No Brasil Todo Mundo é Índio

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“No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é” Entrevista à equipe de edição, originalmente publicada no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005 Em 26 de Abril de 2006, Eduardo Viveiros de Castro – professor de Antropologia no Museu Nacional (RJ) e especialista em Etnologia Brasileira – esteve no ISA-SP para falar à equipe de edição do Povos Indígenas no Brasil sobre duas questões polêmicas: quem é índio? E o que define o pertencimento a uma comunidade indígena? Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão – quem é índio?, o que define o pertencimento? etc. – possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas. A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos de 1970 –, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão Quem é índio? Primeiro rascunho, de Eduardo Viveiros de Castro “Índio” é qualquer membro de uma comunidade indígena, reconhecido por ela como tal. “Comunidade indígena” é toda comunidade fundada em relações de parentesco ou vizinhança entre seus membros, que mantém laços histórico-culturais com as organizações sociais indígenas pré- colombianas. 1. As relações de parentesco ou vizinhança constitutivas da comunidade incluem as

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Entrevista com Viveiros de Castro.

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  • No Brasil, todo mundo ndio,exceto quem no Entrevista equipe de edio, originalmente publicada no livro Povos Indgenas no Brasil 2001/2005

    Em 26 de Abril de 2006, Eduardo Viveiros de Castro professorde Antropologia no Museu Nacional (RJ) e especialista emEtnologia Brasileira esteve no ISA-SP para falar equipe deedio do Povos Indgenas no Brasil sobre duas questespolmicas: quem ndio? E o que define o pertencimento auma comunidade indgena?

    Comeo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar emaspas; no apenas ou principalmente aspas de citao, mas sobretudo aspasde distanciamento. Isso porque essa discusso quem ndio?, o que define opertencimento? etc. possui uma dimenso meio delirante ou alucinatria,como de resto toda discusso onde o ontolgico e o jurdico entram emprocesso pblico de acasalamento. Costumam nascer monstros desseprocesso. Eles so pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a genteno acredite demais neles. Em casocontrrio, eles nos devoram. Dondeas aspas agnsticas.

    A questo que me foi colocada nopra de reaparecer desde quecomecei a estudar antropologia, jlogo vo 30 anos. Naquela distantepoca, estvamos sendo acuadospela geopoltica modernizadora daditadura era o final dos anos de1970 , que nos queria enfiar goelaabaixo o seu famoso projeto deemancipao. Esse projeto,associado como estava ao processode ocupao induzida (invaso

    Quem ndio? Primeiro rascunho, de Eduardo Viveiros de Castro

    ndio qualquer membro de uma comunidade indgena, reconhecido por ela como tal.

    Comunidade indgena toda comunidade fundada em relaes de parentesco ou vizinhana entre seus membros, que mantm laos histrico-culturais com as organizaes sociais indgenas pr-colombianas.

    1. As relaes de parentesco ou vizinhana constitutivas da comunidade incluem as

  • definitiva seria talvez uma expressomais correta) da Amaznia, consistiana criao de um instrumentojurdico para discriminar quem erandio de quem no era ndio. Opropsito era emancipar, isto ,retirar da responsabilidade tutelar doEstado os ndios que se teriamtornado no-ndios, os ndios que noeram mais ndios, isto , aquelesindivduos indgenas que j noapresentassem mais os estigmasde indianidade estimadosnecessrios para o reconhecimentode seu regime especial de cidadania(o respeito a esse regime, bementendido, era e outra coisa).

    Foi em reao a esse projeto dedesindianizao jurdica queapareceram as Comisses Pr-ndio eas Anas (Associao Nacional deAo Indigenista); foi tambm nessecontexto que se formaram ouconsolidaram organizaes como oCentro de Trabalho Indigenista (CTI) eo PIB , o Projeto Povos Indgenas noBrasil do CEDI (o PIB, como todossabem, est na origem do ISA). Tudoisso surgiu desse movimento, que seconstituiu precisamente em torno daquesto de quem ndio no pararesponder a essa questo, mas pararesponder contra essa questo, poisela no era uma questo, mas umaresposta, uma resposta que cabiaquestionar, ou seja, recusar,deslocar e subverter. Quem vairesponder a essa resposta?,pergunta o personagem de um filmede Herzog. Justamente: comoresponder resposta que o Estado

    relaes de afinidade, de filiao adotiva, de parentesco ritual ou religioso, e, mais geralmente, definem-se nos termos da concepo dos vnculos interpessoais fundamentais prpria da comunidade em questo.

    2. Os laos histrico-culturais com as organizaes sociais pr-colombianas compreendem dimenses histricas, culturais e sociopolticas, a saber:

    a) A continuidade da presente implantao territorial da comunidade em relao situao existente no perodo pr-colombiano. Tal continuidade inclui, em particular, a derivao da situao presentea partir de determinaes ou contingncias impostas pelos poderes coloniais ou nacionais no passado, tais como migraes foradas, descimentos, redues, aldeamentos e demais medidas de assimilao e ocluso tnicas; b) A orientao positiva e ativa do grupo face a discursos e prticas comunitrios derivados do fundo cultural amerndio, e concebidos como patrimnio relevante do grupo. Em vista dos processos de destruio, reduo e ocluso cultural associados situao evocada no item anterior, tais discursos e prticas no so necessariamente aqueles especficos da rea cultural (no sentido histrico-etnolgico) onde se acha hoje a comunidade;

    c) A deciso, seja ela manifesta ou simplesmente presumida, da comunidade de se constituir como entidade socialmente diferenciada dentro da comunho nacional, com autonomia para estatuir e deliberar sobre sua composio (modos de recrutamento e critrios de incluso de seusmembros) e negcios internos (governana comunitria, formas de ocupao do territrio, regime de intercmbio com a sociedade envolvente), bem como de definirsuas modalidades prprias de reproduo simblica e material.(maio, 2005)

  • tomava como inquestionvel em sua questo, a saber: que ndio era umatributo determinvel por inspeo e mencionvel por ostenso, umasubstncia dotada de propriedades caractersticas, algo que se podia dizer oque , e quem preenche os requisitos de tal qididade como responder a essaresposta? Pois, a se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritose pedir que eles indicassem quem era e quem no era ndio. Mas os peritos serecusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.

    Note-se que, naquela poca, a questo de saber quem era ndio no secristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes,fenmeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrrio, quesurgiram da questo, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto ,inesperada. O problema da poca, muito ao contrrio de qualqueremergncia, era a submergncia das etnias, era o problema das etniassubmergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por fora dascircunstncias (isto um eufemismo), uma trajetria histrica de afastamentode suas referncias indgenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queriase livrar: Esse pessoal no mais ndio, ns lavamos as mos. No temosnada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se elesnegociarem sua fora de trabalho no mercado.

    Nosso objetivo poltico e terico, como antroplogos, era estabelecerdefinitivamente no o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar l que ndio no uma questo de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo deaparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questo deestado de esprito. Um modo de ser e no um modo de aparecer. Na verdade,algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nsum certo modo de devir, algo essencialmente invisvel mas nem por issomenos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciao, no umestado massivo de diferena anteriorizada e estabilizada, isto , umaidentidade. (Um dia seria bom os antroplogos pararem de chamar identidadede diferena e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era conceitual : nossoproblema era fazer com que o ainda do juzo de senso comum esse pessoalainda ndio (ou no mais) no significasse um estado transitrio ou umaetapa a ser vencida. A idia a de que os ndios ainda no tinham sidovencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser ndios, aindaque... Ou justamente porqu. Em suma, a idia era que ndio no podia servisto como uma etapa na marcha ascensional at o invejvel estado debranco ou civilizado.

  • Da emancipao reindianizao Mas a filosofia da legislao brasileira era justam ente essa: todos os ndiosainda eram ndios, no sentido de que um dia iriam, porque deviam, deixar des-lo. Mesmo os que estavam nus no mato, com seus proverbiais cocares deplumas, seus colares de contas, seus arcos, flechas, bordunas e zarabatanas,os ndios com contato intermitente ou os isolados mesmo esses aindaeram ndios. Apenas ainda; ou seja, ainda, apenas, porque ainda no eram no-ndios. O objetivo da poltica indigenista de Estado era gerenciar (e, por queno?, acelerar) um movimento visto como inexorvel (e, por que no?,desejvel): o clebre processo histrico, artigo de f comum aos maisvariados credos modernizadores, do positivismo ao marxismo. Tudo o que sepodia fazer era garantir isso para os mais bem-intencionados que oprocesso no fosse demasiado brutal. Mas, de uma forma ou de outra,entendia-se que a almejada o melete nacional s poderia ser feita, bem, sabe-se como.

    A luta contra o projeto de emancipao levou as pessoas que estavam do ladodos ndios a se preocuparem com recenseamentos, levantamentos, cominformao, com organizao, comunicao e propaganda. Tratava-se, emsuma, de tornar a questo visvel. No fundo, no deixou de ser uma sorte osgenerais e coronis da poca terem tentado desindianizar uma poro decomunidades indgenas, pois isso, na verdade, terminou foi por reindianiz-las.A atabalhoada tentativa da ditadura de legiferar sobre a ontologia daindianidade desinvisibilizou os ndios, que eram virtualmente inexistentescomo atores polticos nas dcadas de 1 960 e 1970. Eles s apareciam, de vezem quando, em alguma reportagem colorida sobre o Xingu, geralmente comoilustrao do admirvel trabalho dos irmos Villas Bas (digo admirvel semnenhuma ironia; no deixava de ser bizarro, porm, o fato de que havia nessapoca uma srie de jornalistas especializados em embasbacar-se diante dosVillas Bas e outros sertanistas). A grita suscitada com o projeto deemancipao resgatou a questo indgena do folclore de massa a que haviasido reduzida. Ela fez com que os prprios ndios se dessem conta de que, seeles no tomassem cuidado, iam deixar de ser ndios mesmo, e rapidinho.Graas a isso, ento e enfim, os ndios se tornaram muito mais visveis comoatores e agentes polticos no cenrio nacional. Os primeiros lderes indgenasde expresso supralocal surgiram nesse contexto, como Mrio Juruna e AltonKrenak.

    A questo de quem ou no ndio reaparece agora, mas por outras razes.Algumas pessoas ligadas questo indgena tm por vezes a impresso (oupelo menos eu tenho a impresso de que elas tm a impresso) de que ns,

  • ndios e antroplogos, fomos um pouco vtimas de nosso prprio sucesso.Antigamente, muitos coletivos indgenas sentiam vergonha de s-lo, e ogoverno tinha todo interesse em aproveitar essa vergonha inculcadasistemicamente, tirando as conseqncias jurdico- polticas, digamos assim,do eclipsamento histrico da face indgena de vrias comunidadescamponesas do pas. Agora, ao contrrio, todo mundo quer ser ndio dizemos, entre intrigados e orgulhosos. Talvez mais intrigados que orgulhosos.Antigamente, os especialistas no processo histrico martelavam-nos osouvidos com o dogma de que a condio camponesa (com opo deproletarizao) era o devir histrico inexorvel e portanto a verdade dassociedades indgenas, e que a descrio dessas sociedades como entidadessocioculturais autnomas supunha um modelo naturalizado e a-histrico.Mas eis que, pouco a pouco, os ndios comeam a reivindicar e terminam porobter o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciadopermanente dentro da chamada comunho nacional; eis que elesimplementam ambiciosos projetos de retradicionalizao marcados por umautonomismo culturalista que, por instrumentalista e etnicizante, no menos primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumascomunidades rurais situadas nas reas mais arquetipicamente camponesasdo pas reassumem sua condio indgena, em um processo de transfiguraotnica que o exato inverso daquele anunciado, nos idos de 1970, por DarcyRibeiro no clebre Os ndios e a civilizao, em profecia acreditada, com umretoque ou outro, pela maioria dos antroplogos.

    Do ndio comunidade (1)Com a constituio de 1988, o jogo terminou de virar completamente. De fato,houve uma inverso de 180 graus em relao ao projeto de emancipao. Opropsito explcito desse projeto era emancipar indivduos, mas seu verdadeiroobjetivo, como se sabe, era o de liberar comunidades inteiras. Com aConstituio, consagrou-se o princpio de que as comunidades indgenasconstituem-se em sujeitos coletivos de direitos coletivos. O ndio deu lugar comunidade (um dia vamos chegar ao povo quem sabe), e assim oindividual cedeu o passo ao relacional e ao transindividual, o que foi,desnecessrio enfatizar, um passo gigantesco, mesmo que esse transindividualtenha precisado assumir a mscara do supra-individual para poder figurar nametafsica constitucional, a mscara da Comunidade como Super-Indivduo.Mas de qualquer modo o individual no podia deixar de ceder ao relacional,uma vez que a referncia indgena no um atributo individual, mas ummovimento coletivo, e que a identidade indgena no relacional apenasem contraste com identidades no-indgenas, mas relacional (logo, no uma identidade), antes de mais nada, porque constitui coletivos

  • transindividuais intra-referenciados e intra-diferenciados. H indivduosindgenas porque eles so membros de comunidades indgenas, e no oinverso.

    Pois bem. Foi a partir desse momento que se acelerou a emergncia decomunidades indgenas que estavam submersas por vrias razes: porquetinham sido ensinadas a no dizer mais que eram indgenas, ou ensinadas adizer que no eram mais indgenas; porque tinham sido colocadas em umliquidificador poltico-religioso, um moedor cultural que misturara etnias,lnguas, povos, regies e religies, para produzir uma massa homognea capazde servir de populao, isto , de sujeito (no sentido de sdito) do Estado.Como se sabe, as antigas misses que esto na origem de tantas cidades,vilas, vilarejos e arraiais do interior do Brasil foram os lugares privilegiadosdessa fabricao do componente indgena do povo brasileiro, ao sintetizar osclebres ndios genricos, os ndios de aldeamento, catecmenos dosacramento estatal da transubstanciao tnica: a comunho nacional... AConstituio de 1988 interrompeu juridicamente (ideologicamente) um projetosecular de desindianizao, ao reconhecer que ele no se tinha completado. Efoi assim que as comunidades em processo de distanciamento da refernciaindgena comearam a perceber que voltar a ser ndio isto , voltar a virarndio, retomar o processo incessante de virar ndio podia ser interessante.Converter, reverter, perverter ou subverter o dispositivo de sujeio armadodesde a Conquista de modo a torn-lo dispositivo de subjetivao; deixar desofrer a prpria indianidade e passar a goz-la. Uma gigantesca ab-reaocoletiva, para usarmos velhos termos psicanalticos. Uma carnavalizaotnica. O retorno do recalcado nacional.

    A exploso da indianidadeA partir daquele momento que ainda o momento em que estamos vivendo e daquilo que ganhou um mpeto irresistvel a partir dele, a saber, a re-etnizao progressiva do povo brasileiro, a questo quem ndio? deixou dese colocar em vista do fim mais ou menos inconfessvel que o Estado secolocava, o de violentar os direitos das comunidades e das pessoas indgenas.Ela passou a ser um problema daqueles que se pensam do (e que pensam ao)lado dos ndios, bem como um problema dos prprios ndios.

    Qual o problema hoje? Isto , como aparece o problema hoje? Ele aparececomo sendo o de evitar a banalizao da idia e do rtulo de ndio. Apreocupao clara e simples: bem, se todo mundo ou qualquer um

  • (qualquer coletivo) comear a se chamar de ndio, isso pode vir a prejudicar osprprios ndios. A condio de indgena, condio jurdica e ideolgica, podevir a perder o sentido. Esse um medo inteiramente legtimo. Nocompartilho dele, mas o acho inteiramente legtimo, natural, compreensvel,como acho legtimo, natural etc. o medo de assombrao. Enfim... O raciocnio: se, de repente, ns tivermos que reconhecer como tal toda comunidadeque se reivindica como indgena perante os distribuidores autorizados deidentidade (o Estado), a quem vai acabar se dando mal so os Yanomami, osTukano, os Xavante, todos os ndios de verdade. Poder haver umadesvalorizao da noo de ndio. Se, antes, ser ndio custava caro (paraevocar um artigo pioneiro de Roberto DaMatta: Quanto custa ser ndio noBrasil?), e custava caro, claro, para quem o era, hoje ser ndio estariaficando barato demais. Agora fcil ser ndio; basta dizer... E da ningum,principalmente o Estado, vai acabar comprando essa.

    No acredito nisso. Muito mal comparando e digo mal porque a comparaoarrisca reavivar velhos e grotescos esteretipos , pode-se dizer que ser ndio como aquilo que Lacan dizia sobre o ser louco: no o quem quer. Nem quemsimplesmente o diz. Pois s ndio quem se garante.

    Os antroplogos e a garantia da identidadePois : os antroplogos querem, justamente, garantir essa identidade indgena.S que no garantem; s o ndio quem se garante. O papel dos antroplogosnessa questo um tantinho confuso. A comunidade antropolgica, por via desuas ABAs (Associao Brasileira de Antropologia) e similares, desempenhouum papel fundamental na de ciso de botar o p na porta e impedir o projetode emancipao, deciso tomada em conjunto com outros advogados da causae, naturalmente, com os ndios. Eu acho que esse momento, em 1978, foi umdos claros e raros momentos em que, de fato, os antroplogos fizeram umadiferena. Uma tremenda diferena. No foi um antroplogo ou dois, como foiDarcy Ribeiro no tempo do Estatuto do ndio, ou os irmos Villas-Boas que porvezes foram chamados de antroplogos, durante a criao do Parque do Xingu, mas os antroplogos como um todo, enquanto coletividade, que fizeramuma tremenda diferena nesse momento. O mesmo se diga da mobilizao emtorno da Constituinte de 1988. Depois, minha impresso que a coisa mudouum pouco. Os antroplogos deixou de ser um plural coletivo, e passou a umplural distributivo: os antroplogos so aquelas pessoas que fazem laudo, osperitos. Peritos em identidade. Alheia. Bem, nem todos.

  • Em todo o processo de juridificao da questo quem ndio?, isto , dedecidir como e onde aplicar os artigos da Constituio de 1988, a antropologiaconseguiu, a meu ver com toda a justia, esse ganho poltico de se tornar uminterlocutor legtimo do aparelho d e Estado, parte necessria nos processosjurdicos de garantia e de oficializao das demarcaes de terra, entre outrascoisas. Mas com isso o antroplogo (releve-se-me o masculino) passou tambma ter uma atribuio que, a meu ver, complicada (releve-se-me oeufemismo). Ele passou a ter o poder de discriminar quem ndio e quem no ndio, ou antes, a prerrogativa de pronunciar-se com autoridade sobre amatria, de modo a instruir a instncia que tem realmente tal poder dediscriminao, o Poder Judicirio. Ainda que o antroplogo diga sempre ouquase sempre que fulano ndio, que aqueles caboclos da Pedra Preta so, defato, ndios, pouco importa. O problema que o antroplogo est em posiode dizer quem no ndio, dizer que algum no ndio. E pode faz-lo.

    De qualquer maneira, o fato de se sentir autorizado a responder j situou, desada, o antroplogo em algum lugar entre o juiz (afinal, o perito aquele quediz sim ou no, que constata-atesta que algum ou no alguma coisa) e oadvogado de defesa (aquele que diz, mesmo que no acredite muito nisso: sim, ndio; meu cliente ndio e vou prov-lo).

    O antroplogo e o juristaTudo timo, normal e democrtico. Mas a questo continua colocada nostermos de sempre: continua uma questo de se dizer quem o qu. semdvida difcil ignorar a questo, uma vez que o Estado e seu arcabouojurdico-legal funcionam como moinhos produtores de substncias, categorias,papis, funes, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que no carimbado pelos oficiais competentes no existe no existe porque foiproduzido fora das normas e padres no recebe selo de qualidade. O queno est nos autos etc. Lei lei etc. E afinal de contas, preciso administrar anao; preciso gerir a populao, e o territrio. Como se diz.

    Mas h quem diga que o papel do antroplogo no , nunca foi e jamaisdeveria ser o de dizer quem ndio e quem no ndio. Que isso coisa deinspetor da alfndega, de fiscal da identidade alheia. Essa uma posiopessoal minha (e como seria outra coisa, afinal?), conseqncia da dificuldadeque sinto de enunciar juzos do tipo esses caras so ndios ou esses carasno so ndios. O problema, para mim, a legitimidade da pergunta. Noaceito essa pergunta como sendo uma pergunta antropolgica. Ela no uma

  • pergunta antropolgica , uma pergunta jurdica. Oh no, ela uma perguntaessencialmente , fundamentalmente, visceralmente poltica, obtemperaromeus argutos colegas. Mas claro que uma pergunta poltica, replicarei. Eminha resposta poltica a ela dizer que ela no uma questo antropolgica,mas uma questo jurdica, e de que aqui que se distingue o antroplogo dojurista: no tipo de pergunta que eles tm o direito de fazer e, portanto, deresponder.

    Naturalmente que o antroplogo tambm pode responder, ou ajudar aresponder perguntas jurdicas, e que ele por vezes compelido a se colocarimaginariamente (ou taticamente) na posio de Legislador, quando no na deConselheiro do Prncipe. Ainda que... Bem, em algumas situaes ele obrigado mesmo a responder, por exemplo, quando as perguntas so feitas emrelao ao povo junto a quem ele trabalha, s pessoas com as quais ele temrelaes reais, os membros da comunidade ou com unidades das quais eleantroplogo parte componente e interessada, mesmo que uma parte parte.Mesmo que seja uma parte separada, que mora longe, ele sempre parte dacomunidade. Querendo ou no. Pode ser uma parte renegada, uma partetraidora, uma parte distante, uma parte longnqua, mas parte. E enquantotal, claro que ele tem que responder s perguntas que o Estado lhe prope,porque ele est l para isso mesmo, para entrar na briga. Mas no devemospor isso imaginar que todas as questes com que o antroplogo se defrontasejam por isso questes antropolgicas, questes que ele naturalmente pode edeve responder, e deve se responsabilizar por isso. Responsabilizar-se, isto ,responder pela resposta. Pois no fim das contas, acho que ningum tem odireito de dizer quem ou quem no ndio, se no se diz (porque ) ndio eleprprio. E justamente por isso que o antroplogo s pode responder, se lheperguntam se o povo ou comunidade de que ele escolheu ser parte , de fato ,indgena, pela afirmativa. Essa resposta afirmativa no responde perguntaque lhe foi feita. Obviamente.

    Em suma, para o antroplogo, ndio como fregus sempre tem razo. Oantroplogo no est l para arbitrar se as pessoas que lhe hospedam e cujavida ele escarafuncha tm ou no razo no que dizem. Ele est l paraentender como que aquilo que elas esto dizendo s e conecta com outrascoisas que elas tambm dizem ou disseram, e assim por diante. Ao antroplogono somente no cabe decidir o que um a comunidade indgena, que tipo decoletivo pode ser chamado de comunidade indgena, como cabe, muito aocontrrio, mostrar que esse tipo de problema indecidvel.

  • Todo mundo ndio, exceto quem no Permitam-me incorrer em um exagero heurstico. Eu direi que no Brasil todomundo ndio, exceto quem no . Acho que o problema provar quem no ndio no Brasil. Resposta poltica resposta (isto , pergunta) poltica quese oferece ao antroplogo.

    Comecemos por algum comeo. Entendo que a questo d e quem ou quemno ndio, de sada, no uma questo de cultura, isto , uma questorespondvel mediante a inspeo dos contedos culturais da vida de umcoletivo. No estou negando, obviamente, que haja um fundo culturalamerndio muito vivo e muito real; um fundo, ou por outra, uma forma, umaestrutura ou conjunto de estruturas (para usarmos uma palavra fora de moda)conceituais que remontam Amrica pr-colombiana. O que eu estou dizendo que a relao com esse fundo cultural no uma relao necessria (emborapossa ser suficiente e olhe l ) para se definir o que ndio. Porque uma vezque se recusa a pergunta, o fundo cultural no pode mais servir para definirpertenas e incluses em classes identitrias. Esse fundo cultural umelemento da histria do pas, do continente, das trs Amricas. Os coletivoshumanos contemporneos espalhados por nosso continente se orientam demodos variados em relao a esse fundo; nenhum desses modos redutvel aomodo emanativo, pois um coletivo humano no jamais a encarnao de umacultura; no porque seja mais que isso, mas porque outra coisa.

    E assim eu inverto a questo. O problema quem no ndio. (Essa afirmaose insere em uma teoria do minoritrio que devo a outrem, e que no cabeexpor aqui. Mas para bom entendedor, eis como posso afirmar que no Brasiltodo mundo ndio, exceto quem no ). Darcy Ribeiro, alis no sei se elediz exatamente isso, no sou bom leitor dele , insistiu com eloqncia sobre ofato de que o povo brasileiro muito mais indgena do que se suspeita ousupe. (No estou com isso, desnecessrio dizer, minimizando o aporte bvio egigantesco das populaes africanas trazidas fora para c.) O homem livreda ordem escravocrata, para usar a linguagem da Maria Silvia Carvalho Franco, um ndio. O caipira um ndio, o caiara um ndio, o caboclo um ndio, ocampons do interior do Nordeste um ndio. ndio em que sentido? Ele umndio gentico, para comear, apesar de isso no ter a menor importncia.

    O gentico e o genrico Os pesquisadores da UFMG que fizeram um levantamento do aporte genticoamerndio na populao nacional descobrira m que ele muito maior do que se

  • imaginava. Coisa de 33%, creio. Afinal de contas, ento, o fluxo gnicoamerndio continua a correr solto. Interessante, mas isso no tem a menorimportncia, exceto pelo que pode ajudar a esclarecer sobre a histria doBrasil. Digo que os coletivos caiaras, caboclos, camponeses e ndios sondios (e no 33% ndios) no sentido de que so o produto de uma histria,uma histria que a histria de um trabalho sistemtico de destruio cultural,de sujeio poltica, de excluso social (ou pior, de incluso social),trabalho esse que propriamente interminvel. No possvel fazer todos osbrasileiros deixarem de ser ndios completamente. Por mais bem sucedido quetenha sido ou esteja sendo o processo de desindianizao levado a cabo pelacatequizao, pela missionarizao, pela modernizao, pela cidadanizao,no d para zerar a histria e suprimir toda a memria, porque os coletivoshumanos existem crucial e eminentemente no momento de sua reproduo, napassagem intergeracional daquele modo relacional que o coletivo, e amenos que essas comunidades sejam fisicamente exterminadas, expatriadas,deportadas, muito difcil destru-las totalmente. E ainda quando o foram,quando foram reduzidas a seus componentes individuais, extrados dasrelaes que os constituam, como aconteceu com os escravos africanos, essescomponentes reinventam uma cultura e um modo de vida um mundorelacional que, por constrangido que tenha si do pelas condies adversasonde vicejou, jamais deixou de ser uma expresso da vida humana exatamentecomo qualquer outra. No h culturas inautnticas, pois no h culturasautnticas. No h, alis, ndios autnticos. ndios, brancos, afro-descendentes,ou quem quer que seja pois autntico no uma coisa que os humanossejam. Ou talvez seja uma coisa que s os brancos podem ser (pior para eles).A autenticidade uma autntica inveno da metafsica ocidental, ou mesmomais que isso ela seu fundamento, entenda-se, o conceito mesmo defunda mento, conceito arquimetafsico. S o fundamento completamenteautntico; s o autntico pode ser completamente fundamento. Pois oAutntico o avatar do Ser, uma das mscaras utilizada pelo Ser no exercciode suas funes monrquicas dentro da onto-teo-antropologia dos brancos.Que diabo teriam os ndios a ver com isso?

    Tornar-se ndio: um problema para o judicirio?Mrcio Gomes, ex-presidente da Funai (entre 2003 e 2007), falou como falavam(como eram feitos falar por seus chefes) os presidentes da Funai de ontem[referncia matria publicada no Estado de 13/01/06, na qual Mrcio alegouque o Supremo Tribunal Federal ter de definir um limite para asreivindicaes cada vez mais excessivas por novas Terras Indgenas; estecomentrio, como de se esperar, gerou indignao em muitos setoresindigenistas]. S que agora no mais porque tem muito ndio que no mais

  • ndio, mas porque tem muito branco que nunca foi ndio querendo virarndio. Quando seria melhor dizer: tem muito branco, que nunca foi muitobranco porque j foi ndio, querendo virar ndio de novo.

    Mas isso sentido como um escndalo, no fundo; o mundo de cabea parabaixo e de trs para frente. Pois como no se pudesse e pudesse no sentidolgico, no apenas no sentido moral querer virar ndio, s se pudesse quererdeixar de s-lo. como se querer virar ndio fosse uma contradio emtermos; s se pode desvirar. De qual quer modo, j tem ndio demais por aqui;e alis, os ndios tm terras demais. O Brasil ficaria melhor e maior com menosndios: s com os que existem hoje, por exemplo. Sejamos liberais: no preciso matar ningum; os ndios que temos so bons; so mesmo necessrios.Mas, sobretudo, eles so suficientes. Vamos fechar a porteira. Vamos fazer umaescala. ndio mesmo s ndio isolado; voltemos s famosas categorias, cujainteno de marcar etapas temporais evidente: isolado, contato intermitente,contato permanente e integrado. Onde vai passar o corte? Na cara de quem vaise fechar a porteira? Integrado j no mais ndio; fcil essa. E os de contatointermitente? Que freqncia de intermitncia faz de um intermitente umintegrado (como quem diz, de um usurio ocasional em um viciado)? Dezesseishoras por dia? Bem, o ndio isolado ningum tem coragem de dizer que no mais ndio, sobretudo porque ele nem ndio ainda. Ele no sabe que ndio;no foi contatado pela Funai ou coisa do gnero. Ou seja, primeiro se tem quevirar ndio para depois deixar de ser. Por que ento no se pode querer virar denovo depois de deixar de ser? Ou quem sabe voltar a nunca ter sido, mas nempor isso insistindo menos em ser?

    Fechando a listaO Mrcio disse a mesma coisa que os governos da ditadura. Em essncia, eledisse que tem ndio demais. Essa coisa de fechar a lista aconteceu nos EstadosUnidos, por exemplo. Em um dado momento definiram arbitrariamente quemeram os ndios. S que l, sendo aquele o pas que , os ndios da lista vo serndios para sempre. E no obstante, essa lista nunca fecha completamente.No faz muito tempo que certas comunidades reivindicaram uma indianidadedeixada de fora da lista, e outras continuam a faz-lo... Tome-se o clebre casodos Lumbee [povo que vive no estado de Carolina do Norte; reconhecidosapenas em 1956 como ndios, ainda lutam para conquistar direitos ebenefcios] ou o mais recente dos Mashpee. Coisa muito parecida com o queocorre aqui.

  • Enfim, tenho a impresso de que isso que o Mrcio queria fazer. Uma lista,para poder dizer depois: a lista fechou. Note-se o arbitrrio quase burlesco deuma lista como essa. Por que parar agora e no no ms que vem? Por que noparou antes? Naturalmente, isso vai provocar uma corrida acelerar umacorrida que j est acontecendo para se registrar como ndio. O correto seriapublicar um edital. Abrir concorrncia pblica. Marcar prazo. A declarao deMrcio Gomes supondo-se que ele tenha dito o que se escreveu que eledisse; mas o povo inventa muito... completamente absurda. A Funai (oudeveria ser) a representante, no sentido de defensora, das populaesindgenas. Dali seria o ltimo lugar de onde se poderia esperar ser emitido umjuzo como esse. Como o ento presidente do chamado rgo tutelar (nem seise a Funai ainda isso) pode dizer tal coisa?

    Bem, estou apenas fingindo surpresa infelizmente. A declarao do Mrcio foia de um estadista. Um pequeno estadista, naturalmente. Com efeito e a rigor,definir quem ou no ndio no um problema dos ndios nem de suascomunidades. Ele um problema posto e resolvido pelo Estado, instncia quetrata os coletivos sob sua tutela (no sentido lato, isto , poltico) dessa forma:quem o qu, quem no o qu, preciso favorecer isso, desencorajar aquilo;punir, premiar, induzir, reduzir, gerir, dispor. Ns antroplogos temos que nosposicionar frontalmente contra isso, recusando (na medida do possvel edentro dos limites da lei ) essa questo como legtima.

    Do ndio comunidade (2)Bem, vamos falar ento da experincia ficcional a que me dediquei, ao proporuma definio jurdica de ndio. Tal definio, insisto, um exerccioescolar. No se trata de um projeto de lei (imaginem), mas de uma tentativadespretensiosa de resposta a colegas que acham que a questo de saber queme o que ndio pode ter uma resposta outra que aquela que dadapraticamente pelos ndios, passados, presentes e futuros.

    Antes de comentar a definio ficcional, quero resumir em algumas frasesobscuras a linha de raciocnio que utilizei at a qui e que no vou utilizardaqui para frente, mas que me parece a nica tecnicamente correta. Ela nodeixa de estar contemplada, de certo meta-modo, na terceira dimenso dadefinio ficcional. Direi ento que ndio realmente no isso que eu digo que, nesse texto pseudo-legislativo que escrevi. E no isso, porque osenunciados de indianidade so enunciados performativos e no enunciadosconstativos, dependendo portanto de condies de felicidade e no de

  • condies de verdade (no sentido de correspondncia com um estado decoisas). Mas, e este o ponto, as condies antropolgicas de felicidade de talenunciado no so dadas por terceiros. Sobretudo, no so nem podem serdadas pelo Estado, o Terceiro por excelncia. A indianidade tautegrica; elacria sua prpria referncia. ndios so aqueles que representam a si mesmos,no sentido que Roy Wagner d a esta expresso (cf. The invention of culture),sentido esse que no tem nada a ver com identidade; e nada a ver, tampouco,com representao, como est indicado na formulao deliberadamenteparadoxal da expresso. Representar a si mesmo aquilo que faz umaSingularidade, e o que uma Singularidade faz. Sigamos adiante.

    O objeto da definio imaginria que estamos comentando isso que chameide comunidade indgena. A expresso foi escolhida por ser a mais vagapossvel. Na verdade no gosto demais da palavra comunidade, canonizadapela teologia da libertao e aproveitada algo espertamente pelos governosps-ditadura. Mas no contexto que me dei, ela se justifica por impedir palavrasmais pontiagudas e cheias de arestas, como etnia, tribo, sociedade, nao. Apalavra coletivo talvez fosse a mais adequada, mas ela muitoespecializada, pertence ao universo de uma antropologia mais recente, e osproblemas que ela pretende resolver so outros notadamente, comocontornar-ignorar a oposio natureza/sociedade. No disso que se trataaqui. Ento, mantenhamos comunidade.

    Em seguida, cometo a hbris de escrever: comunidade indgena ....Exerccio totalmente parnasiano, repito. Pois eu, no fundo do meu corao, noestou nem a para saber quem ou o qu comunidade indgena, ou no . Se,enquanto antroplogo, eu terminar por esbarrar em um lugar onde, poracaso, encontram-se ndios com o sentido que a palavra tem na linguagemcomum, que vago e concreto ao mesmo tempo , isso no me obriga a, nemdecorre de, nenhuma definio tcnica . Quando eu fui estudar os Arawet eupensava: eu quero conhecer uns sujeitos que morem no mato e que usemarco e flecha. Pois.

    O ponto realmente fundamental na escolha da comunidade como sujeito daminha definio fictcia que o adjetivo ndio no designa um indivduo, masespecifica um certo tipo de coletivo . Nesse sentido no existem ndios, apenascomunidades, redes (d)e relaes que se podem chamar indgenas. No hcomo determinar quem ndio independentemente do trabalho de auto-determinao realizado pelas comunidades indgenas, isto , aquelas que so oobjeto do presente exerccio definicional, ou melhor, meta-definicional. Oobjeto e o objetivo da antropologia, diga-se de passagem, a elucidao das

  • condies de auto- determinao ontolgica do outro. E ponto.

    Enfim, voltando ao texto: comunidade indgena toda comunidade fundada emrelaes de parentesco ou vizinhana entre seus membros. O ou aqui evidentemente inclusivo: seja parentesco, seja vizinhana. Esse um pontoimportante, porque ele impede uma definio gentica ou genealgica decomunidade. A idia de vizinhana serve para sublinhar que comunidade no uma realidade gentica; por outro lado, colocar relaes de parentesco nadefinio permite que se contemplem possveis dimenses translocais dessacomunidade. Em outras palavras, a comunidade que tenho em mente oupode ser uma realidade temporal tanto quanto espacial. Em suma,parentesco e territrio, para falarmos como Morgan, so tomados aquicomo princpios alternativos ou simultneos de constituio de umacomunidade. Convm sublinhar o carter no-geomtrico desse territrio: ainscrio espacial da comunidade no precisa ser, por exemplo, concentradaou contnua, podendo ao contrrio ser dispersa e descontnua. Ento, (1)comunidade fundada em relaes de parentesco ou vizinhana, e (2) quemantm laos histricos ou culturais com as organizaes sociais indgenas pr-colombianas.

    Introduzo a esta altura a primeira especificao:

    1. As relaes de parentesco ou vizinhana, constitutivas da comunidade,incluem relaes de afinidade, de filiao adotiva, de parentesco ritual oureligioso quer dizer, compadrio e, mais geralmente, se definem em termosdas concepes dos vnculos interpessoais fundamentais prprios dacomunidade em questo. Ou seja, em bom portugus, parente quem osndios acham que parente, e no quem o Instituto Oswaldo Cruz ou sei lquem vai dizer que a partir de um exame de sangue ou um teste de ADN.Parentesco inclui aqui a afinidade. Isso bsico, em primeiro lugar, porque asrelaes de afinidade so, em muitas culturas indgenas, transmissveis inter-geracionalmente, exatamente como as relaes de consanginidade (falo dossistemas de parentesco ditos elementares ); em segundo lugar porque, deum modo geral, a etnologia vem mostrando que a afinidade o arcabouopoltico e a linguagem ideolgica dominante nas comunidades amerndias. Epor fim, porque h muitos casamentos intertnicos nos mundos indgenas dehoje. Como voc cortaria uma famlia no meio quando o homem branco e amulher ndia, por exemplo? Se a comunidade acha que o marido membroda comunidade, ele ndio, sem mais. No que me concerne, se o marido forum cidado lituano, mas casou com a ndia Potira, e os pais da ndia Potiraesto de acordo, esse lituano ndio. Assim, as relaes de parentesco e devizinhana incluem laos variados e, sobretudo, se definem em termos da

  • atualizao dos vnculos interpessoais fundamentais prprios da comunidadeem questo. Pode no ser o sangue. Pode ser a comensalidade, a vizinhana;isso fica em aberto. Cada comunidade ter uma concepo especfica do queso esses vnculos interpessoais fundamentais, e so essas concepes quedevem ser definitivas das comunidades, no as nossas.

    2. Os laos histrico-culturais com as organizaes sociais pr-colombianas soevidentemente importantes, pois bobagem imaginar que se pode definirndio na base do preguioso princpio sub-relativista segundo o qual ndio qualquer um que achar que . No qualquer um; e no basta achar ou dizer;s ndio, como eu disse, quem se garante. (Por outro lado, so sim parentesdos ndios aqueles que os ndios acharem que so seus parentes e ponto final,pois s os ndios podem garantir isso).

    necessrio trazer para a definio, portanto, o reconhecimento explcito dofato de que existia um mundo social pr-colombiano, e de que h uma porode gente no Brasil atual que est ligada a ele. O que quer dizer esse ligada que o problema, naturalmente. Os laos histrico-culturais com asorganizaes sociais pr-colombianas compreendem dimenses histricas,culturais e sociopolticas. No tem de haver uma coincidncia dessas trsdimenses. Eu diria que se uma delas est presente, est resolvido oproblema. Essas condies dimensionais so condies suficientes, cada umapor si. E nenhuma delas necessria. Quais so tais condies? Uma delas acontinuidade da implantao territorial da comunidade em relao situaoexistente no perodo pr-colombiano. a idia do territrio tradicional, da Terraimemorial . impossvel no reconhecer a importncia disso. Como eu disse,tal continuidade suficiente, mas no necessria.

    No menos suficiente, alis, a disposio em conceber a situao presente dacomunidade a partir de determinaes e de contingncias impostas pelospoderes coloniais ou nacionais no passado, tais com o migraes foradas,descimentos, redues, aldeamentos e demais medidas de assimilao,ocluso e represso tnicas. Em suma, o ndio aldeado, o ndio que foimisturado, que os missionrios e bandeirantes desceram, no pode serculpado de ter perdido suas referncias territoriais originais. Essascomunidades vo deixar de ser indgenas porque seus membros foram trazidos fora de regies diferentes? Bem...desculpem, mas os jesutas misturaramvocs com ndios de todos os lugares. E da (responde o ndio), a culpa minha? Eu vou ser punido por causa disso? Quero minha terra de volta. Masj tem muito branco, h muito tempo, nessa terra... Mas ento precisonegociar. Pois a antiguidade da expropriao no a faz deixar de s-lo. O nico

  • prazo de validade a memria. E a memria tem os seus, como se diz, usossociais.

    Virando ndio, virando brancoA outra coisa a orientao positiva e ativa dos membros do grupo este osegundo critrio face a discursos e prticas comunitrios derivados dofundo cultural amerndio, e concebidos como patrimnio coletivo relevante. Setomarmos o ponto pela outra ponta, isso quer dizer: ningum obrigado a serndio. Os membros de uma comunidade podem decidir: ns talvez sejamosndios, mas no queremos ser; de qualquer maneira, estamos virandobrancos. A noo de virar branco, como se sabe, est presente em vriosmundos indgenas. Ela no quer dizer necessariamente o que ns achamos quequer dizer; ao contrrio, o que ela quer dizer justamente um dos problemasmais complexos com que se defrontam os antroplogos. H todo um sistemade pressuposies recprocas em jogo, com pelo menos quatro orientaestpicas: virar branco, virar ndio, pacificar o branco, pacificar o ndio. Os brancospacificam os ndios , os ndios pacificam os brancos, os ndios dizem queesto virando branco , h muitos brancos querendo virar ndio. Umasituao muito interessante. Os brancos lamentam que h vrios brancosquerendo virar ndio e, ao mesmo tempo, que h vrios ndios querendo virarbranco. Os Yanomami esto querendo virar branco, e os caboclos l da PedraFurada, no serto do Cariri ou sei l onde, esto querendo virar ndio. O mundoest de cabea para baixo. Os Yanomami deviam continuar a querer ser ndios(algum precisa continuar a querer ser; alguns ndios so necessrios), e oscaboclos deveriam continuar a querer ser brancos, cada vez mais brancos cidadania.

    Na verdade essas duas coisas so muito mais complicadas do que se imagina.Os Yanomami querem virar branco, mas isso no exatamente o que seimagina que seja, e os caboclos l de no sei onde querem virar ndio, mastambm no como se imagina que eles querem que seja. Cabe a ns,antroplogos, ver toda a complexidade que est por trs de assertivas tobanais como ns estamos virando branco. Esse um discurso comum emmuitas comunidades indgenas: ns estamos virando branco, os ndios estoacabando. O que parece, entretanto, que no se acaba nunca de virarbranco; e que os ndios no acabam de acabar; preciso continuar a ser ndiopara poder se continuar a virar branco. E parece tambm que virar branco moda dos ndios no exatamente a mesma coisa que virar ndio moda dosbrancos. At que se vire. Mas a, como se sabe, aquilo que se virou vira outracoisa.

  • Enfim, retomando: deve haver uma orientao positiva e ativa do grupo emrelao aos produtos caractersticos da vida com unitria. Rituais, mitos,configuraes relacionais mais ou menos reificadas, a prpria comunidadeenquanto ponto de orientao, plo de territorializao, e assim por diante. Emvista dos processos de esmigalhamento antropolgico associados situaoevocada no item anterior (redues, descimentos, escravizao, catequizaoetc.), tais discursos e prticas no so aqueles especficos da rea cultural,no sentido histrico-etnolgico, onde hoje se acha a comunidade. Ou seja,certos ndios podem ser ndios, terem uma orientao positiva e ativa emrelao ao fundo cultural amerndio, mas um fundo cultural amerndio queremete a uma outra regio original, simplesmente por que a deles foidestroada. Ento, se os caboclos da Pedra Furada importam um xam Wajpipara ensinar tor, qual o problema? Os antigos romanos importavamprofessores de grego para ensinar filosofia grega para eles, e ningum diziacom isso que os romanos estavam deixando de ser romanos. Ou dizia (algunsromanos de fato diziam), mas nem por isso eles deixaram de ser romanos . Oudeixaram. Os gregos, ento, mais ainda. Mas, repito, nem por isso. Como diziaSaussure: o francs no vem do latim. O francs o latim, tal qual falado hojeem tal regio da Europa. Patrice Maniglier, autor de um admirvel livro sobreSaussure (de onde tirei a frase anterior), acrescenta: foi de tanto falar latim [force de parler latin] que os galo-romanos comearam a falar francs. E assimpor diante.

    Renascimento ou inveno?Sahlins conta uma parbola em seu livrinho Esperando Foucault, que mais oumenos assim: H um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive umpovo muito interessante, e que h cerca de uns seiscentos anos atrs seachava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a suasabedoria ancestral ao cabo de inumerveis invases de brbaros, desucessivas catstrofes, pestes, secas, guerras, o diabo. A partir de certomomento, porm, esse povo comeou a se reinventar, criando uma culturaartificial: comearam a imitar uma arquitetura de que s conheciam runas ouem velhos escritos, faziam tradues vernculas de textos em lnguas mortas apartir de tradues em outras lnguas, tiravam concluses delirantes,inventavam tradies esotricas perdidas... Como se sabe, esse processo, quese passou na Europa ali mais ou menos entre os sculos XIV a XVI, ganhou onome de Renascimento. O Ocidente moderno principia ali. O que oRenascimento? Os europeus mistura tnica confusa de germnicos e celtas,de itlicos e eslavos, que falam lnguas hbridas, muitas vezes pouco mais que

  • um latim mal falado (isto , o latim tal qual falado em tal ou qual regio daEuropa, diria Saussure), crivado de barbarismos, praticando uma religiosemita filtrada por um equipamento conceitual tardo-grego, e assim por diante descobrem a literatura e a filosofia gregas via os rabes. Refiguram o mundogrego, que no era o mundo grego (ou greco-romano) histrico, mas umaAntiguidade clssica feita como sempre de fantasias e projees dopresente. Erguem templos, casas, palcios imitativos, escrevem uma literaturaque se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesiagrega, esculturas que imitam as esculturas gregas. Lem Plato de modosinauditos, pouqussimos gregos, imagina-se. Enfim: inventam, e assim seinventam. E Sahlins conclui: pois , quando se trata dos europeus, chamamosesse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos deinveno da tradio. Alguns povos tm toda a sorte do mundo.

    A terceira dimenso, enfim, a sociopoltica a primeira era histrica(continuidade), a segunda era cultural (orientao positiva em relao ao fundocultural). Ela diz respeito deciso, manifesta ou simplesmente presumida, dacomunidade se constituir como corpo socialmente diferenciado dentro dacomunho nacional para usarmos essa linguagem empolada e hipcrita.Constituir-se como entidade socialmente diferenciada significa dar-seautonomia para estatuir e delibera r sobre sua composio, isto , os modos derecrutamento e critrios de excluso da comunidade. Estamos falando decoisas como governana (perdoem a m palavra) comunitria, modalidadesde ocupao do territrio, regimes de intercmbio com a sociedadeenvolvente, dispositivos de reproduo material e simblica... Os ndios tm,como diz a lei, direito a seus usos costumes e tradies. Ter direito aos usos ecostumes significa ter autonomia para se governar internamente naquilo queno fira os princpios fundamentais (como se no os ferssemos, por princpio)da constituio nacional.

    Indian proudEssas reflexes so uma tentativa de criar uma definio a mais larga possvel,que reconhea que a resposta questo de quem ndio cabe s comunidadesque se sentem concernidas, implicadas por ela. No cabe ao antroplogodefinir quem ndio, cabe ao antroplogo criar condies tericas e polticaspara permitir que as comunidades interessadas articulem sua indianidade. Nsantroplogos no somos sequer tribunal de apelao. Um caso pitoresco queme contam, dos caboclos da Serra de Baturit que viraram ndios por conta deuma ONG de um noruegus crivado de boas intenes e de um padreexcessivamente zeloso do Cimi, , no meu entender, um caso marginal, no

  • sentido estatstico e no sentido conceitual. Pois e da?, eu diria. O que issoprova? Se aquela comunidade, de fato, uma inveno do mal (porque podeser uma inveno do bem), ento pacincia, vamos ver o que ns fazemoscom isso; vamos ver, sobretudo, se eles se garantem. Ns antroplogosdevamos nos orgulhar do fato de que o Brasil de hoje est cheio decomunidades querendo ser indgenas. E devemos nos orgulhar, entre outrascoisas, porque contribumos para reavaliar, dar um outro valor, noo dendio. Hoje a populao urbana do pas, que sempre teve vergonha daexistncia dos ndios no Brasil, est em condies de comear a tratar com umpouco mais de respeito a si mesma, porque, como eu disse, aqui todo mundo ndio, exceto quem no .

    (Agosto de 2006)

    Da emancipao reindianizaoDo ndio comunidade (1)A exploso da indianidadeOs antroplogos e a garantia da identidadeO antroplogo e o juristaTodo mundo ndio, exceto quem no O gentico e o genricoTornar-se ndio: um problema para o judicirio?Fechando a listaDo ndio comunidade (2)Virando ndio, virando brancoRenascimento ou inveno?Indian proud