no bar do Parque. Alegre vspera de Natal! As mulatas iam e vinham, com requebros, sorrindo dengosamente para os soldados do Regimento de Cavalaria. No caramancho, outras danavam maxixe com pretos reforados, enquanto um cabra gordo, de melenas, fazia a vitrola funcionar. O proletariado negro se expandia, comemorando o Natal. Satisfeito, o alemo do bar se multiplicava em chopes, expedindo, para aqui e para ali, garons urgentes. A soluo a conduta catlica, afirmou o amigo Silviano, meio vago, como que atendendo a uma ordem interior de reflexes, que no era bem a de nossa conversao. Redelvim convidou-me, com um olhar malicioso, a prestar ateno ao filsofo. Hein? indaguei, voltando-me para este. A conduta catlica! Isto , fugir da vida, no que ela tem de excitante, continuou, como que a falar para si mesmo.Jernimo anda mergulhado na teologia. a soluo. Sublimou-se nos doutores. S pelo gosto de v-lo dissertar, objetei-lhe que, nesse caso, no haveria soluo. O que haveria supresso da vida. Sem perceber que eu apenas puxava a lngua ao Silviano e supondo contar com o meu apoio, o jovem Glicrio ousou enfrent-lo. Imprudentemente apanhou a minha deixa e entrou em cena com entusiasmo, dizendo que o catlico destri a vida pelo modo mais violento. Introduz, em nosso cotidiano, a preocupao da vida eterna, sacrificando, a esta, aquela. Silviano olhou-o da cabea aos ps. Glicrio novo na roda, e nosso amigo no lhe permite tais intimidades. No discuto com menores, disse majestosamente. E, voltando-se para mim: Voc no sabe o que est dizendo, mas, ainda que fosse uma supresso, por que no havamos de realiz-la para encontrar tranqilidade? A grande estupidez vivermos num conflito constante. J que no se possui a vida com plenitude, o melhor renunciar, de vez. Florncio ps a mo sobre o ombro dele e disse maliciosamente: Estamos ruinzinhos hoje, hein? A pequena deu o fora?

Recolha-se, alimria! respondeu, irritado. No me dirijo a primrios. Florncio deu uma gargalhada e assentou-se de novo. Redelvim devia estar de bom humor, pois apenas sorria, sem nada dizer. Sempre que se encontra com Silviano, trava discusses acaloradas. Aproximei-os um dia, tentando faz-los amigos, mas desde o primeiro encontro se repeliram. Para serenar a roda, propus novo chope, no que fui aplaudido calorosamente por Florncio. Aqui escreverei que a razo estava com este ltimo. Silviano anda em crise aguda. Jandira, que de tudo sabe, contou-me que o filsofo, j beira dos quarenta, retrocedeu aos vinte: est amando as moas em flor. O pior que a mulher, em vez de irritar-se, vive a ridiculariz-lo. s voltas com os filhos, Joana diz no ter tempo para se ocupar dele. uma slida filha de fazendeiro, raa teimosa e viril. A princpio, andou tendo cimes e fazia cenas. Depois, fincou p e deliberou no tomar conhecimento desses descaminhos que, se arranham a f conjugai, mais arranham ainda as veleidades do quarento. Pois Jandira acrescentou que, de suas sortidas, o nosso Dom Juan traz mais baldes do que trofus. Cidade besta, Belo Horizonte! exclamou Redelvim, consultando o relgio. A gente no tem para onde ir... No acho! retrucou Silviano. Em Paris a mesma coisa. Em Paris? perguntou Florncio. No sabia que voc andou por Paris... boa! parvo, quero dizer que o problema puramente interior, entende? No est fora de ns, no espao! Florncio, j meio alegre, levou as mos ao ventre, num riso convulsivo. Redelvim e Glicrio tambm desataram a rir. Silviano, indignado, quis retirar-se. Disfarando o mau eplogo da festa, alvitrei uma retirada em conjunto. J era hora de jantar e o Parque ia ficando vazio. Sem que percebssemos, as mulatas e os soldados tinham sado, e as sombras de um crepsculo avermelhado desciam sobre as rvores. Separamo-nos, no porto do Parque, e, a caminho de casa, fui ruminando a tese do Silviano. Mas o chope me faz verstil, e minha ateno logo se desviou para outras coisas. A euforia que o chope traz! A vida se torna fcil, fcil. Todos os passageiros do bonde Calafate me sorriam. Certamente sorriam, desejando-me um largo "sade e fraternidade". Como se mostravam ansiosos, rpidos, denunciando pressa de chegar a casa, carregados de embrulhos, onde adivinhei variada matria-prima para as comemoraes domsticas do Natal! A humanidade se transfigura de sbito, neste dia extraordinrio. Que elemento se introduzir na essncia das coisas para que tudo venha, assim, apresentar uma face nova e desconhecida, e para que

todos os seres ganhem uma expresso especial, quase graciosa, de agitada felicidade? As rvores se fazem mais verdes, e os pardais, como cantam! Ser o poder de criar e de transfigurar, que possui a alma humana, ou haver uma efetiva transformao no tecido ntimo das coisas? Afinal, pouco importa. A realidade a aparncia, e o que no fundono o para ns, como diz Silviano. Um Merry Christmas, que me foi dito com uma palmadinha nas costas, por algum que ia descer do bonde, fez-me lembrar de que o prximo poste de parada era o da Rua Er. Dei o sinal, e voltei-me para saudar o homem. Deveria ser o Prudncio Gouveia, vizinho de quarteiro. Bom sujeito o Prudncio. chefe de Seo e pessoa muito conceituada. Em moo, estudou ingls, e seu nico vcio cumprimentar-nos diariamente com um how do you do. A mulher, Juliana Gouveia, toma ar aborrecido e chama-lhe antiptico. Mas, l dentro, fica vaidosa, pois acha o marido erudito: "Sempre uma vantagem, no acha, seu Belmiro? Vem um dia, ele tirar o seu proveito de saber outras lnguas." Na verdade, s fala ingls, mas Juliana lhe encarece as habilidades, aludindo a "outras lnguas". Merry Christmas, Prudncio amigo! Merry Christmas!

2. O "EXCOMUNGADO".PARA surpreender as velhas, entrei p ante p, mas a porta, impelida pelo vento, fechou-se atrs de mim com estrpito. O Excomungado j vem! resmungou Emlia. Estava com Francisquinha no quarto grande, onde costumam passar, juntas, as horas em que a mquina domstica tem seu funcionamento restrito a uma ou duas peas. Terminado o jantar e arrumada a cozinha, as duas se entregam ao bilro segundo a tradio da casa, at hora de se deitar. Francisquinha no faz coisa que aproveite e apenas embaraa os fios, mas Emlia d-lhe essa ocupao para a ter quieta. Notei que, anunciando minha chegada, Emlia no levantou os olhos da almofada, nem interrompeu o complicado trabalho. um hbito das rendeiras, mas, no caso, o fato deveria ter significao particular, pois estava com a fisionomia carregada. Como de costume, talvez no desejasse que Francisquinha, animada com esse princpio de conversa, comeasse a tagarelar. A necessidade de falar a algum, na solido da casa, obriga-a a conversar com a outra, mas procura, pelo melhor modo, reduzir o efeito dessa concesso. Fala dirigindo-se a si mesma, como quem est pensando em voz alta, e, por essa forma, suprime a presena minha ou da

mana. No resisti ao desejo de provoc-las: Boa noite, meninas! Trouxe aqui umas lembrancinhas de Papai Noel para vocs. Ou de Vov ndio, conforme preferem os nacionalistas. Olha o doido, olha o doido, disse Emlia, irritada. Francisquinha deu uma risadinha feroz, pousando em mim os olhinhos brilhantes e fixos. "Decididamente, as velhas esto bravas hoje", pensei. Pus os pacotes na mesa e fui ao quarto, trocar o jaqueto pelo pijama. No corredor, Tome pregou-me o susto de costume. Aprendeu a dizer, como as velhas: "Excomungado! Excomungado!" e arrepia-se todo ao ver-me, ensaiando uma agresso. Ainda me arranjar uma psitacose. E, na verdade, s o que me falta. Curioso pressentimento, o de Emlia: na sua meia-luz, bem que percebe em mim certa dissoluo de esprito. Encontrou na lngua familiar de Vila Carabas a expresso prpria para traduzir a inquietao que minha presena, s vezes, lhe desperta. Rio-me sempre, quando exclama "Excomungado! Excomungado!" Mas o epteto, no bico do papagaio, assume um sentido trgico, faz-me estremecer. Pobres manas. Emlia apenas uma esquisita, mas Francisquinha, perturbada de nascena, vai de mal a pior. Foi este o grande desgosto que ensombrou os dias do velho Borba e da velha Maia. Desde cedo, viram que seria impossvel dar-lhes educao condigna, mandando-as ao Colgio de Diamantina. Tiveram de viver sempre na fazenda, como bicho-do-mato, entre o pessoal de servio. Quando o Borba morreu (a velha Maia partiu bem antes) e a fazenda foi praa, recebi-as como herana. Emlia no tinha, ento, os cabelos grisalhos, e Francisquinha andava pelos trinta. Que custo traz-las em viagem a cavalo e, depois, no comboio da Central! Vieram iludidas, pensando que iam para So Paulo, ficar na companhia do tio Firmino. No lhes foi fcil habituarem-se minha pessoa e modo de vida. Tanto tempo andei afastado delas, que lhes pareci um estranho. Ainda assim, to distantes de mim, encheram minha vida, e Emlia , nesta casa, uma presena vigorosa e viril, que restabelece a atmosfera moral da fazenda.

3. O BORBA ERRADO.DO ALPENDRE da casa, na velha cadeira austraca, fiquei a olhar os transeuntes. A Rua Er no atrativa, neste particular, com sua reduzida

fauna humana. Talvez seja isso o que sempre me leva a passear o pensamento por outras ruas e por outros tempos. Como o Natal me fez saudosista! Eu fechava os olhos, e a Ladeira da Conceio surgia, diante de mim, com a nitidez de um acontecimento matinal. Vila Carabas e seu cortejo de doces fantasmas. A garganta se me apertava, e eu sentia os olhos se umedecerem comovidos. Que diria o Glicrio, com sua suficincia? Rirse-ia de mim: "Voc um homem errado, Belmiro!" Se Glicrio tivesse conhecido os Borbas, diria, em vez disso, que sou um Borba errado. Onde esto em mim a fora, o poder de expanso, a vitalidade, afinal, dos de minha raa? O pai tinha razo, do ponto de vista genealgico: como Borba, fali. Na fazenda, na Vila, no curso. Meu consolo que sou um grande amanuense. Um burocrata! exclamava com desprezo. Coitado do velho. Queria fazer-me agrnomo. Ou, ento, agrimensor. Vila Carabas no tinha, ainda, o seu agrimensor formado, e andava, por l, a febre das divises de terras. Era contra os princpios paternos o bacharelato em qualquer ramo de cincias ou letras. "Temos .doutores demais, dizia ele. Precisamos de braos para a lavoura." Mas dei em droga na fazenda e andei zanzando pela Vila, metido em serenatas e noutras relaxaes. Coitado do velho. Neguei as virtudes da estirpe. Sou um fruto chcho do ramo vigoroso dos Borbas, que teve seu brilho rural. Em face do cdigo da famlia (cinco avs, pelo menos, esto-me dizendoilustres sombras!) foi um crime gastar as vitaminas do tronco em serenatas e pagodes. L estava a fazenda, grande, poderosa como um estabelecimento pblico, com suas lavouras espera de cuidados moos. Sinto muito, avs. Eu no podia ouvir uma sanfona. Tocavam a Varsoviana e eu me dissolvia (l na Vila lhe chamavam Valsa Viana...). Coitado do velho. Por fim, declarou que o que no tem remdio, remediado est. Como a minha me tivesse o secreto desejo de me ver na carreira das letras (dizia que eu sara aos Maias e no aos Borbas), acabou pensando num acordo. "Se o menino no se ajeitava na fazenda, que, pelo menos, no se distanciasse dela poderia tirar uma carta de agrnomo. Ficar nas letras agrcolas", repetia, satisfeito, por um lado com a associao verbal que descobrira, e, por outro, com o parcial deferimento s aspiraes da velha. Abandonei, porm, as letras agrcolas e entreguei-me a outra sorte de letras, nada rendosas. Pus-me a andar na companhia de literatos e a sofrer imaginrias inquietaes. Tive amores infelizes, fiz sonetos. At chegar ao Silviano e ao Redelvim, percorri muitos caminhos. E a mesada paterna se consumia em livros que as necessidades sentimentais e espirituais do mancebo ardentemente reclamavam. Quando, num fim de ano, o pai veio a Belo Horizonte e verificou o logro, houve cena pesada. Uma dessas

discusses em que ns, Borbas, nos dizemos coisas duras, para, depois, num desfecho melodramtico, nos abraarmos. Voltou com uma grande dor no corao, para gravame de sua insuficincia mitral, e mais tarde um deputado me introduziu na burocracia. "Um burocrata, um burocrata!" lamentava nas suas cartas. Em que fora dar sua longa doutrinao, nas colunas da Gazeta Caraibense, em propaganda da vida rural? Seus cinqenta artigos, em srie, sob a epgrafe geral de Rumo Gleba? Mas, ao cabo de contas, foi nele que comeou o desvio da linhagem rural. No citavas o teu Verglio, pai Belarmino? Na verdade, estavas mais prximo dos clssicos (lembro-me de tua predileo, um tanto tendenciosa, para o Horcio...) do que dos currais e das roas. Words... Words... como diria Prudncio, esclarecendo que a exclamao foi do Hamlet. Bem me recordo de que, a rigor, no funcionavas na fazenda. Por qualquer pretexto, l ias, na tua besta, rumo Vila, para trocar dois dedos de prosa com o provisionado Loiola. Confessa, Borba, data de ti a traio gleba... Natal! Fiquei at tarde no alpendre. Com a sada dos vizinhos para a missa do galo, recolhi-me. Outras missas, noutros tempos... Como esta vida vai correndo, vai correndo... Um dia sentiremos uma sacudidela, tal como no poema: Stop. A vida parou ou foi o automvel?

4. QUESTO DE OBSTETRCIA.J ESTAVA palmilhando a terra vaga do sono, para frente, para trs, segundo a luta surda que se trava em ns, entre uma parte do eu, que aspira ao abandono, e outra que contra ele reage, talvez pelo receio inconsciente que inspira o adormecer, imagem da morte; ganhava-me o corpo uma doce lassido, e o esprito se embebia no torpor que afrouxara os nervos; apenas impresses vagas, prestes a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscncia tnue, quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrana permanente com que, no estado de viglia, a memria sustenta, a cada instante, nossa precria unidade psquica, ligando o momento que passou ao momento presente. De corpo e esprito, achava-me, pois, preparado para o repouso e j me aconchegava, repetindo, instintivamente, as posies do embrio no ventre materno, quando, arrancando-me daquele quebranto, o co dos fundos

se ps a ladrar, com um mtodo que indicava disposio slida de latir pela madrugada toda. Previ a catstrofe, em sua extenso, e repreendi-me por j no ter ministrado uma "bola" ao canino demnio. Pequena pausa sobrevinda me deu a esperana de que o mastim houvesse mudado de inteno. Podia ser que chegasse logo concluso de que no havia motivo para maiores alarmas: fora o galo do outro quintal que, por equvoco, batera as asas para anunciar o preldio do alvorecer e, porventura verificando adiantamento no relgio, limitara-se ao bater de asas, contendo o anncio na garganta. Mas, ou porque o guarda do quintal contguo no identificasse o rumor produzido pela ave, ou porque ainda houvesse, no ar, um desses barulhos sutis, que s os cachorros percebem, zelosos que so do seu ofcio, logo recomeou ele a ladrar advertindo s possveis sombras de que no se dormia naquele honrado canil. Tratando-se de mero latido de advertncia, sem dio nem convico, o co no se apressava, nem latia mais alto ou mais baixo: o tom era terrivelmente um s e as pausas pareciam medidas em cronmetro. Subitamente, tomou-me indizvel fria. Tudo se me escureceu em torno e pareceu-me que as sombras se agitavam, numa conspirao universal contra mim. Saltei da cama, cego de raiva, j munido da primeira arma que a mo encontrou, e que era um sapato velho. Abrindo a janela, num relance, atirei-o s tontas ao meio da rua, embora o conhecimento da geografia do quarteiro me habilitasse para localizar o animal no lado oposto, em quintal vizinho. Ora, isso apenas serviu de estmulo ao ladrante: ganhou alento e entusiasmo, j certo de que algo havia para justificar suas precaues. Mas no repeti o gesto. Satisfeita a fria dos Borbas, que se contenta com arremessar qualquer objeto a esmo, meus nervos se apaziguaram, e, da a pouco, de novo no leito, sorri para dentro de mim mesmo, com ternura. Afinal, isso est no sangue. Esses repentes, esse dio sbito, insopitvel, que passa como um relmpago depois de a gente ter feito uma quixotada, alguma coisa que me ficou dos Borbas. Lembrei-me do av (o ltimo Porfrio), que era tal qual. No dia em que uma chuva inesperada viera estragar o caf posto a secar no terreiro, ele ficou possesso de raiva, sacou da garrucha e desfechou dois tiros para o ar... Em seguida, caiu numa grande prostrao e permaneceu casmurro o dia todo. Como o av Porfrio, procedi maneira de Xerxes, quando, indignado com a procela que lhe destruiu a frota, mandou zurzir o mar. Fiquei satisfeito com o precedente ilustre que a memria me veio trazer e lembrei-me de umas palavras do excelente Montaigne: "A alma descarrega suas paixes sobre objetos falsos, quando lhe faltam os verdadeiros."

"Parece que, abalada e comovida, se perde em si mesma se no lhe damos presa; cumpre fornecer-lhe sempre objeto em que possa aplicar-se e atuar." Com efeito, devemos sempre ter mo um sapato velho para o servio da alma. Graas a ele, aqui estou calmo a escrever estas linhas, em que vai toda a histria de mais um Natal que passa. plano antigo o de organizar apontamentos para umas memrias que no sei se publicarei algum dia. "Por que um livro?" foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, h tempos, comuniquei esse propsito. "J no h tantos? Por que voc quer escrever um livro, seu Belmiro?" Respondi-lhe que perguntasse a uma gestante por que razo iria dar luz um mortal, havendo tantos. Se estivesse de bom humor, ela responderia que era por estar grvida. Sim, vago leitor, sinto-me grvido, ao cabo, no de nove meses, mas de trinta e oito anos.' E isso razo suficiente. Posta de parte a modstia, sou um amanuense complicado, meio cnico, meio lrico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que j me est mexendo no ventre e reclama autonomia no espao. Ai de ns, gestantes. O melhor seria vivermos sem livros, mas o homem no dono do seu ventre, e esta noite insone de Natal (as sinistras noites de insnia, responsveis por tanta literatura reles!) traz-me um desejo irreprimvel de reencetar a tarefa cem vezes iniciada e outras tantas abandonada. Jandira acredita que no foi reservado a mim deixar posteridade qualquer importante mensagem. Deve ter razo: se c dentro deste peito celibatrio tem havido coisas picas, um Belmiro (que costuma assobiar operetas) insinua que as epopias de um amanuense encontram seu lugar justo dentro da cesta. Este mesmo Belmiro sofisticado foi quem matou dois outros livros, no decurso dos dez ltimos anos. Um, no terceiro captulo, e outro na dcima linha da segunda pgina. Enterrei-os no fundo do quintal, como se enterravam os anjinhos sem batismo, em Vila Carabas. Sobre a cova brotou uma bananeira. On revient toujours: hoje recomea a mesma aventura, no mesmo quarto envelhecido desta pattica Rua Er, enquanto as carrocinhas de po comeam a percorrer o Prado e meus amigos operrios devem estar procurando o caminho da fbrica de calados. Amanhece o dia, do outro lado do quartel do Dcimo. Reconciliei-me com o co e com o livro. No sei bem o que me sair das entranhas. Comecei contando o Natal que acabou e falando nos amigos e na parentela. Meu desejo no , porm, cuidar do presente: gostaria apenas de reviver o pequeno mundo caraibano, que hoje avulta a meus olhos. Minha vida parou, e desde muito me volto para o passado, perseguindo imagens fugitivas de um tempo que se foi.

Procurando-o procurarei a mim prprio.

5. ANO-BOM.DEPOIS de ter andado inquieto como uma galinha sem ninho (j viram como uma galinha desalojada cacareja aflita, sem encontrar lugar no espao?), pus-me a pensar no permanente conflito que h em mim no domnio do tempo. Se, a cada instante, mergulho no passado e nele procuro uma compensao, as secretas foras da vida trazem-me de novo tona e encontram meios de entreter-me com as insignificncias do cotidiano. Pelo oposto, comum, quando o atual me reclama a energia ou o pensamento, que estes se diluam e o esprito se desvie para outras paisagens, nelas buscando abrigo. Tais solicitaes contrrias, em luta constante, levam-me s vezes a to subitneas mudanas de plano, que minha vida, na realidade, se processa em arrancos e fugas, interminveis e sucessivos, tornando-se fico, mera fico, que se confunde no tempo e no espao. O que hoje me sucedeu bem um sinal dessa luta interior. Eu ia, atento e presente, em busca de um bonde e de Jandira. Foi s ouvir uma sanfona, perdi o bonde, perdi o rumo, e perdi Jandira. Fiquei rente do cego da sanfona, no sei se ouvindo as suas valsas ou se ouvindo outras valsas que elas foram acordar na minha escassa memria musical. Depois, o cego mudou de esquina, e continuei a p o caminho, mas bem percebi que os passos me levavam, no para o cotidiano, mas para tempos mortos. Desci a Rua dos Guajajaras com a alma e os olhos na Ladeira da Conceio, por onde, num bando alegre, passava Camila, to leve, to casta, depois da missa das nove, na igreja do Rosrio. Era precisamente por ali que estacionava outro sanfonista que no esmolava nem era cego, e tocava apenas por amor arte, ou talvez para chorar mgoas. E chorava-as to bem que cada um que o cercava sentia as suas mgoas igualmente choradas. O artista se revelava por esta forma perfeito, extraindo, dos seus motivos individuais, melodias ajustadas s necessidades da alma dos circunstantes, que ali iam buscar expresso para sentimentos indefinveis que os povoavam e s se traduziriam por frases musicais. Esse trao da generosidade inconsciente dos grandes artistas se encontrava no sanfonista da Ladeira da Conceio. Satisfazendo necessidade de dar forma aos pensamentos imprecisos de suas saudades e de seus amores, lograva articular uma linguagem que nos servia a todos e que, por igual, nos falava de nossas saudades e de nossos amores; transportavanos, assim, atmosfera de alvoroado bem-estar em que a gente mergulha

quando encontra a definio de um sentimento e sua forma de expresso. Proporcionando ao esprito vlvulas por onde se evadem as emoes que o comprimem, a expressoseja musical, literria ou plstica no s o alivia, mas tambm o excita. O sanfonista da Vila traduzia para mim as coisas complicadas de minha alma. O cego, que encontrei na esquina, no o fez com a mesma eficincia, mas, em todo caso, me lembrou o outro da ladeira de minha vila, e isso j foi muito fazer, porque assim despertou dentro de mim esquecidas harmonias. A sombra de Camila me subtraiu realidade de Jandira e reconduziu-me s estradas perdidas de Vila Carabas, que levam quela serra muito azul e esquiva. E desviou-me no tempo. O Ano-Bom chegaria sem que eu o celebrasse com o rito do costume, que uma ceia em casa do Florncio, se este no me viesse buscar quase meia-noite. A questo, bem se v, no o ano velho ou novo, mas a ceia sempre apetecvel, da casa do amigo. Mariana pe nela todo o seu estilo culinrio, e o estilo a mulher, em captulos de cozinha. Eis a o segredo de Florncio: por isso que vive naquela bem-aventurana que todos lhe invejamos. Porventura chegou, tambm, concluso de que a vida breve, e a arte, longa, e cuida de tratar o irmo corpo com o bom vinho e a boa vianda. Viva Florncia, o homem sem abismos. Redelvim e Silviano compareceram. Glicrio mandou desculpas: ia a um baile universitrio. Creio que anda de namoro com a filha do meu chefe de Seo, a Nonoca. E Jandira esteve ausente, o que me pareceu de bom tato. Mariana olha-a com reservas, com aquele instinto infalvel e feroz da boa matrona que quer conservar o seu homem para si. Tem sido intil meu trabalho em favor da moa. Mariana desconfia das literatas (assim denomina todas as mulheres de idias mais avanadas) e fecha a questo: "Pois sim. Com esse jeitinho mesmo que elas vo entrando. O senhor, que solteiro, se envolva com elas. Est certo. Mas... seu Florncio? J lhe disse que no quero saber dessas intimidades..."

6. CARNAVAL.QUE tenho eu com os dias que a folhinha assinala? H. dois meses comecei a registrar, no papel, alguns fragmentos de minha vida, e noto agora que apenas o fao em datas especiais. Encontro uma explicao plausvel:

minha vida tem sido insignificante, e no seu currculo ordinrio nem faz, realmente, por onde eu a perceba. Habituei-me s coisas e seres que incidem no meu trajeto usual da Secretaria para o caf e do caf para a Rua Er. Tais seres e coisas pertencem, por assim dizer, ao meu sistema planetrio, e, entretido com eles, na sua.feio mais ou menos constante, vou traando quase que despercebidamente minha curva no tempo. Os dias de festa coletiva, introduzindo o elemento multido na minha esfera e propondo-me novos espetculos ou novas sugestes,- interrompem o equilbrio do meu pequeno mundo e nele vem produzir desnivelamentos que suscitam mais fundos movimentos interiores. Neste carnaval de 1935, hoje comeado, mais do que nunca senti de modo to vivo a impossibilidade de me fundir na massa, de seguir, como clula passiva, seu movimento de translao, de receber e transmitir essas foras misteriosas que nela atuam, comunicando-se de indivduo para indivduo e resultando, afinal, numa fora uniforme, esmagadora, de onda ou ciclone. Sinto inutilmente, em mim, uma vaga nervosa que quer acudir ao apelo que a multido dirige a cada unidade. Quero rir, chorar, cantar, danar ou destruir, mas ensaio um gesto, e o brao cai, paraltico. Dir-se-ia que h em mim um processo de resfriamento perifrico. Os outros tm pernas e braos para transmitir seus movimentos interiores. Em mim, algo destri sempre os caminhos, por onde se manifestam as puras e ingnuas emoes do ser, e a agitao que me percorre no encontra meios de evadir-se. Reflui, ento, s fontes de onde se irradia e converte-se numa angstia comparvel que nos provm de uma ao frustrada. A multido me revela, assim, que h coisas extraordinrias, vibraes estranhas, h um mundo diverso do meu e com o qual tentarei, em vo, comunicar-me. No seu bojo, tocamos seres cuja existncia nos surpreende quase dolorosamente, to certos estvamos de que nada havia no espao alm do nosso sistema. Habituei-me a uma paisagem confinada e a um horizonte quase domstico. No seu mbito poucas so as imagens do presente, e muitas as do passado. E se tal vida melanclica, trata-se de uma sorte de melancolia a que meu esprito se adaptou e que, portanto, no desperta novas reaes. A variao violenta dos quadros, numa noite de carnaval em que fomos abandonados pelos amigos e em que nossa poro de espao foi invadida por outros seres, leva-nos a um mergulho mais profundo nos nossos abismos. Novas melancolias so despertadas, o homem sofre, e o amanuense pe a alma no papel. Eis que o amanuense um esteta: ao passo que h nele um indivduo

sofrendo, outro h que analisa e estiliza o sofrimento. Talvez fosse prefervel ingerir certo vinho capcioso e, sem nenhuma anlise, entregar os sentidos doce msica da Bayadera, que a radiola derrama no ar molhado. Mas o homem espia o homem, inexoravelmente.

7. A DONZELA ARABELA.ACONTECEU-ME ontem uma coisa realmente extraordinria. No tendo conseguido conter-me em casa, desci para a Avenida, segundo hbito antigo. J ela estava repleta de carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite. Pus-me a examinar colombinas fceis, do lado da Praa Sete, quando inesperadamente me vi envolvido no fluxo de um cordo. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trs, pela frente e pelos flancos. Entreguei-me, ento, quela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas eram tristes e homens pingavam suor. Um mscara-de-macaco deu-me o brao e mandou-me cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, j agora, no ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio daquela roda alegre, pois os folies se engraaram comigo, e fui, por momentos, o atrativo do cordo. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha cano de Vila Carabas. Uma gargalhada espantosa explodiu em torno de mim. Deram-me uma corrida e, depois de me terem atirado confete boca, abandonaram-me ao meio da rua embriagado de ter. Novo cordo levou-me, porm, para outro lado, e, nesse vaivm, fui arrastado pelos acontecimentos. Um jacto de perfume me atingia s vezes. Procurava, com os olhos gratos, a origem dessa carcia, mas percebia, desanimado, que aquele jacto resvalara de outro rosto a que o destinara uma boneca holandesa. Contudo, aquelas migalhas me consolavam e comoviam. Dem-me um jacto de ter perdido no espao e construirei um reino. Mas a boneca holandesa foi arrastada por um prncipe russo, que a livrou dos braos de um marinheiro. Bebendo aqui, bebendo ali, acabei presa de grande excitao, correndo atrs de choros, de blocos e cordes. No sei como, envolvido em que grupo, entrei no salo de um clube, acompanhando a massa na sua liturgia pag. Lembra-me que homens e mulheres, a um de fundo, mos postas nos quadris do que ia frente, danavam, encadeados, e entoavam os coros que descem do Morro. Toadas tristes, que vm da carne.

A certo momento, algum me enlaou o brao, cantando: "Segura, meu bem, segura na mo, no deixes partir o cordo..." O brao que se lembrou do meu brao tinha uma branca e fina mo. Jamais esquecerei: uma branca e fina mo. Olhei ao lado: a dona da mo era uma branca e doce donzela. Foi uma viso extraordinria. Pareceu-me que descera at a mim a branca Arabela, a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as andorinhas vo pousar. Pobre mito infantil! Nas noites longas da fazenda, contava-se a histria da casta Arabela, que morreu de amor e que na torre do castelo entoava doridas melodias. Efeito da excitao de esprito em que me achava, ou de qualquer outra perturbao, senti-me fora do tempo e do espao, e meus olhos s percebiam a doce viso. Era ela, Arabela. Como estava bela! A msica lasciva se tomou distante, e as vozes dos homens chegavam a mim, lentas e desconexas. Em meio dos corpos exaustos, a incorprea e casta Arabela. Parecia que eu me comunicava com Deus. e que um anjo descera sobre mim. Meu corpo se desfazia em harmonias, e alegre msica de pssaros se produzira no ar. No me lembra quanto tempo durou o encantamento e s vagamente me recordo de que, em um momento impossvel de localizar, no tempo e no espao, a mo me fugiu. Tambm tenho uma vaga idia de que algum me apanhou do cho, pisado e machucado, e me ps num canap onde, j sol alto, fui dar acordo de mim. O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Carabas tem uma fora que supera as zombadas do Belmiro sofisticado e faz crescer, desmesuradamente, em mim, um Belmiro pattico e obscuro. Mas vivam os mitos, que so o po dos homens. Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o esprito abre mo de suas conquistas, e o homem procura a infncia, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser. H muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente s puras e melhores emoes, renunciar aos rumos da inteligncia e viver simplesmente pela sensibilidadedescendo de novo, cautelosamente, margem do caminho, o vu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mo imprudente parece-me a nica estrada possvel. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma frmula para nos conciliarmos com o mundo.

8. O LUAR DE CARABAS TUDO EXPLICA. . .H TRS ou quatro semanas no tenho tocado nestas notas (seno ligeiramente, para acrescentar uma ou outra linha a esta ou quela pgina. Examinando-as, hoje, em conjunto, noto que, j de incio, se compromete meu plano de ir registrando lembranas de uma poca longnqua e recompor o pequeno mundo de Vila Carabas, to sugestivo para um livro de memrias. Vejo que, sob disfarces cavilosos, o presente se vai insinuando nestes apontamentos e em minha sensibilidade, e que o passado apenas aparece aqui e ali, em evocaes ligeiras, suscitadas por sons, aromas ou cores que recordam coisas de uma poca morta. Analisado agora friamente, o episdio do carnaval me parece um ardil engenhoso, armado por mim contra mim prprio, nesses domnios obscuros da conscincia. Tudo se torna claro aos meus olhos: depois de uma infncia romntica e de uma adolescncia melanclica, o homem supe que encontrou sua expresso definitiva e que sua prpria substncia j lhe basta para as combustes interiores; cr encerrado o seu ciclo e volta para dentro de si mesmo, procura de fugitivas imagens do passado, nas quais o esprito se h de comprazer. Mas as foras vitais, que impelem o homem para a frente, ainda esto ativas nele e realizam um sorrateiro trabalho, fazendo-o voltar para a vida, sedento e agitado. Para iludir-lhe o esprito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos, encarnando formas pretritas. Trazem-lhe uma nova imagem de Arabela, humanizando o "mito da donzela" na rapariga da noite de carnaval. Foi hbil o embuste, e o esprito se deixa apanhar na armadilha.. . No farei violncia a mim mesmo, e estas notas devem refletir meus sentimentos em toda a sua espontaneidade. J que as sedues do atual me detm e desviam, no insistirei teimosamente na exumao dos tempos idos. E estas pginas se tornaro, ento, contemporneas, embora isso exprima o malogro de um plano. Comearei por contar honestamente os motivos por que, durante as trs ltimas semanas, abandonei este caderno de apontamentos. So dois, e o segundo fcil de dizer: foram as velhas. Mas o primeiro... ainda h pouco eu hesitava em confess-lo: foi a moa. Depois da quarta-feira de cinzas veio-me uma aura romntica que me ps meio luntico, trazendo-me dias agitados. Presumivelmente curado da molstia, posso contar as coisas tal e qual se passaram. Como na noite de carnaval, e j sem a desculpa do lcool e do ter, voltei, de novo, a essa a que vou chamando Arabela, por lhe ignorar o nome de batismo e porque,

afinal, o que lhe dei se me afigura o adequado. Pus-me a procur-la quase com aflio e, perdendo a noo do ridculo, confiei o episdio e minha desordem sentimental ao Silviano. Felizmente (e com certeza por solidariedade, visto que anda em mar anloga), ele no fez troa. Pelo contrrio, ouviu, srio, a confidencia. Podem rir-se de mim, mas os namorados me compreendero: amei, como se se tratasse de um ser real, aquilo que no passava de uma criao do esprito. A vida no se conforma com o vazio, e a imagem da moa encheume os dias. Tive noites difceis, bebi algumas vezes e andei como vagabundo pelas ruas. At o chefe da Seo notou minha inquietude e fez-me assinar um requerimento de frias: "O senhor est precisando de repouso e deve aproveitar a ocasio. O Secretrio est fora, e temos pouco servio." (Na verdade nunca tivemos servio, e jamais conheci fico burocrtica mais perfeita que a Seo do Fomento...) Em tal estado de esprito, fcil de ver que eu no poderia retomar estas notas. Devo retificar, nesta pgina, o que atrs foi dito sobre o amanuense que espia o amanuense e lhe estiliza o sofrimento. Observo agora que o namorado, no momento preciso de sua agitao sentimental, no capaz de se desdobrar ao ponto de permitir ao esprito, quando o corao bate desordenadamente, estudar, para fins literrios, os movimentos desse desvairado msculo. As modificaes que a paixo determina em nossa substncia e a diversa viso, que ela nos proporciona, dos seres e das coisas, podero vir lucidamente, mais tarde, ao plano da nossa anlise, quando, tudo j serenado, o esprito calcula e medemas certamente no so suscetveis de registro, no instante em que devastam nossa sensibilidade. E ningum o ignora: a literatura das emoes feita a frio, e a memria ou a imaginao que reproduz ou cria as cenas passionais. No momento da devastao, alma e corpo se solidarizam. Eu pediria inutilmente o socorro do bom senso ou da anlise nas horas em que vivi a perseguir uma imagem que teria um tero de realidade e dois de fbula. Naquelas horas, entreguei-me inteiramente aos secretos impulsos, percorrendo toda a cidade em busca de Arabela. Postava-me nos logradouros pblicos, penetrando a multido, no muito convicto, e contudo esperanoso. Muitas vezes entrevi uma figura gentil e fui, em vo, ao seu encalo. Logo verificava o engano. extraordinrio que nesta altura da vida me tenham acontecido tais coisas, mas o luar de Vila Carabas tudo explica, e o adolescente permanece no adulto. S passados alguns dias a tola idia deixou-me, e a aventura de carnaval se foi dissipando no meu esprito. Quis, ento, voltar a estas notas, que se

vo tornando o centro de interesse de minha vida. Mas, na noite em que comecei de novo a folhe-las, ocorreu outro empecilho: o estado de sade das velhas. Falarei nisso amanh. Acho-me cansado e no h pressa.

9. AS VELHAS.O SEGUNDO motivo da interrupo de minhas atividades de escriba, j lhes disse, foi domstico. Francisquinha piorou consideravelmente, tendo passado duas semanas de extrema agitao. Emlia, s voltas com sua gota citica, no daria conta de olhar pela mana se, no estando em frias, eu ficasse impossibilitado de lhe prestar auxlio, a todo instante. Tivemos de prender a pobre mana no quarto, o que s temos feito em ltimo caso. Ela ficava noite e dia a arranhar a parede com as unhas, tentando, talvez, escalar a superfcie lisa e vertical. Gritava coisas desconexas, supunha-se perseguida por uma mula-sem-cabea. Emlia voltou a insistir em que eu trouxesse um padre para exorcism-la. Desde muito, Josefa lavadeira lhe meteu na cabea que a Chica est possessa. Um esprito mau a domina. Quase cedi, para ter a Emlia tranqila. Que dias difceis! Finalmente, a crise passou, e Francisquinha foi melhorando. Deu para coisas que at me fizeram rir. Levantando, um dia desses, uma tbua do assoalho, meio apodrecida, descobriu, no sei como, uma ninhada de ratinhos. Passou a dispensar-lhes cuidados maternais, e, para no a vermos de novo agitada, tivemos de consentir em sua extravagncia: duas ou trs vezes por dia arranjava mingaus para os ratinhos e ficava o tempo todo a espreit-los, de longe. . . Agora, tudo est em paz, inclusive o Tome, que andou inquieto, talvez excitado pelo barulho que a mana produzia. A casa retornou ao seu clima habitual, e as velhas se entregaram normalmente s suas funes. Emlia cozinha, e Francisquinha, quando est melhor, como nestes dias, lava roupa. verdade que isso nos sai caro: nos seus repentes, comum que pegue as peas j limpas e as atire ao cho, pisando-as, para de novo met-las na gua. Josefa lavadeira vive a resmungar e a querer tomar-lhe a roupa. uma velha cabeuda, e no h meio de a fazer compreender que eu compraria muito mais caro as horas de sossego que Francisquinha experimenta quando se entrega quela tarefa. Vivendo, desde alguns dias, momentos tranqilos, foi-me possvel, j ontem, retomar minhas notas. Posso ler um pouco e escrever at tarde. A meu pedido, Carolino, contnuo da Seo, trouxe-me blocos de papel em

quantidade, e acho-me abastecido para o que der e vier. O timbre da Seo do Fomento encima estas pginas. Viva a Seo que me d o po e o papel.

10. UMA CASA, NUMA RUA.H, SEM dvida, uma trama secreta que, encadeando os acontecimentos, envolve uma qumica, uma fsica e uma economia social extremamente sutis para que a cincia humana possa penetr-las. E essa trama se evidencia, para mim, no carter de necessidade que julgo acentuar as aproximaes humanas, os encontros mais rpidos que sejam e se nos afiguram fortuitos. Vivendo e observando as coisas, perceberemos que o fugidio vultomal entrevisto em um encontro que nos pareceu destitudo de significao ou conseqnciateve, mais tarde, um momento de maior ou menor influncia em nossa vida. As leis que regulam a circulao dos homens nos parecero, ento, lgicas, em tal ou qual sentido, e j no veremos acaso nem gratuidade no desenrolar dos fatos da vida. Se digo tolice, ou apenas repito idias velhas, que me perdoem: adquiri, neste escritrio da Rua Er, o hbito de filosofar e fico horas e horas a pensar em certos fenmenos. E j lhes contarei por que meu pensamento tomou hoje tais rumos. Bem me recordo, agora, de que, h dois anos, passando noite pela Rua Paraibuna, procura de um farmacutico vindo de Vila Carabas, cujo endereo me fora fornecido sob indicaes vagas, fiz-me anunciar, por engano, em outra residncia. Uma criada, que me veio atender, esclareceu logo o equvoco, mas o fato me deixou duas impresses ntidas, uma auditiva, outra, olfativa. Explico-me: havia, no jardim da casa, uma trepadeira, a cuja flor chamamos, no serto, dama-da-noite, por despontar somente noite e murchar durante o dia. Ela desprende um aroma de alto poder evocativo. Ser uma pouco vivaz, mas nem por isso desagradvel. E, dentro da casa, havia uma criatura que no vi, mas ouvi. Cantava como o faria um anjo de Van Eyck, se os coristas anglicos se dedicassem ao gnero, uma cano napolitana que ouvi a Camila em tempos idos: Tuorna a Surriento. As duas imagens se consorciaram no meu esprito e ainda hoje nele permanecem, enriquecidas de outras que lhes ministrou este demnio fantasista que me habita. Andando esta tarde com Glicrio por aqueles ladosao voltar de uma visita de psames a um companheiro de Seo, que perdeu a filhauma

dama-da-noite, pendente do gradil de ferro de certo jardim, atraiu-me a ateno e despertou-me lembranas. Com o crepsculo, j a flor abria suas grandes ptalas brancas. Era precisamente a casa a cuja porta bati, tempos atrs. Recordando-me do episdio e da voz purssima que trauteou a cano, perguntei ao Glicrio que moa ali morava. No a conhece? Deveras? a Carmlia Miranda. O pai, Dr. Aurlio, morreu h um ms. Ela vive com a me e um irmo pequeno. No, no conhecia. Nunca ouvira, mesmo, este nome to sugestivo. O nome o menos, observou Glicrio. A moa que fabulosa. No h criatura mais linda, nem mais fina nestas redondezas. Fomos caminhando juntos at que, no ponto de espera, nos separamos, tomando cada qual o seu bonde. Assim me vi desembaraado do Glicrio, desci pouco adiante. No preciso dizer o que fiz: voltei, a passos apressados, pelo caminho percorrido, movido por um pressentimento. Queria ver novamente a dama-da-noite; talvez escondesse a da cano, que devia ser.. . Quando de novo passei em frente da casa, uma jovem estava janela. Um relance de olhos revelou-me que sua fisionomia no me era estranha. J adivinharam quem seria: Arabela. Apressei os passos, com o corao em desordem, e, um pouco alm, voltei pelo lado oposto da rua. Perturbou-me bastante o encontro. Sou um incorrigvel produtor de fantasias, a retalho e por atacado, e fiquei a imaginar doces coisas. Esquecime desta triste figura e sonhei um terno idlio. Quando cheguei a p, ao Bar do Ponto, estava, nada mais, nada menos, transmudado em distinto cavalheiro que seria o protetor da donzela, sucedendo, na casa, ao falecido pai. Mas preciso comprar as alianas e um presente muito bonito, lembrava um anjinho amvel. E uma fatiota nova, sugeria um arcanjo. Na Rua Er, senti-me nomeado segundo oficial e cheguei a enxergar no Minas Gerais, em caracteres ntidos, o ato do Governo promovendo, por merecimento, o amanuense Belmiro Borba. Aumenta-se o peclio da Previdncia e toma-se um emprstimo em dezoito prestaes, sussurrou uma voz. Pode-se, mesmo, construir uma casa, segundo o novo plano predial... E assim continuaria, leitor, se eu no ouvisse uma risada quando entrei em casa. Foi o demnio da Jandira que me tirou daquela sorte de embriaguez. Que susto me pregou, entrando aqui com essa cara de alma do outro

mundo! H uma hora estou esperando voc sozinha, neste escritrio. A velha est hoje inabordvel e por pouco batia-me a porta no nariz. Que casa hospitaleira! disse, pondo-me a mo sobre o ombro. Refeito do abalo, balbuciei qualquer esfarrapada desculpa, enquanto, no ntimo, procurava descobrir a razo da presena de Jandira. No que sejam raras suas vindas Rua Er, mas, sempre que aparece, tem qualquer problema a resolver. Fao por ser engraado e lhe digo tolices, mas bem sabe que. ao cabo de contas, possuo um invarivel bom senso e termino aconselhando-lhe qualquer coisa sensata. Da roda, fui o nico que no tentou conquist-la. J lhe disse que, infelizmente, nisto no andou virtude, e sim timidez. Dias houve em que ela me perturbava profundamente, e por pouco no lhe teria dito as palavras do desejo, que so as mesmas, em todas as lnguas e em todas as pocas. Louvado Deus, que me fez tmido, nossa amizade sobreviveu a essas crises e acabou por criar certos tabus entre ns. Quando, como hoje, ela me vem to desejvel e to perigosa (como a sade de Jandira convida a uma ligao menos literria, mais naturista!), volvo os olhos para um lado, recusando-me devaneios acerca de sua geometria e convocando este anjo latente e prestimoso que nos segue como a sombra Afinal, Jandira voltou sem dizer o que queria. De acordo com a ttica epistolar do sexo, costuma insinuar o que deseja somente no post-scriptum, e com ar de indiferena, mas nem isso fez esta noite. Contou-me que obteve colocao no escritrio de um advogado, o Dr. Pereirinha; referiu-se maldosamente Joana e suas turras com Silviano; levou-me um livro e l se foi pelas oito horas, depois de, por duas vezes, tentar uma prosa com Emlia. Talvez tenha vindo apenas mostrar-me seu vestido novo, realmente encantador e provocante. As mulheres inteligentes no tm nisso menor prazer do que as outras.

11. O AMANUENSE AMANDO EST.ORA, d-se que comeo a amar. O sintoma positivo: acabo de tentar um poema, sob o olhar complacente do chefe da i&laISeo, que andando para l, para c, enrola um cigarro de palha e declara, sob reservas, que o deputado Fortuna est na bica de ser secretrio. O chefe pigarreia, finge que no nota, em minha mesa, uma folha de papel onde se alinham versos frustrados e se estende uma caprichosa srie de rabiscos, que a mo vai traando para disfarar sua incompetncia e esperar uma inspirao que no vem.

Meus honestos e graves companheiros de Seo se acham a postos. Tirante o Glicrio, que novo na vida e na burocracia, os demais passam dos quarenta, e h dois ou trs que excedem os sessenta. Bons sujeitos, mas sempre revoltados. Poucos deles assinam o ponto de humor sereno e com aquela uno de que deveriam estar penetrados, aps tantos anos de exerccio das suas funes. So raros os que chegam burocracia triunfante, que aquela em que o esprito se integra no bureau e o homem no mais do que um conjunto de frmulas e praxes, ou melhor, o prprio processo, em forma hiertica e cabal. Os mais ficam na burocracia militante e inconformada, recusando-se a pr o esprito em funo no ofcio que lhes parece to contrrio vocao e preferncias. E assinam o ponto com rebeldia na alma e desprezo pelas mos. O velho que se assenta a meu lado tem trinta anos de servio, j recebe adicionais e ainda acredita que nasceu para o brilho e a dignidade da Igreja. "Se eu no tivesse deixado o seminrio, talvez fosse bispo!" exclama ele, entre duas informaes deitadas com letra trmula num requerimento. Acol, outro, o Romualdo, que j requereu contagem de tempo para aposentadoria, com todos os vencimentos, suspira, cada dia, hora de encerrar-se o expediente: "Eu dava era para a poltica. Tinha jeito e tive padrinhos. Mas no tirei carta de bacharel, casei-me antes de tempo e aqui estou vegetando..." H outros que teriam feito carreira no Exrcito, na alta administrao, ou nas letras. Mas houve qualquer coisa que tudo atrapalhou, desviando-lhes a rota da vida. Admiro, como caso excepcional, o companheiro de cavanhaque e lunetas douradas, que trabalha no compartimento contguo. o Filgueiras. Sente-se que ele est firme e definitivo na sua escrivaninha de primeiro oficial. o homem que manda o peticionrio selar a petio e que volte, querendo. O processo sua religio e o senhor diretor a instncia suprema. Quando sorri, seu semblante se abre como que recitando a frmula "sade e fraternidade". Quando franze os sobrolhos, e isso acontece sempre que a praxe foi relaxada, seu vulto assume a solenidade de um edifcio pblico, e sente-se que, atrs dele, est todo um sistema de leis fiscais, com multas e penas. Mas, na generalidade dos casos, meus amigos da Seo exercem com desencanto suas funes; no nasceram para esta vida. Quanto a mim, se algo h de que me ache firmemente convencido ter neste bureau um destino lgico, que, no fundo, no me contrista. Mal posso,

na verdade, conter um movimento de ternura, quando contemplo, ao pr do sol, o edifcio grave, acolhedor, de nossa Secretaria, e quando me lembro da promessa honrada, que nos faz o Estado, de uma aposentadoria condigna. Ponho-me a imaginar um Belmiro sexagenrio que tenha renunciado compulsoriamente aos jogos do amor e j no sofra a necessidade dolorosa de compor um poema, ou de, com emoo mal disfarada, ir tentando sacar, do Glicrio, informaes mais circunstanciadas acerca da moa que apareceu na janela de uma casa, numa rua. Aos sessenta anos, um Belmiro triste, cptico, mas pacificado, j no sofrer donzelas, nem arabelas. *** Mas, ser o fenmeno amor? Creio que vos estou amando, Arabela. Zombe eu, embora, do flautista que, neste instante, acorda dentro de mim e tenta uma serenata. Eu vos estou amando e prestes me acho para as nossas impossveis bodas.

12. CONVERSAO COM JANDIRA.DESCOBRI hoje o motivo por que nossa amiga Jandira veio ver-me anteontem. Depois de animada reunio em sua casa, ou melhor, no pequeno apartamento que ocupa, com a tia, em uma casa de cmodos da Rua Curitiba, ela me chamou parte e tez algumas confidencias melanclicas. Vivemos to preocupados com o nosso prprio espetculo que no geral ficamos cegos para o alheio. Conheo-a desde dois ou trs anos, fizemos boa camaradagem ( minha nica amizade feminina) e, entretanto, no tive olhos para lhe ver alguma coisa, alm das graas de mulher, nestas compreendidas tambm as de esprito, de que a amiga bem dotada. Foi o Florncio quem promoveu o encontro. Informado de que Jandira se empregara, ele lhe exigiu, em nome dos amigos comuns, que o acontecimento tivesse comemorao condigna. Todos ns nos preocupvamos com o problema, e a colocao deveria ser bebemorada, segundo a expresso do Florncio, que, satisfeito com o trocadilho, o repetia para cada um que encontrava. Jandira levou a ultimao a srio e nos convocou esta noite. Quando l cheguei, j estavam todos, e mais um, desconhecido. A instalao quase to pobre como esta que me arranjei na Rua Er. Mas a amiga d uns toques tais, no arranjo domstico, que ali

sempre tenho a impresso de estar sendo recebido em casa de finos burgueses. Fui saudado com um "oh!" geral da roda e, vindo a meu encontro, Jandira me trouxe, logo uma cadeira e um copo, pois o chope j ia adiantado. Ela se ps muito bonita para nos receber e fiquei lisonjeado por mim e pelos demais. Apesar das dificuldades internas da casa (quando a amiga est desempregada, as duas passam aperturas com a magra penso que a velha Hortnsia recebe da Caixa Beneficente das Vivas e rfos dos Militares), Jandira se veste como filha de ricos. O que lhe falta em dinheiro, sobra-lhe em engenho, e as coisas se dispem de tal forma que ela a ningum cede em elegncias e modas. Tanto pior para o amanuense incauto, a quem estas modas de 1935 causam profundas perturbaes. Jandira est na fora da carne, e as formas, fielmente modeladas pelo vestido, no eram ontem propcias a pensamentos castos. Que deponha, a respeito, o Silviano, que as devorava com os olhos, j estando meio alterado pela bebida e sem os freios que a discrio nos impe. Com a minha chegada, o colquio, que deveria correr animado antes, parou um pouco. Falariam de mim? Algum devia estar penando, pois o tom geral era de sorrisos maliciosos. Para dizer qualquer coisa e integrar-me na roda, livrando-me dessa situao aborrecida de quem chega e interrompe o fio da conversa, aproximei-me do Silviano, perguntando-lhe como conseguira habeas-corpus da Joana, para comparecer na reunio. A presena do Silviano era, realmente, de se notar. Joana, embora conformada com as extravagncias do marido, no abre mo dos direitos de exercer sobre ele uma fiscalizao contnua. Por outro lado, Silviano no dos mais assduos em casa de Jandira, pois brigam, sempre que se encontram. Mentindo! respondeu nosso filsofo. Para todos os efeitos, estou na Gazeta de Minas fazendo reviso de um artigo que dei para o Suplemento. A mentira, Porfrio, a base da ordem domstica... Porfrio, no, Belmiro, retifiquei pela centsima vez. Silviano tem a mania de batizar cada pessoa com o nome que lhe apraz. Ao Florncio, costuma chamar-lhe Abundncio. Satisfeito com a oportunidade que lhe dei para um discurso, apegou-se ao assunto e continuou: O que ignoramos como se no existisse para ns. Com este princpio, arranjo-me em casa. Sou triplo, sou mltiplo, mas Joana s conhece uma face do monstro. o que preciso fazer, para acomodar as mulheres. Mas no pensem que fcil estabelecer uma combinao

constante de mentiras, que sustente o equilbrio do lar. preciso um exerccio longo... No para voc, cortou o Florncio, provocando uma gargalhada de todos, com essa aluso mitomania do Silviano. Sem responder, como um parlamentar experimentado que no d ateno aos apartes, este continuou a falar, no seu tom professoral: Um exerccio longo, a fim de que cada mentira se articule perfeitamente no sistema e seja, ao mesmo tempo, espontnea, lgica, estabelecida, entre ela e a verdade, apenas a diferena de substncia e no de forma. Para atingir a perfeio, devemos sempre mentir, haja ou no haja necessidade, isto que . Assim a mentira acaba vindo fcil, fluente, instintiva. Hoje sou um artista no gnero... Ningum duvida, aparteou outra vez Florncio, provocando novos aplausos. Dessa vez, Silviano encolerizou-se: No me dirijo a voc, truo! Estou falando s pessoas qualificadas desta roda... Um pouco impaciente com aquela farsa, Jandira interveio, manifestandose solidria com o sexo e assumindo um ar conservador, que me surpreendeu: No acho graa nenhuma nisso. Vocs, casados, deviam ter mais compostura. E se as mulheres resolvessem adotar sua teoria, para enganar os maridos? Acharia bom? Silviano no se perturbou: A mulher, minha flor, no necessita disso. Basta-lhe um homem, e o guerreiro requer muitas mulheres. So o passatempo do guerreiro... Glicrio, que nietzschiano, sorriu satisfeito. Animado pelo olhar de admirao deste, que contrabalanava a expresso hostil de Redelvim, Silviano continuou a discursar: A felicidade para a mulher est unicamente em divertir o guerreiro e pensar suas feridas... O que sei que vocs so uns cnicos, disse Jandira, irritada, interrompendo-o. A chegada da tia, que veio de uma novena na igreja do bairro, evitou que a conversa descambasse, conquanto a velha seja uma criatura aptica, uma sombra, cuja presena mal se sente. Fica, durante horas, junto a ns, alheada, como se estivesse a pensar no defunto major, cujo retrato pende da parede. Jandira diz que D. Hortnsia sempre anda assim, desde a morte do marido. Como despregada do mundo. Cumprimentou a todos, dando silenciosamente a mo a cada um, e se

ps a um canto, talvez assustada com tamanho alarido em sua sala. Redelvim, que at ento apenas bebia, atacou um assunto perigoso, exprimindo seu desprezo pelo Silviano e pelo Glicrio: Mentalidade srdida de burgueses! Vocs so uns idiotas e uns palhaos. Um palhao, o Pensador! Oh! Como isso me diverte! disse Silviano com um ar que parecia afetado, mas que lhe habitual. J o pilhei a conversar sozinho, e o tom que emprega em seus monlogos no outro. Chega a escandalizar-me esta minha condescendncia em vir conversar com vocs. uma verdadeira descida dos meus altiplanos. E por a se engalfinharam os dois, no se animando Glicrio a entrar na briga e apenas seguindo-a com um sorriso de aprovao ao Silviano. Passaram ao terreno da poltica. Desde muito, as discusses vm azedando nossa pequena roda e vejo que ela no tardar a dissolver-se, pois h foras de repulso, mais que afinidades, entre estes inquietos companheiros. Enquanto Glicrio e Silviano se inclinam para o fascismo, Redelvim e Jandira tendem para a esquerda. S eu e o Florncio ficamos calados, margem. Isso no quer dizer que me poupem. Redelvim me chama comodista e vive a dizer que, no meu "cepticismo de pequeno burgus (a expresso dele), sirvo, afinal, ao capitalismo. Silviano, ao contrrio, me repreende pelo que denomina "irreprimvel vocao plebia". O comeo de discusso tirou a graa da festa. No repetirei o que disseram, pois no disseram novidade. Magoaram-se uns aos outros, sem que nenhum ficasse abalado em suas convices. E criaram uma situao de tal constrangimento que cedo a reunio se dissolveu. Dispunha-me a sair, com eles e com o desconhecidoa quem atrs' me referi e que, durante todo o tempo, esteve calado, a beber, junto da velha, quando Jandira me tocou no brao, pedindo que ficasse mais um pouco porta da rua, para conversarmos a ss. *** J tarde e Emlia chama por mim, no quarto. Certamente precisa de algum remdio. Fica para amanh cedo o relato da conversa com Jandira. 13. A CONFIDENCIA. LOGO que Silviano, Glicrio, Florncio, Redelvim e o desconhecido se afastaram, Jandira me disse, meio sorridente:

Esse homem que esteve aqui e a quem vocs no prestaram ateno, est-me perseguindo com propostas de casamento. No possvel, respondi. Deve ter uns quarenta anos. Nesse caso, eu tambm me candidato, se voc estiver disposta a agentar com as manas. Deixe de ser bobo, estou falando a srio. a terceira vez que ele me prope casamento. Tem uns cobres, vivo, e insiste em dizer-me que abre mo de direitos de exclusividade sobre mim. Poderei continuar a mesma vida, ter sempre a companhia de vocs, no me quer escravizar. Sabe que velho e que no pode exigir muito. Pois ento fe