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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO (*) VI —DIOGO MENDES DE VASCONCELOS EM ROMA Na sua tese de licenciatura, intitulada Obra Poética de Diogo Mendes de Vasconcelos (1), Coimbra, 1962, o Prof. Doutor José Geraldes Freire, citando Barbosa Machado, atribui-lhe justificadamente, uma Oratio funebris in obitu Principis Ioannis, Romae habita e acrescenta : «Ora do Arquivo Secreto do Vaticano consta que no dia 16 de Março de 1554 foram celebradas solenes exéquias na Igreja de Santa Maria dei Popolo, por alma do filho de D. João III, o Príncipe D. João, fale- cido a 11 de Janeiro anterior, e que nessa cerimónia um padre de nação portuguesa proferiu uma oração fúnebre. Somos, pois, levados a crer, embora não conheçamos o sermão então pregado, que o orador foi Diogo Mendes de Vasconcelos». De facto, nos Carmina de Poetis Lusitanis ad Ignatium Moralem (2), longo poema de 594 versos em que Pedro Sanches mencionou ses- senta poetas novilatinos portugueses que escreveram até 1580, ano provável do seu falecimento, encontram-se, entre os versos que se referem a Diogo Mendes de Vasconcelos (254-273), alusões claras ao êxito alcançado em Roma pelo humanista português. (*) As anteriores, números I a V, foram: «I — A propósito de Luísa Sigeia» e «II — A idade de João Rodrigues de Sá de Meneses» em Humanitas, xxi-xxii, 1969-70, pp. 403-416; «III —Ainda o latim de Gil Vicente», «IV — Tituvilensis em Cataldo» e «V — Três documentos respeitantes a Salvador Fernandes», ibi- dem, xxiii-xxiv, 1971-72, pp. 473-480. (1) Cf. Humanitas, xv-xvi, Coimbra, 1963-64, onde o mesmo trabalho foi publicado com «Aditamentos e Correcções» que vêm nas páginas 257-260. (2) Este é o título do poema no .MS. F. G. 6368 da Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi também publicado no Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui Latine scripserunt, nunc primum in lucem editum ab Antonio dos Reys (...) nonnullisque poetarum uitis auctum ab Emmanuele Monteiro (...), tomus I, Lis- bonae (...) MDCCXLV, pp. 11-34, com o titulo de "Epistola ad Ignatium de Moraes".

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO (*)

VI —DIOGO MENDES DE VASCONCELOS EM ROMA

Na sua tese de licenciatura, intitulada Obra Poética de Diogo Mendes de Vasconcelos (1), Coimbra, 1962, o Prof. Doutor José Geraldes Freire, citando Barbosa Machado, atribui-lhe justificadamente, uma Oratio funebris in obitu Principis Ioannis, Romae habita e acrescenta : «Ora do Arquivo Secreto do Vaticano consta que no dia 16 de Março de 1554 foram celebradas solenes exéquias na Igreja de Santa Maria dei Popolo, por alma do filho de D. João III, o Príncipe D. João, fale­cido a 11 de Janeiro anterior, e que nessa cerimónia um padre de nação portuguesa proferiu uma oração fúnebre. Somos, pois, levados a crer, embora não conheçamos o sermão então pregado, que o orador foi Diogo Mendes de Vasconcelos».

De facto, nos Carmina de Poetis Lusitanis ad Ignatium Moralem (2), longo poema de 594 versos em que Pedro Sanches mencionou ses­senta poetas novilatinos portugueses que escreveram até 1580, ano provável do seu falecimento, encontram-se, entre os versos que se referem a Diogo Mendes de Vasconcelos (254-273), alusões claras ao êxito alcançado em Roma pelo humanista português.

(*) As anteriores, números I a V, foram: «I — A propósito de Luísa Sigeia» e «II — A idade de João Rodrigues de Sá de Meneses» em Humanitas, xxi-xxii, 1969-70, pp. 403-416; «III —Ainda o latim de Gil Vicente», «IV — Tituvilensis em Cataldo» e «V — Três documentos respeitantes a Salvador Fernandes», ibi­dem, xxiii-xxiv, 1971-72, pp. 473-480.

(1) Cf. Humanitas, xv-xvi, Coimbra, 1963-64, onde o mesmo trabalho foi publicado com «Aditamentos e Correcções» que vêm nas páginas 257-260.

(2) Este é o título do poema no .MS. F. G. 6368 da Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi também publicado no Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui Latine scripserunt, nunc primum in lucem editum ab Antonio dos Reys (...) nonnullisque poetarum uitis auctum ab Emmanuele Monteiro (...), tomus I, Lis-bonae (...) MDCCXLV, pp. 11-34, com o titulo de "Epistola ad Ignatium de Moraes".

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Com efeito, dos dezanove versos que Pedro Sanches lhe dedica, referem-se sem sombra de dúvida a essa oração fúnebre os seguintes:

Hunc olim Romae lugentem funus acerbum DM Ioannis laudati Principis, et quem Ad Superos multum defletum misimus omnes, Auribus arrectis Próceres, sacrique Senatus Attoniti auditasse Patres, Summusque Sacerdos 270 More Periclaeo pro rostris uerba tonantem; Et tale ingenium formari posse negabant Veruecum in pátria, et crasso sub sidere nasci.

«Quando, outrora, em Roma, lamentou a morte cruel do «malogrado príncipe, filho do divino João, esse príncipe que, com «muitas lágrimas, todos vimos partir para o Céu, ouviram-no, «de ouvidos atentos, os grandes, e atónitos, os membros do Sacro «Colégio e o Papa, enquanto ele trovejava da tribuna, com elo-«quência digna de Péricles. E afrrmavam que engenhos como o «dele não podiam formar-se numa pátria de carneiros e nascer «sob um céu espesso.»

O último verso aproveita uma sugestão de Juvenal, Sátiras, X, 50, substituindo uma palavra {sidere, em vez de aere) e usando o conceito sob forma negativa, para exaltar no triunfo oratório de Mendes de Vasconcelos o prestígio intelectual da sua pátria.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO

VII —AIRES BARBOSA E ERASMO

O erro de uma vogal, de e por a, em quidem por quidam, verificado nos Carmina de Poetis Lusitanis, de que nos vimos ocupando, em dois versos referentes a Aires Barbosa, levou a acentuar o seu Erasmismo, sob responsabilidade de Pedro Sanches.

Eis os dois versos com que é laconicamente caracterizado o autor da Antimoria:

Nec sonat illepide prauam qui damnât Arius Stultitiam, quam quidam olim laudauit inepte.

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Mais de uma vez citando estes versos, li no segundo hexâmetro quidem, quando na realidade lá se encontra, quer no texto impresso, quer no manuscrito, quidam. Ninguém até hoje me corrigiu, mas apresso-me a fazer a autocorrecção, traduzindo:

«E não soa desgracioso Aires, ao condenar a Estultícia que alguém outrora louvou insensatamente».

E assim fica reforçado o apreço de Pedro Sanches pelo insípido poema com que Barbosa, muito mais feliz nos pequenos epigramas, pretendeu um dia notabilizar-se à custa do 'Eyxá/uov' erasmiano.

A. C. R.

VIII —MARTIM DE FIGUEIREDO E ERASMO

O jurista Martinho ou Martim de Figueiredo comentou na Uni­versidade de Lisboa muitos livros da Historia Naturalis de Plínio-o-- Velho, a pedido dos amigos que «sabiam, naturalmente, ter ele ouvido todo o Plínio a esse grande homem que foi Ângelo Policiano» (3).

Acabou por publicar apenas o livro I, constituído pela carta de Plínio a Tito, segundo um texto estabelecido pelo humanista florentino. Esse texto, aliás, encontrava-se já ultrapassado, quando Figueiredo o publicou. Mas a edição crítica de Plínio é de Policiano e não do seu discípulo português.

Também o comentário não é todo do mestre de Florença, pois este faleceu em 1494 e são citadas palavras de Erasmo, publicadas pela primeira vez em 1500.

Assim, comentando a expressão lac gallinaceum na folha xxxiiij r° escreve, entre muitas outras coisas, o seguinte:

«notissimum est prouerbium hoc apud muitos auctores praecipue «graecos.. Aristophanes comicus in quadam fabula cuius

(3) Ecce uiri aliquot doctissimi magnis a me precibus non modo petere sed etiam efflagitare coeperunt, ut Plimum ipsum interpretari et explanare atque publiée profited non recusarem, scientes .s. eum me umuersum audiuisse a summo illo uiro Angelo Politiano. (foi. xliv v°). A grafia e a pontuação do latim foram actuali­zadas nesta e nas restantes citações.

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«sententia haec est per doctissimum uirum Erasmum in latinum «traducta: dabimus uobis ipsis filiis filiorum filiis opulentiam bonae «ualitudinis felicitatem facultates pacem iuuentam risum choros «festa lac gallinaceum ut sitis prae bonorum copia laboraturi». (4)

A lacuna no texto impresso destinava-se a colocar o nome grego da peça e ficou em branco porque, como explica Martim de Figueiredo na carta final, dirigida «humanissimis atque acutissimis lectoribus», «não devo ocultar que faltaram os artistas que vulgarmente se chamam impressores que adornassem com letras e ditongos gregos este meu livrinho, onde tal era necessário. Por isso, ensinou-me a suportar com paciência esta situação aquele dito de Terêncio, segundo o qual, uma vez que não podes fazer o que queres, quer tu aquilo que podes. Portanto, não gostaria de que essa deficiência fosse atribuída a igno­rância ou negligência minhas» (5).

Mas o nome da peça encontra-se, consultando os Adagia de Erasmo em lac gallinaceum. Trata-se de "OQVIQE;, 729-736. Ignoro, aliás, se lac gallinaceum aparece logo na primeira edição erasmiana, porque, se assim não acontecer, a edição consultada por Martim de Figueiredo é ainda posterior a 1500.

Deste modo, ao contrário do que tem sido afirmado tão frequen­temente, nem o texto crítico do livro I da Historia Naturalis, publicado em Lisboa, em 1529, é do português Martinho ou Martim de Figuei­redo, nem o seu comentário pertence inteiramente a Ângelo Policiano.

A. C. R.

(4) «É conhecidíssimo este provérbio, de muitos autores, principalmente gregos. O poeta cómico Aristófanes em certa peça (...), cuja frase é a seguinte, traduzida para latim pelo doutíssimo Erasmo : daremos a vós, aos filhos e aos filhos dos vossos filhos saúde em abundância, felicidade, riqueza, paz, juventude, riso, danças, festas, leite de galinha, de modo a ficardes embaraçados com a abundância dos bens» (foi. xxxiv).

(5) Non est etiam silentio praetereundum defuisse mihi artifices qui uulgo impressores appellantur qui litteris graecis ubi opus erat atque diphthongis opus-culum hoc adornarent. Quapropter aequo animo hoc me ferre docuit Terentianum illud: quoniam non potest fieri id quod uis, id uelis quod possis. Non ergo igno-rantiae uel negligentiae hoc mihi ascribendum esse uelim» (fol. xlv v°). A citação de Terêncio vem de Andría, 305-306.

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IX —TRÊS REFERÊNCIAS QUINHENTISTAS

A LUÍS TEIXEIRA

Luís Teixeira Lobo, o filho do chanceler-mor João Teixeira, conhecido também pelo nome de Luís Teixeira ou, no latim dos huma­nistas, pelo de Ludouicus Tessira (6), é dado como vivo em 1529 e 1534 pelo testemunho de textos latinos que me não parecem convincentes para o efeito.

O primeiro vem da carta de Martim Figueiredo a D. João III, que antecede o Commentum in Plinii Prologum de que tratámos na nota anterior.

Dirigindo-se ao soberano, Figueiredo recorda-lhe, em 1529, o seu mestre Luís Teixeira e a opinião favorável que ele tinha da inteligência do pupilo, nestas palavras: «Por isso me lembro de que o teu profes­sor Luís Teixeira, homem de notável cultura, muitas vezes me disse sentir pena, em nome da ciência, quando pensava que serias necessa­riamente acrescentado ao número dos varões célebres da Antiguidade que se distinguiram pelo seu talento, se as infinitas ocupações do teu reinado o tivessem permitido» (7).

A expressão mihi saepe dixisse memini, «lembro-me de que muitas vezes me disse», parece evocar um passado que se não coaduna bem com a permanência de Luís Teixeira neste mundo.

Igualmente usado para provar que estava ainda vivo, mas em 1534, tem sido um trecho da oração inaugural desse ano, pronunciada por André de Resende na Universidade de Lisboa. Um dos estudiosos que mais recentemente se ocuparam do caso escrevia em 1969: «Da Oratio pro Rostris, de André de Resende, parece coligir-se que ainda vivia em 1534».

Pois creio que se pode concluir, de preferência, o contrário: «Não passarei em silêncio Estevão (Cavaleiro), homem indiscutivelmente perito em Gramática (Latina), que eu ouvi, quando era rapazinho, mal chegado aos oito anos. Nem o famoso Luís Teixeira, a respeito de quem não estou certo se era maior no conhecimento profundo do

(6) Com «i» breve ou longo, conforme as conveniências métricas. (7) Unde Ludouicum Texiram uirum doctissimum atque praestantissimum

praeceptorem tuum se condoluisse scientiarum nomine mihi saepe dixisse memini, existimantem, scilicet, te antiquorum uirorum praestantissimorum diuinis ingeniis connumerandum fuisse, si per infinitas regnorum tuorum occupationes licuisset. (foi. + ij)

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Direito, se na eloquência grega e latina e na sublimidade da inspiração poética» (8).

Aquela expressão Lodouicum Tessiram illum tem um sabor especial para o leitor frequente de Cícero. Soa claramente a passado e distância. Com efeito, o Arpinate usa regularmente ille, no sentido de "famoso, célebre", a respeito de figuras desaparecidas.

E neste ponto os documentos confirmam a impressão estilística. Há muitos anos, Anselmo Braamcamp Freire (9) deu notícia de um documento da Chancelaria de D. João III, livro 19.° de Doações, fl. 123, por onde se verifica ter o Doutor Luís Teixeira falecido, antes de 18 de Junho de 1533.

Mas continuo a pensar que o seu falecimento se poderia ter dado, mesmo antes da publicação do Commentum in Plinii Prologum de Martim de Figueiredo, cujo cólofon é datado de 13 de Junho de 1529.

E não creio que constitua contradição a esta hipótese o texto de Resende no Erasmi Encomium, de 1531, quando se refere a Luís Tei­xeira, aí dado como vivo:

Additur his Melius cum nobilitate et auorum sanguine turn, sophia clarus; Tessiraque notus 247 iam tibi in Ausoniis oris...

«e (junta-se) Teixeira que tu já conheces das plagas Ausónias...»

O poema foi composto por André de Resende, em Lovaina, antes de 1531, ano em que Erasmo o fez imprimir. E é natural que Resende, no estrangeiro, não soubesse ainda da morte de Luís Teixeira, se esta tivesse ocorrido não muito antes de 13 de Junho de 1529.

Em qualquer caso, Teixeira era homem de aspecto idoso quando Pedro Sanches, chegado a Portugal em 1525, no séquito da rainha D. Catarina, o conheceu:

Tu non inferior uenerandus, Tessira, canis, Tessira quem iuuenem uix Lusitânia quondam In Latias misit nostris de finibus oras 95

(8) Non transibo Stephanum, uirum sine controuersia grammaticissimum, quem ego puer uix adhuc octennis audiui. Non Lodouicum Tessiram illum, dubium iurisne peritia an graeca latinaque facúndia et poética sublimitate maiorem.

. (9) Gil Vicente, Trovador Mestre da Balança. Edição da revista 'Ocidente', Lisboa, 1944, p. 212 e nota 565.

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«Digno de veneração por teus cabelos brancos, ó Teixeira, não és inferior (a Henrique Caiado), Teixeira, que no começo da ado­lescência, a Lusitânia mandou outrora da nossa terra para as costas do Lácio...»

E o elogio de Pedro Sanches, nos Carmina de Poetis Lusitanis, desenrola-se por mais treze hexâmetros dactílicos, recordando os versos latinos de Teixeira, hoje perdidos, sobre a cidade de Roma, os seus estudos de Direito em Itália, as suas funções no Desembargo do Paço, a actividade como professor do futuro rei D. João III e os versos latinos que dedicou a Joana Vaz, desconhecidos também em nossos dias.

A. C. R.

X —O CONIMBR1CAE ENCOMIVM DE INÁCIO DE MORAIS

O poema de Pedro Sanches que repetidamente citámos nestas notas recebeu, como carta em verso que é, também o título de Epistola ad Ignatium de Morais, com que aparece no vol. I do Corpus Illustrium Poetarum Lusitanorum qui Latine scripserunt do P.e António dos Reis, publicado em Lisboa, em 1745. Trata-se, de facto, de uma longa carta em verso ao humanista e professor do Colégio das Artes conimbricense.

Ora de Inácio de Morais é um Conimbricae Encomium, publicado em 1554, que está precisando há muito de uma tradução competente, pois a que existe (10) não serve. Para comprovar este meu juízo, darei só um exemplo:

Coenobium Augustum et pulchras mirabere moles Quas fama in totó rumigera orbe canit.

Intus aquae gelidi fontes et pomifer hortus Arrident: stagnis innatat albus olor.

(10) Elogio de Coimbra. Poemeto latino de Inácio de Morais, editado por João da (sic) Barreira em 1554, traduzido em 1935 por A. da Rocha Brito. Figueira da Foz, 1935, p . 16.

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«Admirarás o mosteiro grandioso e as belas construções que a «fama, divulgadora de novidades, apregoa em todo o mundo. «Lá dentro, acolhem-nos agradavelmente as fontes de água fresca «e o pomar. Nos tanques nada o alvo cisne.»

A tradução dos outros versos é pouco exacta e não vale a pena comentá-la. Mas a frase stagnis innatat albus olor tem esta versão surpreendente: « e dos tanques se desprende suave aroma».

Do que fosse tal suave aroma pode imaginar-se por um trecho das Actas dos Capítulos do Mosteiro de Santa Cruz, publicadas por Mário Brandão, Coimbra, 1946, p. 14: «E depois estando ainda os ditos Irmãos capitulares juntos lhes foi proposto por o dito padre prior como os físicos q curauão este cõuêto se queixauão dos tanques do claustro da mãgua dizendo q erão causa de mujtas Infirmydades por causa dos vapores q saião da auguoa dos ditos tanques ao menos ê o Jnuerno ê o quall tempo a dita auguoa era mais nociua & preju-diciall q em outro».

A. C. R.

XI —ANCHIETA EM COIMBRA

No 8.° Congresso Brasileiro de Língua e Literatura, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 19 a 23 de Julho de 1976, apresentei a comunicação «Coimbra no tempo de Anchieta (1548-1551)».

Durante a discussão deste trabalho, foi-me objectado que num dos estudos biográficos mais respeitados no Brasil, o de António de Alcântara Machado, — que, sob o título de «Vida do Padre José de Anchieta», serve de «Posfácio» ao vol. Ill das Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, S.J. (1554-1594), Rio de Janeiro, 1933 — vem escrito na p. 545: «Em 1550, partiu para Coimbra, a fim de cursar a Universidade».

Ora na Universidade, onde Anchieta não deve ter chegado a entrar, não se encontraram até hoje documentos da sua presença, mas sabe-se que foi discípulo de Diogo de Teive que ensinava os alunos das classes mais adiantadas do Colégio das Artes. E o ano da sua chegada deve ter sido o de 1548.

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228 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

Na primeira nota da referida comunicação do Rio, na página 49 das actas, expliquei como se terá dado o engano de Alcântara Machado e para lá remeto o leitor a quem o caso interesse. Aqui, desejo apenas transcrever o documento que me permitiu concluir que Anchieta chegou a Coimbra em 1548.

José de Anchieta era filho de Juan de Anchieta e de Meneia Diaz de Clavijo y Llarena. Sua mãe fora casada em primeiras núpcias com o bacharel Nuno Nunez de ViUavicencio, de quem tivera uma filha e um filho, chamado Pedro. Ora é este, mais velho do que o futuro apóstolo do Brasil, que com ele vem para Coimbra.

O P.e Pêro Rodrigues, contemporâneo de Anchieta e um dos seus biógrafos, depois de informar que já tinha «uns princípios de latim», quando saiu das Canárias, acrescenta: «Foi enviado aos estudos de Coimbra com um irmão seu mais velho, aonde em breve tempo, dando mostras de sua rara habilidade e mui felice memoria, veio a ser um dos melhores estudantes da primeira classe, em prosa e verso, no qual era muito fácil: ouviu dialéctica e parte da filosofia» (11).

A facilidade no verso latino é confirmada pelo poema De Beata Virgine Dei Matre Maria com perto de 5800 versos, em dísticos ele­gíacos, e pelo De Gestis Mendi de Saa, com mais de 3000 hexâmetros dactílicos, publicado anonimamente em Coimbra, em 1563, e prova­velmente da sua autoria também. Chegaram até nós ainda outras poesias de menor extensão.

A data do seu aparecimento em Coimbra é-nos dada indirecta­mente por um documento referente a seu irmão mais velho, que se encontra no vol. 5, folha 47, caderno 1.° dos Autos e Graus de 1554 a 1557:

«pedro nunez prouou pedro nunez de tenerife das Canárias de Castella diante do Sor frei diogo de murça Reitor dous cursos em Cânones que começarão pollo outubro de I b c quarenta e oito e se acabarão por I bc L t a e forão testemunhas que asi o jurarão os bacharéis diogo madeira e hieronimo sueiro e eu diogo dazeuedo o screui aos xi dias de Julho de I be L t a e quatro annos

yeronimo soeyro dioguo madeira»

(11) Annaes da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, XIX, 1897, p. 3; Ibidem, XXIX, 1907, p. 197.

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 229

Há ainda mais dois documentos relativos a Pedro Nunez de Tene­rife das Canárias de Castela, mas só este revela a data do início da sua frequência da Universidade: Outubro de 1548. Devo à Dr.a Maria Georgina Trigo Ferreira, conservadora do Arquivo da Universidade de Coimbra, tê-lo encontrado e lido.

O Colégio das Artes de Coimbra foi inaugurado oficialmente em 21 de Fevereiro de 1548, e José de Anchieta, que veio com seu irmão, deve, portanto, tê-lo frequentado no período mais brilhante da sua existência.

Já depois da publicação da comunicação ao 5.° Congresso Brasi­leiro de Língua e Literatura, consegui obter o livro do P.e Hélio Abran­ches Viotti, S. J., Anchieta, o Apóstolo do Brasil, São Paulo, 1966, em que o mesmo ano de 1548, da chegada a Coimbra, é obtido a partir de documentos existentes no Arquivo Secreto Vaticano (cf. p. 28 n. 8).

E já que cito este livro, bem feito no que diz respeito ao Brasil, mas pouco informado no relativo ao Humanismo Quinhentista Por­tuguês, aproveito a oportunidade para fazer um reparo.

Tratando do poema De Gestis Mendi de Saa, escreve o P.e Viotti na página 12: «Para a época em que foi impresso em Portugal, isto é no ano de 1563, ninguém, no Brasil, nem fora dele, estava em con­dições de realizá-lo, a não ser o exímio humanista, já aqui totalmente integrado, o canário de Coimbra».

A prova da autoria do De Gestis Mendi de Saa pode fazer-se com outros argumentos, mas não com este de Anchieta ser a única pessoa capaz de escrever o poema. Em Portugal, posso citar, pelo menos três poetas contemporâneos que podiam escrever o De Gestis. São eles Diogo de Teive, ainda vivo em 1563, Inácio de Morais e Pedro Sanches. Mas havia outros ainda em Portugal, como André de Resende e os Cabedos, sem falar de poetas que estavam no estran­geiro, como Diogo Pires ou Aquiles Estaco.

Todavia, a favor de Anchieta pode alegar-se a cor local do poema que só podia ser dada por alguém com experiência do Brasil e dos próprios acontecimentos narrados, embora esta última circunstância não seja absolutamente essencial. Diogo de Teive, por exemplo, não esteve na índia e é autor do minucioso Commentarius de Rebus a Lusi-tanis in India apud Dium Gestis Anno Salutis Nostrae MDXLVI, Coim­bra, 1548; e Diogo de Paiva de Andrade, sobrinho do teólogo do mesmo nome, não precisou de estar no cerco de Chaul, em 1570, para escrever o poema Chauleidos libri duodecim.

A. C. R.

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230 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

XII —LUÍS PIRES

E NÃO DIOGO PIRES

No poema de Pedro Sanches, Carmina de Poetis Lusitanis ad Ignatium Moralem, tantas vezes citado nestas notas, ocorrem os versos seguintes :

Non procul hinc uideo Pindo duo flumina sacro Nymphis et Musis facili labentia cursu, Serranum Pyrrhumque meum, quos in arte medendi non super ent doe ti Podalirius, atque Machaon:

«Não longe daqui vejo correrem do Pindo, consagrado às «Ninfas e às Musas, dois rios de fácil corrente, Serrão e o meu «querido Pires, tais que na arte de curar os não superam os sábios «Podalírio e Macáon.»

Quando discuti estes versos citados na dissertação de licenciatura de Sebastião Tavares de Pinho (12), onde Pyrrhus não é identificado, tive ocasião de dizer, segundo as minhas notas manuscritas:

«Valia a pena ter explorado mais este texto que nos revela um Pyrrhus que aparece também nas cartas do Ms. F. G. 6368 da Biblio­teca Nacional de Lisboa e na correspondência de Jerónimo Cardoso. Trata-se do médico Luís Pires, possivelmente parente de Diogo Pires. Viveu em Évora, como Lopo Serrão, e daí ter Pedro Sanches asso­ciado ambos».

Mais tarde, no artigo que o Lie.0 Tavares de Pinho publicou em Humanitas xxv-xxvi, Coimbra, 1973-74, pp. 51-90, com o título de «Lopo Serrão (século XVI), médico e poeta novilatino», a identificação de Pires é correctamente feita, como seria de esperar, na página 53, nota 12.

Mas nem sempre assim aconteceu. No Corpus Poetarum Lusi-tanorum, vol. I, Lisboa, 1745, p. 33, n. 26, os oratorianos António dos Reis e Manuel Monteiro, editores do Corpus, confundiram Pyrrhus com o mais conhecido Diogo Pires.

(12) De Senectute et aliis utriusque sexus aetatibus et moribus por Lopo Serrão. Coimbra, 1972, 430 páginas policopiadas. Ver a página 7.

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 231

E mais tarde, na esteira do Corpus, também D. Frei Fortunato

de São Boaventura (13), não só repetiu o erro, mas ainda o corroborou,

ao referir a Diogo Pires (14) o Pyrrhus de um epigrama de Diogo

Mendes de Vasconcelos (15) a Pedro Sanches.

Tenciono em breve ocupar-me de um texto em que há mais amplas

referências ao médico e poeta novilatino Luís Pires.

A. C. R.

(13) Portugal e Itália (publicado por António de Portugal de Faria), Leorne, 1905, p. 146.

(14) Sobre o poeta novilatino Diogo Pires ou Didacus Pyrrhus Lusitanus, ver o artigo que publiquei em Verbo: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, s. v. «PIRES (Diogo), 3)», e a bibliografia aí indicada.

(15) No livro já atrás citado, de José Geraldes Freire, A Obra Poética de Diogo Mendes de Vasconcelos, Coimbra, 1962, encontram-se numerosas referências a Luís Pires que podem ser procuradas, seguindo as indicações do «índice Onomástico».

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1—VERVS SALOMON

Cataldo Parísio Sículo ofereceu, em 1511, a D. Pedro de Meneses, um poema intitulado Verus Salomon, Martinus, editado com tradução, comentários e prólogo por Dulce da Cruz Vieira, depois de revisto e enriquecido com uma introdução por Américo da Costa Ramalho (cf. C. P. Sículo, Martinho, verdadeiro Salomão, Instituto de Estudos Clássicos, Coimbra, 1974).

Fora do título, a expressão Verus Salomon só aparece uma vez, de passagem; e mesmo o simples nome de Salomão apenas mais duas vezes se encontra no texto. O poema consagra a maior parte dos seus 690 versos ao elogio biográfico de D. Martinho de Castelo Branco (c. 1456-1527), que foi vedor da fazenda de D. João II e de D. Manuel e amigo de ambos estes reis. Eis o contexto das três referências a Salomão :

1 — Nuntius interea Veri Salomonis ad aures j peruenit (vv. 119-120). Refere-se aqui o empenho de D. Fernando de Alcáçova, que foi quem recomendou Cataldo a D. Martinho, sendo este mencionado pela primeira vez só no v. 127. Não é dada neste passo qualquer justifi­cação para o epíteto.

2 — Do sapere in primis Salomonis (v. 251). Quando ainda só ia nos cinco anos, Martinho teve um sonho profético em que viu uma criança que lhe prometeu «a sabedoria de Salomão, o talento pro­fundo de Apolo, a graça e a elegância de Mercúrio» (vv. 251-252).

3 — Multa celebrato cum Salomone gerit (v. 654). Refere-se ao barão do Alvito, D. Diogo Lobo, o qual «foi companheiro de trabalho do celebrado Salomão».

Poderia estranhar-se o título do poema, pois de quanto se sabe de D. Martinho de Castelo Branco ele não se distinguiu especialmente em nenhum ramo da ciência, na sabedoria filosófica ou na aplicação da justiça. Para justificar o epíteto bíblico nada mais encontramos de seguro que a fugaz menção de que Martinho era bom administrador e confidente do rei (vv. 133-142). Poderá presumir-se, todavia, que em circunstância de nós desconhecida, alguém, atendendo ao porte sen­sato e aos pareceres de D. Martinho na corte, lhe tenha chamado, a sério ou por graça, «um verdadeiro Salomão». Dicant Paduani!

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De facto, nem o estudo introdutório nem o prólogo do livro se detêm na análise do título do poema. Mesmo ao longo dos comen­tários, a Dr.a Dulce Vieira só menciona Salomão a propósito dos versos 277-278, onde Cataldo refere que Martinho, ainda criança, era «como se fosse mais velho do que Nestor, Leontino ou Sócrates» (cf. pp. 77 e 93). De Salomão é recordada, secamente, apenas a sabe­doria e perspicácia.

Naturalmente que o qualificativo de Verus Salomon evocará, em primeiro lugar, a justiça de Salomão, simbolizada no célebre juízo em que o rei soube distinguir qual de duas mulheres em litígio era a verdadeira mãe de uma criança. Este episódio, famoso na Bíblia (3 Reg. 3, 16-27), prolongou a sua memória no espaço e no tempo.

Efectivamente, em 1882, J. B. De Rossi descreveu um fresco então descoberto em Pompeii, e que se encontra agora no Museu de Nápoles, em que se vê Salomão no tribunal, tendo diante de si uma mesa onde está prestes a ser sacrificada, pelo cutelo de um soldado, uma criança cuja mãe implora clemência (cf. Dictionnaire de la Bible, Paris, 1912, t. V, coll. 1382-1396, fig. 283; Dictionnaire d'Archéologie Chrétienne et de Liturgie, Paris, 1939, t. XIV, coll. 1404-1406, fig. 10447 e t. XV (1950), coll. 588-602).

Além disso, é sabido que Hirão, o fenício rei de Tiro, se corres­pondia com Salomão; e a rainha de Sabá veio de longe para o ver e ouvir (cf. 3 Reg. 5, 1-12; Mat. 12, 42).

A fama de sabedoria e de justiça alcançada por Salomão chegou a cair no domínio da lenda, dando origem a vários escritos apócrifos e a fórmulas «salomónicas», tidas como de efeitos mágicos.

É sobretudo dentro da revelação judaica e cristã que Salomão alcança a sua verdadeira fisionomia. A tradição apresenta-o como autor do Cântico dos Cânticos, do Eclesiastes, de parte dos Provérbios, dos Salmos 72 e 127 e ainda (mas injustificadamente) do livro da Sabe­doria (cf. sobre a posição da crítica moderna a respeito de Salomão, entre outros, J. Hõfer und K. Rahner, Lexikon fiir Théologie und Kirche, Munchen, 9.e Band, 1964, coll. 272-275).

A interpretação bíblica, sobretudo na Antiguidade Cristã tanto grega como latina, compraz-se em desvendar, a par do sentido literal das Escrituras, o seu significado místico ou típico. Trata-se de um sentido profundo, quase oculto, que consiste em exprimir através das coisas ou das pessoas designadas nas palavras, alguns acontecimentos

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ou pessoas do futuro (cf. J. Renié, Manuel d'Écriture Sainte, Lyon--Paris, 1945, t. I, pp. 210-215).

É a propósito da interpretação típica de Salomão que Santo Agostinho, num comentário ao Salmo 126, diz que o Verdadeiro Salo­mão é nosso Senhor Jesus Cristo, de que o primeiro Salomão era uma prefiguração e anúncio. O doutor de Hipona baseia-se em dois argu­mentos : 1 — Salomão construiu o templo de Jerusalém, que era a figura da Igreja futura ; 2 — Salomão, em hebraico, quer dizer «pací­fico». Ora o verdadeiro autor e dador da paz é Jesus. Feita esta explicação prévia, vale a pena 1er o texto simples e elucidativo de Santo Agostinho:

«Quia Salomon aedificauerat templum Domino, in typo quidem et in figura futurae Ecclesiae et corporis Domini ; unde dicit in Euangelio : Soluite templum hoc, et in triduo excitabo illud; quia ergo ipse aedifi­cauerat illud templum, aedificauit sibi templum uerus Salomon Dominus noster Iesus Christus, uerus pacificus. Nomen enim Salomonis inter-pretatur «Pacificus», est autem ille uerus pacificus, de quo dicit Apos­tolus: Ipse est enim pax nostra, qui fecit utraque unum (...). Quia ergo ille uerus Salomon, Salomon autem ille filius Dauid de muliere Bethsabee, rex Israel, figuram gestabat huius pacifici, quando templum aedificauit, ideo, ne ilium pûtes Salomonem qui aedificauit domum Deo, alium Salomonem tibi ostendens, Scriptura sic coepit in psalmo : Nisi Dominus aedificauerit domum» (...).

O texto citado encontra-se nas edições de J. B. Migne, Patro-logia Latina, Paris, 1865, t. 37, coll. 1667-1668 e do Corpus Chris-tianorum, Series Latina, Turnholti, 1956, pp. 1856-1857. A nós o passo ocorreu-nos na Liturgia Horarum, t. III, Typis Polyglottis Vati-canis, 1974, pp. 385-386, isto é, na lectio altera do sábado da Heb-domada XIV per annum.

Além do Dicionário da Bíblia e do de Arqueologia e Liturgia já citados, procurámos outros lugares em que se tratasse de algum Verus Salomon. Nada encontrámos, porém, nem no Diccionario literário de obras y personages de todos los tiempos y de todos los países, dirigido por Gonzalez Porto Bompiani (Barcelona, 1967) nem no Diccionario de argumentos de la literatura universal, de Elizabeth Frenzel (Madrid, 1976).

JOSé GERALDES FREIRE

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 235

2 — O NOME DE CASTELO BRANCO EM LATIM

Um estudo sobre os títulos episcopais das antigas sés portuguesas que foram extintas e que, em parte, foram recentemente revitalizados, atribuindo-os a novos bispos auxiliares (Dume, 1972; Caliábria, 1978; Elvas, 1979), pôs-nos em contacto com o texto latino do Decreto da mudança de nome da diocese de Portalegre, emanado da Sagrada Congregação Consistorial, com data de 18 de Julho de 1956. Aí, ao ser restaurado o título de Bispo de Castelo Branco, agregando-o obri­gatoriamente ao nome de Portalegre, aparece cinco vezes a designação de Castelo Branco em latim, sempre sob a forma invariável de Castri Albi. A admiração subiu de ponto quando vimos que, mesmo na ocasião em que Portalegre assume a forma de adjectivo, ainda então o Decreto diz que doravante a diocese e o bispo devem passar a usar a designação de Portalegrensis-Castri Albi. A par de Portalegrensis esperaríamos Castrialbensis, ou melhor, Albicastrensis (Cf. Acta Apos-tolicae Sedis, 25 Ianuarii 1957, pp. 35-36).

Para traçar a linha de evolução do nome de Castelo Branco em latim parece-nos serem suficientes dois estudos: o de José Ribeiro Cardoso, Castelo Branco e o seu alfoz. Achegas para uma monografia regional (Castelo Branco, 1953) e António Brásio, Três dioceses pom­balinas. Castelo Branco, Penafiel, Pinhel (Lisboa, 1958), pois aí se encontram documentos relativos a épocas diversas, dando-nos desi­gnações variadas. Juntaremos apenas mais duas fontes ocasionais.

A 27 de Fevereiro de 1182 o nobre D. Fernão Sanches, da linha­gem do conde D. Henrique, numa carta de doação aos Templários, designa ainda a área de Castelo Branco pelo nome alto medieval de Villa Franca de Cardosa. Porém, em 1215, num documento também todo escrito em latim, o Papa Inocêncio III confirma os Templários na posse de Castelo Branco, não usando para isso nem tradução latina nem o nome popular, mas, recorrendo a uma perífrase, dá-lhe o novo nome oficial e citando-o em português: Erexisse dicamini quandam uillam que Castelobranco uulgariter apellatur.

No foral que os Templários concederam a Castelo Branco, assinado em primeiro lugar por Pedro de Alvito, mestre da ordem, com data de Outubro de 1213 (ou 1214, segundo uma outra cópia) e escrito todo ele num latim de péssima qualidade, entremeado de palavras portu-

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guesas, a forma quase constante é o uso do ablativo em expressões como homines de Castel-branco, términos de Castel-branco, etc. Mesmo no princípio, quando se esperaria um acusativo, a forma usada é inva­riável : uolumus restaurare atque populare Castel-branco.

Para efeitos linguísticos, o documento mais significativo é uma sentença sobre uma demanda de limites e injúrias mútuas entre os concelhos de Castelo Branco e da Covilhã, datada de 5 de Fevereiro de 1225. Aí o nome de Castelo Branco aparece 22 vezes. O caso mais frequente (18 vezes) é o ablativo, regido de de, do tipo Concilium de castello Mancho. Todavia, aparece também uma vez o acusativo (ad Castellum blanchum) e duas vezes o genitivo: comendator Castelli blanchi e in sumitate castri castelli blanci. Esta última expressão é de ter em muita conta, pois para dizer castelo, quando tomado como substantivo comum, usa castrum, mas no topónimo vê-se que, para o secretário, o nome latino da vila era Castellum Blanchum.

Que a designação latina aceite na Idade Média era Castellum Blancum verifica-se também por uma escritura de composição entre o Mestre do Templo e o Bispo da Guarda, datada de 1245, onde se impõe aos freires militares a obrigação de dar ao bispo o terreno para uma casa: Et debent in Castello Manco dare et concedere locum compe-tentem Episcopo.

Nos tempos modernos, a Cúria Romana parece ter preferido usar sempre Castri Albi, como se fosse forma invariável. Apenas notamos no Decreto de erecção da diocese (7 de Junho de 1771) a grafia aglu­tinada Castrialbi, certamente por influência da escrita portuguesa da época: Castellobranco. Na bula papal de 15 de Junho e na documen­tação seguinte encontramos sempre os dois substantivos separados: Castri Albi.

Nós conhecemos as preocupações e a tradição de purismo lin­guístico que vigora na Cúria Romana desde o Renascimento. Assim, entendemos que se tenha substituído Castellum, considerado como popular ou da latinidade vulgar, por Castrum. Mais ainda, achamos normal que em Roma se tenha posto de parte o adjectivo medieval, de origem germânica, Blancus. O que não percebemos é que não se tenha adoptado o sintagma Castrum Album, tomando-o como declinável em todos os casos. Do mesmo modo, quando houver de se empregar um adjectivo com igual significado, não vemos por que não utilizar, com toda a propriedade, Albicastrensis, ou mesmo, e sem qualquer repugnância, Castrialbensis. De facto, esta última

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forma deduz-se já de um selo do primeiro bispo de Castelo Branco, onde se lê: «Episcopus. Castelli. Albensis» (cf. Comemorações do bicentenário da cidade de Castelo Branco, 1771-1971 [C. B. 1971] p. 41).

Aliás, nós não devemos ser escravos de preconceitos puristas, de tradições de palavras nobres ou de rejeição da novidade e renovação da língua latina. Assim, a palavra castellum, como diminutivo de castrum, é de uso perfeitamente clássico. Usaram-na, entre outros, César, Cícero, Tito Lívio, Virgílio e Horácio. A palavra castellum é, pois, latina — de origem, derivação e uso inteiramente irrepreensíveis.

Um pouco diferente é o caso de blancus, a, um. Os mais recentes dicionários de Latim Medieval dão este adjectivo como de origem germânica. Note-se, porém, que J. F. Niermeyer {Mediae Latinitatis Lexicon Minus, Leiden, 1976) a apresenta documentada, desde o século X, num autor do sul, em Leo Archipresbyter Neapolitanus {Vita Alexandri Magni, traduzida do grego entre 951 e 969). Também Albert Blaise {Lexicon Latinitatis Medii Aevi, Turnholti, 1975) abona o adjectivo blancus com o Chronicon Vniuersale, do século XII, da autoria do germânico Ekkehard, que foi abade do mosteiro de Arau (abbas Araugiensis).

Apesar de tudo, não deve repugnar-nos nem serão de reprovar os escritores que tenham usado, ou voltem a empregar, Castellum Blancum. A prova de aceitabilidade desta última forma encontramo-la num autor com pruridos de clássico, o italiano Cataldo Parísio Sículo, que por 1485 se fixou em Portugal, onde veio a ser o introdutor do humanismo latino. O poema Verus Salomon Martinus foi escrito em 1510 e tem como tema o elogio de D. Martinho de Castelo Branco (c. 1456-1527). Aí, nos versos 127-132, comenta o nome do seu herói. Diz o verso 127: Nomine Martinus, Castelli agnomine Bronchi (cf. Cataldo Parísio Sículo, Martinho, verdadeiro Salomão. Prólogo, tradução e notas de Dulce da Cruz Vieira. Introdução e revisão de Américo da Costa Ramalho. Instituto de Estudos Clássicos, Coimbra, 1974).

Temos, portanto, documentadas as seguintes designações latinas para Castelo Branco: Castel-branco, Castellum Brancum, Castellum Blancum, Castellum Album e Castri Albi. Nós preferimos Castrum Album, com flexão em todos os casos, bem como o adjectivo corres­pondente Albicastrensis ou Castrialbensis.

JOSé GERALDES FREIRE

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238 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

AS FONTES DE UM PASSO DE CATALDO SÍCULO

Na sua carta a D. Fernando de Meneses, marquês de Vila Real, sobre a defesa do latim clássico, publicada em 21 de Fevereiro de 1500, fez Cataldo duas misteriosas citações que me proponho identificar:

«...per sanctorum patrum decreta decisum est ad sacrae paginae intelligentiam saeculares litteras ac poetas sacerdotibus legendos esse (...) Quae res diffusissime tricesima septima D. tractatur ubi multae poe­taram inferuntur auctoritates. Et de con. di. quinta, irridet Horatius appetitum ciborum qui consumpti relinqunt poenitentiam. Expositor intellegit hoc fuisse in epistola ad Lollium ab Horatio dictum: Sperne uoluptates: nocet empta dolore uoluptas (...)» {Epistole et orationes quedam Cataldi Siculi, foi. i vij). O latim da citação foi modernizado na grafia e na pontuação.

As citações tricesima septima D. e de con. di. quinta pertencem ao Decreto de Graciano.

Antes, porém, interessa fazer uma breve descrição do Decreto e seu autor.

João Graciano nasceu nos meados do séc. xn, provavelmente em «Chiusi». Foi monge camaldulense e mestre de teologia e de Direito Canónico no mosteiro de S. Félix e Nabor em Bolonha; vendo o cui­dado de Irnério em promover o estudo do Direito Romano, lançou mãos à obra com o fim de fazer uma nova colecção canónica a que ele deu o título de Concordia discordantium canonum. Mas talvez por ter semelhanças com o Decreto de Burchardo e de Ivo Carnotense denominou-se, depois, Decreto de Graciano.

Parece ter sido escrito cerca do ano 1140, servindo de manual de direito no foro e de compêndio nas escolas.

Por ser uma colecção privada, a doutrina e sumários tinham a autoridade de um varão douto, mas os cânones autênticos conser­vavam a sua força jurídica universal e particular e os espúrios tinham força de lei em virtude do costume.

Este Decreto, além de toda a legislação relativa à disciplina da Igreja, contém questões dogmáticas e morais.

Graciano aproveitou documentos de quase todas as colecções antecedentes, ou seja, cânones penitenciais, dos concílios universais e particulares, decretais pontifícias, capitulares episcopais, textos da S. Escritura e dos SS. Padres, leis civis romanas e bárbaras.

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 239

O autor pretendeu não só coleccionar e dispor os documentos, mas ainda conciliá-los, estabelecendo a unidade interna.

O Decreto foi dividido materialmente pelo autor e formalmente pelos decretistas e editores em três partes:

A l.a parte contém 101 Distinções, subdivididas em cânones, onde, além da introdução geral acerca das fontes, trata das pessoas e ofícios eclesiásticos. Modo de citar: C.1D.I ou 1. (cânon 1, Dis­tinção I).

A 2.a parte contém 36 causas, subdivididas em questões e estas em cânones. Cita-se: C.1.C.2 qu. 3 (cânon 1, causa 2.a, questão 3.a).

A 33.a causa, questão 3.a é uma espécie de tratado à parte «De poenitentia» e tem uma divisão especial: a referida questão está subdi­vidida em 7 Distinções e estas em cânones; a sua citação: C. 3D. 1. De poenit. (cânon 3.°, Distinção l.a, de poenitentia).

A parte 3.a denominada «De consecratione» é destinada à liturgia. Foi dividida por um discípulo de Graciano, conhecido por «Pauca-pália», em 5 Distinções e estas em cânones. Modo de a citar: C l D.l de consecrat. (cânon 1, Distinção 1 de consecratione).

No Decreto de Graciano temos a distinguir: a) «Dieta Gratiani» ou seja, as palavras por que exprime a sua opinião; b) «Auctoritates» ou «Cânones» que são os textos legais; c) «Summaria», «Rubricae» por que a matéria difusa nos textos se sintetiza; d) «Palia», isto é, cerca de 500 cânones omissos por Graciano e introduzidos por «Pau-capália» e outros de Decretistas.

Este Decreto foi muito importante jurídica e cientificamente. Embora de carácter privado impôs-se na prática administrativa e judi­cial. Espalhou-se de Bolonha com o carácter de guia autorizado das escolas canónicas com grande proveito para a unidade didáctica.

Os R. Pontífices tiveram o cuidado de evitar interpolações e Gre­gório XIII, em 1582, promulgou uma edição corrigida, que julgou reproduzir o texto genuíno. (Cfr. Martins Gigante, Instituições de Direito Canónico, Vol. I, 2.a ed., pp. 24, 25, 26 — Braga, 1951).

Visto que o Decreto era seguido em todas as escolas canónicas, Cataldo, formado «in utroque iure», conhecia-o muito bem; a ele se refere na presente carta. Porém, a citação é que não está muito cor­recta, segundo o critério da edição de 1582, mas é preciso não esquecer que a carta de Cataldo é anterior de mais de oitenta anos. Neste ponto consultei o Dr. Gigante, mestre abalizado e laureado em Direito Canónico pela Gregoriana, e disse-me que a citação «Trigésima

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240 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

septima D.» não estava bem feita, entretanto que, sem a menor dúvida, se tratava do Decreto de Graciano; as Decretais de Gregório IX, citam-se por um X, vg. c l X de officio iudicis I, 31. (cânon ou capí­tulo 1, Decretais de Gregório IX, livro I, título 31).

Consultei duas edições do referido Decreto, e verifiquei que a l.a citação pertence à Distinção 37, da l.a parte.

Nesta Distinção, dividida em 15 cânones, trata-se realmente com profusão da cultura literária que os clérigos deverão ter.

E embora, num ou noutro cânon se restrinja a leitura dos livros dos gentios, sobretudo quando os eclesiásticos se devotavam em excesso a estes estudos em detrimento das sagradas letras, todavia ordena-se que se dediquem às letras seculares, enquanto necessárias para a com­preensão da Sagrada Escritura.

Passo a transcrever alguns passos desta Distinção para uma melhor ilustração :

Logo no Index — Distinção 37 : Ostendit quod clerici non debent libros gentílium respicere, peritiam tamen secularium scientiarum debent habere.

No cabeçalho da Dist., lê-se «Sed quaeritur an secularibus Uteris oporteat eos esse eruditos» — De his ita scribitur in Concilio Carthag. quarto.

E no cabeçalho dos seguintes cânones lê-se:

can. T — Libros gentilium non legat episcopus

can. II — Reprehenduntur sacerdotes qui, omissis euangeliis, comoedias legunt.

can. Ill — In uanitate et obscuritate sensus ambulant qui secula­ribus disciplinis occupantur.

can. VII — Non prohibeantur clerici seculares literas légère.

can. VIII — Seculares literae legendae sunt, ne ignorentur.

can. XIII — Ad intelligentiam sacrarum scripturarum, secularium

peritia necessária ostenditur.

Além disso, é possível encontrar no Decretum Gratiani, e com as indicações dadas por Cataldo, algumas das citações da sua carta a D. Fernando de Meneses. Assim, por exemplo, aludindo ao famoso sonho em que o anjo censurava São Jerónimo, por ser Ciceronianus e não Christianus, diz Cataldo : «Nam poetas, oratores, philosophosque gentiles, etiam christianos, ipsum ante alios Hieronymum ab angelo

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correptwn tanquam suspectos silentio praetereamus». Ora na «Decreti prima pars, distinctio xxxvii», encontra-se: «Legimus de beato Hie-ronymo quod, cum libros legeret Ciceronis, ab angelo est correctus, eo quod uir Christianus paganorum figmentis intenderei».

Também a citação de Horácio, contida no trecho da carta de Cataldo, acima transcrita, se encontra realmente na «Decreti tertia pars, de consecratione, distinctio V», exactamente com as mesmas palavras, «Inridet Horatius appetitum ciborum qui consumpti relin-quunt poenitentiam». Em glosa marginal, o verso horaciano atrás citado.

Virgílio, mencionado por Cataldo, que transcreve os belos versos de Geórgicas I, 108-110, aparece igualmente na «Decreti tertia pars, de consecratione, distinctio V», tendo o humanista incluído no seu texto as próprias palavras do Decreto: «Hic pulcherrimorum uersuum spectator assistas: Ecce supercilio cliuosi, etc.» E o cânone 32, de onde esta citação é tirada, apresenta também o título que Cataldo lhe atribui: «De quotidianis operibus monachorum».

Não há, portanto, dúvida de que as siglas tricesima septima D. e de con. di. quinta se referem ao Decretum Gratiani.

AVELINO FELGUEIRAS MARQUES

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