Novo Código Processo Penal

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    FDVMESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS

    CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS

    SRGIO RICARDO DE SOUZA

    COLISO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANAINVESTIGADA E A LIBERDADE DE INFORMAOJORNALSTICA: PROPOSTA DE SOLUO LASTREADANO CRITRIO DA PONDERAO DE VALORES, ATRAVSDA APLICAO DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE.

    Vitria2004

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    SRGIO RICARDO DE SOUZA

    COLISO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANAINVESTIGADA E A LIBERDADE DE INFORMAOJORNALSTICA: PROPOSTA DE SOLUO LASTREADANO CRITRIO DA PONDERAO DE VALORES, ATRAVSDA APLICAO DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE.

    Dissertao apresentada Banca Examinadora daFDV, como exigncia parcial para obteno do titulode Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais,sob a orientao do Prof. Dr. Angel Rafael MarioCastellanos.

    Vitria2004

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    SRGIO RICARDO DE SOUZA

    COLISO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANAINVESTIGADA E A LIBERDADE DE INFORMAOJORNALSTICA: PROPOSTA DE SOLUO LASTREADA

    NO CRITRIO DA PONDERAO DE VALORES, ATRAVSDA APLICAO DO PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE.

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________

    Prof. Dr. Angel Rafael Mario Castellanos

    Orientador

    __________________________________Prof. Dr.

    __________________________________Prof. Dr.

    Vitria,___de ______________de 2004.

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    "A liberdade de imprensa no um fim em si mesma,mas um meio para a obteno de uma sociedade

    livre.

    Felix Frankfurte, Ex-juiz da Suprema Corte dos EUA.

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    A Lili e aos meus filhos Srgio Ricardo e MichelleCristina, na expectativa de poder compensar osmomentos de lazer, de dilogo e de presena,dedicados presente pesquisa, e com a esperanade que compreendam essa ausncia como anecessria decorrncia da busca peloaperfeioamento profissional e humano, com vistas acontribuir para a formao de um mundo melhordestinado s futuras geraes.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Professor-Doutor Angel Rafael MarinoCastellanos, pela rdua luta em prol da indicaode novos paradigmas para a pesquisa jurdica,alm dos estreitos horizontes do formalismopositivista.

    Ao saudoso Professor-Doutor Renato Pacheco,por ensinar que sempre h tempo para sonhar epara realizar e que as realizaes intelectuais soeternas.

    Especial manifestao de apreo aos ProfessoresDoutores Alosio Krohling, Carlos Henrique BezerraLeite, Daury Csar Fabris, Erly Euzbio dos Anjos,Geovany Cardoso Jeveaux e Jos Roberto dosSantos Bedaque, sempre prontos a espraiar asluzes dos seus vastos conhecimentos cientficos,sem descurar da simplicidade e docompanheirismo.

    Diretoria, ao Corpo Docente e Coordenao

    de Mestrado da FDV, pela dedicao e incentivo.

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    RESUMO

    Com o advento da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, querepresenta a sntese do pensamento e dos valores dominantes em diversossegmentos da sociedade brasileira que se faziam representar entre os constituintes,o ordenamento jurdico ptrio foi enriquecido pela incluso de diversos princpios, osquais, em certas situaes, entram em rota de coliso quando exercidossimultaneamente, como se verifica em relao ao tema ora desenvolvido, queaborda a prtica que vem se tornando comum nos meios policiais e de imprensa,consistente na divulgao do nome ou da imagem da pessoa humana apontadacomo suspeita da autoria de uma infrao penal, seja durante ou mesmo antes dainstaurao do respectivo inqurito policial, sob a alegao de que esta prtica

    encontra-se amparada pela Liberdade de Informao Jornalstica. Entretanto, essadivulgao pode se mostrar afrontosa dignidade da pessoa humana doinvestigado, medida que no esteja presente o relevante interesse pblico nadivulgao desses dados componentes da personalidade do investigado,instaurando-se uma verdadeira coliso entre valores protegidos por princpiosinseridos na Constituio de 1988, que encontra soluo na utilizao no critrio daPonderao de Valores, atravs do Princpio da Proporcionalidade, nos moldesdesenvolvidos pela jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha eteorizada naquele pas principalmente por Karl Larenz, Roberty Alexy e no EstadosUnidos da Amrica por Ronald Dworkin. Concluindo-se que, presente o interessepblico na divulgao, prevalecer a Liberdade de Informao Jornalstica, mas,

    caso ausente esse interesse, dever prevalecer a proteo Dignidade Humana daPessoa Investigada, propiciando-se a divulgao do fato, sem referncia aos dadosqualificativos do suspeito, na forma preconizada no art. 143 da Lei n 8.069 de 1990,com vistas a garantir o ncleo essencial do princpio afastado e a evitar o seusacrifcio total.

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    ABSTRACT

    With the arrival of the Brazil Federative Republic Constitution of 1988, that representsthe knowing synthesis and the dominant values in several brazilian society segmentsthat were representative to the representatives, the patriotic juridical ordering wasriched by the inclusion of several principles that in some situations enter in collisionroute, when they are practiced in the same time, as can be verified in connection withthe developed theme that focuses the practice in which is becoming more and moreusual nowadays by both members of the Police force and the press. It refers toexposing the name and/or the image of Citizens, still during the process ofaccomplishment of the formalities in law, or even before the establishment of a policeinquiry, under the allegation that this practice is dully supported and granted by the

    freedom rights of the Press and the journalistic information. Nevertheless, thisexposure can be offensive to the accused person' dignity, because in same cases,there is no proof of relevant public interest in the disclosing and exposition of thoseinformation that deals with the defendant personality. This matter carries a realcollision with what is worth (people's values, protected by constitutional principlesinserted on the 1988 Brazilian Constitution (The Citizen Constitution), that founds thesolutions to give guarantee to people rights with the utilization of values ponderation,through Weighing of Values, based on the Principle of Proportionality, developed andsupported by the German Constitutional Court precedents and theorized in thatcountry, mainly by Karl Larenz and Roberty Alexy and in the United States ofAmerica by Ronald Dworkin, therefore allowing to the conclusion that, when there is

    evidence of public interest in the propagation, then Liberty for JournalisticInformation must prevail. On the other hand, when this interest is not properly shown,protection to Human Being Under Investigation's Dignity will prevail, and thetreatment which ought to be given is to allow the divulgation of the fact, without anyreference to any characteristics or personal data of the indict, or suspected, asprovided and determined by Law number 8.069, from 1990.

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    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................................. 111 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA................................................................................... 181.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VISO FILOSFICA OCIDENTAL .......... 181.2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA GRCIA ANTIGA ..................................... 221.3. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA FILOSOFIA CRIST ................................ 271.4. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VISO FILOSFICA MODERNA ............ 32

    1.4.1. A Dignidade da Pessoa Humana no Pensamento Kantiano......................... 331.5. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS DECLARAES INTERNACIONAIS

    DOS DIREITOS HUMANOS .......................................................................................... 371.5.1. A Contribuio da Magna Charta Libertatum para a Institucionalizao

    dos Direitos Humanos........................................................................................ 391.5.2. A Contribuio do Bill Rigths para os Direitos Humanos............................. 411.5.3. A Contribuio das Declaraes de Direitos Norte-Americanas para o

    Reconhecimento da Dignidade da Pessoa Humana...................................... 431.5.4. A Contribuio da Declarao Francesa para o Reconhecimento da

    Dignidade da Pessoa Humana.......................................................................... 461.5.5. A Contribuio da Declarao Universal dos Direitos Humanos para o

    Reconhecimento da Dignidade da Pessoa Humana...................................... 481.6. A CONSTITUCIONALIZAO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO

    DIREITO COMPARADO ................................................................................................ 511.7. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA

    CONSTITUIO FEDERAL DE 1998 ........................................................................... 561.8. DIREITO A PROTEO AO NOME, A IMAGEM E A HONRA, COMO REFLEXOS

    DA PERSONALIDADE DA PESSOA HUMANA ............................................................ 591.8.1. O Nome do Elemento da Personalidade.......................................................... 61

    1.8.2. O Direito Imagem como Elemento da Personalidade................................. 631.8.3. O Direito Honra como Elemento da Personalidade..................................... 69

    2 ORIGEM DA INVESTIGAO CRIMINAL E A SITUAO JURDICA DO SUSPEITOOU INVESTIGADO................................................................................................................ 742.1. A INVESTIGAO CRIMINAL NA GRCIA E EM ROMA ........................................... 79

    2.1.1. Do Sistema Inquisitrio Romano ao Medieval................................................ 822.2. O SISTEMA INQUISITRIO E AS INVESTIGAES EM PORTUGAL E NO

    BRASIL COLNIA ......................................................................................................... 842.2.1. A Investigao Criminal no Sistema Processual Penal do Imprio

    Brasileiro.............................................................................................................. 882.3. A ORGANIZAO DA POLCIA BRASILEIRA ............................................................. 922.4. A ORIGEM LEGISLATIVA DO INQURITO POLICIAL NO BRASIL ........................... 93

    2.4.1. Definio e Finalidade do Inqurito Policial.................................................... 942.4.2. Atuao da Autoridade Policial........................................................................ 962.4.3. Indiciamento no Inqurito Policial.................................................................... 972.4.4. O Sigilo e suas Dimenses............................................................................. 102

    3 O PAPEL DA LIBERDADE DA IMPRESSA....................................................................... 1063.1. CONTEXTUALIZAO DO SURGIMENTO DO ESTADO SOCIAL E DA

    EVOLUO DOS MEIOS DE COMUNICAO ......................................................... 1083.2. A ORIGEM DA LIBERDADE DE COMUNICAO E EXPRESSO.......................... 1103.3. O DESENVOLVIMENTO DOS MEIOS DE COMUNICAO E A LIBERDADE

    DE INFORMAO JORNALSTICA NO BRASIL ....................................................... 1123.4. AS DIMENSES DA LIBERDADE DE INFORMAO JORNALSTICA ................... 1173.5. O EXERCCIO DA LIBERDADE DE INFORMAO JORNALSTICA E A

    RELAO COM O PODER JUDICIRIO ................................................................... 1193.5.1. Prticas da Mdia que Afrontam a Dignidade da Pessoa Humana............. 125

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    4 A COLISO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INVESTIGADA E ALIBERDADE DE INFORMAO JORNALSTICA............................................................ 128

    4.1. FISIONOMIA DA COLISO ......................................................................................... 1284.2. SITUAO COLIDENTE E SUA CLASSIFICAO ................................................... 1304.3. PRICPIOS, NORMAS E REGRAS ............................................................................. 132

    4.4. CONSEQNCIAS DOS CONFLITOS ENTRE REGRAS E DAS COLISESENTRE OS PRINCPIOS ............................................................................................. 137

    5 A PONDERAO COMO SULUO PARA DIRIMIR A COLISO APONTADA........... 1425.1. A ORIGEM DA TEORIA DA PROPORCIONALIDADE ............................................... 149

    5.1.1. O Princpio da Personalidade e a sua Positivao no OrdenamentoConstitucional Brasileiro................................................................................. 150

    5.2. O PRINCPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO INSTRUMENTO DESOLUO ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE .......... 154

    5.3. A INTERVENO DO PODER JUDICIRIO PARA A SOLUO DA COLISO ..... 1615.3.1. Tutela Jurisdicional no se Confunde com Censura Prvia....................... 165

    CONCLUSO............................................................................................................................. 175RECOMENDAES................................................................................................................... 178

    REFERNCIAS ........................................................................................................................... 179

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    INTRODUO

    A escolha do tema tratado na presente pesquisa deve-se situao de perplexidade

    do autor, diante das constantes matrias divulgadas pela mdia, relativas a fatos que

    envolvem as mais diversas pessoas, na condio de suspeitas ou indiciadas,

    expondo de forma clamorosa o nome, a imagem e a pela prpria honra, terminando

    por, no raro, afrontar os direitos humanos vinculados personalidade do

    investigado.

    O sensacionalismo utilizado por grandes programas jornalsticos de alcance

    nacional, como servem de exemplo o Cidade Alerta, da Rede Record, o Reprter

    Cidado, da Rede TV, o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, dentre outros,

    mostram a violncia como um espetculo cotidiano que pode gerar entretenimento e

    audincia, no hesitando em dar uma nfase espetacular a fatos relativos a furtos,

    roubos, homicdios, trfico de substncias entorpecentes e outros, preferencialmente

    com uma abordagem direta do suspeito no momento da priso, submetendo-o a um

    interrogatrio prvio e transmitido, via satlite, para milhes de pessoas, com ousem o seu consentimento.

    Em face da proliferao desse modelo de programa jornalstico, ganha relevncia a

    necessidade de discusso do tema da Dignidade Humana da Pessoa Investigada

    entendida esta como a pessoa que se apresenta como suspeita ou mesmo

    indiciada, haja vista que o nosso Cdigo de Processo Penal se vale dessas formas

    para designar, indistintamente, essas duas espcies do gnero investigado - dianteda Liberdade de Informao Jornalstica, com vistas a se alcanar o objetivo de

    manter em alerta a Comunidade Jurdica contra esse descalabro, propiciando a

    constante aluso ao tema e o seu aperfeioamento.

    A designao Liberdade de Informao Jornalstica merecer a preferncia para

    designar essa espcie derivada do direito de liberdade, com vistas a propiciar um

    alcance mais abrangente do que liberdade de imprensa e de menor latitude do que otermo mdia, para evitar possveis crticas ou mesmo confuses terminolgicas

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    reducionistas, propiciando, tambm, submeter ao crivo do debate a programao da

    televiso, alm da forma tradicional de imprensa, que vem a ser a divulgao de

    notcias por meio de jornais, revistas e similares, procurando-se, com esse mtodo

    de anlise da liberdade de informao em sentido lato, enfatizar as matrias que,

    sob o manto da cobertura jornalstica, utilizam-se de marketing sensacionalista para

    alcanar um maior ndice de audincia ou de vendas.

    Releva observar que esse tipo de exposio feita pelos meios de informao

    jornalstica, no raro se faz acompanhar de um juzo de valor acerca do fato

    praticado, transmitindo aos leitores e telespectadores, uma opinio j formada

    acerca da culpa ou da inocncia do investigado, isso j no limiar das investigaes,onde muitas vezes a pessoa no ultrapassa a mera condio de suspeita, o que

    propicia a formao de juzos equivocados acerca do apressado "julgamento", com

    considerveis prejuzos para os direitos humanos da pessoa investigada, sujeita a

    sofrer uma injusta acusao, principalmente quando esta no se confirma ao final da

    apurao preliminar, ou mesmo durante a persecuo judicial.

    Alguns casos se apresentam como paradigmticos como o famoso caso queenvolveu a massiva divulgao de que os proprietrios da Escola de Base, em So

    Paulo, estariam promovendo abusos sexuais contra as crianas que estudavam

    naquele estabelecimento, sendo que, com o aprofundamento das investigaes,

    concluiu-se pelo total equvoco daquela suspeita inicial, o que levou ao

    arquivamento os autos do inqurito policial, a requerimento do Ministrio Pblico e

    com o aval do Poder Judicirio, mas no apagou a ndoa moral imposta honra

    daquelas pessoas humanas apontadas como culpadas pelos meios de informaojornalstica.

    Situao, tambm, difundida em nvel nacional, foi a suposta utilizao de areia

    retirada da praia, na construo dos edifcios que ruram, na Barra da Tijuca, Rio de

    Janeiro, no denominado caso Naya, informao esta que aps ganhar destaque

    especial, na fase inicial das investigaes, quando ainda se buscava apurar a

    existncia de possvel delito criminal e sua respectiva autoria, ou seja, na fase

    inquisitorial ou de investigao extrajudicial, terminou por no se confirmar ao final

    das investigaes e na fase judicial ou processual, pelo menos no que diz respeito

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    responsabilidade criminal do ento Deputado Federal e proprietrio da construtora

    responsvel pela obra.

    Situaes tais, por atentarem diretamente contra os direitos humanos do investigado

    e constiturem uma real e constante ameaa a todos, pois qualquer indivduo est

    sujeito a ser confundido com o autor de uma suposta ao criminosa, esto a

    merecer um estudo mais aprofundado, em nvel acadmico, visando apresentar

    sugestes e solues que auxiliem a por cobro a esse estado de coisas, que

    culmina em desrespeito dignidade da pessoa humana, a qual se constitui em

    fundamento da Repblica Brasileira (CF, art. 1, III) e, antes disso, foi erigida a um

    dos valores essenciais da prpria existncia do Estado Brasileiro, no prembulo daConstituio Federal de 1988, j que no possvel se alcanar um Estado

    Democrtico, cuja destinao assegurar o exerccio dos direitos sociais e

    individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e

    a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

    preconceitos, sem que haja efetivo respeito dignidade da pessoa humana.

    Nesta pesquisa, direciona-se o foco para a questo especfica do investigado nafase pr-processual, no Sistema Processual Penal Brasileiro, ou seja, delimita-se o

    enfoque para aquela pessoa em relao a quem se tem a suspeita ou mesmo

    indcios de ser o autor de uma possvel conduta delituosa, mas que ainda no foi

    denunciado pelo Ministrio Pblico ou acionado pelo Querelante - e que tratada

    indistintamente pelo Cdigo vigente como indiciado, no obstante se trate de

    situao em que o inqurito sequer tenha sido ainda instaurado - e, mesmo assim,

    tem a sua imagem e o seu nome divulgados pela mdia, tornando pblica aquelasuspeita ento existente contra ele, sem observar a garantia constitucional nsita no

    princpio da no culpabilidade, previsto no artigo 5, inciso LVII da Constituio

    Federal.

    Os meios responsveis por tais divulgaes, mesmo quando reconhecem a

    ocorrncia de certos excessos, buscam amparo na Liberdade de Informao

    Jornalstica, para justificar a divulgao dos fatos que entendem ser delituosos, bem

    como da imagem ou de dados caractersticos daquela pessoa indicada como

    suspeita que s possivelmente se tornar indiciada - no aceitando a limitao de

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    suas atividades, sob a argumentao de que esto agindo em benefcio da

    Sociedade, contribuindo na investigao e na indicao do culpado.

    Prope-se esta pesquisa a demonstrar que em vrias situaes, havendo o integral

    exerccio da Liberdade de Informao Jornalstica, prejudicada restar a Dignidade

    Humana da Pessoa Investigada, ao passo em que tambm o ilimitado exerccio da

    proteo aos direitos inerentes personalidade do investigado, poder, em

    determinados casos, importar na limitao abusiva daquela liberdade, necessria se

    fazendo a interveno Jurisdicional, com o intuito de estabelecer, com base no

    Critrio da Ponderao, atravs da Proporcionalidade, qual o valor que deve ser

    preservado no caso concreto, que configura a denominada coliso de valores.

    Assim, a pesquisa direciona-se a verificar a possibilidade dogmatica de se alcanar

    a justa soluo para a coliso entre a Dignidade da Pessoa Humana Investigada e a

    Liberdade de Informao Jornalstica, nos casos relativos a investigao pr-

    processual de fatos de natureza criminal, atravs da utilizao do critrio da

    Ponderao, valendo-se do Prncipio da Proporcionalidade, com vistas a no se

    permitir o uso abusivo de um dos valores reconhecidos Constitucionalmente etampouco o cerceamento desnecessrio dos mesmos.

    Em um enfoque subsidirio, pretende-se tambm apresentar soluo para a

    tormentosa crtica feita por parte dos profissionais da imprensa, os quais acusam o

    Poder Judicirio de estar afrontando a Liberdade de Informao Jornalstica e

    impondo uma injustificvel censura, quando, a pedido da parte interessada, concede

    tutela proibitiva da divulgao de fatos, imagens ou dados que possam nodoar osdireitos de personalidade da pessoa humana investigada, o que se apresenta como

    um sub-problema dentro do debate principal, a coliso entre o valor decorrente da

    Dignidade da Pessoa Humana e aquele valor vinculado Liberdade, dos quais

    derivam a Dignidade Humana da Pessoa Investigada que tem a proteo de sua

    personalidade afetada no aspecto honra e a Liberdade de Informao Jornalstica.

    Diversos autores brasileiros e estrangeiros j trataram do tema envolvendo a

    Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade, mas esses pesquisadores

    no fizeram a abordagem com o foco especfico na pessoa investigada na fase pr-

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    processual, ou seja, a fase delimitada entre a ocorrncia do fato delituoso e o

    trmino das investigaes preliminares, ocorridas fora do mbito judicial, com o

    objetivo de apurar a autoria e reunir elementos que permitam demonstrar a

    ocorrncia ftica e material do evento, para o posterior ajuizamento da ao penal

    respectiva, estando esta pesquisa dirigida exatamente a essa questo to relevante,

    mormente porque nela que mais se afiguram os abusos dos chamados programas

    jornalsticos e reportagens sensacionalistas, que sobrevivem atravs do desrespeito

    dignidade dos seres humanos que se encontram sob suspeita da prtica de

    infraes penais.

    Apresenta-se, assim, um problema relevante que consiste em analisar anecessidade de proteo Dignidade Pessoa Humana Investigada, quando esta se

    v diante da possibilidade de ter o seu nome ou a sua imagem divulgados pelos

    meios de comunicao de massa e, no mesmo contexto, proteger-se tambm a

    Liberdade de Informao Jornalstica, vista como um reflexo do valor Liberdade e

    que no deve, a princpio, sofrer cerceamento desnecessrio.

    A proposta de soluo desse problema passa pela utilizao do critrio deponderao de valores, vinculado ao princpio da proporcionalidade, na forma

    desenvolvida por tericos como Robert Alexy1 e Ronald Dworkin2, dentre outros,

    utilizando-se inclusive a experincia da Jurisprudncia alem e tambm da

    brasileira, como forma de alcanar uma soluo razovel para a identificao, no

    caso concreto, de qual dos valores deve ser preservado, diante desse fenmeno que

    os doutrinadores j citados identificam como sendo uma coliso de princpios.

    A metodologia utilizada baseou-se em estudos dogmticos presentes no direito

    comparado e tcnica de revises documentais e especificamente em jornais,

    revistas e textos publicados na Internet, bem como a bibliogrfica, que permitiu uma

    ampla viso doutrinria sob o tema, bem como a anlise das propostas de soluo

    para a coliso de princpios constitucionais apresentadas pela doutrina brasileira e

    pela estrangeira j referenciada, com nfase ainda para a obra de Jos Joaquim

    1 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de EstudiosConstitucionales, 1997.2 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Srio.Traduo Nelson Boeira. So Paulo: MartinsFontes, 2002.

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    Gomes Canotilho3.

    A abordagem dar-se- em cinco captulos, sendo que no primeiro captulo faz-se

    uma incurso pelo princpio da dignidade da pessoa humana e o seu alcance como

    princpio-base do regime democrtico brasileiro e, embora sem a inteno de

    esgotar o assunto - que se mostra complexo e cada vez mais empolgante medida

    em que se aprofunda a pesquisa - procura-se demonstrar que os direitos da

    personalidade do investigado no sistema processual penal brasileiro, em particular o

    seu nome, a sua imagem e a sua honra, recebem proteo constitucional e so

    reflexos diretos da sua prpria dignidade enquanto pessoa humana.

    O segundo captulo encontra-se reservado demonstrao da origem histrica da

    investigao criminal e de sua evoluo, permitindo essa perspectiva histrica uma

    melhor compreenso acerca dos fatores que influenciaram no modelo atual de

    investigao brasileira o inqurito policial - cuja implementao ocorreu no final do

    sculo XIX, atravs da Lei 2.033, de 1871 e dali migrou para o atual Cdigo de

    Processo Penal, sem grandes mudanas conceituais.

    O terceiro captulo se destina a demonstrar a origem da Imprensa e a evoluo dos

    meios de comunicao, alm do reconhecimento das liberdades que hoje so

    vinculadas a ela, bem como o relevante papel que os meios de comunicao

    desempenham no regime democrtico, exercendo uma atuao que tem levado

    alguns setores a considerar a Mdia em um sentido geral, como um verdadeiro

    Poder, o qu, embora sem uma sustentao na Teoria do Estado, termina por

    influenciar diretamente na formao da opinio pblica e tambm na atuao dosPoderes estatais propriamente ditos e decorrentes da tripartio das funes

    proposta por Montesquieu.4

    No quarto captulo avalia-se o entrechoque do princpio da Dignidade da Pessoa

    Humana, no que concerne especificamente a pessoa humana investigada na fase

    pr-processual vigente no Brasil e a Liberdade de Informao Jornalstica, quando

    3CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes.Direito Constitucional e Teoria da Constituio.5. ed.Coimbra: Livraria Almedina, 1997.4MONTESQUIEU. O Esprito das Leis.2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996.

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    esta exercida no sentido de divulgar o nome ou a imagem daquele, atravs de

    jornais escritos, de revistas e de programas transmitidos pela televiso.

    No quinto captulo apresentada a ponderao de valores como meio de

    equacionar a referida coliso, por meio da proporcionalidade, como preconizado

    pelos juristas estrangeiros j referenciadosilho ambm pelos brasileirros Daniel

    sarmento5, Gilmar Ferreira Mendes6, Luis Roberto Barroso7, Paulo Bonavides8, Willis

    Santiago Guerra Filho9, dentre outros que se aprofundaram no estudo do tema e

    constam das citaes da das referncias.

    A parte final destina-se s concluses desta pesquisa, com o precpuo objetivo deagregar ao espinhoso estudo da matria, mais esta pesquisa acadmica, ampliando

    e incentivando o debate desse rido tema, que por versar sobre valores da maior

    importncia para o desenvolvimento do ser humano, seja enquanto indivduo, seja

    enquanto membro de uma coletividade, dentro deste Pas, que amarga lembranas

    de um passado recente tenebroso no que concerne aos direitos humanos de seu

    povo.

    Encontra-se consignado nas concluses que o critrio da Ponderao, atravs da

    Proporcionalidade eficaz na tarefa de solucionar a coliso entre a Dignidade da

    Pessoa Humana Investigada e a Liberdade de Informao Jornalstica, podendo

    dele valer-se o Poder judicirio, ao enfrentar tais situaes, desde que o faa sem

    olvidar de que a restrio dever ser aplicada nos estritos limites em que se fizer

    necessria, sendo acompanhada sempre de fundamentos de fato e de direito que

    lhe dem sustentao.

    5 SARMENTO, Daniel. A Ponderao de Interesses na Constituio Federal. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2003.6MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade.SoPaulo: Celso Bastos Editor, 1998.7BARROSO, Lus Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas.Limites e

    Possibilidades da Constituio Brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.8BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.12. ed. So Paulo: Malheiros, 2002.9GUERRA FILHO, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3. ed. So Paulo: CelsoBastos Editor, 2003.

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    1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

    1.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VISOFILOSFICA OCIDENTAL

    rdua se apresenta a tarefa de apresentar uma definio ou conceito do que venha

    a ser dignidade da pessoa humana, mas desde j possvel perceber que essa

    definio no ser til se no deixar clara a convergncia existente entre a noo de

    dignidade, de vida e de humanidade, onde a vida do (ser) humano s obtmverdadeiro sentido se desfrutada com dignidade, j que o homem no somente um

    ser dotado de liberdade em seus diversos aspectos, mas tambm e principalmente

    uma pessoa dotada de individualidade e de necessidade de respeito aos valores

    alusivos a prpria condio.

    Apesar dessa sua caracterstica essencial, de ser dotado de valores individuais

    nsitos sua natureza humana, o homem um ser gregrio e no prescinde daconvivncia em grupo, conforme se apura ao longo da existncia da raa humana,

    razo pela qual, nessa convivncia com os seus semelhantes, para alcanar a sua

    auto-realizao, o homem precisa ter respeitados aqueles valores nsitos sua

    dignidade, sob pena de ver usurpada essa sua condio essencial de existncia

    com dignidade e passar a viver como um ser de somenos importncia perante si

    prprio e a seus semelhantes, pois quando um ser humano no pode desenvolver-

    se singularmente enquanto indivduo vem a ser violentado em relao ao ncleoessencial de sua humanidade e personalidade.

    Dentro dessa percepo, onde o ser humano apresentado como detentor de

    individualidade, mas tambm como membro necessrio de uma comunidade de

    outros seres detentores de igual individualidade, possvel apresentar como

    definio de dignidade da pessoa humana, uma idia, passvel de crticas e de

    aperfeioamento, onde o termo significaria o respeito a um conjunto de valores que

    propiciem a cada ser humano conviver em sociedade usufruindo dos direitos

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    inerentes a sua personalidade, at o limite em que o exerccio desses direitos

    venham a colocar em risco a possibilidade dessa convivncia harmnica.

    Apresentada, ento, como definio de dignidade da pessoa humana essa sua

    condio de ver considerado um conjunto de valores que propiciem o respeito a sua

    personalidade e individualidade, at o limite em que o exerccio dos direitos

    vinculados a esses valores no coloquem em risco a convivncia harmnica com os

    seus semelhantes, tm-se que reconhecer que a dignidade da pessoa humana

    representa um conjunto de valores inerentes a todos os membros da raa humana e

    que essa a dimenso em que deve ser concebida, para viabilizar uma proteo

    que abranja a relao indivduo-indivduo e tambm Estado-Indivduo.

    Diante dessa concepo, a prpria dignidade da pessoa humana se coloca como um

    valor superior, servindo mesmo para justificar o reconhecimento de diversos outros

    valores e garantias que juntos formaro a armadura dos direitos humanos

    destinados proteo individual e coletiva e previstos de forma especializada, como

    forma de proteo dignidade em seus diversos aspectos, como a vida, a liberdade

    e a honra.

    Essa concepo, entretanto, nem sempre esteve presente na Sociedade, eis que se

    apresenta como produto de uma lenta e gradual evoluo experimentada em

    diferentes momentos histricos, pelos diversos agrupamentos humanos - divididos

    sociolgica e geograficamente - tendo por premissa as particularidades culturais de

    cada povo, embora com uma evidente preferncia pela designao de Sociedade

    Ocidental, Sociedade Oriental, Sociedade Africana, dentre outras, utilizadas para

    separar aquilo que em verdade se constitui em uma s e grande sociedade, a raahumana.

    Nesta abordagem, estar-se- utilizando a evoluo histrica e filosfica apresentada

    pela chamada cultura ou sociedade ocidental, no s pela especial particularidade

    de o Brasil ter sido influenciado em sua formao jurdica e cultural,

    predominantemente pelas idias encontradas na civilizao ocidental, como tambm

    pela maior facilidade para se identificar os traos iniciais da idia de dignidade da

    pessoa humana hoje predominante neste pas, j na antiguidade grega e romana,

    que despontam como beros da cultura ocidental e que, enriquecidas pelos ideais

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    do Cristianismo e do Judasmo, terminaram por influenciar praticamente toda a

    Europa e os povos conquistados e colonizados por pases do velho continente,

    como ocorreu na relao de Portugal com o Brasil.10

    Nem por isso est se negando a importncia das chamadas demais culturas, com

    relevncia para a oriental, na formao da idia universal de Dignidade da Pessoa

    Humana, at porque reconhecida historicamente a inter-relao entre os povos

    ocidentais e os do oriente. Apenas evidencia-se que, na formao jurdica brasileira,

    houve predominncia da influncia direta do conquistador europeu e, como isso se

    repete em relao cultura e religio, o tema da Dignidade da Pessoa Humana

    no pode fugir aos influxos da anlise sob a gide da cultura ocidental e da evoluoexperimentada a partir da antiguidade greco-romana e dos movimentos filosficos

    experimentados por esses povos.

    Em que pese chamada dignidade da pessoa humana poder ser identificada j nos

    primrdios da civilizao, tendo experimentado evolues e retrocessos compatveis

    com os vrios estgios do desenvolvimento histrico, filosfico e sociolgico dos

    povos, evidencia-se que a preocupao com a normatizao e com a popularizaoda idia de Direitos Humanos aflorou com o estabelecimento da ordem burguesa,

    associada idia de liberdade e igualdade, retirados da filosofia humanista e do

    racionalismo, que inspiraram os movimentos iluministas dos sculos XVI, XVII e

    XVIII.

    Os Estados Unidos se apresentam como os precursores da formulao de uma

    declarao de direitos do homem, a Declarao de Virgnia (1776), em que peseesta no ter alcanado a dimenso e importncia histrica da Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado, de 1789, a qual veio ser incorporada pelo texto

    constitucional francs de 1791, servindo de paradigma para as constituies dos

    mais variados povos, nos sculos XIX e XX, verificando-se no bojo de ambas as

    declaraes uma preocupao em difundir aqueles direitos humanos vinculados ao

    Liberalismo, e em particular o combate ao Absolutismo.

    10NAVARRO CORDN, Juan Manuel; CALVO MARTINEZ, Tomas. Histria da Filosofia: dos pr-socrticos idade mdia. Traduo Armnio Rodrigues. Rio de Janeiro: Edies 70, 1983, p. 19-23.

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    A perspectiva liberal dos Direitos Humanos, consagrada nas constituies

    burguesas, baseava-se numa concepo imutvel, idealista, da natureza humana,

    de onde derivam os direitos de todos os homens, mas um longo perodo decorreu

    at a incorporao dos Direitos Humanos ordem internacional. O positivismo,

    reafirmando o primado dos Estados, contribuiu para impedir a admisso do indivduo

    como pessoa de Direito Internacional. Paulatinamente, os Estados comearam a

    estabelecer normas internacionais que, embora no reconhecessem a

    personalidade, pretendiam proteger a pessoa humana, fase esta considerada como

    a pr-histria dos Direitos Humanos na ordem internacional, que se evidencia com

    maior relevncia nos sculos XVIII, XIX e primeira parte do sculo XX.

    Somente a partir do trmino da Segunda Guerra Mundial, com a criao da

    Organizao das Naes Unidas, e por influncia dos horrores praticados dentro e

    fora dos campos de batalha, os Direitos Humanos passaram a integrar de maneira

    universal a agenda do Direito Internacional, principalmente com o advento da

    Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), que veio a propiciar elementos

    para a universalizao do daqueles Direitos, os quais passaram a integrar a pauta

    de discusso de diversos Estados e Organismos.

    Conforme j salientado, a noo de dignidade da pessoa humana possui sentido

    variado, consoante sua anlise seja feita em distintos tempos e culturas, razo pela

    qual, neste estudo, teve-se preferncia pela sua variao histrica, cultural e

    filosfica, tendo em vista a percepo da civilizao ocidental, seguida pela maioria

    dos Estados Modernos, os quais a tm por base dos seus textos fundamentais sobre

    Direitos Humanos, e mesmo a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de194811, deixa clara a sua viso de que os direitos humanos so a expresso direta

    da dignidade da pessoa humana, consistindo obrigao dos Estados de

    assegurarem o respeito que decorre do prprio reconhecimento dessa dignidade.

    Esta noo de dignidade como caracterstica comum a todos os seres Humanos, e

    que inspirou a designao dignidade da pessoa humana, em um sentido genrico

    de qualquer ser humano, relativamente recente, sendo por isso difcil fundament-

    11 A Declarao Universal dos Direitos do Homem foi aprovada na Assemblia-Geral das naesUnidas em 10 de dezembro de 1948.

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    la seno como reconhecimento coletivo de uma herana histrica da civilizao e

    produto de uma lenta e gradual evoluo dos valores humanos, situao que, na

    cultura ocidental, apresenta-se perceptvel a partir da antiguidade grega e romana.

    Visando uma melhor compreenso do desenvolvimento da dignidade da pessoa

    humana, embora sob o prisma perfunctrio do resumo, buscar-se- formalizar uma

    viso panormica dessa evoluo da dignidade da pessoa humana, abordando os

    principais momentos de sua evoluo histrica e os movimentos filosficos que

    influenciaram na formao e consolidao do valor dignidade.

    1.2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA GRCIA ANTIGA

    Na cultura ocidental, desponta a Grcia clssica, e em particular a Cidade-Estado de

    Atenas, centro cultural helnico construdo com o tesouro da Liga de Delos12, como

    o bero onde primeiramente se acalentou a idia de humanidade, inicialmente de

    forma pouco racional e mstica, atravs da abordagem de valores que realavam a

    pessoa humana cultuando-a e enaltecendo-a13como personagem de tragdias, namente criativa dos maiores poetas, dramaturgos, filsofos e historiadores de ento,

    os quais no utilizavam o termo, como na atualidade, para designar um

    acontecimento doloroso, catastrfico, acompanhado de muitas vtimas, ou ainda

    para descrever o desenlace de uma paixo qualquer que redundou num horrvel

    assassinato.14

    Ao contrrio, na Grcia antiga tragiks (tragdia)possua significado bem diverso,definindo uma forma artstica, ou algo que somente ocorria entre os grandes e, as

    tragdias gregas, principalmente do chamado perodo da Idade de Ouro, retratam

    aquela postura de procurar valorizar o ente humano, como se extrai da feliz frase

    atribuda a Protgoras (485-411 a.C.) o homem a medida de todas as coisas.15

    12PARMENIDES. Da Natureza. Trad.Jos Trindade Santos. So Paulo: Edies Loyola, p. 30-37.13FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexes sobre o poder, aliberdade, a justia e o direito. So Paulo: Atlas, 2002, p. 142.14LUFT, Celso Pedro. Minidicionrio Luft, 20. ed. So Paulo: tica, 2000, p. 645.15MAGGE, Bryan. Histria da Filosofia. 3. ed. So Paulo: Edies Loyola, 2001, p. 18.

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    No obstante esse avano, j percebido sculos antes da chamada Era Crist, no

    alcanaram os gregos uma percepo de pessoa, com o sentido e alcance que hoje

    se atribuiu, at porque, em um sentido etimolgico, pessoa deriva de persona, que

    era a mscara utilizada pelos atores teatrais da antiguidade, no estando vinculada

    diretamente com a idia de cidadania e direitos, impondo-se lembrar que entre os

    antigos, no havia uma concepo de sujeito de direito, em relao a qualquer

    indivduo. Na Grcia antiga, somente o cidado era detentor de direitos na polis, eis

    que at ento, a desigualdade era vista como nsita prpria natureza humana,

    mesmo na fase urea da Filosofia.

    Plato16, refletindo a realidade de seu tempo, bem como a particular situao dasCidades-Estado com a sua organizao scio-poltica, onde a uns poucos era

    reconhecido governar, a outros guerrearem e maioria, gerar produo para o

    sustento de todos, na qualidade de servo e, chegou a afirmar a condio de bem ou

    objeto do escravo, afirmando que qualquer pessoa, desde que goze de perfeita

    sanidade mental, poder tomar, se o desejar, seu prprio escravo e empreg-lo para

    qualquer finalidade legal.

    Apesar dessa viso ainda incompleta da magnitude do ser humano, j as obras

    deixadas j pelos dramaturgos gregos da antiguidade, possvel entrever que

    quela poca no lhes era totalmente estranha.a noo de dignidade humana, prova

    disso sendo Antgona, criao de Sflocles, datada do Sculo V a.C., que retrata a

    tragdia da personagem que contrariando as leis do Estado, enterra o irmo que

    deveria ficar entregue aos abutres e, aps enterr-lo, diante do questionamento feito

    por sua irm, Ismene, sobre o porqu de ela ter desobedecido lei, responde queno nasceu para o dio, mas sim para o amor17 e, respondendo a idntico

    questionamento feito pelo rei Creonte, Antgona completa o raciocnio afirmando que

    obedeceu a uma lei que no de ontem nem de hoje, mas de sempre.

    O fato de Antgona terminar a sua frase com a palavra amor, determina o

    reconhecimento de uma condio fundamental na espcie humana, o amor pelo

    16PLATO.As Leis: Da Legislao ou Epaminomis. Traduo Edson Bini. Bauru-SP: EDIPRO, 1999,p. 439.17ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Sflocles & Antgona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,2002, p. 38.

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    prximo, ao passo em que a afirmativa de obedincia a uma lei eterna, gera a idia

    de que h valores superiores que condicionam a existncia humana, os quais se

    encontram disseminados entre as pessoas e recebem uma valorao compatvel

    com a cultura que os alimenta.

    Ao se referir a dignidade da pessoa humana, torna-se necessrio refletir no sentido

    de que esse um valor inerente prpria condio de ser humano, no se podendo

    falar em direitos humanos sem ter a dignidade como ponto nevrlgico, merecendo

    recordar que ao se tomar por base o curto perodo em que a histria da Civilizao

    Ocidental18 se permite conhecer que no ultrapassa a 2600 anos j nos

    possvel verificar, mesmo em seus primrdios, a preocupao intelectual emreconhecer certos direitos que extravasam a vontade do homem e aos quais este

    no pode se opor.

    Essa viso de um direito superior vontade do homem, aparece como a raiz daquilo

    que no futuro viria a ser considerado fonte do chamado direito natural19 e para o

    efetivo reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos prprios direitos

    humanos to tardiamente concebidos no se podendo desprezar que ela j sefazia perceber mesmo no perodo nebuloso entre a seduo do mito e o incio do

    pensamento racional, ou seja, ao perodo inicial do conhecimento filosfico, que

    desponta por volta do sculo VI a.C., at porque um dos modos mais consistentes

    de caracterizar a filosofia atravs da histria, podendo-se considerar tal

    caracterizao praticamente como uma unanimidade.20

    No limiar desse florescimento da filosofia ocidental, j possvel vislumbrar a

    preocupao do intelecto humano com o reconhecimento de valores superiores a

    reger a relao entre os homens, extrapolando a prpria vontade e o poder do

    homem, sendo referncia desse perodo os textos dos poetas e dos historiadores, os

    quais se valiam do mito como forma de explicar e difundir os fenmenos que

    intervm ativamente nos acontecimentos csmicos e humanos, sendo paradigmtica

    18NAVARRO CORDN, Juan Manuel; CALVO MARTINEZ, Tomas. Histria da Filosofia: dos pr-

    socrticos idade mdia. Traduo Armnio Rodrigues. Rio de Janeiro: Edies 70, 1983, p. 9.19GUSMO. Paulo Dourado de. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 35.20MARCONDES, Danilo. Iniciao Histria da Filosofia: dos pr-socrticos a Wittgenstein. 6. ed.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 19.

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    a referncia que sempre se faz obra de Sfocles, que pela boca de sua Antgona

    fez ecoar a superior importncia de um Direito Divino, sobre aquele concebido pelo

    homem.21

    No texto, o teatrlogo ateniense Sfocles22, deu vida personagem Antgona, que

    expressou a sua indignao em respeitar a proibio imposta pelo edito de seu tio, o

    tirano Creonte, sendo que ao ser indagada pelo rei se conhecia o teor da proibio

    por ele imposta e do porqu de mesmo assim resolver desobedec-la, no exitou em

    responder afirmativamente e ainda acrescentar que a dita proibio no havia sido

    promulgada por Jpiter, concluindo por afirmar que:

    a Justia, a deusa que habita com as divindades subterrneas, jamaisestabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu dito tenhafora o bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas,que nunca foram escritas, mas so irrevogveis.23

    Ao assim proceder, Sfocles foi capaz de deixar registrado para a posteridade a

    importncia do reconhecimento de alguns valores essenciais para a existncia do

    homem em sociedade, fazendo-o de forma simples, atravs de uma personagemque no detinha o poder dos tits mitolgicos, possuindo, entretanto, a sensibilidade

    necessria para extrair da natureza das coisas a explicao para a sua pretenso de

    respeito queles valores, os quais so expressos de forma singela, mas profunda,

    no dilogo entre Antgona e Creonte, acerca do direito de a famlia conceder um

    enterro decente a Polinice na tumba- mesmo contra o decreto de Creonte que

    determinara que o cadver ficasse ao relento.

    Antgona questionou esse ato de Creonte, consubstanciado em um edito que previa

    a punio com morte para quem o desobedecesse, sob o argumento de que aquela

    determinao do rei ia de encontro ao direito inerente natureza e decorrente da

    existncia, ao qual atribua uma origem divina, de dar um enterro decente ao seu

    falecido irmo Polinice, colocando-o em uma tumba, como mandava a tradio de

    21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Direitos Humanos Fundamentais. 5. ed. So Paulo:Saraiva, 2002, p. 9.22ASSMANN, Selvino Jos. As Razes do Pensamento Filosfico. Disponvel em:. Acesso em 09 abr 2004.23Ibidem.

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    seu povo e o seu argumento tem servido, atravs de uma lenta evoluo surgida ao

    longo dos sculos, para alertar sobre a existncia desse direito chamado natural,

    cujo principal papel tem sido o de reconhecer que o ser humano dotado de alguns

    valores que transcendem a vontade do homem.

    O texto de Sfocles serviu de inspirao, assim, para a defesa da existncia de um

    Direito maior, cuja validade e existncia se sobrepem aos interesses mundanos, e

    que durante o perodo clssico se apresentou como o Direito Natural ditado pela

    Divindade e que por isso no poderia ser objeto de afronta pela Lei humana, no

    necessitando sequer ser escrito ou positivado para ser cumprido, dada a sua

    natureza superior e inquestionvel, muito embora esta no tenha sido a percepofilosfica clssica, a qual no vislumbrava uma supremacia do direito natural sobre o

    positivo, mas apenas distinguia o primeiro como o direito comum e o segundo

    como aquele criado e reconhecido pelo homem, tanto que na prpria pea em

    anlise, o edito de Creonte triunfou sobre o direito natural suscitado por Antgona.24

    Essa percepo da existncia de um Direito distinto daquele formulado pelo homem,

    pode ser identificado tambm no pensamento filosfico grego que concebeu oprimeiro como decorrncia de uma idia de justia universal e independente da

    vontade humana, ao passo que o segundo foi idealizado como aquele decorrente da

    vontade humana e formulado segundo as suas deliberaes.25

    Naquele perodo histrico-filosfico a questo entre o direito natural e o direito

    positivo era, ainda, uma bipolaridade mais filosfica e tica do que tcnico-jurdica,

    pois carecia de elementos reais e concretos, de uma sociedade plural ediversificada, em que essas noes de direito natural pudessem florescer e frutificar,

    o que se concretiza com o florescimento de Roma26, ao tornar-se metrpole mundial

    e dominar militarmente a Grcia, incorporando parte dos valores culturais helnicos

    24BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurdico: Lies de Filosofia do Direito. So Paulo: Icone, 1995,p. 25.25 BOBBIO, Norberto.Locke e o Direito Natural. 2. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia,1997, p. 33.26GILISEN, John. Introduo Histrica ao Direito. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,2001, p. 80-99.

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    e, dentre eles, a distino entre um suposto direito natural ou superior e o direito

    civil, de criao humana.27

    Lembra Bobbio28que os romanos, embora ainda inspirados no pensamento grego,

    formularam, tambm, o seu conceito de direito natural, tal como se v expresso em

    um fragmento do jurisconsulto Paulo, que foi registrado e inserido no Digesto D. 1, 1,

    11, permitindo concluir serem dois os critrios em que se baseia a distino entre

    direito natural e direito civil:

    a) o direito natural universal e imutvel (semper) enquanto o civil particular (no tempo e no espao);b) o direito natural estabelece aquilo que

    bom (bonum et aequum), enquanto o civil estabelece aquilo que til: ojuzo correspondente ao primeiro funda-se num critrio moral, ao passo queo relativo ao segundo baseia-se num critrio econmico ou utilitrio.29

    Na passagem da cultura romana para a medieval, houve uma profunda

    transformao que merece ser assinalada, devido ao cristianismo, que estabeleceu

    radical discrepncia entre as esferas da poltica e da religio, reservando para si a

    autoridade religiosa e deixando a potestasnas mos dos prncipes, muito embora o

    chamado Direito secular sofresse influncia direta da religio ento predominante, a

    catlica.

    1.3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VISO

    FILOSFICA CRIST

    O conjunto do pensamento e da evoluo cultural greco-romana serviu para lanar

    as bases para uma nova viso acerca do ser humano, no que concerne a sua

    racionalidade e valor. No entanto, na orientao judaico-crist, que posteriormente

    influenciou toda a cultura ocidental, que a idia de dignidade humana passa a

    experimentar o primeiro grande surto de desenvolvimento, lastreado este na idia do

    27NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 114-116.28BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurdico.Lies de Filosofia do Direito. So Paulo: cone, 1995,p. 19.29Ibidem, p. 19.

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    homem como criatura detentora da qualidade de ser a imagem e semelhana de seu

    Criador, consistindo, assim, o pice da criao Divina e portador de livre arbtrio.30

    Essa contribuio, trazida pela ideologia judaico-crist, apresentando o homem

    como um ser criado imagem e semelhana de Deus, aps os animais, tornando-se

    o coroamento da criao divina, fortaleceu-se atravs da patrstica de Santo

    Agostinho, defensor, em sua obra A Cidade de Deus, de que os dias da criao

    representam fases ascendentes de complexidade da interveno criadora do Todo-

    Poderoso. Assim, o homem bblico, criado no ltimo dia, seria o ser que, na terra,

    revelaria com maior nitidez o poder e a glria de Deus. O homem estaria situado em

    um plano intermedirio entre os animais irracionais e a Divindade, ao contrrio daviso Aristotlica que o definiu por baixo, ao dizer que ele era um animal racional ou

    animal poltico.31

    O Cristianismo tem como fatores histricos, em primeiro plano, a religio israelita, e

    em segundo lugar, o pensamento grego e o direito romano. De Israel o Cristianismo

    toma o tesmo e o rigor moral, elementos essenciais de sua estrutura doutrinria.

    Quanto ao pensamento grego, pode-se afirmar que contribuiu com o Cristianismoespecialmente para justificar-lhe os pressupostos metafsicos, ao passo em que o

    direito romano, por sua vez, teve o condo de contribuir para sistematizar o novo

    organismo social oriundo do Cristianismo, que consistiu na Igreja Catlica, herdeira

    da herana espiritual e poltica de Roma.32

    A partir dessa sistematizao, tornou-se possvel a formao de um quadro

    constitudo de telogos que vo moldar e influenciar a postura da Igreja e de seusseguidores, formando esses pensadores cristos dois grandes movimentos que

    atuaram desde o incio da organizao daquela poderosa instituio (Igreja Catlica)

    at o fim da Idade Mdia, lanando sua influncia sobre todos os pensadores

    30 FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo de Direito: tcnica, deciso,dominao. 2. ed. So Paulo, Atlas, 1994, p. 62-64.31MAGALHES FILHO, Glauco Barreira. Hermenutica e Unidade Axiolgica da Constituio. 2.ed. Belo Horizonte:Mandamentos, 2002. p. 139.32 FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo de Direito: tcnica, decisodominao. 2. ed. So Paulo, Atlas, 1994, p. 64-65.

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    daquele perodo e do perodo posterior, sendo esses movimentos denominados de

    Patrstica33e Escolstica.34

    Mesmo no se vislumbrando na Patrstica uma contribuio direta para o

    reconhecimento da dignidade da pessoa humana, apresenta-se perceptvel que ela

    contribuiu para firmar a idia do Direito Natural e de sua superioridade em relao ao

    direito positivo e, assim, colaborou para a difuso dos ideais da filosofia Crist, no

    experimentando uma maior contribuio at mesmo por ter nascido e perecido em

    um perodo histrico conturbado por guerras e pelo esfacelamento da organizao

    estatal e o fortalecimento do sistema feudal, poca onde os valores humanos foram

    sufocados pelas crendices msticas e religiosas, pela concentrao de poder nasmos de uma casta dominante (a nobreza) e por um acentuado servilismo, que

    advieram queda de Roma no Ocidente.

    No que se refere Escolstica, teve ela importante papel na definio do papel

    desempenhado pelo homem, a comear pela posio reservada lei, que segundo

    o seu principal representante -Santo Toms de Aquino - pode ser eterna, natural e

    humana (lex aeterna, lex naturalis et lex humana"), tendo tambm o condo demarcar a introduo do pensamento racional aristotlico na fase da Baixa Idade

    Mdia, adaptando-o filosofia Crist, em um processo de substituio parcial do

    pensamento platnico pelo de Aristteles.35

    A lei eterna a prpria razo divina, provinda de Deus, que dirige todos os atos e

    movimentos ("Ratio divinae sapientia e quod est directiva omnium actum et

    motionum"). apenas parcialmente cognoscvel, sendo apreendida atravs deDeus. A segunda categoria - a lei natural - vem a ser conhecida diretamente atravs

    da razo humana, consistindo na participao do homem na lei eterna, adequada

    sua prpria capacidade de compreenso, de apreenso36 ("ex naturalis, nihil aliud

    33Denomina-se de Patrstica ao movimento que representa o pensamento dos Padres da Igreja - osmestres da doutrina crist - o qual se estende entre os sculos II e VIII e tem como maior pensadorSanto Agostinho (354-430).34Relativamente a Escolstica, ultimo perodo do pensamento cristo medieval, que vai do sculoXII at ao fim do sculo XIV, era a filosofia ensinada nas "escolas da poca, pelos mestres,

    chamados, por isso, escolsticos.35MAGGE, Bryan. Histria da Filosofia. 3. ed. So Paulo: Edies Loyola, 2001, p. 59.36NAVARRO CORDN, Juan Manuel; CALVO MARTINEZ, Tomas. Histria da Filosofia: dos pr-socrticos idade mdia. Trad. Armnio Rodrigues. Rio de Janeiro: Edies 70, 1983, p. 117-140.

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    est quam participatio legis aeternal in rationali creatura, secundum proportionem

    capacitatis humanae naturae.") Finalmente, a terceira categoria , a lei humana,

    princpio que normatiza a ao dos homens, inveno social, a utilizar-se da lei

    natural por duas maneiras:a) "Per modum conclusionum" - representa concluses

    silogsticas deduzidas de premissas fornecidas pela lei natural. Assim, a lei natural

    fornecia as premissas maiores e menores para que a razo humana conclusse

    construindo as leis positivas justas; b) "Per modum determinationis" - consistente

    numa mais completa especificao do preceituado genericamente pela lei natural.37

    To decisiva foi a influncia exercida por Santo Toms de Aquino e seus seguidores,

    que a sua filosofia o Tomismo - de vis aristotlico, chegou a ser considerada adoutrina oficial da Igreja catlica por vrios sculos38 e, mesmo com as omisses

    encontradas na obra e no pensamento tomista, no se pode negar que graas a sua

    efetiva atuao e de vrios outros pensadores cristos, ainda quando a humanidade

    mergulhou no obscurantismo da Idade Mdia, no se apagaram por completo as

    luzes da racionalidade, que reacenderam j na baixa Idade Mdia, com a concepo

    de Toms de Aquino do direito de resistncia, que buscou fundamentar no

    reconhecimento da dignidade humana, entendendo a ordem jurdica deveriarespeitar esse valor, sendo que o desrespeito a tal exigncia consistia-se em motivo

    para o surgimento do direito de resistncia a favor daqueles beneficirios da

    ordenao.39

    Percebe-se que o princpio material subjacente prpria idia de dignidade da

    pessoa humana o princpio antrpico que acolhe a idia pr-moderna e moderna

    introduzida por Pico Della Mirandola, ou seja, do indivduo conformador de si prprioe da sua vida segundo o seu prprio projeto espiritual, agindo em racionalmente,

    orientado por seu livre-arbtrio.40

    37DEL VECCHIO, Giorgio.Lies de Filosofia do Direito.Armnio Amado Editores, Coimbra: 1972,

    p. 81.38MARCONDES, Danilo. Iniciao Histria da Filosofia: dos pr-socrticos a wittgenstein. 6. ed.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 127.39MAGALHES FILHO, Glauco Barreira. Hermenutica e Unidade Axiolgica da Constituio. 2.ed. Belo Horizonte: Mandamentos, p. 143-144.40CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p.225.

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    Essa mesma concepo crist, acerca da hegemonia humana sobre as demais

    criaes Divinas, inspirou Giovanni Pico Della Mirandola41, quando, j no

    renascentismo, deixou extravasar para o papel a sua percepo sobre o homem,

    com a sugestiva citao discurso sobre a dignidade do homem, atravs do qual

    ficam expressas as palavras que o Criador teria dirigido a Ado ao coloc-lo no

    Paraso, afirmando a ele [...] No te fiz nem celeste nem terrestre, nem mortal nem

    imortal, para que tu, livremente, tal como um bom pintor ou um hbil escultor, ds

    acabamento forma que te prpria.

    Apesar do efetivo contributo Cristo para a formulao da teoria dos Direitos da

    Pessoa Humana e para o reconhecimento contguo da Dignidade da PessoaHumana, inevitvel a constatao de que ele permeou mais o campo das idias do

    que o mundo real, at porque durante todo o perodo de influncia da Patrstica e da

    Escolstica, a Igreja esteve atrelada ao Poder Secular que governava os Estados e

    compactuou ou pelo menos tolerou a adoo de polticas efetivamente danosas para

    a raa humana, tais quais a adoo da pena de morte, as torturas somente

    condenadas expressamente no Sculo XIII e mesmo a escravido, que no

    encontraram resistncia por parte desses pensadores catlicos que teceram aideologia da Igreja at o Sculo XV.

    Atente-se para o fato de que mesmo o Doutor Anglico como era conhecido

    Santo Toms de Aquino -, embora defendendo a dignidade da pessoa humana, no

    adotou uma postura ideolgica contra a escravido, preferindo, tambm nesse

    delicado tema, aderir parcialmente ao pensamento de Aristteles, o qual expressara,

    em conformidade com o contexto social e histrico de sua poca que dista mais dequinze sculos da poca tomista - que na espcie humana havia indivduos

    inferiores aos outros, estando destinados ao trabalho bruto e escravido.42

    41DELLA MIRANDOLA, Giovanni Pico. Discurso sobre a Dignidade do Homem.Edio Bilingue.Lisboa: edies 70, 1989, p. 49, 51 e 53, Apud, Acessado em 19 de maro de 2004.42ARISTTELES. A Poltica. Traduo de Nestor Silveira Chaves. Bauru-SP: EDIPRO, 1995, p. 19.

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    1.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA VISO

    FILOSFICA MODERNA

    Atendo-se s perspectivas deste trabalho, importa ressaltar que houve,

    principalmente a partir do advento do Renascimento e do desenvolvimento da teoria

    racionalista, uma inegvel contribuio filosfica para o desenvolvimento da idia de

    dignidade da pessoa humana, com destaque para os filsofos Contratualistas, pela

    capacidade de demonstrar que o ser humano antecedia ao Estado e era detentor de

    direitos inatos.

    43

    Entretanto, dada a impossibilidade prtica de inserir nesta pesquisa, mesmo que

    sumariamente, o pensamento de cada um dos importantes filsofos que deixaram

    gravada a sua contribuio para o tema da Dignidade da Pessoa Humana, opta-se

    por apenas fazer uma aluso a pensadores jesutas como Francisco Vitria44 e

    Francisco Suares45 e aos contratualistas Tomas Hobbes46, John Locke47, Jean-

    Jacques Rousseau48, pela importncia do conjunto de suas obras, mas escolhe-se

    para representar o resultado do pensamento filosfico Ocidental do perodo posterior

    ao Renascimento e que se esgota com o advento do Estado Moderno, a figura mpar

    de Immanuel Kant, pela clareza e pela profundidade com que enfrentou o tema da

    dignidade da pessoa humana, sedimentando o caminho para o trfego seguro dos

    defensores das liberdades individuais, particularmente contra a prtica da escravido

    humana, situao ento comum no Continente Americano, sob patrocnio dos

    colonizadores europeus.

    43 Denomina-se renascimento, ao grande processo de renovao literria, artstica, cientfica efilosfica que se verificou na Europa, nos sculos XV e XVI, florescendo no seu contexto, omovimento humanstico.44RAVINOVICH-BERKMAN, Ricardo David. Hola, Histria del Derecho. Buenos Aires: EdicionesDunken, 1999, p. 44.45CRETELLA JNIOR, Jos. Curso de Filosofia do Direito.Rio de Janeiro: Forense, 1999.46BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Traduo Carlos Nlson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,

    1991.47MAGEE, Bryan. Histria da Filosofia. So Paulo: Edies Loyola, 2001, p. 102.48ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social.Traduo Edson Bini. Bauru,SP: EDIPRO, 2000.

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    1.4.1 A Dignidade da Pessoa Humana no Pensamento Kantiano

    Tendo vivido no perodo de 1724 a 1804, Kant foi contemporneo das revolues de

    vis liberal que surgiram no Sculo XVIII, com destaque para a Independncia dos

    Estados Unidos da Amrica (1776) e a Revoluo Francesa (1789) e a sua obra

    pode ser dividida em duas fases distintas, uma pr-crtica que se encerra com a

    sua Dissertao de 1770, e a outra, a crtica, que se inicia com a publicao da

    Crtica da Razo Pura (1781), sendo que naquela 1 fase ele pode ser considerado

    um representante tpico do chamado racionalismo dogmtico, com forte influncia

    da filosofia racionalista inspirada em Leibniz e desenvolvida por Christian Wolff, ao

    passo em que a segunda fase, do racionalismo crtico, teve inspirao em Hume e

    a pretenso de superar a dicotomia ento existente entre racionalismo e empirismo,

    sempre sem perder a perspectiva da liberdade da racionalidade como as

    caractersticas principais da humanidade.

    Torna-se imperioso se reportar a Kant na abordagem do tema, porque a concepo

    ainda hoje adotada, sobre a dignidade da pessoa humana, advm daquela por eleidealizada no Sculo XVIII, a qual mereceu, inclusive, a preferncia da Declarao

    Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em (1948), bem como da

    prpria doutrina jurdico-constitucional e filosfica, destacando-se que no contexto

    da obra do aclamado filsofo ressaltam-se dois problemas fundamentais, o primeiro

    dizendo respeito aos limites e possibilidades de aplicao do conhecimento,

    enquanto que o segundo que interessa diretamente a esta abordagem relativo

    ao humana e aos problemas morais nela envolvidos.49

    A contribuio de Kant, em sua obra "Fundamentao da Metafsica dos

    Costumes"50, foi um passo fundamental para que a dignidade da pessoa humana

    deixasse de ser, como na filosofia Crist, uma mera concepo formal, para se

    tornar concepo idealizvel materialmente e com uma justificava terica amparado

    no racionalismo, isso porque o filsofo de Konigsberg, foi capaz de perceber e

    49 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais naConstituio Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 25-61.50 OS PENSADORES Kant (II). Trad. Paulo Kintela. So Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 103-162.

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    expressar que o homem o nico ser deste mundo capaz de orientar suas aes a

    partir de objetivos racionalmente concebidos e livremente desejados, a partir do que

    a dignidade do ser humano consistiria em sua autonomia , que a aptido para

    formular as prprias regras de vida, ou seja, sua liberdade individual ou livre arbtrio.

    Na viso Kantiana o bem supremo a boa vontade, da qual a liberdade

    propriedade. O filsofo alemo define vontade (que no outra coisa seno a razo

    prtica) como a faculdade de escolher s aquilo que a razo, independentemente da

    inclinao, reconhece como praticamente necessrio, quer dizer, como bom, ou

    ainda, como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com

    a representao de certas leis, extraindo-se tambm de sua concepo, quesomente sob a idia de liberdade um ser racional pode ter vontade prpria. No que

    respeita vontade humana, ele diz haver um imperativo categrico cujo fundamento

    est no princpio objetivo da vontade, segundo o qual a natureza racional existe

    como fim.

    Todo imperativo se exprime pelo verbo dever, e pode ser hipottico ou categrico.

    Os hipotticos representam a necessidade prtica de uma ao possvel como meiode alcanar qualquer outra coisa que se quer (ou que possvel que se queira).

    Distingue-se do imperativo categrico porque neste a ao representada como

    boa em si, e no como meio para qualquer outra coisa, que caso do imperativo

    hipottico.51

    Essa filosofia Kantiana fundamentou o avano dos direitos humanos e se constituiu

    na grande marca da dignidade da pessoa humana e que permitiu uma efetivaevoluo de seu conceito enquanto reconhecimento de que a condio pessoa

    humana um valor intocvel, pois o ser humano sujeito consciente e capaz de

    pensar a si mesmo a as coisas que o cercam como objeto, sendo que o imperativo -

    que prtico - derivado deste princpio : Age de tal maneira que uses a

    humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e

    simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio, da derivando idias

    51KANT, Emmanuel. Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. So Paulo: cone, 1993, p. 5-43.

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    de valorizao do ser humano como condio de sua prpria natureza de

    humano.52

    Referindo-se ao problema tico na viso de Kant e sintetizando o seu imperativo

    categrico que tanto contribuiu para o avano da idia de dignidade da pessoa

    humana, Bertrand Russel53afirmou que: Esse pronunciamento um tanto austero ,

    na realidade, um modo pomposo de dizer que devemos agir para com os outros da

    mesma maneira que queremos que os outros ajam para conosco.

    A partir da viso Kantiana permitida a concluso de que no bastante agir de

    modo a no prejudicar a outrem, o que seria uma mxima apenas negativa, sendonecessrio tambm buscar, na medida do possvel, a satisfao do outro,

    realizando-se no s a prpria felicidade, mas tambm a dos semelhantes, desde

    que isso se apresente como possvel.54

    No obstante se reconhea alguma pertinncia nas crticas feitas idia de que o

    ser humano dotado de dignidade, como decorrncia de sua racionalidade

    excluindo-se, a contrrio senso, a dignidade dos demais seres vivos essa questoencontra-se fora do mbito deste trabalho e no ser aqui analisada, at porque,

    abstrada essa crtica ao antropocentrismo Kantiano e, j antes, a filosofia estica e

    crist, que seguiam a mesma linha, no pode ser desprezado que foi o efetivo

    repdio a qualquer tentativa de se tratar o ser humano qualquer humano como

    uma coisa ou objeto sujeito a preo, a idia que frutificou e possibilitou que se

    extirpasse o verdadeiro cncer social (a escravido) que manchou a humanidade,

    inclusive e principalmente o Brasil, por vrios sculos.

    Essa e outras idias insertas por Kant em sua obra Fundamentao da Metafsica

    dos Costumes, deixam explcito que nem toda relao entre dois seres racionais

    pode ser entendida como uma relao jurdica, somente merecendo essa

    designao aquelas relaes estabelecidas entre dois seres plena e igualmente

    52KANT, Immanuel. Apud Weffort, Francisco C. et al. Os Clssicos da Poltica. 10. ed. So Paulo:Editora tica, 2003, p. 96-98.53 RUSSEL, Bertrand. Histria do Pensamento Ocidental: a aventura dos pr-socrticos aWittgenstein. Trad. Laura Alves e Aurlio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 348.54COMPARATO, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos. So Paulo: Saraiva,1999, p. 20-23.

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    livres, pois somente nelas que se d uma relao real entre o dever de uma

    pessoa que corresponda a um direito de outra, razo pela qual pode-se deduzir que

    as relaes estabelecidas entre o homem e seres irracionais, entre o homem e

    escravos ou entre o homem e Deus no so, para Kant, relaes jurdicas.55

    Ademais, se no fosse o acolhimento dessa teoria, ou seja, caso a teoria da

    dignidade como atributo da racionalidade humana no tivesse vingado, seja na sua

    concepo estica, religiosa ou, principalmente na formatao secular apresentada

    por Kant, por certo no se estaria, no limiar do sculo XXI, discutindo a possibilidade

    de reconhecimento de dignidade a outros seres vivos, pois se a humanidade no

    tivesse sido capaz de perceber a necessidade de proteger a sua prpria dignidade pelo menos no aspecto jurdico dessa proteo - por certo no teria sensibilidade

    para reconhec-la em relao a outros seres.

    A contribuio Kantiana restou, assim, configurada principalmente nessa nova

    perspectiva que sua filosofia trouxe, em um momento especialmente importante para

    a Civilizao Ocidental o da incorporao e divulgao das idias do iluminismo

    atravs da Declarao Universal dos Direitos do Homem, que se seguiu RevoluoFrancesa de 178956 ajudando a abrir caminho para a consagrao da idia de

    dignidade da pessoa humana como uma ordem universal e aplicvel a todos os

    seres humanos, no importando sequer que estejam sob a gide de seu Estado

    natal ou de um Estado estrangeiro, levando-se em conta apenas o fato de serem

    membros da raa humana e se essa condio ainda no foi infelizmente

    alcanada pela raa humana, nem por isso h que se negar o grande mrito de Kant

    e de sua teoria.

    55GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferena: Estado democrtico de direito a partir dopensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 97.56No se est a afirmar que Kant tenha influenciado o pensamento dos revolucionrios franceses,mas sim, que a sua teoria surgiu em um momento contemporneo ao da Revoluo Francesa e

    conseqente divulgao dos ideais dela, atravs da Declarao Universal dos Direitos do Homem, oque, no aspecto que toca a esta parte do trabalho, relacionado com a dignidade da pessoa humana,foi positivo e contribuiu, posteriormente para a fixao daqueles ideais comuns em relao aosdireitos humanos.

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    1.5 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS

    DECLARAES INTERNACIONAIS DOS DIREITOS

    HUMANOS.

    A Idade Moderna caracteriza-se, logo em seu limiar, pela ruptura do direito natural

    com a religio, haja vista que tal direito passa a figurar no plano da racionalidade,

    sendo considerado produto da razo humana e no mais como uma ddiva do

    Criador. Assim, fixa-se a idia de que o direito emana da razo humana, sendo um

    produto dos valores culturais de uma determinada comunidade, passando a ser esseo perfil do pensamento jus naturalista, que teve o mrito de cogitar a ordem jurdica

    baseada na idia de um Direito Natural formatada com base no homem e no de

    origem divina.57

    A partir dessa viso racional, formou-se o cenrio ideal para que se concebesse anecessidade de que mesmo aqueles direitos tidos por fundamentais fossem objetos

    de institucionalizao ou inscrio em lei, de molde a ser possvel a sua imposiocontra o prprio Estado, que na concepo iluminista ento reinante, se apresentavacomo o grande algoz das liberdades pblicas e da autonomia do indivduo eprecisava ser limitado, apresentando-se como a melhor forma a sua submisso sLeis.

    Nesse perodo o Estado j no mais visto como algo externo ao querer humano,

    mas como produto da unio de muitas vontades individuais, ou seja, da vontade

    coletiva e com finalidades definidas, isso a partir da concepo das teoriascontratualistas que ganharam preeminncia a partir de ento, como forma de

    justificar a criao do Estado e da submisso dos indivduos aos comandos dele

    emanados.58

    Essas idias que germinaram no iluminismo h muito vinham sendo semeadas e

    disseminadas, a partir de movimentos que contestavam o modelo de Estado

    Absoluto e de que os governantes atuassem por vontade divina, forando a uma57NADER, Paulo. Filosofia do Direito.12. ed. Rio de janeiro: Forense, p. 131.58MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituio. Rio de Janeiro: 2002, p. 44.

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    reconceituao do Estado e das idias relativas a soberania e liberdade, tendo

    favorecido a essa nova concepo a secularizao, que levou separao entre o

    Estado e a Igreja, passando aquele a ser visto como algo ligado criao humana,

    terrestre, e no divina.59

    A secularizao afastou a autoridade poltica da eclesistica e possibilitou que o

    indivduo percebesse que o governante tinha a condio de comando do Estado,

    no por ter sido galgado quele cargo por determinao de um deus, ou porque

    fosse naturalmente superior aos demais membros de sua raa, mas sim, porque os

    indivduos que integravam aquele Estado, houveram por bem de criar os meios

    necessrios para que pudessem gozar de vrios direitos decorrentes de sua

    condio humana, sem serem molestados por outros indivduos, do mesmo ou de

    outro Estado.

    V-se, ento, que a partir dos acontecimentos vinculados aos movimentos filosficos

    identificados como Contratualismo, Individualismo e Iluminismo, foi possvel a

    difuso de idias como as de que o governante agia em nome de todos e de cada

    um e de que no poderia desrespeitar aqueles direitos inerentes condiohumana, o que pode ser percebido atravs da leitura dos textos das principais

    declaraes em que fez inserir tais direitos, a comear, at mesmo pelo simbolismo

    nela contido, pela Magna Carta inglesa imposta ao rei Joo Sem Terra.

    Em verdade, as declaraes de direitos tm o grande mrito de traduzir a vontade

    de determinados agrupamentos sociais, os quais, em um dado momento histrico,

    detm fora suficiente para estabelecer os valores bsicos que sustentaro o Estadoao qual pertencem e mrito ainda maior foi o de registrar tais valores por escrito,

    possibilitando assim a sua difuso entre outros povos e esse um dos mritos

    principais da prpria Magna Carta, que prestes a completar oito sculos de

    existncia, ainda aclamada como paradigma de diversos direitos humanos, em

    particular aqueles vinculados a valores que se expressam em garantias individuais.

    59CRETELA JNIOR. Curso de Filosofia do Direito. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 133-140.

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    1.5.1 A Contribuio da Magna Charta Libertatum para a

    Institucionalizao dos Direitos Humanos

    O primeiro documento histrico originado na sociedade e que se apresenta como

    uma limitao ao poder do Estado, data do sculo XIII (1215) e foi batizado de

    Magna Charta Libertatum, consistindo em uma declarao de direitos - muitos deles

    expressamente direcionados a limitar o poder de o soberano cobrar impostos que

    os bares, apoiados pelo alto Clero, impuseram ao enfraquecido rei Joo Sem Terra,

    da Inglaterra, sendo possvel localizar em seu bojo as razes de vrios direitosrelacionados com a liberdade e que somente vieram a se concretizar e efetivar,

    sculos aps.

    A Magna Carta guarda importncia significativa, no pela forma como foi imposta ou

    mesmo pelo seu alcance popular, eis que os direitos nela consignados no visavam

    a beneficiar a grande massa da populao inglesa de ento, que era composta

    principalmente por servos, aos quais ela no visava resguardar, j que elaborada eimposta como forma de garantir os direitos da elite daquela poca, mas aquela

    Declarao serviu para documentar a idia de que o Estado e o soberano no

    estavam acima das leis e que deviam respeitar certos direitos do povo.60

    V-se, pois, que alguns direitos inseridos naquela primeira Declarao escrita

    podem ser considerados como a semente que veio a germinar nos sculos

    seguintes, principalmente no reino ingls, propiciando o nascimento de importantesteorias e direitos que radicaram para novos textos, desta feita com alcance mais

    generalizado, possibilitando o desenvolvimento do ser humano enquanto sujeito de

    direitos e, alm disso, prpria idia de dignidade da pessoa humana, eis que

    naquela Carta encontram-se previstos os rudimentos de princpios como o da

    liberdade e do devido processo legal.61

    60GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 5 ed. So Paulo, Saraiva, 1996, p. 27.61SCHWARTZ, Bernard. Os Grandes Direitos da Humanidade. Trad. de A.B. Pinheiros de Lemos.Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1977, p. 16.

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    Emblemtico no texto de 1215 o vis garantidor, que embora estivesse

    direcionado apenas aos homens livres que eram minoria absoluta permitiu que

    ficasse registrado, por escrito, em uma sociedade cuja tradio o direito

    costumeiro, uma pliade de direitos que nos sculos seguintes vieram a ser

    reivindicados no em favor da nobreza, mas sim, contra os privilgios dela, como

    veio a ocorrer na Revoluo Gloriosa de 1689 e que at os nossos dias serve para

    ilustrar o bero desses direitos que se disseminaram pelos mais diversos

    Continentes, a ponto de o termo Magna Carta servir de mesmo de sinnimo para a

    denominao de Constituio.62

    As Constituies modernas inserem, praticamente como regra, nos seus textos, umaDeclarao de Direitos Fundamentais do Homem, o que perceptvel, inclusive, em

    todas as Constituies Brasileiras e essa prtica se iniciou na Magna Carta, de onde

    migrou para a Petition of Rights (1628), para o Habeas Corpus Amendment Act

    (1679), para o Bill of Rights (1688), ingleses e tambm, dentre outroa para a

    Declarao de Direitos do Bom Povo de Virgnia, de 1776.63

    V-se, portanto, que a Magna Carta serviu como uma espcie de germe e smbolode garantias vinculadas liberdade, principalmente pelo mrito de haver sido escrita,

    possibilitando que os valores nela introduzidos -em que pese nos sculos iniciais

    tenham permanecido restritos nobreza e ao clero se difundissem por

    praticamente toda a Europa a partir do Renascimento, influenciando na elaborao

    de outras declaraes, nas quais vieram a ser reconhecidos outros valores e

    extenses dos direitos a eles relacionados, at se alcanar aqueles diretamente

    vinculados dignidade do ser humano em geral, como a prpria garantia de habeascorpus, que embora j existente antes do advento dela, em seu texto foi

    institucionalizada como uma garantia para a proteo da liberdade de locomoo

    que posteriormente se universalizou, ressaltando-se que a liberdade uma das

    formas de se externar a dignidade da pessoa humana.

    62FIZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. Direito Constitucional Comparado. 3. ed. Belo Horizonte: DelRey, 1997, p. 52.63SILVA, Jos Afonso da. Manual da Constituio de 1988. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 23.

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    Apresenta-se patente esse mrito da Magna Carta, de ter deixado a sua

    contribuio, ao fixar valores como a liberdade individual, atravs de uma forma

    escrita, permitindo que as futuras geraes tivessem acesso queles ideais, dentre

    eles a divulgao do habeas corpus como instrumento de garantia da liberdade de

    locomoo, pois os princpios essenciais dessa garantia encontram-se no 29 da

    Magna Charta Libertatum .64

    1.5.2 A Contribuio do Bill Of Rights para os Direitos

    Humanos

    Em que pese existncia de outros documentos de defesa dos direitos, como a

    Petition of Right e o "Habeas corpus Act, a preferncia de abordagem pelo Bill of

    Rights (1689) se deve a sua importncia como o ato culminante do processo

    iniciado em 1215, com a Magna Carta, direcionado a reduzir os poderes do rei e,

    tambm, do Estado, como resultado da chamada Revoluo Gloriosa (1688), como

    os ingleses denominam o conjunto de atos polticos e jurdicos que os deixou livres

    das idias absolutistas65 - s quais o povo ingls sempre se ops -, instaurando a

    monarquia limitada por uma natural separao de poderes entre as casas

    parlamentares, o rei e os juizes, separao essa que ocorreu em um ambiente

    poltico conturbado, mas sem a marca dos anteriores conflitos armados e do

    derramamento de sangue e por isso a denominao de gloriosa.

    Esse documento, que no chega a possuir as caractersticas de uma declarao de

    direitos, eis que contm apenas trs direitos individuais expressos: a liberdade

    pessoal; a segurana e a propriedade, teve o grande mrito de, alm de concretizar

    os direitos pleiteados desde a Revoluo Inglesa iniciada em 1640 e que gerou

    desde a decapitao de um rei, at mesmo um longo conflito armado interno,

    possibilitar, com a deposio do rei Jaime II e a ascenso de Guilherme e Maria, que

    64

    MIRANDA, Pontes. Histria e Prtica do Habeas Corpus. 8 ed. So Paulo: Saraiva, 1979, p. 3.65COMPARATO, Fbio Konder. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos, So Paulo: Saraiva,1999, p. 78.

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    sucedem a ele, a aceitao pacfica da reduo do poder do monarca e a

    transposio do verdadeiro governo para o Parlamento, que embora ainda no

    tivesse a feio democrtica que hodiernamente se conhece, era escolhido de forma

    mais democrtica do que o sistema dinstico ento vigente.

    A marca desse documento a sua condio de prova real do resultado do longo

    perodo de conflitos entre a Coroa e o Parlamento, controlados, respectivamente,

    pela dinastia dos Stuarts e seus seguidores defensores do absolutismo e a

    burguesia ascendente partidria do liberalismo - onde estes saram vencedores e o

    Parlamento alcanou a sua to almejada supremacia sobre o monarca, situao esta

    preservada mesmo na atualidade, onde a realeza inglesa apresenta-se mais comoum smbolo, uma tradio, do que como um rgo detentor do poder estatal.66

    Merece ser reconhecido, tambm, a esse Documento, o crdito de fixar a idia da

    existncia de direitos que no derivavam da vontade do Estado, mas que

    acompanham o indivduo cidado ingls desde o seu nascimento, uma vez que

    no necessitou sequer da chancela do rei, para garantir a sua validade,

    apresentando-se em verdade como uma imposio dos representantes do povo,contra o Estado e o governante, que no era mais concebido como detentor de um

    direito divino, mas sim, como algum que governava por vontade do povo e que por

    isso estava sujeito, em suas aes, a respeitar a dignidade dos governados.

    Alm dos mritos j mencionados, o Bill of Rights serviu para divulgar, na

    qualidade de um documento de natureza oficial, produzido por um dos mais

    poderosos Estados daquele perodo histrico, as idias que j estavam sendodisseminadas pela doutrina anti-absolutista, com nfase em Edward Coke67 e no

    supremo liberal John Locke68 cuja obra floresceu exatamente nesse perodo -

    que inclusive encontrava-se exilado na Holanda e retornou justamente com a queda

    de Jaime II, ainda em tempo de irradiar sua doutrina para o alm-mar, alcanando e

    66WEFFORT, Francisco C.(Org.) et al. Os Clssicos da Poltica. Vol. 1, 10. ed. So Paulo: Editoratica, 2003, p. 82