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  • 53REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 7 - NMERO 13 - JULHO 2013

    JOS FERNANDO DA SILVA *

    H CETICISMO NO PENSAMENTO DE SPINOZA?

    * Ps-doutorando do programa de filosofia do IFCH daUnicamp e bolsista da FAPESP.

    APRESENTAO

    Do ponto de vista filosfico, o ceticismo se caracteriza pela recusa da possibilidade do conhecimento, ou, num sentido maisfraco, a denncia da existncia de fracasevidncias em favor de qualquer conhecimento. no perodo helenstico que essa concepoeclode, tendo na figura de Pirro seu nome maisemblemtico. A histria da filosofia nos mostra,inicialmente, que a atitude ctica praticamentedesaparece no pensamento medieval, retornandoplena de fora no mundo moderno como umadas armas usadas para demolir os pilares dafilosofia medieval. Listemos os principais cticosdo perodo moderno. O reaparecimento doceticismo se d na Frana com Montaigne, cujofidesmo questionou a superioridade da razohumana e ironizou a superioridade do homemem relao aos animais. Montaigne tambmdenunciou o carter ilusrio que envolve omundo do conhecimento e da erudio humana.Tambm francs, Descartes apresentou o maisradical ceticismo j delineado. Partindo dadvida sistemtica, ele foi mergulhando numaescada descendente que, partindo da rejeio dossentidos e chegando rejeio dos universais eda matemtica, o levou ao mais radical de todosos pensamentos solipsistas j formulados. Hume,por seu turno, questionou a validade dos juzosmetafsicos, procurando evidenciar que essesrepousam de um modo geral sobre noes vaziasde significao, a saber, as noes de substncia,causalidade e tambm a noo de eu (self).

    Richard Popkins, em seu livro The Historyof Ceticism from Erasmus to Spinoza, inclui onome de Spinoza entre os grandes cticos

    modernos. Em sua viso, Spinoza produziu umadevastadora crtica sobre as reivindicaes doconhecimento revelado, tendo um surpreendenteefeito ao longo dos trs ltimos sculos nasecularizao do homem moderno (POPKINS,1979, p. 229). Popkins pontua o ceticismo spinozistacomo presente em todo Tratado Teolgico-Poltico,no Apndice do Livro I da tica e ressoando de modointenso em algumas de suas cartas. Essa postura deSpinoza teria nascido, segundo Popkins, de seucontato com as ideias de Isaac La Peyrre e de suaaplicao do mtodo cartesiano ao conhecimentorevelado (POPKINS, 1979, p. 229).1

    O presente texto pretende examinar e negarque Spinoza possa ser caracterizado como umpensador ctico, ou mesmo que nas partes dopensamento spinozista elencadas acima porPopkins, ou seja, tenciona mostrar que no subsisteem sua obra qualquer vis ctico. Nosso artigo vaiinicialmente vai apresentar alguns dos traos dacrtica spinozista s Escrituras Sagradas, aspectosque Popkins l como expresses de um ceticismoradical. Em seguida, mostraremos que essa crticase insere dentro do projeto teraputico spinozistade mostrar como possvel vencer as sombras daignorncia e da superstio, algo que coincide coma plena rejeio a qualquer espcie de ceticismo,identificando qualquer movimento de dvida comoexpresso de nossa ignorncia atual, e assumindoa certeza como alicerce da edificao de umconhecimento claro e distinto por parte darazo.

    1 Spinoza no aplica o mtodo cartesiano aoconhecimento revelado, simplesmente porque ele noo assimila em nenhum momento de seu trabalho. Issoj fica notrio em sua primeira obra Princpios daFilosofia Cartesiana. Nesse livro h um prefcio escritopor Ludwig Meyer, revisto e aprovado por Spinoza,que demarca com nitidez o mtodo analtico,cartesiano, e o mtodo sinttico, spinozista, orientaoque se insere dentro da tradio dos antigos gemetras.

  • 54 REVISTA ConatusConatusConatusConatusConatus - FILOSOFIA DE SPINOZA - VOLUME 7 - NMERO 13 - JULHO 2013

    SILVA, JOS FERNANDO DA. H CETICISMO NO PENSAMENTO DE SPINOZA? P. 53-60.

    1

    A Holanda de Spinoza , ao mesmotempo, exemplo de nao que sinaliza comeficcia o quanto possvel a edificao de umasociedade mais harmoniosa e tolerante, e aomesmo tempo se apresenta como um paradigmado profundo mal que a intolerncia religiosa capaz de produzir nas relaes humanas.Recordemos que na Holanda em torno de 1650,diferentes correntes religiosas dividem o mesmoterritrio. Socinianos, puritanos, remontrantes,quakers, calvinistas gomaristas, arminianos ejudeus subsistem sob os ventos republicanos deJan de Witt, fato pouco comum num mundo emque Reforma e Contra-Reforma se esforam emescancarar o carter naturalmente fragmentrioe dual da religio crist ento estabelecida. Poroutro lado, a terra bvara palco de uma sriede acontecimentos promovidos pela ortodoxiacalvinista holandesa, mostrando o profundo malque a superstio, o medo e a intolernciareligiosa so capazes de realizar. Aps descrevera Holanda de Jan de Witt e os bons ventos quevarreram a Holanda seiscentista, Marilena Chauassim relata os desatinos que tambm aperpassaram:

    nessa Holanda que os calvinistas ortodoxoscensuram, torturam e matam AdrianKoerbagh. nela que a comunidade judaicade Amsterd leva Uriel da Costa ao suicdio esubmete ao herm Juan de Prado, DanielRibera, e Spinoza. Nela Grotius encarceradoe condenado morte, Oldenbarnevelt executado, os irmos de Witt so massacrados.A so censuradas as obras de Hobbes,Descartes e Spinoza... (CHAU, 1999, p.45).

    Parte substancial desses acontecimentosque expressam profunda intolerncia religiosase deu na dcada de 1660, momento em queencontramos Spinoza no meio do projeto deconsecuo de sua tica. Os acontecimentos queento ocorrem, evidenciando o fortalecimentopoltico da ortodoxia crist, e tambm o alto graude sua capacidade de minar qualquerpossibilidade de diversidade de pensamentoreligioso ou poltico livres, precipitaram ocancelamento temporrio da execuo do projetoda tica. Bento de Spinoza se pe realizao

    de uma obra que trate, de um lado da estreitarelao que une a teologia e uma prtica polticamilenar que apequena o homem em suas relaessociais e tambm em suas relaes com aNatureza, e de outro lado que demonstre a cisoabsoluta que separa a teologia da filosofia.Spinoza inicia a redao de seu TratadoTeolgico-Poltico. justamente essa obra,segundo Popkins, que caracterizaria Spinozacomo um pensador ctico. Vejamos algumas dascrticas que Spinoza dirige aos pilares da religiorevelada.

    O Tratado Teolgico-Poltico de Bento deSpinoza uma das obras mais contundentes jescritas na histria da filosofia. Ela tornou seuautor mais do que um inimigo das correntesreligiosas judaico-crists. Este livro tornou-o oinimigo dessa vertente. Ao mostrarminuciosamente que Moiss no escreveu oPentateuco, ao mesmo tempo em quedescaracteriza a possibilidade da existncia deum povo escolhido, privilegiado, Spinozapraticamente retira todo sentido do judasmo talcomo esse delineia. Ao negar que os profetastenham um conhecimento verdadeiro de Deus,apontando o carter meramente imaginativo desuas profecias, e ainda ao mostrar aimpossibilidade luz da razo da existncia demilagres, concebidos como acontecimentosinslitos que rompem com as leis da Natureza,ele caracterizou as Escrituras Sagradas como umlivro escrito por homens de diferentes perodose com objetivos distintos, que nada nos ensinade extraordinrio a respeito de Deus. Alm disso,Spinoza tambm mostra que aqueles queacreditam que Ado pecou, confundem o sentidode lei humana com lei divina, e que esta confusoengendrou uma moral baseada na culpa, nopecado e no castigo. Essa moral arraigou noshomens vinculados tradio judaico-crist umaviso de mundo que assume a vida como umfardo, algo apenas aliviado por uma metafsicafinalista. Vejamos alguns dos traos de cada umadessas crticas acima elencadas. Comecemos comMoiss.

    Utilizando-se de critrios filolgicos etambm histricos, ele mostra que o Pentateucono pode ter sido escrito por Moiss. Spinozalista os seguintes traos em favor dessa

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    SILVA, JOS FERNANDO DA. H CETICISMO NO PENSAMENTO DE SPINOZA? P. 53-60.

    afirmao: 1. Fica claro ao longo de todanarrativa do Pentateuco que quem o escreveu falafrequentemente de Moiss na terceira pessoa; 2.Na narrativa, no apenas conta-se como Moissfaleceu, mas tambm como foi seu funeral, o lutode trinta dias que seus contemporneosguardaram etc.; 3. Locais so mencionados comnomes muito posteriores ao que tinham no tempode Moiss (p.ex. o Monte Morya, denominadono Pentateuco como Monte de Deus, nomeaoque se deu quando o local foi escolhido paraerguer o templo, algo que Moiss no vivenciou);4. As narrativas se estendem a um tempo muitoposterior ao tempo em que Moiss viveu. Concluiperemptoriamente Spinoza que por tudo isso, pois, meridianamente claro que o Pentateucono foi escrito por Moiss (SPINOZA, 2008, p.144). Spinoza sustenta que uma longa tradiooral e escrita guardou as histrias do mundomosaico, tendo elas sido sistematicamentepassadas de gerao em gerao. Em sinal derespeito e gratido a Moiss foi atribuda aredao original do texto por parte de seu(s)comentador(es).

    Do ponto de vista spinozista, o Pentateuconarra a histria poltica e social do povo hebreu.Mais nada. um livro de histria como outroqualquer. A pretenso dos hebreus atribuindo-se o manto de povo escolhido de Deus apenasdenota sua infantilidade emocional moral.Spinoza assim avalia essa escolha.

    A verdadeira felicidade e beatitude doindivduo consistem unicamente na fruiodo bem e no, como evidente, na glria deser o nico a fruir quando outros o carecem;quem se julga mais feliz s porque o nicoque est bem, ou porque mais feliz e maisafortunado que os outros, ignora a verdadeirafelicidade e a beatitude. (...) Quem, porconseguinte, se regozija com tal fato, regozija-se com o mal dos outros, invejoso e mau eno conhece nem a verdadeira sabedoria nema tranquilidade da verdadeira vida. (...) Comefeito, eles no teriam sido menos felizes seDeus tivesse igualmente chamado todos oshomens salvao (SPINOZA, 2008, p.