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1 Ano 11, n. 23, nov.2010 i nforme econômico econômico Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 11 / nº 24 nov/2010 nforme ISSN 1517-6258 Pascal Lamy 17 A hegemonia ideológica no Brasil (1930-1964) Francisco Pereira de Farias 24 A democracia entre a festa e o espetáculo Diana Patrícia Ferreira de Santana A filosofia e o mundo contemporâneo: sobre ética e pós-modernidade Luizir de Oliveira 14 8 Infelizmente, não acabou! Samuel Costa Filho 36 Transporte sobre trilhos: ferrovia no Piauí na Primeira República Lêda Rodrigues Vieira Justificativa para a política ambiental: falhas de mercado, bens públicos, externalidades, incertezas e meio ambiente Fábio Renault Aguiar Sales 2 O cientista social é um intelectual orgânico? Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos e Ygor Rafael Leite Pereira 47 Economia Solidária no Piauí: a solidariedade na reinvenção do espaço público Naiara de Moraes e Silva, Oriana Chaves e Solimar Oliveira Lima O Brasil de volta aos trilhos Antônio Carlos de Andrade 30 40 A historiografia da Independência no Piauí Teresinha Queiroz 21 A única constante é a mudança. Essa afirmativa, atribuída a Heráclito de Éfeso, diz muito sobre a nossa história, sobre nossa organização social, sobre nós mesmos. Questionar, entender e explicar os fenômenos diversos aos quais assistimos ou vivenciamos diariamente é um exercício que nos faz perceber a verdade (relativa?) desse pensamento. A mudança, sob várias óticas, “continua” sendo uma das fortes palavras de ordem. Aliás, ela, ou a perspectiva dela, geralmente nos motiva, nos mobiliza... Dessa forma, o Informe Econômico converte-se num espaço privilegiado de discussão de ideias e observação das mudanças que vão ocorrendo através da visão dos seus inúmeros colaboradores ao longo desses 11 anos de existência. Temas esses que extrapolam os muros da UFPI e alcançam a sociedade de maneira ampla. Por aqui, as teorias, historiografias e atualidades – dentre outras temáticas – têm sido debatidas, questionadas, suscitadas, explicadas, fazendo deste espaço um marco do diálogo entre as diferentes disciplinas, integrando o corpo acadêmico da UFPI e de outras instituições, que, com relativa frequência, apresentam-se nestas páginas. Neste número, os temas dispostos se comunicam e, eventualmente, se complementam, o que estampa a multidisciplinaridade desta publicação. São levantadas questões que provocam reflexões necessárias sobre a ética da pós-modernidade, num momento oportuno de pensar o advir, e sobre a situação mundial e brasileira pós-crise. Numa abordagem sociológica, historiográfica e econômica, são lançadas luzes sobre diferentes períodos históricos do Brasil e/ou do Piauí; discute-se a forma alternativa de produção e comercialização, através da Economia Solidária; o entendimento conceitual da formação/atuação do cientista social enquanto intelectual atuante no meio social; a tese de Habermas dos direitos humanos e, por fim, os instrumentos econômicos no contexto das políticas ambientais. Boa Leitura! Prof. João Soares da Silva Filho Chefe do Departamento de Ciências Econômicas/UFPI Direitos humanos e soberania popular em Habermas Jorge Adriano Lubenow 46 “Em lugar de “made in China” a marca de um iPhone deveria dizer “Feito no mundo”, dado que os microchips são japoneses, o design é estadunidense, as telas planas de cristal líquido são coreanas e a montagem é chinesa.”

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1 Ano 11, n. 23, nov.2010in f o rm e e c o n ôm i c o

econômicoPublicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPIAno 11 / nº 24

nov/2010

nformeISSN 1517-6258

Pascal Lamy

1 7A hegemonia ideológica no Brasil(1930-1964)Francisco Pereira de Farias

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A democracia entre a festa e oespetáculoDiana Patrícia Ferreira de Santana

A filosofia e o mundo contemporâneo:sobre ética e pós-modernidadeLuizir de Oliveira

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8 Infelizmente, não acabou!Samuel Costa Filho

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Transporte sobre trilhos: ferrovia noPiauí na Primeira RepúblicaLêda Rodrigues Vieira

Justif icativa para a política ambiental:falhas de mercado, bens públicos,externalidades, incertezas e meioambienteFábio Renault Aguiar Sales

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O cientista social é um intelectualorgânico?Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos eYgor Rafael Leite Pereira

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Economia Solidária no Piauí: asolidariedade na reinvenção do espaçopúblicoNaiara de Moraes e Silva, Oriana Chaves eSolimar Oliveira Lima

O Brasil de volta aos trilhosAntônio Carlos de Andrade

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A historiografia da Independência noPiauíTeresinha Queiroz

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A única constante é a mudança. Essaafirmativa, atribuída a Heráclito de Éfeso, diz muitosobre a nossa história, sobre nossa organizaçãosocial, sobre nós mesmos. Questionar, entender eexplicar os fenômenos diversos aos quais assistimosou vivenciamos diariamente é um exercício que nosfaz perceber a verdade (relativa?) desse pensamento.A mudança, sob várias óticas, “continua” sendouma das fortes palavras de ordem. Aliás, ela, ou aperspectiva dela, geralmente nos motiva, nosmobiliza...

Dessa forma, o Informe Econômico converte-senum espaço privilegiado de discussão de ideias eobservação das mudanças que vão ocorrendo atravésda visão dos seus inúmeros colaboradores ao longodesses 11 anos de existência. Temas esses queextrapolam os muros da UFPI e alcançam asociedade de maneira ampla. Por aqui, as teorias,historiografias e atualidades – dentre outrastemáticas – têm sido debatidas, questionadas,suscitadas, explicadas, fazendo deste espaço ummarco do diálogo entre as diferentes disciplinas,integrando o corpo acadêmico da UFPI e de outrasinstituições, que, com relativa frequência,apresentam-se nestas páginas.

Neste número, os temas dispostos se comunicam e,eventualmente, se complementam, o que estampa amultidisciplinaridade desta publicação. Sãolevantadas questões que provocam reflexõesnecessárias sobre a ética da pós-modernidade, nummomento oportuno de pensar o advir, e sobre asituação mundial e brasileira pós-crise. Numaabordagem sociológica, historiográfica e econômica,são lançadas luzes sobre diferentes períodoshistóricos do Brasil e/ou do Piauí; discute-se aforma alternativa de produção e comercialização,através da Economia Solidária; o entendimentoconceitual da formação/atuação do cientista socialenquanto intelectual atuante no meio social; a tesede Habermas dos direitos humanos e, por fim, osinstrumentos econômicos no contexto das políticasambientais.

Boa Leitura!

Prof. João Soares da Silva FilhoChefe do Departamento de Ciências Econômicas/UFPI

Direitos humanos e soberania popularem HabermasJorge Adriano Lubenow

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“Em lugar de “made in China” a marca de um iPhone deveria dizer “Feito no mundo”, dado que os microchips são japoneses, o design é estadunidense, as telas planas de cristal líquido são coreanas

e a montagem é chinesa.”

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2in f o rm e e c o n ôm i c oAno 11, n. 23, nov. 2010

A FILOSOFIA E O MUNDOCONTEMPORÂNEO:sobre ética e pós-modernidadePor Luizir de Oliveira*

“Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos anjos me ouviria?” (RILKE, Elegias do Duíno, I).

Ao se propor uma reflexão acerca da filosofia napós-modernidade, pressupõe-se que a terminologiajá esteja suficientemente esclarecida para que sepossa, a partir dela, delinear um campo deinvestigação que se abre a partir de uma gama deproblemas, novos ou remodelações de velhasquestões, que enfrentamos na contemporaneidade.Nós, homens do aqui e agora, encontramo-nos emum dado momento histórico pós-alguma coisa,mesmo que esta passagem não nos tenha sidoperceptível. Assim, talvez devêssemos apontar, atítulo de circunscrição do campo discursivo no qualpretendo desenvolver algumas provocações paranossas reflexões, o que constitui, no meu entender,a proposta pós-moderna1.

Em linhas gerais, assume-se como pós-moder--nidade a condição sócio-cultural e estética da fasecontemporânea do capitalismo pós-industrial quese estabeleceu por volta dos anos 1950. Estademarcação, contudo, não é amplamente aceita eocasiona intensos debates entre os teóricos dasmais diversas tendências. Para exemplificarmos,poderíamos chamar o testemunho do críticomarxista norte-americano Fredric Jameson (1997),para quem a pós-modernidade constitui a lógicacultural do capitalismo tardio. Entendida de formabem ampla, ela estaria relacionada a uma novacomposição de tendências políticas e culturaismais ou menos neoconservadoras determinadas acombater os ideais iluministas e os de esquerda.

Uma outra linha de análise é a proposta pelopensador francês Jean-François Lyotard (2004).Para ele, a pós-modernidade aparece como ummomento privilegiado, marcado pelo verdadeirorompimento com as antigas verdades absolutas,como o marxismo e o liberalismo, típicas damodernidade. E não só isto: os “velhos conceitos”como razão, subjetividade, verdade e progressoparecem enfrentar uma crise considerável. Lyotardpropõe que o próprio discurso filosófico, que portaraaté então um estatuto fundamentador de qualquer

campo discursivo que se pretendesse legítimo,também sofre seus reveses. A condição culturalinstaurada pelo pós-moderno aponta para uma“incredulidade perante o metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais euniversalizantes” (ibid., p. viii).

Pelo menos na filosofia, encontramos umamescla que coloca paralelamente a leitura de umcerto pragmatismo americano revivido com a ondapós-moderna e pós-estruturalista que abalou aParis de 1968. Isto parece ter reforçado umatentativa de recusa in toto de toda a herançahumanista, conjugada ao legado iluminista.Vivencia-se um cenário no qual a “velha” razão étida como uma abstração instrumental que buscaraa emancipação humana universal por intermédio deuma profunda e sistemática mobilização das forçasda tecnologia e da ciência.

Todas estas considerações levam-nos a umaespécie de impasse sentido e vivenciado por todosnós, cidadãos do mundo globalizado, no alvorecerdo século XXI. Encontramo-nos em face de uma“nova era” e buscamos respostas para perguntasque, por conta da diversidade de caminhosapontados, continuam deixando suas respostassuspensas. Em meio à estonteante variedade determos utilizados para definir, minimamente queseja, este cenário atual, seguimos premidos aescolher entre uma ou outra alternativa, emboranenhuma delas nos pareça suficientementeadequada. Assim, ora somos habitantes da“sociedade da informação”, ora da “sociedade deconsumo”. E mais: estas formas de estruturação,talvez fosse melhor dizer reestruturação, dosistema social, ainda têm de enfrentar um estadode coisas que parece chegar a um encerramento:“pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “era pós-industrial” etc., como finais de um ciclo, comopontos de chegada de um esforço concentradocom vistas a um objetivo determinado, se bem queparcamente esclarecido. É o momento que Lyotard

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(2004) enfatiza como o fim das grandes narrativas.Afastando-se de qualquer proximidade de umaleitura hegeliana, a perspectiva pós-moderna teriaesgotado as possibilidades de nos inserirmos emum processo histórico teleológico, posto este ter--se evaporado numa multiplicidade depossibilidades particulares, deixando-nos sem oconsolo de um passado definitivo e um futuroprevisível. É a divisa marxiana de que “tudo o queera sólido e estável se desmancha no ar, tudo oque era sagrado é profanado e os homens sãoobrigados finalmente a encarar sem ilusões a suaposição social e as suas relações com os outroshomens” (MARX; ENGELS, 2005, p. 43).

Neste sentido, vivenciamos uma espécie de“fragmentação” do humano, à qual podemosadicionar a sensação de frustração contida, quasedolorida, do descumprimento das promessas defelicidade que haviam surgido no bojo doentusiasmo científico nascente no século XVI elevado ao seu auge em meados do XIX. Herdeirosde um século de guerras de proporções nuncaanteriormente vistas na história da humanidade,nós, homens do vigésimo primeiro milênio,parecemos o velho Diógenes, com sua lanterna,em busca de algo que nos escapa. Como bemreforça Anthony Giddens (1991, p. 12), o homemde hoje “vê uma pluralidade de reivindicaçõesheterogêneas de conhecimento, na qual a ciêncianão tem lugar privilegiado”. Ou pelo menos parecenão tê-lo mais. Assim, entre o “fim da história”propalado por Francis Fukuyama, a ineficiência darazão pura para nos tirar das angústias cotidianas,e o descompasso entre o ser e o ter nacontemporaneidade, sobrevivemos.

O debate que se avoluma dia a dia sobre acondição da pós-modernidade necessariamenteteria de chegar ao universo da Ética. Não é raroque se espalhem leituras superficiais dessa novaordem de coisas resultantes da modernidade.Frequentemente ouvimos frases como “fim daética”, “destruição dos valores morais”,“substituição da ética pela estética”, como seestivéssemos em face de uma verdadeira e finallibertação do ser humano das amarras da tradiçãoe dos convencionalismos. Se o projeto é uma vidafeliz, e essa felicidade perpassa necessariamenteum bem-estar material ditado por normas demercado, uma aparência eternamente jovial esaudável, numa tentativa, nem sempre bemsucedida, de se negar a própria fenotipia em nomede um modelo proposto, sabe-se lá por quem,

numa dissolução das identidades individuais nospadrões supranacionais ditados pela pasteurizaçãomundializada das formas de ser e agir, o fenômenoético parece, sim, perdido. Esquecemos, contudo,que a mera descrição de padrões prevalentes nãosignifica que se esteja buscando códigos moraisválidos universalmente (cf. BAUMAN, 1997).Na confusão advinda dessas propostas mais oumenos mundializantes, não raro jogamos fora obebê junto com a água da bacia!

A leitura tradicional dos atos morais perpassava,pelo menos até a demarcação das inquietaçõesprovocadas pela modernidade, uma simples edireta aplicação de uma espécie de régua devalores pelos quais o comportamento deviapautar-se. Entre o “certo” e o “errado”, o homemmoderno procurava justificar seu agir e seu sentir.Para os “antigos” (e coloco nesta classe, de formapouca distinta para o escopo da minha presentereflexão, os pensadores que trataram do modo deser e agir anterior ao advento da ciência moderna),a totalidade finalística dos atos e sentimentoshumanos acabava por ficar sob uma gama depoderes sobrenaturais contra os quais os sereshumanos nada podiam. Seja sob o nome deDestino, Providência ou Deus, aquilo queentendemos por “vontade livre” não passava de umaadequação entre as escolhas individuais e o certoditado de forma cabal. Lembremos, a título deexemplo, a justificação agostiniana para a qual olivre-arbítrio humano é uma simples deliberaçãomediatizada pelos mandamentos divinos. Ou se osaceita ou se os transgride e “paga-se” pelasconsequências de tal transgressão. Assim, viver deforma feliz seria viver de acordo com o mundo talqual Deus o ordenou, ou como a physisordenadamente se mostra. A força da tradiçãoexercia todo o seu peso.

Ao lançar os homens e as mulheres na posiçãode “indivíduos, dotados de identidadesainda-não-dadas, ou dadas, masesquematicamente - confrontando-se assim com anecessidade de construí-las, e fazendo escolhasno processo” (ibid., p. 9), a modernidade propõeum questionamento que não deixará mais tãotranquilas essas escolhas. Agora, cumpre assumirintegralmente a responsabilidade pelas eleiçõesfeitas e também pelas deixadas de lado. É precisosempre calcular, medir, avaliar se se deseja umaação apropriada nessa “nova” concepção demundo. Todo o peso dessa concepção éticarepensada pelos modernos levou Sartre, já em

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meados do século XX, a afirmar que os sereshumanos estão verdadeiramente “condenados àliberdade”, e essa condenação cobra-lhes um preçoque muitos não parecem dispostos a pagar. Umaimagem disto, extraída da tradição hindu, éutilizada por Giddens (1991, p. 133): nós, homenspós-modernos, vemo-nos forçados a nos atrelar ou,pelo menos, conduzir o “carro de Jagrená”2; se nãopara sermos capazes de maximizar asoportunidades, pelo menos na tentativa, muitasvezes vã, de minimizar os prejuízos advindosdessas escolhas.

Desta forma, os desafios de uma reflexão éticaque se queira séria em tempos de dissolução devalores exige um olhar muito atento a todas asesferas do humano. Ao redigir seu “Discurso sobrea dignidade do homem”, no final do século XV,Pico della Mirandola (1989) já nos propunha essedesafio. Uma conduta pautada na condição dehumanidade levada a efeito de forma tão radical nãopoderia deixar de considerar os resultados de talcentramento antropológico. Contudo, asconsequências de tal proposta teriam de esperaralguns séculos para que pudessem ser sentidasem toda sua extensão.

Atualmente, contudo, essa “velha dignidade” dohumano, reforçada por Descartes e retomadainúmeras vezes por iluministas e românticos,parece ter-se esgarçado. O ideal do sujeitounificado, dotado de uma razão exercida em suasdimensões pura e prática, exercitada à medida queseus julgamentos se faziam necessários, pareceter caído por terra. Novas identidades surgem,fragmentando o indivíduo moderno e exigindo deleum novo olhar sobre si mesmo e sobre o mundoque o cerca. Sem referenciais, sem quadrosexplicativos, sem sistemas de pensamentos emque nos apoiar, vagamos no universo obscuro quetanto amedrontara Pascal! As mudanças do final doséculo XX e início do XXI reforçam odescentramento dessas antigas “identidades”propondo desafios para que se as pense em suasidiossincrasias: novas paisagens culturais declasse, gênero, sexualidade, etnia, raça enacionalidade, que anteriormente haviam oferecidoas bases sobre as quais nos assentarmosadequadamente como indivíduos socialmenteestáveis, transformam-se cotidianamente. E ocorolário dessas mudanças é que individualmentetambém somos forçados a reelaborar a ideia quetemos de nós próprios. O estável sentido de sinão era assim tão firme quanto parecia.

Assim, à herança iluminista - que havia firmadoa concepção de que o homem, por conta da suaracionalidade ontologicamente estabelecida,constituía uma individualidade centrada, unificada,dotada das capacidades de razão, de consciênciae de ação gravitando em torno de um núcleo quepermanecia estável ao longo de todo o processo dedesenvolvimento a que fosse exposto - o século XIXofereceria um contraponto. Em face dastransformações por que passavam as sociedadesresultantes das revoluções francesa e industrial,tornava-se patente que a visão de uma identidadeindividualista como a iluminista não dava conta demostrar como cada homem respondia a toda acomplexidade do mundo moderno de então.

A pseudo-autonomia nuclear dos homens nãose sustentava em face das análises sociológicasque tomam fôlego a partir dos anos 1840. A relação“eu-outro” oferecia novos desafios interpretativosprofundamente significativos em se tratando douniverso dos valores, dos sentidos e dos símbolosque constituíam o patrimônio cultural humano(HALL, 2004, p. 11 et. seq.). Tratava-se dereelaborar a identidade do “eu” a partir de uma visãoque privilegiava o caráter marcadamenteinteracionista das relações sociais. Isto acabariapor desaguar nas propostas da antropologia culturalda virada do século XIX para o XX, com ênfase nasinterpretações relativistas. Embora se mantivesseuma leitura de um “eu real”, como enfatiza Hall(id., ibid.), não se poderia deixar de considerar todaa gama de formações e modificações que ele sofriaao longo da sua existência, marcada por umarelação dialética interioridade-exterioridade profundae responsável pela proposição de um novo conceitode identidade. A crítica dos pós-modernos recairátambém neste ponto.

É interessante ressaltar no âmbito destadiscussão o papel que desempenham algunsautores de inspiração e/ou formação judia nesseprocesso. Lembramo-nos especificamente deMartin Buber, que muito bem trabalha esta visãofin de siècle, ao resgatar a importância capital dasduas relações pelas quais todos os seres humanostêm de passar ao longo de suas vidas: aquela quese caracteriza como o espaço da palavra-princípioEU-TU, e que compreende todo o processo desocialização e construção da personalidade moraldos indivíduos na sua multifária estruturaçãorepresentacional; e o espaço da palavra-princípioEU-ISSO, que demonstraria nossa capacidade delidar com o restante do mundo em que vivemos e

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que escapa às nossas interações imediatas comos outros seres humanos. Colocarmo-nos nestaesfera implica perceber que não somos apenasmovidos por “verbos transitivos”, mas que há algoque a ultrapassa e que nos permite pensarmo-nos.Em outras palavras. “o mundo como experiênciadiz respeito à palavra-princípio EU-ISSO. A palavra--princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação”(BUBER, s./d., p. 6), Implicações deste pensarrefletirão posteriormente em pensadores bemoriginais, como Emmanuel Lévinas, por exemplo.

A última das consequências desse fértil períodode transformações que constitui a modernidade é aconcepção do sujeito pós-moderno. As rupturas daexterioridade objetiva, que servia para nos dar umapoio, reforçam nossa dificuldade no processo deidentificação de nossa subjetividade com algumaidentidade cultural estável. Vivemos umatransitoriedade na qual, dia a dia, tudo parece maisprovisório, mutável e complicado. Nossasidentidades tornam-se fluidas. Formam-se etransformam-se de maneira contínua, espelhandoos modos como somos representados e nosrepresentamos no palco da cotidianidade. Comoressaltara Goffman (1999), não basta apenas querepresentemos nossos papéis diariamente; épreciso que nossos observadores levem a sério aimpressão que causamos ou tentamos causar. Aquestão torna-se complicada, sobretudo quandosomos colocados em face de nós mesmos edessas impressões que tentamos reforçar nosoutros, nas imagens que eles formam de nós ouque, pelo menos, nós gostaríamos que formassem.Bastaria um passeio por qualquer bate-papo emsalas de chats virtuais para que se pudesse teruma dimensão imediata do que aponto aqui.

Assim, o sujeito da pós-modernidade vê-se atodo momento forçado a assumir identidades quenão são “unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”(HALL, 2004, p. 13). Vivemos um conflito internoque nos dilacera vagarosamente, e muitas vezessem que o percebamos, embora os resultadosdisto sejam sensíveis na forma como agimos ereagimos no mundo em nossas esferas deinterrelação social. A busca de um centro seguro ecoerente parece-nos mais e mais uma fantasia.Carecemos de fundamentos internos, buscamo-losexteriormente, e voltamos de mãos vazias. Nessecaminhar, lançamos mão de todos os artifíciosencontrados e colocados ao nosso dispor, emboramuitos deles, talvez sua quase totalidade, sejamtão efêmeros e voláteis quanto nossa própria

necessidade de sustentação. Vivemos emsociedades de mudanças constantes, rápidas epermanentes, e parecemos continuar buscando umreferencial que seja perene, universalmente válido eindividualmente satisfatório. A tradição afasta-se emritmo vertiginoso e nós nos apressamos em fingirnão olhar para trás, porque somos “pós” tudo o quese considerava rançoso, engessado, infértil.

Ao olharmos para o futuro, uma sensação demal-estar aperta-nos a garganta. Porque nossasrelações sociais, nossos contextos locais deinteração são constantemente redefinidos tendopor base modelos espaço-temporais indefinidos,descontínuos (GIDDENS, 1991; HALL, 2004).Estamos estirados entre a vasta extensãoespacial, que agora cobre todo o globo terrestre,e a intensidade temporal que alteraram de formaradical algumas das características “mais íntimas epessoais de nossa existência cotidiana”(GIDDENS, 1991, p. 14). As sociedades veem seuscentros “deslocados”, recompostos por umamultiplicidade de pequenos centros de poder.É aí que pensamos encontrarem-se os desafios dafilosofia do terceiro milênio.

Tempos práticos requerem atitudes práticas.A isto Dilthey (1994, p. 14) respondera de formacategórica: “a missão da filosofia prática é adeterminação do que tem importância e valor navida. Seu objeto é, portanto, determinar osprincípios máximos através dos quais são definidosmetas e caminhos para o agir prático”. A ela fazeco a leitura de Peter Singer (1998): uma vez quetodas as propostas de se estabelecer um sistemada vida ética perpassaram a busca de fundamentosuniversalmente válidos, o que pode ser percebidodesde a reflexão socrático-platônica até as maisrecentes propostas, como as de Hare (2004) eRawls (2000), a titulo de ilustração, parece serpossível defender-se uma posição francamenteutilitarista nesta problemática. Isto não quer dizerque apenas estejamos propondo uma leitura que,no seu limite, tenderia a confundir-se com umrelativismo absoluto, posto que o útil costuma serpensado como útil para mim, especialmente emse tratando dos efeitos contundentes que asociedade de consumo exerce sobre os padrões deconduta individuais. Longe disto, está o queprocuramos apontar. Minha leitura aproxima-se daspropostas menos ortodoxas baseadas em umadeontologia de certa forma enrijecida, ou em umateleologia transcendente que promete recompensasem um futuro distante demais para ser vivenciado

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em sua totalidade. O que me preocupa é anecessidade de reflexão do hic et nunc nos moldespragmáticos já evidentes em autores tãoaparentemente distintos, quanto Sêneca eNietzsche, Schopenhauer e Marco Aurélio,Kierkegaard e Sartre, ou mesmo Espinosa eWittgenstein!

O ponto é: ser moral implica seguirdeterminadas regras; agir eticamente significa sercapaz de justificar as ações, as escolhas feitas emface dessas mesmas regras, de modo a mostrar--lhes a validade e a permanência universais.Nossas atitudes manifestam-se “em padrões deação apropriada que se conformam com umsentido do que é adequado e certo”, como bemressalta Charles Taylor (2000, p. 187). É assim quenós somos capazes de perceber quandocometemos um engano, ou quando alguém ocometeu. Isto reforça aquilo que os gregos antigoschamavam de héxis e que o mundo romano, dadasua atitude mais “prática” com relação aos modose à vida, reforçou sob o conceito de habitus. Agir eticamente pressupõe não apenas oconhecimento de certas normas tidas como válidaspara a comunidade em que vivemos, mas, e maisimportante do que isto, vivenciá-las de forma a quese tornem um hábito indissociável do nosso agirdialógico. Ainda, um agir que pressupõe nossasrelações imediatas com outros homens emulheres, eles também mediados por essasmesmas exigências.

Isto se nos afigura muito simples, óbvio até,quando se trata de tecer consideraçõesextrínsecas ao meu ser-no-mundo. Contudo, e aíresidem as maiores dificuldades, nós não estamospermanentemente sob o influxo da reflexão ética,muito pelo contrário, e por isso mesmo utilizamoso termo hábito neste contexto. Ao automatizarmosnossas ações e reações, acabamos nos sentindoum pouco menos frágeis em face dos acertos eerros, uma vez que nos utilizamos daquela mesmarégua de valores que mencionamos anteriormente.É como a imagem da cama de Procrusto: temoso métron parametrizado para o agir aceitável.Se houver sobras, se as aparam; se houver faltas,basta esticar! O importante é que entre o que é eaquilo que parece, ou transparece, não hajaexcessivos desvios. No palco de nossasencenações cotidianas, nas nossas entradas esaídas nos cenários desta “sociedade doespetáculo” - tomando emprestada a expressão deGuy Debord (1997) -, estamos constantemente

entrando em cena, iluminados pelos holofotes deuma constante vigilância, e sempre em busca deuma aceitação por parte do outro, conseguida àcusta de nossa própria descentração. Ecce homo!Postos diante do dilema a vida ou a convenção,optamos constantemente por esta. Assim, onormativo é o ponto focal do ataque. A vida socialmajoritária resume-se a uma fileira de normas eregras constantemente lidas como opressivas,posto serem convenções circunscritas no universoda linguagem: basta que se abra a boca para quese façam presentes. Mas a facilidade destaescolha é apenas aparente. Ela instaura umasensação de desconforto constante, uma angústiaque não tem um caráter provocativo e criativo, masque simplesmente dilui tudo na mesmice, nodescompromisso e nos chavões cotidianos de“o que tenho eu com isso?”, ou “eu fiz a minhaparte”. Juntamo-nos a Vladimir e Estragon, eseguimos esperando Godot! (BECKETT, 2005).

Contudo, resgatando uma vez mais nossoponto, o normativo nem sempre é assim tão terrívele castrador quanto possa parecer aparentemente.Um mundo em que todas as diferenças fossemaceitas indiscutivelmente, em que os modos deagir fossem tão múltiplos quanto os homens emulheres que deles se utilizam tornaria nossasvidas impossíveis. Lidar com essas diferenças temsido alvo de muita confusão. Achatamos tudo sobum mesmo grande teto. E constantementeconfundimos diferença com diversidade. O diferenteexclui, marca, separa, divide; é o outro queameaça, porque nos coloca em confronto com apossibilidade de uma leitura de mundo que não anossa. O diverso, por sua vez, inaugura o espaçodo diálogo, mostra a possibilidade de convivência,mesmo que nos coloque em face da necessidadede uma ruptura momentânea com leiturasverticalizadas dos valores vigentes. Não significa adissolução do uno no múltiplo disforme e semrosto; apenas sua circunscrição espaço-temporalidiossincrática, mas devedora, ela também, de umpertencimento ao éthos mais amplo no qual seinsere.

É neste sentido que continuamos nosperguntando se a proposta pós-moderna que parteda indistinção, ao colocar a ênfase sobre opluralismo individualista e individualizante dasociedade de consumo contemporânea, conseguemanter-se de pé, e por quanto tempo. Como reforçaEagleton (2005, p. 38), precisamos exercitar nossaimaginação em busca de novas formas de

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pertencimento, que possuem um carátermarcadamente múltiplo, reforçando ora sua facetribal e comunal, ora sua aparência abstrata eindireta, mediada por relações sociais que fogemaos convencionalismos rasos sem, contudo, deixarde lado a compreensão de que habitamos ummundo no qual homens e mulheres, emboranecessitem de liberdade e mobilidade, seguembuscando “um senso de tradição e pertencimento”.O problema é quando transformamos este sensoem amarras incontornáveis. Neste sentido,acreditamos que ainda seja de valia a liçãonietzscheana: andarilhos que somos, temos deestar preparados para as alegrias e as tristezasinerentes ao próprio caminhar (NIETZSCHE, 2000).

A fragmentação da vida na sociedade deconsumo, as crises do novo século e os problemasque acompanham o progresso de diversas áreasparecem ter trazido a filosofia novamente à cena,aparentemente com nova roupagem. Contudo, alição do “velho” Kant (1988) segue mantendo suaatualidade: não se trata de buscar a resposta “na”filosofia, mas em se tentar desenvolver uma atitudefilosófica, uma que nos ensine a perguntar parapoder buscar as respostas, que nos prepare para omundo, para nós mesmos e para a convivênciacom o outro. Ademais, se seguimos considerandoque, de algum modo, viver significa buscar uma vidafeliz, teremos de continuar tentando aprender quese trata muito mais de uma conquista diária, umcaminhar gradual e consciente que não oferecenenhuma garantia posterior, nenhum prêmio a sercolhido em algum momento no futuro, tampoucoum castigo mais ou menos iminente. Não, e nistoseguimos ainda as pegadas de Spinosa (2007): afelicidade não é um prêmio que recebemos porsermos virtuosos, não é um troféu que nos éentregue porque agimos desta ou daquela maneira;muito pelo contrário. Se há um prêmio, ele consistena adequação entre a nossa ação e o mundo emque estamos vivendo, uma simbiose verdadeira,uma união indissolúvel entre a parte e o todo.Sem esta percepção, continuaremos vagando aesmo, procurando por um referencial que nospossa dar o rumo! Talvez este seja um dos grandesdesafios que a filosofia tem de enfrentar napós-modernidade

Notas:(1) “ ‘Pós-moderno’ quer dizer, aproximadamente, omovimento de pensamento contemporâneo que rejeitatotalidades, valores universais, grandes narrativashistóricas, sólidos fundamentos para a existênciahumana e a possibilidade de conhecimento objetivo. Opós-modernismo é cético a respeito de verdade,unidade e progresso, e opõe-se ao que vê como elitismona cultura, tende ao relativismo cultural e celebra opluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade”(EAGLETON, 2005, p. 27);(2) “O termo vem do hindu Jagannãth, ‘senhor domundo’, e é um título de Krishna. Um ídolo destadeidade era levado anualmente pelas ruas num grandecarro, sob cujas rodas, conta-se, atiravam-se seusseguidores para serem esmagados” (GIDDENS, 1991,p. 133).

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* Graduado em Ciências Econômicas/PUC-SP,Doutorado em Filosofia/USP-SP. Professor doDepartamento de Filosofia/UFPI e do Mestrado emÉtíca e Epistemologia/UFPI.

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INFELIZMENTE, NÃO ACABOU!Por Samuel Costa Fi lho*

O capitalismo contemporâneo consumou amundialização do capital sob o predomíniofinanceiro e rentista. Nesse novo mundo em que osmercados financeiros operam com total soberania,sem nenhuma regulação e com pouca tributação,os teóricos das finanças desenvolveram a crençade que a Ciência Econômica Financeira Modernatinha tudo sob controle. Os EconomistasFinanceiros disseminaram a ideia da “Hipótese doMercado Eficiente”, em que os mercadosfinanceiros apresentam a capacidade deestabelecer com precisão o preço dos ativosbaseados apenas nas informações disponíveis nomercado.

Conforme Paul Krugman (2009), nos anos 1980,um economista da Escola de Administração deHarvard, Michael Jensen, defendeu a tese de que,devido ao fato de os mercados financeiros sempreacertarem ao definir os preços dos ativos, o melhorque os gestores corporativos poderiam fazer, nosentido de melhorar a economia, era procurarmaximizar o preço de suas ações. Nessa linha,cada vez mais a teoria econômica hegemônicapassou a estimular os fluxos financeiros e aconceber e defender o desenvolvimento daeconomia na linha especulativa do “cassino”financeiro.

Ainda, conforme Krugman (2009), um Modelo dePrecificação de Ativos Financeiros foi desenvolvido,mostrando que o investidor, ao buscar um equilíbrioracional entre retorno e risco, propiciava-se fazersua escolha de portfólio, determinando os preçosdos títulos e derivativos financeiros e generalizandoa crença no princípio da impossibilidade deformação de bolhas financeiras nesse mercado.

A elegância e a aparente utilidade dessa “nova”teoria econômica propiciou a premiação de umasequência de prêmios Nobel a diversos dos seuscriadores, além do que, muitos professores deAdministração se tornaram funcionários de WallStreet, recebendo elevadas remunerações.

O sistema financeiro internacional expandiu-se,aprofundando a financeirização da acumulação decapital, e o mercado bancário intencional cresceu,baseado não somente nas funções clássicas dosbancos, mas desenvolvendo funções complexas eespecificas de um mercado financeiro diversificado

de “serviços” e negócios, que aumentou e ampliouas fontes de lucros dessas instituições. Umacomplexa gama de mecanismo das operaçõesfinanceiras passou a fazer parte das operações dasinstituições bancárias, na forma de operações deleasing, operações de consórcio, operações deseguros, de atividades na bolsa de valores, naBolsa de Mercadoria & Futuros (BM&F), operaçõesde câmbio, nas atividades de exportações eimportações, nas operações de previdênciacomplementar, nas operações com os fundos depensões etc. (KLIASS, 2010).

Assentados em um rigor formal, o saberconvencional procurou dar um aspecto decientificidade às suas teorias e garantiu o sucessodos modelos em defesa do mercado financeiro,encantando muitos economistas, muito emboraesses modelos não tratassem da realidade dosfatos e, muito menos, abordassem os contextosespecíficos, apresentando, antes de tudo, umreducionismo estéril na explicação e compreensãodos fenômenos econômicos.

Os pressupostos monista e individualista dateoria padrão que levou à explicação dos mercadosfinanceiros eficientes, como a todo saberconvencional, mascara a realidade, objetiva apenasassegurar o poder regenerador do mercado eassegurar a sua capacidade de corrigir osdesequilíbrios, conduzindo o sistema capitalista auma situação de máximo bem-estar, assentado emcaracterísticas metodológicas de formalismoreducionista e anti-intervencionista (AFFONSO, 2003).

Acontece que esta abstração que a teoriahegemônica utiliza está apoiada em supostosextremamente restritivos, mas altamenteimportantes para justificar a “Nova Ordem”econômica, social e política da globalizaçãofinanceira. Defende o livre mercado e a democraciapolítica como requisitos recíprocos dessa novaordem. Incorpora na sua análise a ênfase naconduta individual racional maximizadora individual.O individualismo e egoísmo são dínamos docomportamento da sociedade, concebendo, assim,os indivíduos como os únicos responsáveis finaispela determinação da ação privada e da açãocoletiva, desconsiderando os aspectos políticos esociais.

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Diferentemente do apregoado por seusideólogos, o mercado financeiro mostrou-seincapaz de garantir endogenamente o equilíbrio edemonstrou que a sua apregoada eficiência nãopassava de uma fantasia. Assim, esta lógica defuncionamento do capital não apresenta mercadoeficiente, não é equilibrado e muito menos sabeavaliar os riscos com perfeita racionalidade. Nocontexto de globalização financeira, a aplicaçãodas políticas econômicas liberais nos últimos trintaanos elevou ainda mais a instabilidade do sistemae provocou diversas crises nos países da periferiadesse sistema; crises financeiras consecutivas,com aumento do desemprego, da pobreza e daexclusão social.

Semelhante ao acontecido nos anos queantecederam a crise de 1929, hodiernamente, oliberalismo desenfreado contribui novamente parauma grave crise nos países desenvolvidos. Diantedesta crise, novamente as forças autodestrutivas eautofágicas do mercado mostraram não ter maiscondições de garantir a reprodução do sistemacapitalista, que, deixado à própria sorte, corriarisco de provocar uma grave depressão, devido àcriação da riqueza fictícia não encontrar maisrespaldo na economia real.

Então, os neoliberais, adeptos e defensores doreinado do mercado e da democracia liberal, nãotiveram alternativa e, sem ação, ridiculamente,apelaram para a política de socialização dosprejuízos, utilizando o dinheiro público comomedida para debelar e combater o surgimento deuma depressão econômica, com o propósito desalvar o capitalismo, ou o mercado, de seuspróprios males. Nesta realidade, ganharamrelevância as políticas de estabilização, diante doslimites que a propriedade privada dos meios deprodução e o mercado colocaram para o processode alocação dos recursos pela sociedadecapitalista. Um ano após a grande crise de 2008, apossibilidade de uma nova política de estabilizaçãopermanente do capitalismo parece que está namoda.

O norte-americano Ian Bremmer acaba depublicar um livro intitulado “O Fim do LivreMercado”, defendendo a tese de que o capitalismode estado será uma marca da geopolítica pós-crisefinanceira. Bremmer (2010) pondera sobre desde oslimites do modelo liberal vigente às quebras de2008 e afirma que governantes que usampoliticamente as empresas estatais ganham tantoeconômica quanto politicamente, o que incentiva o

desenvolvimento de sociedades menos livres eafeta a atração e as políticas das multinacionais.

Em meio a esta realidade pós-crise, novamente,as Ciências Econômicas parecem mostrar que amacroeconomia keynesiana apresentou umaresposta adequada e exata para combater oaprofundamento de uma depressão. Os governos ebancos centrais demonstraram que podem vencer abatalha da queda da atividade econômica utilizandoas armas da política monetária (manipulação dastaxas de reservas legais, da taxa de redesconto edas operações de mercado aberto) e da políticafiscal (gasto público e impostos) para evitar aquebradeira dos grandes bancos e outrosconglomerados empresariais, segurar a queda donível de atividade, limitar o encolhimento da rendanacional e o aumento do desemprego.

As mudanças conjunturais e as variações emelhoras de alguns indicadores já fazem osprofissionais da ortodoxia e os consultores demercado afirmar que a crise do capitalismo acabou.Acontece que estes economistas da dita escolacientífica, jamais se notabilizaram pelo sucessode suas prescrições e muito menos no que dizrespeito aos acertos nas suas previsões. Convémainda lembrar que o paradigma ortodoxo dominantedefensor do livre mercado caiu novamente noridículo, fruto do naufrágio das suas políticas emtodos os países nos quais foi aplicado e até noprincipal país desenvolvido difusor dessas ideiasridículas, ou seja, nos Estados Unidos da América(EUA), sob o domínio dos ultraliberias e dosfalcões republicanos.

Estes economistas ortodoxos se consideram osúnicos economistas científicos, representando epossuindo o conhecimento do caminho corretoatravés do qual todos os acontecimentoseconômicos devem ser observados. A adoção dosargumentos e das suposições contidas naeconomia ortodoxa condiciona por completo amaneira como o economista convencionalinterpreta os fatos econômicos sem entender queestes fatos representam apenas um mero reflexo,direto e/ou indireto, do funcionamento do modo deprodução capitalista.

Dado que os economistas do mainstream nãovivem num vácuo, não são autônomos, tendem,portanto, a ser afetados pela ideologia burguesa,sendo falsa e mistificação a ideia difundida pelateoria ortodoxa de ser uma Ciência Econômicaisenta de valores, que apresenta uma atitude neutrae imparcial - trata-se do chamado Mito da

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Economia Positiva. É do conhecimento geral quenas Ciências Sociais as teorias apresentamdivergências relativas a métodos, hipóteses eprocedimentos de pesquisa. Suas teorias lidamcom interesses econômicos, políticos e sociais declasses e grupos sociais, de modo que não existeformulação neutra, asséptica ou desinteressada(NORE; GREEN, 1979).

Na verdade, o paradigma hegemônicorepresenta apenas o ponto de vista e a visão globalburguesa. Utiliza um método que serve unicamentede proteção para os cientistas e consultores operare examinar os problemas econômicos dentro dessedeterminado ponto de vista metodológico efilosófico, ou seja, do ponto de vista da moralburguesa. Ao desconsiderar as contradições e osinteresses constitutivos de uma sociedadecapitalista, essa teoria retrata somente umadeterminada posição de interesses: a das classessociais dominantes - econômica, social e política.

Desse modo, os profissionais da economiapredominante forçam e levam a sociedade a refletircompreendendo somente a ideologia burguesa(eficiência, eficácia, competitividade, produtividade,livre mercado, racionalidade, utilidade,concorrência, propriedade privada, individualismoetc.). Assim, não é surpresa que o método dateoria burguesa revela uma elevada incapacidadede entender e relatar a realidade de crise.Respaldados por uma simplificação grosseira, oseconomistas da ortodoxia procuram demonstrarque a natureza e o objetivo do sistema capitalistasão produzir para atender a satisfação doconsumo, viver sempre um crescimentopermanente da atividade econômica e em nível depleno emprego.

Assentadas na famosa Lei dos Mercados, deSay, a teoria ortodoxa afirma não poder havercarência de demanda numa economia capitalista, oque significa ser impossível uma baixa na atividadeeconômica, a não ser por meio de imperfeições queimpeçam a operação do sistema de preços - é arigidez dos preços que impede o mercado livre defuncionar corretamente. No caso atual de crise daeconomia capitalista, essa teoria é incapaz de nãosomente explicar a crise, mas também de oferecersoluções baseadas no seu paradigma que não sejaas que agravem ainda mais a crise. Colhida deroldão (a teoria), seus defensores foram pegos desurpresa, sendo incapazes de explicar essasituação e, consequentemente, entender estacrise. Este fato decorre do modo como os

economistas liberais ortodoxos explicam anatureza das flutuações econômicas nocapitalismo.

Embora o estudo das flutuações econômicastenha sido uma das áreas mais influenciadas pelosfatos do mundo real, o método da ortodoxia detratar a teoria das flutuações econômicasdemonstra, muito bem, a limitação da CiênciaEconômica predominante. O saber convencionalse relaciona com os fatos da vida econômica demodo insatisfatório, muito embora tenha crescido aparafernália de técnicas econômicas e o empregodos instrumentos da análise estatística,matemática e da econometria no acompanhamentoconjuntural pela ortodoxia. Mesmo assim, seusprofissionais continuam, cada vez mais, incapazesde prever os principais movimentos da economiacapitalista. Afinal de contas, tratam da aparênciado sistema capitalista, nada mais.

Para a ortodoxia, os ciclos econômicos, demodo geral, não representam uma característicadas economias capitalistas. Os economistasliberais tratam as crises como produto decircunstâncias especiais, não se constituindoaspecto fundamental do próprio funcionamento deuma economia de livre-empresa, ou seja, para osliberais, as crises, a recessão e a depressão sãodevidas a circunstancias especiais e não seconstituem aspectos básicos e algo inerente aofuncionamento do sistema capitalista. O saberconvencional, frequentemente, apela para o uso deteorias de choques externos a fim de explicar asflutuações do sistema e, assim, justificar a ideia deque as flutuações econômicas não são naturais aocapitalismo.

As teorias ortodoxas alternativas muito poucodiferem da explicação ortodoxa e também nãoexplicam muito mais do que a ortodoxia.Encontramos explicações de elaboração de teoriasde ciclos econômicos da síntese neoclássicakeynesiana apresentando uma explicaçãoendógena ao sistema capitalista utilizando ainteração entre multiplicador (mudança da rendadepende da mudança do investimento) eacelerador (mudança do investimento depende darenda). Milton Friedman atribui a instabilidade daseconomias de livre mercado aos erros da políticamonetária adotada pelos bancos centrais. JosephSchumpeter elaborou uma explicação teórica queresulta da conjunção e coincidências das fasesdescendentes dos ciclos de Kondratief (cinquentaanos ou mais), Juglar (aproximadamente dez anos)

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e Kitchin (quarenta meses, em média). Contudo, ainfluência de todas essas teorias sobre a ideologiaburguesa e sobre a formulação da políticaeconômica tem sido insignificante (NORE; GREEN,1979).

Keynes procurou explicar o desenvolvimento dacrise devido à baixa do investimento emconsequência do súbito colapso da taxa de retornoesperada dos investimentos, levando a uma ondade pessimismo no sistema capitalista. Emsíntese, trata-se de uma explicação basicamentede ordem psicológica e que pode ter numerosascausas. Essas ondas de otimismo e pessimismoexistentes entre os capitalistas fazem o sistemaapresentar alta e baixa da atividade econômica(KEYNES, 1983). Trata-se metodologicamente deuma explicação equivalente a da ortodoxia, poisaqui também aparece como um fator externo aopróprio capitalismo.

A história do capitalismo mostra que nos paísesdesenvolvidos como na Grã-Bretanha, nos EUA ena Alemanha ocorreram várias recessõeseconômicas até à Primeira Guerra Mundial. A curtaalta do pós-Primeira Guerra foi seguida pela maisprofunda e generalizada queda do nível de atividadeeconômica que o mundo capitalista jamais haviaconhecido: a denominada Grande Depressão, quemarcou os anos 1930. Este período de grandedepressão foi o mais longo, mais profundo e maisgeneralizado de queda no nível de atividadeeconômica da história do capitalismo, quandoeconomia importante alguma ficou imune a ela. FoiJohn Maynard Keynes quem formulou a explicaçãoe o remédio para a crise do mundo do pós-SegundaGuerra. Os governos capitalistas assimilaramessas lições e colocaram em prática até a crisedos anos 1970.

A política do rearmamento - que foi a únicacircunstância capaz de restabelecer o plenoemprego - e o ano de 1945 assinalaram o fim deum período de quarenta anos de instabilidade nomundo capitalista. Parecia, enfim, que asperspectivas de prosperidade contínua docapitalismo haviam se tornado realidade. Durantecerca de trinta anos, as economias capitalistascomportaram-se de maneira sem precedentes nahistória, apresentando um crescimento daprodução mais rápido, mais geral e mais longo quequalquer outro período comparável da história docapitalismo. A política econômica de civilizar ocapitalismo funcionou e se constituiu em antídoto àradicalização dos movimentos sociais; e, na

periferia, foi até capaz de propiciar a participaçãopopular.

O artifício ideológico da teoria ortodoxa deestudar as questões políticas econômicas esociológicas separadas e independentes uma dasoutras mantém o raciocínio do economistaortodoxo dentro do contexto econômico burguês,restringindo a natureza e a estrutura do raciocínioeconômico. Por este fato, não foi difícil, na criseiniciada em 1975, o retrocesso e retorno dodomínio da ortodoxia liberal com a revolução novo--clássica das expectativas racionais, levando aoabandono e execração das políticas keynesianas.

Não abordando as questões fundamentais docapitalismo, essa nova roupagem da ortodoxiacontinua apresentando as deficiências e asfraquezas teóricas anteriores. Os novos defensoresda economia de mercado, apoiados em princípiosabstratos e descontextualizados historicamente,acreditaram na beleza e potência das suas teoriassubjacentes na sua própria retórica, que apresentaresultados que decorrem estritamente daimposição das suas premissas.

No que diz respeito às explicações dos cicloseconômicos, os novo-clássicos continuaram aconstruir análises exógenas de choques financeirose choques reais. A irrelevância empírica dos seusconceitos permaneceu fragilmente encoberta naquestão metodológica friedmaniana do como se,que supõe que, embora assentados em suposiçõesabsurdas, os economistas do mainstream agemcomo se as suposições fossem verdadeiras.Respaldados em uma débil aparelhagem explicativado funcionamento do capitalismo, jogaramnovamente para debaixo do tapete os pontosessenciais do funcionamento do sistema burguês econtinuaram incapazes de explicar a atividadeeconômica do mundo capitalista. Estudaram aaparência, nada mais.

Esta perspectiva decorre do método da teoriaburguesa, que, consciente ou inconscientemente,procura e objetiva autojustificar a superioridade dosistema capitalista. Essa é sua essência. Baseadoem um raciocínio sobre o indivíduo autônomo,procura obscurecer a natureza espoliativa docapital. Dessa forma, a chamada CiênciaEconômica serve de ideologia apologética docapitalismo. Representa uma mistificação que tema função de reduzir as possibilidades e os desejosde mudanças em uma sociedade dominada pelocapital (PAULO NETTO; BRAZ, 2006).

Acontece que é da natureza do capital flutuar.

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A instabilidade é inerente ao sistema capitalista.Esta essência é encontrada nos trabalhos dosempre combatido, depreciado e descartado KarlMarx, o qual o capitalismo teima em ressuscitar. Aessência do capitalismo revela (1) ser o maisdinâmico e pujante modo de produção já criadopelo homem e (2) que essa elevada flexibilidadenão impede as crises, que são inevitáveis einerentes ao capitalismo. Entretanto, são estascrises que criam as condições para reanimação dosistema e para um novo auge (MARX, 1980).

Dessa forma, esse sistema, após resolver suascontradições, em algum momento, sempre volta aapresentar crescimento, quer seja em determinadaárea ou em termo global. Mesmo em crise, ocapitalismo nunca para. Embora em diferentesritmos, apresenta situações e indicadoresdivergentes, ora positivos ora negativos. Trata-se deum sistema com elevada dinâmica. A crise é umprocesso e o capital uma contradição emprocesso.

No pós-crise, esta dinâmica e os dadosconjunturais não possibilitam afirmar que a crise jáacabou. Conforme observa José Carlos de Assis,em artigo “O capitalismo no ponto de maturação (eo Brasil nele)”, de janeiro de 2010, é impossíveldesvendar as perspectivas futuras da recuperaçãodo capitalismo se não compreendermos a naturezapeculiar e a gravidade da crise financeira por quepassa o capitalismo. E o processo e desenrolardesta crise são diferentes das anteriores. Ela jáquebrou grandes corporações, como a maiorseguradora do mundo (American InternationalGroup - AIG). Levou ainda à estatização de grandesbancos americanos (Bank of America e Citigorup) eaté de algumas de suas maiores corporações (GMe Chrysler). O mesmo ocorreu com diversosbancos privados europeus, na Inglaterra, naAlemanha, por exemplo, e em diferentes países daEuropa e da Ásia, de modo que a crise é grave enão acabou, vai apresentar ainda várias fases eestá longe do fim. É da sua essência.

Neste contexto, é cedo, muito cedo para afirmarque a crise do capital financeiro chegou ao fim,acabou, ou que o pior já passou. A recuperação docapitalismo em escala global, conduzida pelospaíses da Ásia é débil e geograficamente variável.Não é suficiente para criar uma dinâmica globalconsistente. Pairam no ar ameaças de bolhasfinanceiras e crises de dívidas públicas em váriospaíses desenvolvidos, principalmente da Europa.Predomina um baixo nível de investimento e um

persistente desemprego. A lógica do capitalfinanceiro não foi eliminada. O sistema deregulação e ações a respeito aos lucros dosbancos não sofreu restrição, nem ocorrerammudanças significativas no funcionamento eregulação do sistema econômico mundial dedominância de capital especulativo rentista. Alémdo que, a lógica virtuosa dos EUA (consumo) e daChina (produção e crédito) está desgastada.

Também não ocorreu uma recuperaçãosustentável da economia capitalista. São muitos osproblemas ainda existentes e os paísesdesenvolvidos apresentam uma divisão clara depensamento sobre a melhor forma de atuaçãonesse período denominado pela ortodoxia de pós--crise global. A posição dos EUA privilegia aretomada da atividade econômica e defende acontinuidade dos incentivos ao crescimentoeconômico sem descuidar de um ajuste gradualdas contas do setor público. O objetivo americanoé não errar na dose do remédio e matar o paciente,e não de curá-lo. Por outro lado, os paíseseuropeus, liderados pela Alemanha, defendem umaação de combate aos deficits públicos.

A maior parcela do aumento do endividamentodo setor público foi fruto e consequência dasmedidas de socorro ao setor financeiro e, devido àgravidade da crise, decorreu ainda da queda dearrecadação do setor público. Os gastos públicosrealizados pelo estado para viabilizar o processo deacumulação de capital e, sobretudo, com estapolítica de socialização do prejuízo, com objetivode salvar o mercado, faz o próprio mercado cobrarseu preço. Portanto, as elevadas dívidas públicasem favor do capital são apresentadas ao grandepúblico como medidas decorrentes da política e doprocesso de legitimação populista do estado debem-estar social. Neste contexto, cortar os gastospúblicos equilibra; e conter gasto social representaum aparente ajuste fiscal para atender aosinteresses do capital financeiro internacional,dentro das precondições ditadas pela ortodoxia.

Todavia, a implementação das medidas deajuste fiscal e de controle orçamentário deverácomprometer o, ainda frágil, crescimentoeconômico global pós-crise. O ajuste fiscalortodoxo muito rígido sempre causa mais prejuízodo que benefício para a atividade econômica, aindamais quando esta economia está lutando para sairda crise. A redução nos gastos públicos e aeliminação dos estímulos à atividade econômicasomente são recomendáveis quando a recuperação

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da economia já estiver consolidada (OLIVEIRA,2010). Esta política é também adequada em casode aquecimento da economia, de bolha ou deaceleração inflacionária. No momento atual,tenderá a provocar mais problemas, como umanova retração da atividade econômica, aumento dodesemprego, queda da arrecadação fiscal, novoaumento do deficit do setor público, o que fará apopulação arcar com sofrimento, dor e lágrimas oatendimento pelo estado das demandas do setorfinanceiro.

A história da década perdida no Brasil e asexperiências dos países que aplicaram oreceituário do Fundo Monetário Internacional (FMI)ao longo das últimas décadas mostram queocorreram aprofundamentos da recessão nospaíses submetidos às recomendações de fortesajustes fiscais recomendados por esta instituição.É bom lembrar que a recente crise já tem levado oshabitantes dos principais países desenvolvidos a terque conviver com situações vexatórias e problemascomuns pelos quais passam os indivíduos quevivem nos países capitalistas subdesenvolvidos,como desemprego recorde, endividamentocrescente, redução de padrão e nível de vida equeda no consumo.

Na Grécia, as prescrições das fracassadas econservadoras políticas econômicas do FMIobjetivam apenas atender aos mercados financeirose irá aprofundar a crise à custa da devastaçãosocial e da miséria humana. Os governos europeusnão apresentam alternativas reais à versãoneoliberal de capitalismo por eles construídos, como euro sendo usado como instrumento de disciplinasalarial e social. Dessa forma, os planos deausteridade, que procuram elevar a competitividade,estão sendo implementados visando rebaixarsalários e reduzir encargos. Representamprogramas de grande violência e somente irãoendurecer os traços regressivos dessassociedades, à custa das condições de vida dostrabalhadores e dos desfavorecidos (HUSSON,2010).

Começa a pairar no ar uma ameaça à pazsocial nos EUA. A tensão social e as divergênciasentre os países-membros passam a ser ameaças àorganização da União Europeia. Mesmo após segastar trilhões de dólares para salvar osconglomerados financeiros, os custos da crise docapitalismo nos países em desenvolvimento jálevaram a que 53 milhões de pessoas passassema viver abaixo da linha da pobreza e que mais de

100 milhões se juntassem às filas das pessoasque passam fome no mundo. A crise da dívida naGrécia e a situação dos outros estados (nãosomente os PIIGS – acrônimo para Portugal, Itália,Irlanda, Grécia e Espanha) que apresentam deficitse gastos elevados para salvar ou financiar o capitalpairam como uma nova ameaça nesse processo dedesenvolvimento da crise na zona do euro,indicando desdobramento da crise e suacontinuidade em várias partes da economiamundial.

Depois dessa breve recuperação, o medo deuma nova recessão volta a rondar a economia dosEUA. Na economia americana, o mercadoimobiliário continua frágil, os efeitos dos estímulosfiscais do ano passado estão se dissipando. OsEUA apresentam uma retomada de crescimentomais lenta do que o alardeado pela ortodoxia.Recentemente, o prêmio Nobel Paul Krugman(2010) escreveu sobre a possibilidade de outrarecessão e não descarta que já estejamos no iníciode uma forte depressão. A consequência maisprovável é que o processo de desenvolvimentodesta crise irá durar ainda bastante tempo. Arecuperação nos próximos anos será lenta e oseconomistas ortodoxos, os propagandistas domercado financeiro, os especialistas, osconsultores e os analistas do curto prazo (análisede conjuntura) continuam a não entender muitacoisa do funcionamento de uma economiacapitalista, suas contradições e tendências demovimento do capital. Os estudos da economiadevem levar em conta o desenvolvimento doprocesso. Infelizmente, a crise não acabou! Oprocesso está em movimento

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KLIASS, P. Spread bancário: escândalo nacional.Carta Maior [online], Análise & Opinião, 13 jul. 2010.Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=4705>.Acesso em: 13 jul. 2010.KRUGMAN, P. Como puderam os economistaserrar tanto? O Estado de São Paulo, São Paulo,Aliás, B 8-9, p. 2, domingo, 06 set. 2009.KRUGMAN, P. Receio que estejamos no início deuma forte depressão. Terra Magazine, 28 jun. 2010.Disponível em: <http:/terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4529518-EI12928,00Receio+que+estejamos+no+inicio+de+uma+forte+depressao.html> . Acesso em: 10 jul. 2010.MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1980.

* Professor Adjunto do DECON-UFPI, Mestre emEconomia/CAEN-UFC, Doutorando em PolíticasPúblicas/UFPI-UFMA.

NORE, P.; GREEN, F. A economia: um antitexto. Riode Janeiro: Zahar, 1979.OLIVEIRA, F. A. Economia e política das finançaspúbl icas no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2010.PAULO NETTO, J.; BRAZ, M. Economia política: umaintrodução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.

O BRASIL DE VOLTA AOSTRILHOSPor Antonio Carlos de Andrade*

Quem teve tempo e paciência para ler asedições da revista Exame n. 972 e 975 - cujaschamadas de capa são “Consumo, a força quemove a economia” e “A Superpetrobras”,respectivamente - e a Pesquisa Nacional porAmostra de Domicílios (PNAD), de 2009, divulgadano mês de setembro pelo Instituto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE) - pesquisa que vemsendo realizada anualmente desde 1999, queprocura medir os principais indicadores da evoluçãoeconômica e social dos lares brasileiros - acabaficando com a impressão de que se trata de maisum enredo de escola de samba, no qual semisturou a história do Brasil; como no Samba doCrioulo Doido, de autoria de Sérgio Porto (1923-1968), que ficou conhecido por Stanislaw PontePreta. Aqui o que vai se misturar são os índicessocioeconômicos que vão de excelente,comparáveis a países desenvolvidos, a péssimos,tais quais os da África Subsaariana.

Um observador menos desavisado, que sedebruce sobre os índices da economia brasileira,pode notar a existência de áreas onde ocrescimento chega perto dos chineses e indianos,em setores que apresentam níveis de renda depaíses ricos, cujo bem-estar social superamàqueles. Entretanto, esse mesmo observador, podeconstatar que o Brasil ainda é um país demiseráveis, com muitas etapas a serem vencidasna busca do desenvolvimento, principalmente pelo

número de pessoas ainda vivendo em condiçõespéssimas de vida, onde a tábua de salvação aindaé o programa Bolsa Família, que em 2010 atendeperto de 50 milhões de pessoas.

O Brasil que dá certo e se parece com ospaíses ricos é aquele que, atualmente, produz evende internamente mais de três milhões deautomóveis, colocando-se entre os dez maioresprodutores mundiais de carros. Em 2010, aindústria automobilística brasileira espera baternovamente o recorde do ano passado, cujademanda foi de certa forma mascarada com aredução de imposto pelo governo federal.

O crescimento do consumo no País tem umaexplicação: o crédito, que neste ano vem mudandoo seu perfil. O crédito concedido a pessoas físicassuperou o concedido a pessoas jurídicas, em maiode 2010, e segue pari passu até julho. Em 2000, deum montante de aproximadamente 188 bilhões dereais, cerca de 66 bilhões de reais eram destinadosàs pessoas físicas e 122 às pessoas jurídicas, jáem maio de 2010, 501 bilhões de reais foramdestinados às pessoas físicas e 499 às empresas(em junho, cerca de 506 e 511 bilhões de reais; emjulho, aproximadamente 511 e 513 bilhões de reais,respectivamente, pessoas físicas e jurídicas),segundo a série histórica do Banco Central doBrasil (BACEN) (2010).

Somente nos cinco primeiros meses de 2010,183 bilhões de reais se destinaram a empréstimo

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pessoal - um crescimento de 11,4% -, e 108bilhões, a financiamento de veículos - incrementode 15%; 107 bilhões, a financiamento de imóveis,inclusive com recursos de origem da poupança,segundo fontes ligadas ao BACEN e à ConsultoriaLCA; e 28 bilhões com cartão de crédito,crescimento de 10,3% (MANO, 2010).

Só para se ter uma ideia da força do crédito noconsumo, em 2000, 4,5% da renda do brasileiro eracomprometida com dívidas; em 2010, 17,5%.Somente no primeiro semestre deste ano setemilhões de novos cartões de créditos foramemitidos no País. Outro fator que ajudou adisseminar o crédito na economia brasileira, entreas pessoas físicas, foi o alongamento do prazopara pagamento do mesmo. Em 2000, esse prazoera em média de 10 meses; em 2010 já chega a18 meses. Segundo Cristiano Mano (2010), desde2005, os prazos já cresceram 66 %. Comoexemplo de como isso vem acontecendo naeconomia, no início de 2010 já era possível sefinanciar uma passagem aérea das companhiasTAM e Azul em até 48 meses - nunca esteve tãofácil viajar de avião.

Outro setor que vem crescendo é o do sonho de10 em cada 10 brasileiros: o da casa própria.O setor imobiliário vem crescendo acima da médianacional. Estudo (inédito) recente realizado pelaAssociação Brasileira de Construção, em conjuntocom a Fundação Getúlio Vargas, apresentou comoé distribuída a riqueza gerada em cada elo daindústria da construção civil. Em 2009, o setor daconstrução civil, envolvendo fábricas de materiais,construtoras, lojas, prestadores de serviços,empregou mais de 10 milhões de trabalhadores detodos os níveis salariais e educacionais – umverdadeiro recorde, segundo os autores do estudo,gerando 224 bilhões de reais de riqueza,equivalente a 8,3% do Produto Interno Brasileiro(PIB) brasileiro. Até 2005, as vendas financiadaspelas principais construtoras no Brasil nãochegavam a 20%; hoje, chega a 90%, com umfinanciamento de até 30 anos para ser quitado,portanto, essa é uma das explicações do por quese constrói tanto no País (MANO, 2010).

Contudo, o Brasil ainda está longe de alavancara economia através do crédito ao consumidor,embora o crescimento em volume tenha sidoespetacular: cresceu de 66 bilhões de reais em2000, para 502 bilhões em 2010, segundo dados doBACEN - uma participação de 30%. No Canadáessa participação chega a 141%; nos Estados

Unidos (EUA), 131%; na Inglaterra, 181%; naFrança, 100%; na Alemanha, 98% e na Itália, 72%.O crédito no Brasil ainda pode avançar muito,principalmente nas classes C e D. O consumo dasfamílias no Brasil deverá ser de 5 trilhões de reaisem 2020, segundo projeções da consultoria LCA(STEFANO, 2010).

No entanto, existe um complicador nessahistória toda: o baixo desempenho da economianas últimas décadas, malgrado o crescimentoeconômico dos últimos anos. É que o ritmo deevolução da renda per capita no País cresceuaquém daquele verificado nas décadas de 1960 e1970. No período de 1961 a 1970, a taxa decrescimento anual do PIB per capita foi de 3,19%;de 1971 a 1980, 6,04%; de 1981 a 1990, -0,56%;de 1991 a 2000, 0,95%; de 2001 a 2010, 2,3%,segundo o BACEN, IBGE, Tendências Consultoria,Fundo Monetário Internacional (FMI) e BancoMundial (IBGE, 2009).

Considerando o PIB nominal, em dólares de2009, e uma taxa média de crescimento dapopulação brasileira em 1,25%, em 1990 o PIBper capita brasileiro passou de US$ 6,307 paraUS$ 10,600, em 2010 - em estimativa, umcrescimento no período de 68,1%. A se manteresse ritmo de crescimento iniciado na década de2000 na economia brasileira, o Brasil levará75 anos para alcançar os atuais 46,00 dólares dePIB per capita do americano.

O período no qual houve um crescimentonegativo da economia brasileira, 1981-1990(-0,56%) coincide com o período doexperimentalismo em políticas de combate àinflação na economia brasileira. Foi quandosurgiram o Plano Cruzado I (28/02/1986), o PlanoBresser (15/06/1987), o Plano Feijão com Arroz(01/1988), o Plano Verão (14/01/1989) e o PlanoCollor I (15/03/1990). Ainda haveria o Plano CollorII, mas este foi lançado somente em janeiro de1991.

A experimentação só teria fim em 1994, com aimplantação do Plano Real no governo dopresidente Itamar Franco, concebido como umprograma implantado em três etapas: (i) a primeirapromovia um ajuste fiscal, cuja meta eraestabelecer o equilíbrio das contas públicas, queera a principal causa da inflação brasileira; (ii) asegunda etapa consistiu no lançamento de umpadrão estável de valor, denominado de UnidadeReal de Valor (URV); (iii) e a terceira é a da unidadede conta, que “estabelecia as regras de emissão e

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lastreamento da nova moeda (real)” a ser lançadacomo forma de garantir a sua estabilidade(CASTRO, 2005, p. 151).

O Brasil que não dá certo é aquele queoferece às camadas mais pobres de sua populaçãoum ensino básico (fundamental e médio) público egratuito de qualidade que vai do sofrível aoexcelente, pois existem ilhas de boa qualidadeneste ensino. Por outro lado, existe também ummar de má qualidade na educação. E os motivossão os mais diversos: passam pela falta detreinamento e capacitação dos professores,salários baixos; escolas mal equipadas, falta desegurança para os alunos, professores efuncionários e por ai vai. Os alunos que conseguemchegar ao fim desse ciclo de estudo e concluem oensino médio, em sua grande maioria, prestamvestibular para as faculdades particulares e vãoengrossar o exército de devedores do Fundo deFinanciamento ao Estudante do Ensino Superior(FIES). Outra saída do governo para mascarar a máqualidade de seu ensino público foi a criação doPrograma Universidade para Todos (ProUni), criadoem 2004, “pela lei nº 11.096/2005, e tem comofinalidade a concessão de bolsas de estudosintegrais e parciais a estudantes de cursos degraduação e de cursos sequenciais de formaçãoespecífica, em instituições privadas de educaçãosuperior” (BRASIL, 2010). As instituições queaderem ao programa recebem isenção de tributos.

Por outro lado, existe uma educação quepertence ao Brasil que dá certo: a educaçãosuperior das universidades públicas. Mas, nestas,a maioria dos alunos que são aprovados nosvestibulares são oriundos das boas escolasprivadas do País e que consomem, em média,cerca de 30% do orçamento da classe médiabrasileira. Querer, por outro lado, cobrar dessamesma classe média mensalidades nasuniversidades públicas seria um contrassenso, umavez que ela já pagou pela educação de seus filhosno ensino fundamental e médio.

Também existe um Brasil que não dá certo nasaúde: o Sistema Único de Saúde (SUS). Emboraa Constituição Federal de 1988 tenha garantido oatendimento médico gratuito para todo e qualquerbrasileiro, não garantiu recursos (financeiros,humanos e técnicos) para atender a essauniversalização do atendimento. A populaçãobrasileira já nem se abala mais com as notícias depessoas que acabam falecendo à espera deatendimento, transplantes, medicamentos,

dentre outros.Como avaliar o abastecimento de água, coleta

de lixo e iluminação nas cidades brasileiras? E oque dizer dos transportes urbanos nas capitais ecidades de porte médio no Brasil?

Na área de logística e infraestrutura, o Paísnecessita de muitos reais para recuperar emodernizar suas rodovias, porto, aeroportos,hidrovias. Para se ter uma ideia, somente para arecuperação, pavimentação e duplicação das pistasseriam necessários cerca de 183,5 bilhões de reaisem recursos nas rodovias federais do país(EXAME, 2010). O País está credenciado parapromover uma Copa do Mundo de Futebol, em2014, e as Olimpíadas Mundiais, em 2016, masnada ainda foi feito, nenhum investimento nosaeroportos e nos transporte urbanos.

Construir casas para as populações quesobrevivem nas vilas e favelas desse país é umdesafio para todos os governos, desde temposremotos. E são pessoas que não têm renda ou,muitas delas, que sobrevivem das rendasrepassadas pelo governo (Bolsa Família) e de“bico”, que nada mais são do que subempregos.O problema do Bolsa Família é que ele parece serum quarto de somente uma porta de entrada, ondequem entra não tem como sair mais.

Finalmente, o Brasil tem que voltar a planejarsua economia para o curto, médio e longo prazo.Coincidentemente, o País teve taxas expressivasde crescimento econômico: Plano de Metas, nogoverno de Juscelino Kubitscheck e o “milagrebrasileiro” no I e II Plano Nacional deDesenvolvimento. Deixar que o mercado determinealeatoriamente o crescimento da economia é omesmo que deixar o barco à deriva durante umatempestade. Além do mais, o governo não temmais a capacidade de investimentos que tinha nosanos 1970 e 1980, daí a necessidade de se criarum mecanismo de capacitação e poupança paracanalizar em investimentos principalmente eminfraestrutura.

O País venceu a sua grande doença dos anos1970, 1980 e 1990, que era a inflação. Não podehaver vida inteligente num país onde a inflaçãoultrapasse a casa dos 20% ao ano e a economiabrasileira conviveu com taxas que foramgradativamente passando dos 100%, 200%,1.000%, 2.000% e quase chegou a 3.000% ao ano.Diversos governantes pegavam um pedaço depapel, pintavam de dinheiro e com ele realizavamdiversos investimentos, tais como construir

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cidades, estradas, usinas hidrelétricas etc. Issoteve um custo que passou de uma geração paraoutra.

A doença agora é outra: uma elevada taxa dejuros; a mais alta do planeta. Com certeza,também não deve existir vida inteligente onde ataxa básica de juros já chegou a 49% e hoje estáestacionada em 10,75% ao ano, inibindo a maioriados investimentos produtivos na economia.

A primeira ação do novo governo que será eleitoneste ano deve ser a de reduzir a taxa de jurosbásicos da economia brasileira para patamarescompatíveis com uma economia que precisa denovos e mais investimentos, pois rapidamente estáse esgotando a capacidade de produção atual daeconomia. Um novo ciclo produtivo deve ser criadoe somente os novos investimentos trarão isso.

Em todo caso, a economia brasileira sempresurpreendeu seus analistas, pois essa dualidadede ser moderna e atrasada ao mesmo tempo nãopermite que se acerte sempre o seucomportamento e desempenho. Afinal de contas, aprópria ciência econômica ainda é uma caixa dePandora

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STEFANO, F. Consumo: a força que move aeconomia. Exame, ed. 972, a. 44, n. 13, p. 20-29, 28jul. 2010.

* Doutor em Economia/USP, Professor Adjunto doDECON/UFPI e jornalista.

A HEGEMONIA IDEOLÓGICA NOBRASIL (1930-1964)Por Francisco Pereira de Farias*

1 Introdução

O objeto deste artigo é a luta ideológica noBrasil de 1930 a1964, fase histórica brasileiramarcada por uma ausência de hegemonia políticano interior do bloco no poder. Partindo da indicaçãode Nicos Poulantzas (1986), de que nem sempre ahegemonia política no bloco no poder coincide coma hegemonia ideológica no conjunto da formaçãosocial, buscamos responder se, paralelamente àcrise de hegemonia política, haveria uma novahegemonia ideológica.

Poulantzas (1986) define a hegemonia políticacomo a capacidade de uma classe ou fração declasse fazer prevalecer os seus interesses nointerior do bloco de classes dominantes, ou seja, obloco no poder. Isso se traduz na capacidade

dessa classe ou fração de obter prioritariamente osbenefícios das políticas econômica e social doEstado. A homologia estrutural, isto é, ainterdependência das estruturas econômica epolítica e a capacidade de organização político--ideológica e pressão sobre o aparelho do estadosão os fatores que concorrem para oestabelecimento da hegemonia política no seio dobloco no poder.

Uma conjuntura especial é aquela onde seinstaura uma crise de hegemonia política, ou seja,a situação na qual nenhuma fração da classedominante é capaz de impor sistematicamente osseus interesses frente às outras fraçõesdominantes. A crise de hegemonia política não é

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uma situação de distribuição igualitária dosbenefícios da política econômica, o que, de resto,é impossível, devido aos interesses seremconflitantes. Em tal contexto, a política do estadoassume a característica de independência, na qualnenhum dos interesses específicos dos gruposdominantes encontra-se prioritariamentecontemplado, embora tal política se efetive dentrodos limites dos interesses comuns ao conjunto daclasse dominante, caso em que se pode falar emum extremo de autonomia relativa do Estado.

Já a hegemonia ideológica é entendida porPoulantzas (1986), seguindo a análise deAntônio Gramsci, como o papel de se apresentaros interesses particulares de classe ou fração declasse em interesse geral da formação social.A natureza dos capitais indica um certocomportamento político-ideológico. Dado os seusaspectos de frações improdutivas do capital, émais difícil que os capitais bancário e comercial seapresentem como representando o interesse geralda nação. Onde tais capitais dominam, elespreferem deixar aos setores produtivos - indústriae agricultura - o papel de representar o interessegeral. As frações improdutivas do capital procuramevitar a crítica dos setores populares ao aspectoparasitário de suas atividades. Compreende-se queos bancos e o comércio prefiram agirdiscretamente na cena política através doslobbies e menos por meio da cena político--partidária (FARIAS, 2009).

2 Ruralismo Versus IndustrialismoA nossa hipótese de trabalho é que, entre a

Revolução de 1930 e o golpe civil-militar de 1964, aburguesia industrial adquiriu a hegemoniaideológica sem, no entanto, conquistar ainda ahegemonia política.

De um lado, encontramos a legitimação da teseda vocação agrícola do País nas obras de AlbertoTorres e Gilberto Freyre. Para Alberto Torres (1982),em “A organização nacional”, seria um errocontestar o nosso destino agrário, diante do vastoterritório nacional. Ele crê em uma espécie dedivisão internacional do trabalho. Ao lado da grandepropriedade, que explora as produções que seexportam, fundar-se-ia a pequena cultura, para asproduções de consumo. O autor tem uma atitudede desconfiança ante a indústria, insistindo na ideiade que o protecionismo cria e desenvolve indústriasimpróprias ao nosso meio e estado dedesenvolvimento econômico.

Para Gilberto Freyre (2001, p. 56), em “Casa--grande e senzala”, “nas casas-grandes foi até hojeonde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; anossa continuidade social”. Freyre aponta aimportância não apenas da família, mas tambémdas forças agrárias-oligárquicas, que deveriam serincorporadas ao projeto de desenvolvimento, porserem a única garantia da ordem social e daunidade nacional. O seu nacionalismo étradicional e regionalista. Para ele, o brasileiro nãoé um povo exclusivamente racional; airracionalidade é também uma marca damiscigenação.

De outro lado, deparamo-nos com a crítica deSérgio Buarque de Holanda à nossa herançarural e a sua defesa dos valores do industrialismo.Para Holanda, em “Raízes do Brasil”, a cordialidade- consequência possível do ruralismo ibérico(vida social centrada no privatismo da família) etraço específico da “cultura brasileira” - deve servista como negativa, em nome da realização da“essência” da vida política: o geral, o intelectual,o impessoal. A nossa revolução, a partir daabolição da escravatura, em 1888, caminha e devese direcionar para o “aniquilamento das raízesibéricas de nossa cultura” (HOLANDA, 1995, p.172).

Para Florestan Fernandes, em “A revoluçãoburguesa no Brasil”, a especificidade docapitalismo no Brasil é a ausência do caráternacional e democrático, definindo-se como umcapitalismo dependente, em razão dos vínculosaos empréstimos financeiros e à difusãotecnológica do capitalismo do centro econômicomundial. Fernandes (2006) exorta a classedominante brasileira a realizar a revoluçãonacional e democrática, baseada naindustrialização autônoma e distribuidora de renda.

A partir da Revolução de 1930, os setoresdominantes da burocracia do Estado, aopromoverem um projeto de industrialização,elevaram os interesses industriais comorepresentativos do interesse nacional. No entanto,a política nacional-desenvolvimentista chocou-se,em vários aspectos, com os interesses da própriaburguesia industrial, a exemplo do que se deucom o intervencionismo econômico(siderurgia, petróleo, energia elétrica) e alegislação trabalhista (em especial osalário-mínimo). Em outros termos, a burguesiaindustrial contava com a hegemonia ideológica,mas não detinha a preponderância política.

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3 As Ideologias EconômicasUm indicador da hegemonia ideológica é o predomínio do pensamento econômico de determinado grupo

social. Como observou Miriam Limoeiro (1978, p. 89), “a ideologia que empolga o aparelho estatal numasociedade capitalista num determinado momento é expressão […] do estabelecimento da relação de domíniodas suas frações dominantes”.

No Brasil de 1930-1964 eram três as principais correntes de pensamento econômico que influenciavam aspolíticas do Estado: a neoliberal, a desenvolvimentista privada e a desenvolvimentista estatal-nacionalista.Enumeramos no quadro a seguir as principais características de cada uma delas.

Quadro 1 - Principais ideologias econômicas no Brasil 1945-1964

Fonte: Bielschowsky (2004, cap. 8) e Pereira (1985, cap. 1).

Observando os núcleos de apoio das correntesdo pensamento econômico, podemos dizer que ocapital mercantil, a burguesia industrial e setoresda burocracia do Estado possuíam projetoseconômicos distintos. A corrente neoliberal estavaligada à Associação Comercial do Estado de SãoPaulo (ACESP) e à Confederação Nacional doComércio (CNC); sustentava o velho projeto davocação agrária do Brasil, com base nas vantagenscomparativas. A corrente desenvolvimentista privadatinha apoio na Confederação Nacional da Indústria(CNI) e na Federação das Indústrias do Estado deSão Paulo (FIESP); advogava um projeto deindustrialização com política protecionista. Setores

da burocracia do Estado, situados em algumasagências como o Banco Nacional deDesenvolvimento Econômico (BNDE) e o InstitutoSuperior de Estudos Brasileiros (ISEB) davam basepara a corrente desenvolvimentista estatal--nacionalista; o seu projeto econômico era aindustrialização apoiada na empresa estatal.

Após a segunda guerra mundial, houve no Paísa prevalência de uma ideologia econômicaamplamente consensual: salientava-se aimportância de reestruturar a economia agrícolatradicional do Brasil; a industrialização era vistacomo a saída desta situação; atribuía-se umaimportância crucial ao desenvolvimento de

N e o lib e r a l D e s e n v o lv im e n ti s t a p r iv a d a

D e s e n v o lv im e n ti s t a e s ta ta l- n a c io n a l is t a

P rin c i p a is n ú c le o s

F G V , A C E S P , C N C , C N E

C N I, F IE S P B N D E , As s e s s or i a e c o n ôm ic a d e V a r g a s , C E P AL , IS E B

P rin c i p a is e c o n o m is t a s

E u g ê n io G ud in , O c táv i o d e B u l hõ e s

R . S im o n s e n , J . P . d e A . M a g a l hã es

C e ls o F ur t a d o , R ôm u lo de A lm e i d a

P ro je to e c o n ô m ic o b á s ic o

V o c aç ã o a gr á r ia d o p a ís

In d u s tr i a liz a ç ã o c o m p ro t e ç ã o a o c a p it a l n a c i o n a l in d us tr i a l

In d u s tr i a l iz aç ã o p la n i f ic a da e a p o ia da no E s ta d o

A p o io f in a n c e ir o in te r n o a in v e st i m e n t o

E s tru tu r a ç ã o d o s is te m a f in a nc e iro

In c e n ti v o à re in v er s ã o d o s l u c ro s

T r ib u t a ç ã o

C a p it a l e s tr a n g e ir o

F a v o r á v e l a o e s t ím u l o

F a v o r áv e l, m a s c o m c o n tr o le s

F a v o r á v e l c o m c o n tr o l e s e fo ra d o s s e rv iç o s p ú b lic o s e m in e r aç ã o

E m p r e s a e s ta ta l

E n fa t ic a m e n t e c o n trá r ia

M o d e r a d am en te fa v o r á v e l

E n fa tic a m e n t e f a v o rá ve l

P la n e ja m e n to E n tr e c o n tr á r ia e to l e ra n te a e n s a io s d e p la n e ja m e nt o p a rc i a l

F a v o r áv e l E n fa tic a m e n t e f a v o rá ve l a o p l an e ja m e n t o ge r a l e a o r e g i o n a l

P ro te c io n is m o A fa vo r d e f o r tes r ed uç õ e s d e ta r if a s

E n fa t ic a m e n t e fa v o r á v e l

F a v o r á v e l

S alá r io , lu cr o e d is tr ib u iç ã o d e r e n d a

Ar g u m e n t o n e o c lá s s ic o d a p ro du t iv id ad e m a r g i n a l

D e fe s a d o l uc r o (a rg u m e n to d o re in v es t im e n to )

C o n c e n tra ç ã o d e re n d a o bs tr u i c re s c im e n to

R e f o r m a a g r á ri a

C o n tr á r i a P or u m a r e fo r m a lim it a d a

F a v or á v e l

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“indústrias básicas”; ênfase na substituição deimportações; considerações nacionalistas.“Por causa dos efeitos integradores dessaideologia, mesmo os grupos funcionais e regionaisque não eram diretamente beneficiados com aspolíticas de alocação e que podiam ter interessesconflitantes, aceitavam a legitimidade das decisõesgovernamentais” (LEFF, 1977, p. 127).

As influências intelectuais do presidenteJuscelino Kubitschek (JK) (1956-1960), porexemplo, eram tipicamente cepalinas. Opresidente, no estilo da Comissão Econômicapara a América Latina (CEPAL), denunciava adeterioração dos termos de troca. Para opresidente JK, a industrialização mudaria o lugardo Brasil na divisão internacional do trabalho. Apostura frente ao capital estrangeiro eranacionalista; JK afirmava a existência de“determinadas áreas de investimentos que, pormotivos políticos e de segurança nacional, devemser objeto de um esforço puramente nacional,conforme o dispõe a Constituição e as nossas leis”(ALMEIDA, 2006, p. 199).

Em síntese, Alberto Torres (1982) e GilbertoFreyre (2001), em suas principais obras,legitimaram a tese da vocação agrícola do País.Em contraposição, Sérgio Buarque de Holanda(1995) e Florestan Fernandes (2006) criticaram anossa herança rural e fizeram a defesa dos valoresdo industrialismo. A partir da década de 1930, ossetores nacionalistas da burocracia do Estado, aopromoverem um projeto de industrializaçãoplanificada e apoiada no Estado, elevaram osinteresses industriais como representativos dointeresse nacional

ReferênciasALMEIDA, L. F. Uma i lusão de desenvolvimento:nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK.Florianópolis: UFSC, 2006.BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro:o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio deJaneiro: Contraponto, 2004.FARIAS, F. P. Frações burguesas e bloco no poder: umareflexão a partir do trabalho de Nicos Poulantzas. Críticamarxista, São Paulo, n. 28, p. 81-98 , 2009.

FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaiode interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo,2006.FREYRE, G. Casa-grande e senzala. 42. ed. Rio deJaneiro: Record, 2001.HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo:Companhia das Letras, 1995.

LEFF, N. H. Política econômica e desenvolvimento noBrasil. São Paulo: Perspectiva, 1977.LIMOEIRO, M. Ideologia do desenvolvimento, Brasil: JK-JQ. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.PEREIRA, L. C. B. Pactos políticos: do populismo àredemocratização. São Paulo: Brasiliense, 1985.POULANTZAS, N. Poder político e classes sociais. 2. ed.São Paulo: Martins Fontes, 1986.

TORRES, A. A organização nacional. 4. ed. Brasília: UnB,1982.

* Doutor em Ciência Política/Unicamp, Professor doDepartamento de Ciências Sociais/UFPI.Email: [email protected].

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2 1 Ano 11, n. 23, nov.2010in f o rm e e c o n ôm i c o

A HISTORIOGRAFIA DAINDEPENDÊNCIA NO PIAUÍPor Teresinha Queiroz*

A Independência é o tema mais importante dahistoriografia piauiense e, a seu respeito, hácentenas de registros. Três conjuntos principais deescritos sinalizam para a maneira como é pensadoo evento na história e na memória: uma escritainstituinte, uma historiografia revisionista e umahistoriografia moderna, que se pretende científica.A escrita instituinte, tributária da documentaçãoarquivística, posiciona, organiza e estabelece osfatos. A historiografia revisionista redistribui asglórias. A historiografia científica dialoga com osprocedimentos teóricos e metodológicos da área.

O primeiro conjunto evidencia as disputas daépoca e configura os interesses de cadaespaço - o metropolitano, o do Rio de Janeiro, o daBahia, o do Ceará, o do Piauí, o do Maranhão. NoPiauí, realça as comunidades e as câmaras locais.Personagens principais e secundários sãocolocados no interior das disputas e, nosdiscursos, as tensões entre o oral e o escrito aindasão bastante visíveis. Contempla José MartinsPereira de Alencastre, com estudo publicado em1857 na “Revista do Instituto Histórico e GeográficoBrasileiro”; L. A. Vieira da Silva, com “História daIndependência na Província do Maranhão”, de 1972;Francisco Augusto Pereira da Costa, cujaspesquisas iniciadas nos anos 1880 resultam na“Cronologia Histórica do Estado do Piauí” de 1909.Miguel Borges nos “Apontamentos biográficos”, de1879, não trata diretamente da Independência,porém, contribui para a distribuição das glórias.O mesmo procedimento de glorificação se encontraem Abdias Neves, no livro “A guerra de Fidié”(1907), que é preservado em seu núcleo e nosargumentos fundamentais, pelos historiadoressubsequentes. Recorre à memória doscontemporâneos e aos arquivos locais e regionais,sendo mais consultados os de Oeiras (PI),Parnaíba (PI), Caxias (MA), São Luís (MA) eFortaleza (CE). Trabalharam com essadocumentação Alencastre, Vieira da Silva, Pereirada Costa, Tristão de Alencar Araripe (1885),Clodoaldo Freitas e Abdias Neves. Vieira da Silvaincorpora a memória de participantes de relevo noseventos da Independência no Maranhão.

O segundo conjunto é constituído pelas revisõescentenárias. Os aniversários são tempos decelebração. Como ocorreu em todo o Brasil, noPiauí, produziram-se revisões historiográficas quecircularam nas revistas da Academia Piauiense deLetras, do Instituto Histórico e GeográficoPiauiense, em livros patrocinados pelo governo doestado e em artigos que alimentaram polêmicas,a exemplo da desenvolvida entre Abdias Neves eAnísio Brito (1923a, 1923b, 1923c, 1923d).O realce é para Hermínio Conde, que se debruçousobre o problema, abordando-o enquanto dimensãoda história nacional e chamou a atenção para o fatode que tão importante evento ainda não haviamerecido referência na historiografia brasileira.Hermínio Conde publica artigos em jornaiscariocas, maranhenses e piauienses, organizadosposteriormente na coletânea “Cochrane, falsolibertador do Norte!”, publicada em São Luís, em1929, e em Crato (CE), em 1961, com o título“Independência no Nordeste”. Seu interesse era ode sugerir a inclusão das lutas piauienses emaranhenses na historiografia e nos livros didáticosde circulação nacional. Esses autores,sintonizados com as revisões da historiografiabrasileira, trazem para os seus textos a questãonacional, então colocada enquanto disputa Norte--Sul, face ao reordenamento da política,incorporando as disputas culturais e literárias. Nadécada de 1920, a intensificação dos movimentosregionalistas e as tensões advindas dosdesdobramentos da Semana de Arte Modernativeram impacto sobre a historiografia. Foi omomento também da invenção do Nordeste.Hermínio Conde, ao utilizar epígrafes de váriasorigens sobre o Norte e seu povo, registra essastensões, criando âncora emocional a partir da qualinsere a Independência do Piauí e do Maranhão naHistória do Brasil.

A revisitação dos fatos e os choques de versõesocorrem em torno de quatro aspectos principais,definidos nas narrativas instituintes: a chegada docomandante das Armas João José da Cunha Fidiéa Oeiras e seu deslocamento para Parnaíba emvirtude da proclamação de 19 de outubro de 1822; a

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tentativa de volta de Fidié a Oeiras, visando reprimira adesão de 24 de janeiro de 1823; o encontro comas forças independentes em 13 de março de 1823às margens do riacho Jenipapo; e, por fim, o seudirecionamento para o povoado Estanhado e paraCaxias, epílogo da guerra. Nessa historiografia,aparecem novas versões em torno do papel dospersonagens principais e secundários e acerca daimportância das decisões tomadas, atribuindo-seoutros significados à participação dosindependentes piauienses, cearenses,maranhenses, baianos e pernambucanos naconquista e consolidação da Independêncianacional. Os autores criticam os silêncios, aslimitações e os equívocos dos livros de História doBrasil, relativamente ao tema. As perspectivasrevisionistas exacerbam a ideia da história comoprocesso, em tributo ao modelo cientificista vindodo século XIX, construindo-se narrativas fechadas,embora com sentidos conflitantes no conjunto. Nahistoriografia sobre a Independência do Brasil noPiauí verifica-se reposicionamento de heróis, demártires, de vencedores e de vencidos. Radicaliza-se em torno da atuação de Fidié e do presidente daJunta Governativa de Oeiras, Manoel de SousaMartins, futuro Visconde da Parnaíba, que, aotomar as rédeas do processo histórico, dirigindo aadesão à Independência, sob o comando dopríncipe D. Pedro, favorece a luta pela conquista daunidade nacional. Esses personagens são cadavez mais realçados, enquanto outros passam afigurar como secundários, caso dos independentesde Parnaíba, João Cândido de Deus e Silva eSimplício Dias da Silva.

Na documentação oficial e na historiografiainstituinte há efusão de nomes e de lugares,porém, ao avançar o século XX, a escritaconcentra-se cada vez mais nos eventos de Oeirase de Campo Maior. A Batalha do Jenipapo, seusdesdobramentos e seus significados ganhamcentralidade, redefinindo-se os papéis daspersonagens e as interpretações acerca dosvencedores e dos vencidos. O evento, ao entrar nahistória com Vieira da Silva, aparece com poucorelevo. O autor considera perdedores Fidié, asforças piauienses, as cearenses e aspernambucanas e exponencia os eventos finais emCaxias. Na escrita revisionista, especialmente emartigos de Clodoaldo Freitas (1923a, 1923b, 1923c,1923d, 1923e), é perceptível a mudança naavaliação do papel de Fidié nos sucessos daIndependência. A inépcia, a covardia e a

demonização passam a ser salientados,deslocando-se aquelas nomeações anteriores debravo guerreiro, de vencedor e de signo do terror.Clodoaldo Freitas apequena Fidié e reduz sua açãocomo estrategista, chefe, guerreiro e herói,conforme posto no século XIX, cuja escrita lheconfere ao mesmo tempo a condição de vencido ede vencedor. Fidié ocupa na história e naimaginação coletiva todas as posições designificado e aparece tão vencedor, que, mesmo nahora da derrota, a decisão é atribuída a ele, comoocorre no registro de seu abandono do projeto deretorno a Oeiras. No mesmo autor, Manoel deSousa Martins é considerado um nulo, um meteoromaldito, identificado com tudo o que aconteceu deruim no Piauí imperial. Observa-se a continuidadede uma tradição vinda de século anterior, quedefinia politicamente Sousa Martins como um nadasobre uma página negra, fórmula utilizada porAlencastre, quando inicia a tradição dedesqualificar o já Visconde da Parnaíba, quepersiste na historiografia revisionista e aponta paraos sentidos políticos e para os ódios pessoais efamiliares que grassavam na Província ao longo doséculo XIX.

O terceiro momento, o da historiografiamoderna, agrega historiadores que buscamcompreender o evento de maneira científica. Essaprodução iniciada nos anos 1950, torna-se maisvisível nas décadas de 1960 e 1970, em virtude dascomemorações sesquicentenárias. Pertencem aesse conjunto as obras de Odilon Nunes, deMonsenhor Chaves, de Wilson de Andrade Brandãoe de Bugyja Britto (1976). Nesse momento,aparece fortemente a relação entre a escrita e oestado. Odilon Nunes em “Pesquisas para ahistória do Piauí” (1975), de 1966, dialoga comVieira da Silva, Pereira da Costa e Abdias Neves.Sua escrita sintética procura corrigir tesesdaqueles autores. “O Piauí nas lutas daindependência do Brasil”, de Monsenhor Chaves(1975), o mais divulgado do conjunto, com cincoedições até 2007, resulta de concurso de âmbitonacional promovido pelo governo do Piauí em 1972.Monsenhor Chaves retoma o texto instituinte deAbdias Neves, “A guerra do Fidié” (1907),entretanto, confere maior importância aos eventosde Parnaíba e de Campo Maior, com realce para osúltimos. Ao contrário de Abdias Neves, cujoenfoque é regional e amplo, Monsenhor Chavesreduz os recortes espacial e temático, porém,expande os efeitos da Batalha do Jenipapo para a

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2 3 Ano 11, n. 23, nov.2010in f o rm e e c o n ôm i c o

ALENCASTRE, J. M. P. Memória cronológica, históricae corográfica da Província do Piauí. Revista doInstituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio deJaneiro, t. 20, 1857.

ARARIPE, T. A.. Expedição do Ceará em auxílio doPiauí e Maranhão. Revista do Instituto Histórico eGeográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 48, n. 70,1885.BRANDÃO, W. B. História da independência no Piauí.Teresina: COMEPI, [s.d.].BRITO, A. O Dr. Abdias Neves é mero colaborador. OPiauí, Teresina, a. 34, n. 681, 9 ago. 1923a.BRITO, A. O Dr. Abdias Neves compilou Viera da Silva.O Piauí, Teresina, a. 34, n. 683, 16 ago. 1923b.

BRITO, A. Abdias Neves incorrigível compilador deVieira da Silva. O Piauí, Teresina, a. 34, n. 686, 23ago. 1923c.BRITO, A. Abdias Neves correndo com a sela. O Piauí,Teresina, 30 ago. 1923d.BRITTO, B. O Piauí e a unidade nacional. Rio deJaneiro: Folha Carioca, 1976.

CASTELO BRANCO, M. S. B. L. Apontamentosbiográficos de alguns piauienses i lustres e de outraspessoas notáveis que ocuparam cargos deimportância na Província do Piauí. Teresina:Tipografia da Imprensa, 1879.CASTELO BRANCO, R. Rio da liberdade. Rio deJaneiro: L. R Editores, 1982.CHAVES, J. (Pe.). O Piauí nas lutas da independênciado Brasil. Teresina: COMEPI, 1975.

CONDE, H. B.. Cochrane, falso libertador do Norte!Ensaios históricos sobre a independência no Piauí eno Maranhão. São Luís: Teixeira, 1929.CONDE, H. B. Independência no Nordeste. Crato(CE): [s.n.], 1961.COSTA, F. A. P. Cronologia histórica do Estado doPiauí: desde os seus tempos primitivos até aproclamação da República. Recife: [s.n.], 1909.

Referências

dimensão nacional, apontando-lhe novossignificados. Encontra-se no autor o recorteprivilegiado na historiografia atual sobre o processode Independência no Piauí - a caracterizaçãopopular da batalha. Os aspectos revisionistasvistos em Hermínio Conde, ressignificando os fatose as personagens, vão ser agora exacerbados.“História da Independência no Piauí”, de Wilson deAndrade Brandão ([s.d.]), considera o contexto dasideias, a difusão e a popularização do liberalismo.Na historiografia moderna, o centro da discussãonão é mais o embate Sousa Martins e Fidié, comona geração do centenário, e sim a batalha vistaenquanto evento político, popular e responsávelpela unidade nacional. O 13 de março surge comodata prenhe de novos e múltiplos significados. Aparticipação popular torna-se objeto de investigaçãoe, enquanto o povo saía da cena política real, erabuscado na história e realçado na historiografia. Aspreocupações com o social e com o popularconferem historicidade à experiência das pessoascomuns, aos anônimos da história. A mediação doestado toma a forma de patrocínio direto ou indiretodas obras e das comemorações. O estado procurase tornar senhor do passado e interfere namemória. A temática da Independência atravessafortemente as subjetividades dos piauienses, o quepode ser visto na literatura. Renato Castelo Branco,em “Rio da liberdade”, de 1982, transforma emromance a saga dos independentes e de Fidié;Expedito Rego, com “Né de Sousa”, de 1981, cujasegunda edição recebe o título “Vaqueiro evisconde” (1986), poetiza a vida de Sousa Martins.A imaginação dos piauienses transforma a Batalhado Jenipapo em contos, romances, poemas, peçasteatrais. Centenas de artigos alimentam jornais erevistas e essa grande produção escrita sinalizapara as disputas políticas centenárias nos âmbitosestadual e municipal. Impossível compreender ahistoriografia da Independência no Piauí sem ter emconta essas disputas por espaços simbólicos.

De combate e confronto de forças adversas emque os independentes são dispersos edesbaratados, para as interpretações atuais emque a dimensão epopéica do evento é reiterada edifundida em vários suportes - estatuária,monumento, memorial, museu, teatro, festasescolares, concursos de monografias, visitasmonitoradas, festividades oficiais do município e doestado, concessão de medalhas, diplomas e outrashonrarias, romarias e promessas, artigoscientíficos, dissertações, teses, textos literários,

poesias, fôlderes, livros paradidáticos, solenidadesno Congresso Nacional, eventos diversos desensibilização para a importância daquelessucessos para a história do Brasil e de suaunidade histórica, geográfica e política -, o eventomaior da Independência no Piauí é cada vez maisfestejado.

Combate, batalha, guerra, luta, epopeia: asnomeações que marcam os diferentes momentosda interpretação dos episódios da Independênciado Brasil ocorridos nos arredores de Campo Maiorremetem aos ganhos em densidade histórica,política e simbólica de que vem se revestindo oevento desde o seu acontecer e desde a primeiranarrativa sobre ele - a de uma autoridade da vila deCampo Maior dirigida à Junta Governativade Oeiras

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*Doutora em História Social/USP. Professora doDepartamento de Geografia e História e doPrograma de Pós-graduação em História do Brasil/UFPI.

TRANSPORTE SOBRE TRILHOS:ferrovia no Piauí na Primeira RepúblicaPor Lêda Rodrigues Vieira*

O período compreendido entre 1889 e 1930marcou a fase de expansão das ferrovias noterritório brasileiro. O recorte temporal de 1897 a1914 é bastante emblemático, pois foramconstruídos 12.386 km de ferrovias no Brasil,atingindo depois um total de 26.062 km, presentesprincipalmente nos estados do Rio de Janeiro eSão Paulo. Essas ferrovias foram implantadasatravés de investimentos estrangeiros,principalmente de empresários ingleses queprocuravam maiores lucros com o transporte daprodução de café (Sul) e açúcar (Nordeste). Nosprimeiros anos do século XX, o governo federalincentivou a construção de estradas de ferro nonordeste do país como forma de integrar as regiõese diminuir as calamidades da seca. Nesse período,essa região era identificada como área-problemadevido, especialmente, ao fenômeno da seca esuas consequências socioeconômicas. O governocentral, no sentido de diminuir esses efeitos,promoveu políticas públicas, dentre as quais acriação da Inspetoria das Obras Contra as Secas(IOCS), em 1909, sendo transformada em 1945 noDepartamento Nacional de Obras Contra as Secas(DNOCS). Essas ações governamentaisprivilegiavam a construção de açudes, poços,estradas, ferrovias etc. (VIDAL, 2007).

A estrada de ferro era sinônimo de progresso

em todo o país e o Piauí não poderia ficar foradesse ideal, ocorrendo o aparecimento de váriosprojetos voltados para a construção de trechosferroviários, interligando as regiões produtoras aosmercados consumidores, como as que ligariam ascidades de Petrolina (PE) a Teresina (PI), São Luís(MA) a Teresina, Crateús (CE) a Teresina e estacidade a Amarração (atual cidade de Luís Correia1).

A história da implantação dos primeiros trilhosferroviários em território piauiense é marcada pormuitas dificuldades, como a falta de recursosfinanceiros para a conclusão de trabalhos queexigiam elevada soma de capitais. Nas mensagensgovernamentais dos primeiros anos do século XX,têm-se referências a projetos de melhoramentos nainfraestrutura urbana e nos transportes ecomunicação. Acerca dos transportes, os governosestadual e federal desejavam dotar o Estado deelementos materiais de maior envergadura, como oPorto de Amarração e as estradas de ferro. Asferrovias eram apontadas como fator deprogresso, pois diminuiriam as distâncias efacilitariam o intercâmbio comercial entre ascidades do interior do Piauí, “um dos poucosEstados da União que não têm ainda seu solocortado por uma linha férrea” (CORREIA, 1906, p. 3).

Nos primeiros anos da República, o Piauí nãopossuia um palmo de estradas de ferro

FREITAS, C. Leonardo da Nossa Senhora das DoresCastelo Branco, como poeta e como inventor. Revistada Academia Piauiense de Letras, Teresina, a. 6, p.25-34, 24 jan. 1923a.

FREITAS, C. O Fidié. Revista da Academia Piauiensede Letras, Teresina, a. 6, p. 135-146, 24 jan. 1923b.FREITAS, C. O combate do Jenipapo. Revista daAcademia Piauiense de Letras, Teresina, a. 6, p. 107,24 jan. 1923c.FREITAS, C. O nosso mártir: Antônio Maria Caú. OPiauí, Teresina, a. 34, n. 639, 11 fev. 1923d.

FREITAS, C. O nosso mártir: Antônio Maria Caú. OPiauí, Teresina, ano 34, n. 640, p. 1-2, 17 fev. 1923e.NEVES, A. A guerra do Fidié. Teresina: [s.n.], 1907.NUNES, O. Pesquisas para a história do Piauí. 2. ed.Teresina: Artenova, 1975. v. 2.

RÊGO, J. E. Né de Sousa: biografia romanceada doVisconde da Parnaíba. Fortaleza: Gráfica EditorialCearense, 1981.

RÊGO, J. E. Vaqueiro e visconde. 2. ed. Teresina:Projeto Petrônio Portella, 1986.SILVA, L. A. V. História da independência da provínciado Maranhão. 2. ed. Rio de Janeiro: Cia. EditoraAmericana, 1972.

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construídas, apesar da existência de projetosque visavam interligar o território piauiense aosestados do Ceará, Pernambuco e Maranhão.Dentre esses, o projeto que acarretaria esforçosdos governos estadual e federal era o ramal queligaria as cidades de Campo Maior a Amarração.Em 1910, o governo federal concedeu aconstrução da linha ferroviária de Sobral aTeresina, contratada com a Companhia SouthAmerican Railway (PIAUÍ, 1910). Para isso, ogoverno do estado promulgou uma lei na CâmaraLegislativa - lei n. 569, de 2 de julho de 1910 -,autorizando o estado a contratar junto ao governofederal a construção do ramal de Campo Maior aAmarração, da estrada de ferro Sobral aTeresina. De acordo com essa lei, o governo doestado podia fazer empréstimo até no máximo de300.000 libras esterlinas dentro ou fora do país(PIAUÍ, 1910, p. 1). Entretanto, o contratocelebrado com a Companhia South AmericanRailway para arrendamento da rede de viaçãocearense e construção de algumas estradas deferro que a constituíam acabou sendo negadopelo Tribunal de Contas, ocasionando, mais umavez, a paralisação de projetos de construçãoferroviária no Piauí.

Muitos projetos ferroviários piauienses no iníciodo período republicano não passavam depromessas que entusiasmavam a população. Pormeio da imprensa, principalmente dos órgãosoficiais, divulgava-se o entusiasmo e a esperançade representantes da política e do comércio quantoà instalação dos primeiros ramais ferroviários noPiauí. O jornal O Piauhy, órgão oficial do estado,por exemplo, funcionava como divulgador dasações políticas e administrativas do governo. Emlinguagem, muitas vezes, apologética, esse jornalconstruía uma imagem positiva dos governosestadual e federal. Nesse sentido, os cronistasproduziam artigos vislumbrando as medidas dosgovernos para alcançar o “progresso e rápidodesenvolvimento” almejado pelos piauienses. Em1910, um cronista destacou que(MELHORAMENTOS, 1910, p. 1):[...] às vezes espera-se que a construção comece emPernambuco, para terminar em Floriano, ligandoassim os rios São Francisco e Parnaíba, outras,festeja-se o fincamento das primeiras estacas,anunciadoras do começo da construção; finalmenteoutras, escolhe-se até o local para a primeira estaçãodo ramal que nos deve pôr em comunicação com oCeará. Todo este serviço tem sido acompanhado comvivo interesse e com o maior entusiasmo por todosos piauienses, que vêem na facilidade das nossas

vias de transporte o segredo do nosso progresso erápido desenvolvimento.

Entre os anos de 1910 e 1915, foramanunciados a participação de recursos federaispara a conclusão de ligações ferroviárias noPiauí, que visavam unir este estado ao do Cearávia Crateús, à Pernambuco via Petrolina e aoporto de Amarração. Contudo, essas primeirasiniciativas de implantação dos caminhos de ferroem solo piauiense foram alvos de dificuldades queimpossibilitaram o andamento dos serviços, apesardos discursos, principalmente do governo doestado, em apontar certa preocupação namelhoraria das condições financeiras do Piauíatravés da diminuição das distâncias entre asprincipais cidades produtoras e a capital Teresina.As estradas de ferro eram consideradas, nosprogramas de governo, como necessidadefundamental para os transportes da produção doestado, mas não passavam de promessas.

Entre as autoridades políticas do Piauí existiacerto entusiasmo com o advento dos projetosferroviários no território piauiense. O governadorMiguel Rosa (PIAUÍ, 1913, s./p.), em discursopronunciado na Assembleia Legislativa, revelou queo Piauí caminhava rumo ao progresso com apossível chegada da locomotiva:Sou um crente fervoroso dos dias prósperos queaguardam o Piauí. As nossas indústrias, quasetodas, estão em sua infância. As nossas riquezasdormem, desconhecidas. O comércio apenas seemancipa e dilata o olhar por um horizonte maislargo. A locomotiva, vencendo distâncias, só agoranos chega à porta, - feliz mensageira de uma outraera de progresso.

Esperanças à parte, a locomotiva representavaum símbolo de progresso nos discursos dosgovernadores do estado, ficando patente nosprojetos de construção de ferrovias, interligando oPiauí aos estados do Maranhão, Ceará ePernambuco. Um dos projetos ferroviários maisalmejados pelo governo federal era o que ligaria oPiauí a Pernambuco, pois, de acordo com otraçado dessa ferrovia, o Piauí ficaria interligado aorestante do país. Os estudos de construçãodesses trechos ferroviários vinham sendorealizados desde o período imperial, mas acabaramficando a cargo da Companhia Estrada de FerroNordeste do Brasil, que mais tarde passou a serchamada Petrolina a Parnaíba, e mandou iniciarestudos de 102 quilômetros de linha que foramaprovados pelo decreto n. 2.258, de 13 de abril de1896. Mas, devido aos problemas econômicos queo país enfrentava na época, o governo federal

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acabou suspendendo o pagamento em dinheiro dosjuros dos títulos das ferrovias. Diante disso, ostrabalhos de construção dessa estrada de ferroforam parados e, consequentemente, ela acabousendo declarada, pelo ministro da viação,concessão incursa em caducidade pela demora emsua conclusão.

No Império, os objetivos principais daconstrução de estradas de ferro no país eram:primeiro, povoar e aproveitar as riquezas doterritório, interligar as diversas regiões, visando aoauxílio administrativo do governo, e fortificar aunidade política e econômica entre as províncias eo governo imperial. Muitos desses projetosalmejados pelo governo objetivavam interligar ascapitais econômicas do Nodeste (Salvador,Petrolina, São Luís, Belém, Fortaleza e Teresina)com a capital federal. A ferrovia Petrolina-Teresina,por exemplo, significava uma possibilidade depermitir maior comunicação com o mercadoconsumidor do sul do país, bem como asvantagens econômicas que poderiam seralcançadas, pois os trilhos, ao serem implantadosinicialmente em Pernambuco, na cidade dePetrolina, e avançando em território piauiense,passando por cidades como Oeiras e Amarante atéchegar à capital Teresina e daí à Parnaíba,atingiriam cidades de grande importânciaeconômica (COSTA, 1910).

A ideia da ligação dos rios São Francisco eParnaíba através da ferrovia entre Petrolina eTeresina tiveram muitos defensores, inclusiverepresentantes piauienses no senado federal. Foigraças a esses que a lei federal n. 2.738, de 4 dejaneiro de 1913, autorizou os estudos e aconstrução dessa ferrovia. Os estudos foramrealizados pelo engenheiro Messias Lopes, sendoordenado o início dos trabalhos pelo presidenteDelfim Moreira, através do ministro da Viação, MeloFranco. Em 1919, os serviços de implantaçãodesse trecho ferroviário foram iniciados a partir dePetrolina, mas acabou sendo paralisado duranteanos.

Na década de 1920, iniciou-se o processo deestatização da maioria das empresas ferroviáriasdo País ocasionada pela crise financeira (1929) queacabou atingindo profundamente a economiabrasileira. Em 20 de novembro de 1926, foipublicado, no Diário Oficial da União, o decreton. 17.048, de 30 de setembro de 1925,correspondente ao termo de revisão e contratocelebrado com a Companhia Geral de

Melhoramentos do Maranhão, que era responsável,desde 1921, pela construção das ligaçõesferroviárias de São Luís-Teresina, Petrolina-Teresinae Crateús-Teresina. De acordo com esse decreto, ogoverno do estado assumiria a responsabilidade daconstrução dessas ferrovias em território piauiense(MELO, 1926).

A ferrovia de Petrolina à Teresina foi alvo dediscussão, também, no senado federal, por meiode representantes políticos do Piauí. Um desses foiAbdias Neves2, que em 1916 pronunciou diversosdiscursos, os quais reivindicavam melhorias nostransportes do estado. Dentre as reivindicações,exigia-se a construção de uma estrada de ferro queinterligasse o Piauí à capital federal (Rio deJaneiro), sendo considerada a mais urgente para oprogresso econômico da região. Nospronunciamentos realizados, procurou negar aopinião segundo a qual “as estradas de ferro quearruinaram as finanças da República” e “a via férreaPetrolina-Parnaíba representa uma despesaadiável, senão inútil, motivo talvez de novosgravames para o Governo Federal” (NEVES, 1916,p. 1). Para Neves, as construções ferroviáriasbrasileiras, desde 1913, construídas pelo governofederal atingiam somente 19.000 km, extensãoconsiderada muito ínfima para um país com8.000.000 km². Nesse sentido, considerourelevante que houvesse um aumento dos recursosfinanceiros federais voltados para ampliação darede ferroviária do país, sobretudo em regiões quehá anos vêm sendo esquecidas, como, porexemplo, o Nordeste, devido à falta de verbasprovenientes do poder central capazes de darandamento às diversas obras paralizadas.

Abdias Neves considerou, ainda, que asferrovias eram importantes para os transportes daprodução, pois facilitaria a circulação e o consumodas principais cidades servidas pelo traçadoferroviário. Com isso, em seus discursos, advertiaque o governo federal favoreceu consideravelmentea melhoria dos transportes e comunicações dosestados situados na região sul do país, enquantooutros situados no nordeste, como o Piauí, nãoapresentava nesse período um palmo de estradasde ferro construídas. As discussões queprevaleciam no Senado quanto à construção deestradas de ferro no Piauí eram a onerosidadedessas estradas para as finanças da República ese a estrada de ferro de Petrolina a Teresinaatendia ao plano geral de viação. Quanto ao últimoponto, Neves afirmou que a ferrovia Petrolina-

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-Teresina já fazia parte do plano de viação brasileiradesde 1852 e passou por inúmeros projetos, osquais foram esquecidos, ao longo do tempo, devidoà falta de verbas federais para dar andamento aostrabalhos de construção.

Na tentativa de mostrar ao governo federal aimportância de uma ferrovia, ligando Petrolina aTeresina, Abdias Neves demonstrou as vantagenspara a economia brasileira, sobretudo piauiense.Nesse sentido, fez uso de dados estatísticos queevidenciavam uma quantidade muito elevada deprodutos exportados na alfândega de Parnaíba.Segundo os dados, as exportações piauiensesaumentavam consideravelmente e, muitas vezes,esses produtos eram contrabandeados para osestados vizinhos, principalmente o Maranhão,beneficiando, assim, suas economias. Aexportação dos produtos piauienses, em suagrande maioria, era escoada em portos situadosnos estados do Maranhão e Ceará. Acerca disso,Neves (1916, p. 11) afirmava queQuase toda a exportação do Cajueiro é piauiense,porque é esse porto de Piauí ordinariamentefrequentado, porto de escala dos navios estrangeirose dos do Lloyd Brasileiro. Na Amarração só aportam,e raramente, navios costeiros, de pequeno calado.Acresce que o Itapecurú, o Pindaré e o Mearim, comdiversas linhas de navegação a vapor ,subvencionadas, são o escoadouro da produçãomaranhense, e mais que os muncipiosmaranhenses, ribeirinhos do parnaíba, excessão doBrejo do Arapurú, são de mínima importância.

Nesse período, os estados vizinhos, Maranhão,Ceará e Pernambuco, funcionavam comoimportantes entrepostos comerciais dasmercadorias do Piauí. Assim, grande parte dostraçados ferroviários desse estado era projetadapara atingir o território daqueles estados. Além daPetrolina a Teresina, outra importante ligaçãoferroviária para o Piauí era a de Teresina a São Luís(MA). Essa ferrovia era justificada pelapossibilidade de escoamento rápido e barato daprodução piauiense para as principais cidades docentro-sul do país (Goiás e São Paulo).

A história da estrada de ferro no Maranhão teveinício em 1888, quando o engenheiro NicolauVergueiro obteve do governo imperial a autorizaçãopara estudar uma ferrovia entre Caxias eCajazeiras, atual Timon. Os planos inicialmentenão tiveram sucesso e somente em 9 de junho de1895 foi inaugurada a Estrada de Ferro de Caxias aCajazeiras, com 78 km, sob a orientação dosengenheiros Aarão Reis, Cristiano Cruz eRaimundo de Castro Maia, dentre outros.

Em 1907, foi iniciada a construção da Estradade Ferro São Luís a Caxias, passando porsucessivos atrasos, sendo concluída em 1921.Desde 1919, a ferrovia já era administrada pelaInspetoria Federal das Estradas de Ferro, tendoencampado, em 1920, a Estrada de Ferro deCaxias a Cajazeiras, nessa época conhecida comoE. F. Senador Furtado. Com a encampação, adenominação foi alterada para Estrada de FerroSão Luís-Teresina. A ligação ferroviária entre essascapitais se efetivou em 14 de março de 1921,embora ainda necessitando de um transbordosobre o canal dos Mosquitos, próximo a São Luís,até à construção da ponte Benedito Leite, com270m de extensão. Entretanto, foi somente em1939 que esse traçado atingiu Teresina, sendorealizada a inauguração da ponte ferroviária JoãoLuiz Ferreira, sobre o rio Parnaíba. A inauguraçãodessa ponte ferroviária ocorreu no dia 2 dedezembro de 1939 com a participação derepresentantes dos dois estados, Maranhão ePiauí, além de autoridades do governo federal e dapopulação em geral (A SOLENIDADE..., 1939, p. 1).

Nos primeiros anos do século XX, o Piauí aindanão possuía um quilômetro sequer de trilhosassentados. Foi somente em 19 de novembro de1916 que ocorreu a inauguração do primeiro trechoferroviário na região norte do estado, entre Portinhoe Cacimbão, com 24km de extensão. Nessemesmo dia foi também lançada a pedrafundamental da Estação Ferroviária de Parnaíba.

A ferrovia chegou ao Piauí num momento emque o governo federal começava a se preocupar emintegrar e desenvolver as diversas regiõesbrasileiras através da construção de rodovias emtodo o país. Nesse sentido, as ferrovias assumiramposição secundária nos programas de transportedo governo federal, ficando muitos projetosferroviários esquecidos ou abandonados duranteanos. No Piauí não seria diferente. Antes daimplantação dos primeiros trechos ferroviários,muitos estudos e projetos foram produzidos emantidos no esquecimento durante os anos finaisdo século XIX e iniciais do século XX, mas, poriniciativa do governo federal, acabaram sendoefetivados alguns desses trechos, especialmenteaqueles que interligavam Amarração às principaiscidades da região norte do estado: Parnaíba (1920),Cocal (1923) e Piracuruca (1923).

Nesse período, a elite político-comercial doPiauí, sobretudo da cidade de Parnaíba, passou areivindicar dos governos melhoramentos na área

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dos transportes como forma de diminuir a perda deprodução e contribuir com as finanças do estado.Essa elite político-comercial de Parnaíbaconsiderava-se detentora de uma missão: promovero progresso no Piauí a todo custo; e, para atingiresse objetivo, organizava-se em associações,como a Associação Comercial de Parnaíba.3

A elite comercial de Parnaíba constituia-se decomerciantes de estabelecimentos importadores eexportadores que faziam da cidade um entrepostocomercial de grande importância econômica para aregião norte do estado e, além disso, lutavam pelaindependência no campo econômico. Essa luta foideflagrada contra a praça comercial do Maranhãoque concorria ferreamente com o comérciopiauiense, pois grande parte da produção do Piauíera comercializada diretamente no porto de Tutóia(MA), provocando vários empecilhos à economiapiauiense, por serem contabilizados nas cifrasmaranhenses, além dos altos preços dos fretesdenunciados pelos comerciantes piauienses.

A ideia da construção do porto de Amarraçãoconsumiria os maiores esforços da elite comercialparnaibana. Outra iniciativa correlata era a deconstruir uma ferrovia em solo piauiense queservisse de complemento ao transporte dasmercadorias produzidas internamente até o portomarítimo. Um complementaria o outro através deum ciclo onde os navios que chegassem no portodescarregariam as mercadorias no trem, seguindopara as cidades de destino. Já os produtos deexportação piauienses fariam o percurso inverso,iriam ao porto de trem e daí para os navios.

As ferrovias eram justificadas como alternativade transporte da produção interna do estado quenesse período enfrentava dificuldades deescoamento por falta de um sistema decomunicação adequado e eficiente, provocando acomercialização desses produtos diretamente nosestados vizinhos, como Ceará, Maranhão ePernambuco. Para Armando Madeira (1920, p.103),Do interior do Estado, dos centros atingidos pelo raiode ação da Estrada de Ferro, afluirão os produtosvariados e inumeráveis que apodrecem, anualmente,em abandono, porque não há quem os conduza.Pelas mesmas vias subirão as mercadoriasimportadas, para as permutas indispensáveis esatisfação das necessidades, cada dia maiores, dosconsumidores sertanejos e ribeirinhos. Até que limitechegará esse jogo de compensações, essemovimento de expansão comercial em uma regiãofértil, boa e promissora como o Piauí, não nos épermitido aventurar para que não nos acoimem defantasista.

A imprensa era um importante meio dedivulgação das iniciativas e lutas dos comerciantesparnaibanos. Os jornais e revistas eramempregados na divulgação de ideias e projetos demelhoramentos para a cidade e o estado, tornando--se documentos históricos que retratam o ambientesocial específico onde foi produzido, como ummosaico de informações e representações dacidade, do cotidiano da população e dos homenspúblicos. Dentre os jornais parnaibanos publicadosnos primeiros anos do século XX, pode-se destacar“A Semana” e “A Praça”, além da revista“Almanaque da Parnaíba”.4 A maioria dasreivindicações da elite comercial de Parnaíba erapor mudanças estruturais no espaço urbano dacidade (abastecimento d’água, luz elétrica,calçamento de ruas, construção de escolas etc.),modernização do sistema educacional e introduçãode elementos técnicos na área dos transportes ecomunicação, como, por exemplo, as ferrovias e oporto marítimo em Amarração.

Em grande parte das mensagensgovernamentais produzidas durante os anos de1900 a 1930 eram mencionadas a necessidade demelhorar as condições de transporte ecomunicação do Piauí por meio da construção deferrovias, estradas e melhoramentos necessáriosno porto de Amarração, considerado o ancoradouronatural das mercadorias piauienses a outrasregiões do país e do exterior. Na década de 1920,os comerciantes da cidade de Parnaíba, sobrepresentação da Associação Comercial deParnaíba, promoveram uma campanha em prol daconstrução do porto de Amarração. Essacampanha foi divulgada em revista (“Almanaque daParnaíba”) e jornais (“A Praça” e “A Semana”), alémde textos publicados, nos anos de 1920 e 1921, dacomissão de propaganda do porto de Amarração,organizados pelo presidente da AssociaçãoComercial de Parnaíba, Armando Madeira.

Entretanto, esse objetivo tão almejado pelocomércio parnaibano não pode ser concretizado,pois, das duas ideias, o porto de Amarração e asferrovias, somente esta saiu do papel. Muitos dostrechos ferroviários demoraram anos para serimplantados no Piauí. Em 1926, na tentativa dejustificar essa demora, o governador Matias Olímpiode Melo, em mensagem enviada à AssembleiaLegislativa, advertia que, entre os anos de 1912 e1918, a ferrovia Amarração-Campo Maior erasubordinada à Rede de Viação Cearense. Nesseperíodo, não houve a abertura ao tráfego de um

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quilômetro sequer. Segundo o governador (PIAUÍ,1926, p. 63),Foram seis anos de absoluta improdutividade. Omenosprezo pelos interesses do Piauí chegou a talextremo que, tendo o Congresso Nacional votado,para 1918, uma pequena verba de setecentos contospara a construção das estradas “Amarração a CampoMaior” e “Crateús-Teresina” , a direção da RedeCearense encontrou meios e modos de desviá-laquase totalmente para a aquisição de materialrodante da “Camocim-Crateús”, sob o pretexto de queesse material servirá para a estrada do Piauí, quandoconstruída!

Matias Olímpio justificava a demora naimplantação de trilhos no Piauí devido à falta deinteresse da Rede de Viação Cearense emmelhorar as condições de transporte ferroviário doestado. No entanto, o governo federal preocupou-seem beneficiar o sistema de viação férrea do Ceará,enquanto que o Piauí era menosprezado eesquecido. Entretanto, ao ler as entrelinhas dessesdiscursos, pode-se concluir que nas mensagensdos governos piauienses, muitas vezes, buscavamtirar suas responsabilidades e transferi-las à Redede Viação Cearense. Quanto ao governo federal,este era culpabilizado por não conceder recursossuficientes para a conclusão dos serviçosferroviários e outros melhoramentos.

Nas mensagens de governo das três primeirasdécadas do século XX constata-se a construção deum discurso de que os governos estaduais eramadministradores, cumpridores de seus deveres,enquanto homens públicos, ao clamarem “contraas injustiças que se nos fazia, e pedir trabalho paraa população faminta, acrescida com a imigração deEstados vizinhos, ainda mais gravemente afetadospela seca”. Enquanto isso, “o Governo da União sómantêm entre nós as suas estaçõesarrecadadoras” (PIAUÍ, 1915, p. 17). Construía-se,assim, a ideia de que o governo federal era oprincipal gerador dos problemas econômicos efinanceiros que assolavam o Piauí nesse período; eo governo estadual assumia o papel de reclamarjunto ao poder central as necessidades demelhoramentos técnicos importantes para odesenvolvimento e progresso do estado.

As cidades servidas por linhas ferroviáriasimplantadas em território piauiense estavamsituadas na região norte do estado. Esse traçadoferroviário no Piauí deveu-se, sobretudo, ànecessidade de encaminhar a produção interna doestado ao porto marítimo em Amarração. Nesseperíodo, o porto de Amarração era considerado oancoradouro natural das mercadorias piauienses,

fazendo parte das reivindicações dos comerciantesexportadores e importadores da região. Nesseperíodo, ocorreu também o início da implantaçãodos primeiros trechos ferroviários entre Petrolina eTeresina.

Assim, nos primeiros anos do século XX, osistema de transporte do Piauí era constituído pelanavegação do rio Parnaíba (que já apresentavadificuldades de navegabilidade), o porto deAmarração (artesanal, constituído de poucosmelhoramentos técnicos, pois não apresentavadique de proteção, quebra-mar e cais), as ferrovias(os trilhos atingiam algumas cidades da regiãonorte do estado e pequenos trechos entre Paulista-PI e Petrolina-PE) e as estradas carroçáveis

Notas:(1) A mudança do nome de Amarração para LuísCorreia foi uma homenagem a Luiz de MoraisCorreia, pelo governador Leônidas de Castro Melo,que sancionou a lei estadual n. 6, de 4 de setembrode 1935. Luiz de Moraes Correia nasceu emAmarração (PI), em 23 de novembro de 1881, efaleceu em Fortaleza (CE), em 23 de outubro de 1934.Foi magistrado, jurista, professor e jornalista.Tornou-se bacharel em Direito em 1910. No Piauí, foichefe de polícia e promotor público, em Parnaíba eTeresina. Atuou como secretário-geral do estado eprocurador dos Feitos da Fazenda. No Ceará,desenvolveu a maior parte de sua atividade cultural eprofissional, onde dirigiu a procuradoria dos Feitos daFazenda e a Secretaria de Finanças. Foi juiz federal eprofessor catedrático da Faculdade de Direito doCeará. Fundou, com os irmãos Constantino e Jonas,o jornal “O Nordeste”, além de ter sido um dosfundadores da Associação Comercial de Parnaíba.Pertenceu às academias piauiense e cearense deLetras, foi patrono da cadeira n. 32 da AcademiaParnaibana de Letras e membro do Instituto deCiências e Letras de Recife (PE) (VIEIRA, 2010, p. 39).(2) Abdias da Costa Neves (Teresina-PI, 19-11-1876 –Teresina-PI, 28-08-1928). Formou-se em Direito pelaFaculdade de Direito em Recife. Foi juiz de direitointerino de Piracuruca (1900-1912), juiz substitutofederal (1902-1914) e secretário de Governo (1914).Em 1915, foi eleito senador da República. Atuou comojornalista em diversos jornais do Piauí como: “APátria”, “O Monitor”, “A Notícia”, “O Dia” e “Litericultura”.Acerca da vida e obra de Abdias Neves, ver Pinheiro(2003).(3) A Associação Comercial de Parnaíba foi uma dasmais atuantes em prol de melhoramentos para oEstado e a primeira reunião da classe comercial deParnaíba que legitimou sua fundação ocorreu em28 de janeiro de 1917. Nessa reunião seestabeleceu o primeiro estatuto que regulamentavaas ações da associação e formou-se a suaprimeira diretoria, tendo como presidente ArmandoMadeira; vice-presidente, Antônio Gomes Veras;primeiro secretário, Henock Guimarães; segundosecretário, Francisco Ferreira de Castelo Branco;Tesoureiro, Dr. Francisco de Moraes Correia e comovogais, James Frederic Clark e Delbão FranciscoRodrigues. Nesse sentido, os discursos produzidospelos representantes do comércio de Parnaíbavisavam criticar as ações dos administradorespúblicos quanto à falta de melhoria material doEstado, ou seja, a relação entre os interesses da elite

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ReferênciasA SOLENIDADE memorável da inauguração da ponte“João Luiz Ferreira”. Diário Oficial, Teresina, a. 9, n.274, 4 dez. 1939CORREIA, J. M. Memorial. Piauhy, Teresina, a. 16, n.866, 01 set. 1906.COSTA, H. S. Estrada de ferro do S. Francisco aParnaíba. Piauhy, Teresina, a. 20, n. 1039, 05 jan.1910.MADEIRA, A. Interesses piauienses. Parnaíba:Comissão de Propaganda do Porto de Amarração,1920.MELHORAMENTOS. Piauhy, Teresina, a. 20, n. 1066,7 jul. 1910.NEVES, A. Política das estradas de ferro e finanças daRepública. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1916.PIAUÍ. Governo. 1910-1912 (Silva). Mensagemapresentada à Câmara Legislativa do Estado do Piauípelo governador Antonino Freire da Si lva, em 1º dejunho de 1910. Teresina: Tip. do Piauí, 1910.PIAUÍ. Lei n. 569. Piauhy, Teresina, a. 20, n. 1066, 07jul. 1910.

comercial e as dos administradores estaduaismuitas vezes não coincidiam diretamente (VIEIRA,2010, p. 48).(4) Esse periódico conheceu três fases: a primeira,de 1924 a 1941, com a publicação de 18 edições; asegunda, 1942 a 1981, com 40 edições, e a terceira,a partir de 1994 aos dias atuais.

* Graduada em História/UFPI, Mestra em História doBrasil/UFPI, Professora do quadro provisórioda UESPI/Campus Torquato Neto.

PIAUÍ. Governo. 1912-1916 (Rosa). Mensagemapresentada à Câmara Legislativa do Estado do Piauípelo governador Miguel de Paiva Rosa, em 1º dejunho de 1913. Teresina: Tip. Paz, 1913.PIAUÍ, Governo. 1912-1916 (Rosa). Mensagemapresentada à Câmara Legislativa do Estado do Piauípelo governador Miguel de Paiva Rosa, em 1º de junho de 1915. Teresina: Tip. Paz, 1915.PIAUÍ, Governo. 1925-1928 (Melo). Mensagemapresentada à Câmara Legislativa do Estado do Piauípelo governador Matias Olímpio de Melo, em 1º dejunho de 1926. Teresina: Tip. do Piauí, 1926.PINHEIRO, A. P. O desmoronar das utopias AbdiasNeves (1876-1928): anticlericalismo e política noPiauí nas três primeiras décadas do século XX. 2003.Tese (Doutorado em História) – UniversidadeEstadual de Campinas, 2003.VIDAL, F. B. Considerações em torno da validadeatual da discussão sobre as desigualdadesregionais no Brasil. Observa Nordeste, Recife, 19 jun.2007. 43 p. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/fvidal2.pdf>. Acesso em: 14jun. 2009.VIEIRA, L. R. Caminhos de ferro: a ferrovia e a cidadede Parnaíba, 1916-1960. 2010. Dissertação(Mestrado em História do Brasil) - UniversidadeFederal do Piauí, Teresina, 2010.

ECONOMIA SOLIDÁRIA NO PIAUÍ:a solidariedade na reinvenção do espaçopúblicoPor Naiara de Moraes e Silva*, Oriana Chaves** e Solimar Oliveira Lima***

A economia solidária é compreendida como “umconjunto de atividades econômicas – de produção,distribuição, consumo, poupança e crédito –organizadas e realizadas solidariamente portrabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletivae autogestionária” (ANTEAG, 2009, p. 17). Entresuas características fundamentais, estão:cooperação, autogestão, viabilidade econômica esolidariedade. Essas características, emborasejam complementares e nunca funcionemisoladamente, podem ser observadas ecompreendidas objetivamente como categoriasanalíticas diferentes, mas sempre presentes naeconomia solidária.

Segundo o Atlas da Economia Solidária noBrasil (ANTEAG, 2009, p. 7), a economia solidária

tem sido “uma resposta importante dostrabalhadores e trabalhadoras em relação àstransformações ocorridas no mundo do trabalho”.Dessa forma, o trabalho associado vem setornando uma alternativa ao domínio secular docapital. Contemporaneamente, porém, cada vezmais esta experiência tem se tornado um desafio,já que em uma conjuntura social marcada porincertezas, a economia solidária, embora tenha seconstituído forte fenômeno em curso, apresentaainda precária base de dados totalizadores, o quedificulta sua análise e investimentos quecontribuam para ampliação (BARBOSA, 2007).

No Brasil, a partir da década de 1990, cresceu onível de informalidade no mercado de trabalho,provocando o Estado a promover políticas públicas

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de enfrentamento ao desemprego, através dofortalecimento das iniciativas de apoio e incentivoàs pequenas unidades econômicas individuais eassociadas. Neste contexto, a economia solidáriapassou a integrar a pauta de atuação do Estado,na tentativa de se criar alternativas àempregabilidade, como uma política pública detrabalho e renda.

Em 2003, com Luiz Inácio Lula da Silva napresidência da República, o apoio à economiasolidária no Brasil se intensificou através da criaçãode um estatuto de política pública federal e doingresso dessa política pública no âmbito doMinistério do Trabalho e Emprego (MTE), atravésda Secretaria Nacional de Economia Solidária(SENAES) – lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003 eDecreto n. 4.764, de 24 de junho de 2003.Conjuntamente, foi criado no âmbito da sociedadeo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES),que passou a articular as experiências deeconomia solidária no território nacional e arepresentá-las junto aos governos e fórunsinternacionais (BARBOSA, 2007).

É instrutivo notar que a aparição de diversosfóruns, espaços de discussão dos problemasvivenciados pelos empreendimentos de economiasolidária, precedeu o surgimento do FBES erepresenta uma herança dos movimentos que seencontravam na origem da formação deste campo,representando uma ação independente dediferentes movimentos, como da igreja, sindicatose instituições de ensino superior, que têm suagênese ainda na década de 1980 e, especialmente,nos anos 1990 (FRANÇA FILHO et al., 2006).

No Brasil, conforme o autor supracitado, abusca do fortalecimento dos empreendimentos deeconomia solidária enquanto política pública e oreconhecimento institucional do campo daeconomia popular e solidária impuseram cada vezmais iniciativas inovadoras e singulares,viabilizando, além dos fóruns, as redes deeconomia solidária como formas por excelência deorganização dos movimentos associativos, as maisantigas e evidentes maneiras de auto-organizaçãopolítica que consistem em um associacionismomais amplo, compreendendo experiênciasconcretas, assim como as organizações defomento e apoio que compartilham valores e regrascomuns.

No âmbito estatal também foi criado em 2003 oSistema Nacional de Informações em EconomiaSolidária (SIES) - um sistema de identificação e

registro de informações sobre a economia solidáriano Brasil, que objetiva, segundo a ANTEAG (2009):construir uma base nacional de informações;fortalecer e integrar os empreendimentos deeconomia solidária; fortalecer a visibilidade daeconomia solidária; subsidiar processos públicosde reconhecimento dos empreendimentos;subsidiar a elaboração de marco jurídico; facilitar odesenvolvimento de estudos e pesquisas; esubsidiar a formulação de políticas públicas.

A partir do SIES, as políticas públicas deeconomia solidária são compreendidas como“aquelas ações, projetos ou programas que sãodesenvolvidos ou realizados por órgãos daadministração direta e indireta das esferasmunicipal, estadual ou federal, com o objetivo defortalecimento da economia solidária”. Para que serealizem deve haver previsão ou dotaçãoorçamentária própria ou oriunda de financiamentos,acordos e convênios com outras instânciasgovernamentais, organismos multilaterais e outrasorganizações nacionais e internacionais. Seusbeneficiários diretos são os trabalhadores ousócios dos empreendimentos de economiasolidária, considerando-se tanto osempreendimentos já constituídos quanto aquelesem andamento (ANTEAG, 2009, p. 19-20).

Entre os principais motivos para a criação dosempreendimentos solidários, foram apontados, deacordo com o Atlas da Economia Solidária(ANTEAG, 2007) em todo território nacional: aalternativa ao desemprego (46%), o complementode renda dos sócios (44%), a obtenção de maioresganhos (36%), a possibilidade de gestão coletivada atividade (27%) e a condição para acesso aocrédito (9%). Regionalmente, existem variaçõesquanto ao principal motivo para a criação dosempreendimentos, considerando as diferentesnecessidades dos trabalhadores e o mercado detrabalho de cada região.

O motivo alternativa ao desemprego sedestaca em todas as regiões, mormente nasRegiões Sudeste e Nordeste (55% e 46%,respectivamente). Nas Regiões Norte, Sul e Centro--Oeste, a motivação mais apontada é fontecomplementar de renda (45%, 44% e 52%,respectivamente). Vale destacar nas regiões Norte,Nordeste e Centro-Oeste um aumento considerávelem relação à média nacional (9%) para o motivoacesso a financiamentos (Norte e Nordeste, 34%;Centro-Oeste , 28 %).

Segundo o levantamento do SIES realizado em

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2007 (ANTEAG, 2007), existem 21.859Empreendimentos de Economia Solidária (EES) noBrasil. Estão mapeados 2.656 empreendimentosna Região Norte, 3.912 na Região Sudeste, 3.583na Região Sul, 2.210 na Região Centro-Oeste e9.498 na Região Nordeste. Dentre os estados doNordeste, aqueles com maior expressividade emnúmero de empreendimentos solidários são oCeará, a Bahia, o Pernambuco e o Piauí,respectivamente. No Piauí, o SIES apontou, em2007, a existência de 1.472 empreendimentossolidários distribuídos em 149 municípios.

Tomando o Estado como um referencial dosempreendimentos de economia solidária,consideramos que a iniciativa estatal de apoio efomento a essas relações produtivas e de trabalhocomeçaram a se intensificar nos anos 2000,trazendo um discurso de convencimento no qual ossentidos do trabalho são ressignificados. Essaressignificação tem por base uma transferência darelação trabalhista mediada pelo Estado eassentada no seu preço, o salário (POLANYI,2000), para a relação de virtude na independênciade ação do sujeito, na qual se encontra avalorização de uma cultura que se estrutura elegitima-se o autoemprego. Essa cultura ainda trazem si outro eixo temático: a ideia da sociedadeque, na ausência de intervenção do Estado,organiza-se e se movimenta independente dele.

Outro aspecto, não menos importante, é queesses empreendimentos solidários têm um fluxo deconfiguração, em regra, de fora para dentro doEstado: primeiro, a formação da experiência deprodução em diferentes configurações, a exemplodo cooperativismo ou associativismo, a partir dademanda dos sujeitos; depois de formado é que ogrupo é inserido e mapeado dentro do controle depolíticas públicas para economia solidária, desdeque o grupo siga os princípios de economiasolidária (BRASIL, 2008). Em outras palavras, osempreendimentos se inserem em uma políticapública de apoio à economia solidária apenas apósa formação do grupo, após a adesão dos sujeitos aesse pacto. Contudo, essa postura governamentalde ir ao encontro da demanda social aponta para areflexividade nas políticas públicas, ou seja, autilização de informações que se refiram às condi--ções de uma ação social como um meio dereordená-la e redefini-la. Na reflexividade social“[...] as decisões devem ser tomadas com base emuma reflexão mais ou menos contínua sobre ascondições das ações de cada um”(GIDDENS, 1995, p.101).

Tendo como referencial o mercado, asatividades produtivas que funcionam de acordo comos princípios da economia solidária podem sercompreendidas como um subproduto datransformação das relações de trabalho.Subproduto este que se relaciona com o mercado enele se insere, mas resguarda princípios defuncionamento que vão em sentido oposto à lógicade mercado. Tal constatação nos leva a inferir umduplo movimento: é uma iniciativa que se insere emum contexto de mercado, no entanto, vai emdireção oposta a ele. O mercado sempre seexpande continuamente, mas esse movimento éenfrentado por algo como um contramovimento quecercaria essa expansão em direções definidas(POLANYI, 2000). Quanto mais pensadas ediscutidas as ações sociais, mais seus riscospoderão ser previstos e possivelmente amenizados.A economia solidária é uma nova estratégia decontenção de princípios de mercado. E é tambémum produto das transformações nas relações detrabalho e um distanciamento potencial entreEstado e demanda por direitos trabalhistas. De umlado, temos a prática social voltada a valoresdiferentes dos sempre dispostos, ou seja, a políticado lucro versus solidariedade; por outro lado,vemos uma das muitas faces da precarização dasrelações de trabalho e uma despolitização dasrelações entre sociedade civil e Estado(BARBOSA, 2007).

Pensando em como os empreendimentos deeconomia solidária se comportam quanto aoreferencial da própria sociedade, temosprimeiramente uma visão otimista, pois o início devários empreendimentos está imerso em relaçõessociais da comunidade na qual surge e sedesenvolve, identificando-se com suas lutas sociaislocais. A atividade econômica está imersa emrelações sociais permeadas pela solidariedade, emcontraposição às atividades econômicas norteadaspor princípios de mercado. Contudo, há relatos deetnografias realizadas em grupos cooperativos nosquais os princípios de economia solidáriadegeneraram-se e foram substituídos pelareprodução da lógica de mercado (GONÇALVES,2008), pois o sistema simbólico de dominaçãolocal não foi superado pelos sujeitos. É umindicador de que, também, o universo dasatividades produtivas econômicas solidáriascomporta a multiplicidade e a heterogeneidade, emsua constituição, em seu funcionamento e nocaminho que suas atividades se desenvolvem ao

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longo de seu funcionamento.Consideramos que os sujeitos se organizam e

pactuam buscando enfrentar os riscos e asincertezas do desenvolvimento social moderno eseus imbricamentos, como relações de trabalho eprodução. Nessa pactuação, o grupo social sefortalece como segmento que demanda do Estadoe segmento que se relaciona com o mercado, nãosob suas leis, mas provocando respostas às suasdemandas. A ação social desses novosempreendimentos produtivos traz em seu conceitode funcionamento a essência da reflexividade queserá mais consistente quanto mais consistente fora reflexividade dos sujeitos e de sua açãocotidiana.

Ressaltando que o Estado, via de regra, não serelaciona com os empreendimentos de economiasolidária na sua gênese, mas somente após aformação do empreendimento, reafirma-se comodeterminante a ação de sujeitos da sociedade civil,que, de forma organizada, pactuam e aderem auma coletivização em que todo o interesse que nãopossa ser generalizado é excluído para que sejaformada uma vontade conjunta (HABERMAS, 1990)para suprir sua necessidade produtiva, de trabalhoe renda. O papel ativo do Estado, de apoio efomento a essas novas relações produtivas e detrabalho, intensificaram-se a partir dos anos 2000,com a absorção da economia solidária comopolítica pública e sua integração ao Ministério doTrabalho, com a criação da SENAES.

A postura governamental de racionalização dademanda social constitui parte do processo dereflexividade nas políticas públicas. Ou seja, oEstado brasileiro está, nesse momento da suahistória, voltado à demanda social por políticaspúblicas, porque essa demanda entroudefinitivamente em um processo de organização,de debate sistemático em espaços públicos dediscussão exatamente para isso: refletir e discutiras necessidades da sociedade, em seusproblemas e nas possíveis soluções que podem serexecutadas a partir do Estado.

No Piauí, o espaço público com participaçãopopular acentua-se nos anos recentes, maisprecisamente a partir de 2003, quando a gestão doEstado foi executada por forças políticas alinhadasa uma concepção modernizadora e participativa. Noentanto, mesmo o estabelecimento de um governocom diretrizes centradas na transparência e naparticipação da sociedade, a tendência acabasendo de fragilidade, no tocante ao reconhecimento

da participação e do coletivo como espaços deconstrução do interesse público. Isso porque, nocaso do Piauí, a força modernizadora de umagestão formada por um corpo político nunca antesexperimentado nas posições executivas, porquestões inerentes à dinâmica da politização dasrelações institucionais, juntou-se interessesobjetivamente técnicos de desenvolvimento, comobjetivos politicamente determinados. O que eraesperado como um espaço público propício àreinvenção do lugar da discussão ampliada dedemandas da população, gradativamente foi dandolugar à experiência histórica de segmentaçãopolítica (LIMA, 2009). A expectativa que havia deespaços institucionais que democratizassem aparticipação e a discussão para toda a populaçãoacabou sendo ampliada apenas para algunssetores que já estavam na luta social, ligados amovimentos que já tinham assento nas discussõespolíticas, embora não tendo tanta força.

A solidariedade se insere na reinvenção dosespaços públicos e contribui ela mesma nessareinvenção. No entanto, sempre se esperaescolhas políticas ou de renovação ou dereafirmação das escolhas e dos projetos dedominação política. O espaço público reinventado apartir da reestruturação das forças de trabalho eprodução, salvo engano, tem maior movimento edesenvolvimento em governos voltados paramodernização e desenvolvimento estendido àcamada mais pobre da população. Mas esseespaço é conflituoso, pois, malgrado a participaçãocom base nos sujeitos sociais e não institucionais,interage com a esfera institucional para serlegitimada; necessita do amparo de decretos e leise da incorporação de novas estruturasadministrativas direcionadas às demandas dossegmentos sociais. Então, por um lado, essesgrupos se relacionam com o Estado instituição e,por outro, com o governo político. Essas relaçõessão permeadas pelas necessidades institucionaisde legitimação e também por necessidadespolíticas de apoio e incentivo.

No Piauí, houve, no entanto, um esvaziamentoda participação popular e de sua capacidade deinterferir nas políticas públicas. Esse fenômenopode ter ocorrido mesmo pela inserção demilitantes de segmentos da sociedade civil no rolde gestores, que “resultou em organismos comfunções decorativas e, de certa maneira,apaziguadoras de pressões e enfretamentospolíticos, uma vez que a institucionalidade foi

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marcada pela incipiência e ausência de poder”(LIMA, 2009, p.185). Esta leitura repercute nasformas de organização da sociedade,especialmente nas representações que participamdiretamente da formulação de políticas públicas, aexemplo do Fórum Estadual de Economia Solidáriado Piauí (FEESPI).

O FEESPI foi criado em 13 de fevereiro de 2004;possui um regimento interno aprovado pelos seusmembros, e tem como objetivo disciplinar seufuncionamento, traçar metas anuais de atividade,de mobilização e interlocução com os órgãosrepresentativos da economia solidária, no País e noestado, como o FBES, a SENAES, representadanos estados por Núcleo de Economia Solidária, naSuperintendência Regional do Trabalho e Emprego(SRTE), que, como gestora, vem oferecendosuporte estrutural ao FEESPI. Sua criação integraum processo nacional que se iniciou com umademanda das entidades e movimentos sociais queparticiparam do III Fórum Social Mundial, em PortoAlegre. Esses movimentos posicionaram-se eexigiram do então candidato à presidência daRepública, Luiz Inácio Lula da Silva, a criação dealgumas políticas públicas direcionadas para aschamadas economias populares solidárias. Umadas atitudes governamentais para apoiar aeconomia solidária, foi a instituição da SENAES,no âmbito do MTE, como já mencionado, quecontou como interlocutor da sociedade civil com oFBES. No Piauí, o fórum estadual foi formado apartir da articulação FBES-SENAES, com oengajamento primeiro de entidades de assessoria efomento e da integração da Secretaria Regional doTrabalho/MTE.

Como processo metodológico de elaboraçãodeste trabalho, buscamos o contato comintegrantes do FEESPI, para que a partir de suasfalas fosse apreendido o sentido da criação doFórum no estado e, também, o sentido do espaçopúblico de participação e discussão de políticaspúblicas direcionadas à economia solidária. Foramentrevistados três sujeitos, representando cadasegmento que possui assento no Fórum: umrepresentante de entidades de assessoria efomento, um representante de entidadegovernamental e um representante dosempreendimentos; esses três entrevistadosparticiparam do processo de criação do Fórum noPiauí. Como instrumental de investigação,utilizamos a entrevista narrativa (BOURDIEU,1997),na qual foi solicitado ao entrevistado que fizesse

um relato de sua aproximação ao Fórum, doprocesso de formação deste, sua participação esua visão desse espaço público para ampliar aparticipação popular na discussão das políticaspúblicas.

A participação desses três tipos de segmentospossuindo assento no Fórum não foi igualitária nacriação do mesmo. Segundo o relato dorepresentante de entidade de assessoria efomento, no processo de criação houve aaproximação de entidades governamentais e deentidades de assessoria e fomento; essas últimasque estavam em contato direto com osempreendimentos. A base do movimento - ou seja,os empreendimentos de economia solidária - foi seaproximando muito lentamente. Para esteentrevistado, a participação dos empreendimentosfoi e ainda hoje é difícil, principalmente pordificuldades de ordem financeira. No Piauí, não háfórum municipal de economia solidária: o âmbitomais local é o fórum estadual; no entanto, paraempreendedores que pertençam a gruposlocalizados em cidades e microrregiões distantesda capital, Teresina, na maioria das vezes não hádinheiro para o deslocamento dos sujeitos, o quedificulta o acesso aos encontros de discussão.

A fala do representante governamentaltrouxe-nos a perspectiva gestora no espaço departicipação popular. A iniciativa governamental decriar uma secretaria, no âmbito do governo federal,para pensar as questões relativas ao fomento,financiamento e melhoria de condições dosempreendimentos de economia solidária foi umaresposta à demanda dos empreendimentosorganizados e uma demonstração de que aeconomia solidária é uma realidade que absorveuma camada da população. É um comportamentoeconômico e social que é fato na sociedadebrasileira e que tem em seus fóruns, brasileiro eestaduais, os espaços institucionalizados dediscussão e diálogo entre governo e sociedade civil.

O relato do representante dos empreendimentostrouxe uma perspectiva de valorização do que já foiconquistado através da organização do debate noFórum. Foi ressaltado como as feiras de produtosprovenientes de empreendimentos solidários quesão organizadas e realizadas tornaram-se viafacilitadora da comercialização e divulgação daeconomia solidária. Outro fato de importância parao movimento de economia solidária é a tramitaçãona Assembleia Legislativa do Piauí de um projetode lei direcionado aos empreendimentos de

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economia solidária. Na perspectiva desseentrevistado, os empreendimentos vêm seaproximando cada vez mais para as discussões.

De forma unânime, alguns elementos foramcolocados pelos três sujeitos ouvidos durante oprocesso de elaboração desta reflexão sobre oFEESPI, que dizem respeito à importância desseespaço público de participação e discussão: aampliação da participação, a necessidade defortalecimento do diálogo entre movimentos sociaise gestores e o auxílio à legitimação institucional daeconomia solidária. A importância da ampliação departicipação dos empreendedores em economiasolidária no Fórum deve ser ressaltada para que elese fortaleça e aos empreendimentos. Desde suacriação no Piauí, tornou-se a organização dossujeitos que vivem no comportamento social eeconômico solidário no estado. Para que omovimento chegasse a uma capacidade cada vezmaior de envolvimento de empreendimentos,discussões e debates foram realizados; ou seja, aprópria construção do espaço de participaçãopopular foi efetivada a partir da reflexão, do debate,da discussão, visando sempre à ampliação daparticipação. O fortalecimento do diálogo entremovimentos sociais e gestores é umanecessidade, pois a existência desses doissegmentos de forma isolada não produz resultadopara a sociedade. O encontro no debate, no diálogoe no questionamento de ideias e diretrizes defuncionamento de atividades de um lado e outro éque estabelecem as regras do que deve serefetivado, seja como políticas públicas, seja comoatividade do movimento social. É nesse encontroque se pode dizer o que de fato é uma necessidadedos empreendimentos de economia solidária paraseu funcionamento e melhoria, e o que de fato oEstado pode fazer para colaborar com ofuncionamento e a melhoria da existência dessesempreendimentos. Todos esses elementos, comodebate, discussões, encontro entre poder público esociedade civil, são necessários para que sejafortalecido o espaço de discussão, oquestionamento e, assim, para que a legitimaçãoinstitucional da economia solidária seja umarealidade no âmbito de todos os órgãos do Estado.A institucionalização permitirá, salvo engano, que aeconomia solidária não seja vista como ummovimento popular momentâneo, mas resultado deuma reflexão e prática sobre trabalho, renda eparticipação popular no contexto da sociedadebrasileira.

O Piauí é um estado de grandes necessidadeseconômicas e sociais. Essas necessidadesparecem ser a aliadas fundamentais para que ossegmentos que compõem o Fórum percebam que aparticipação popular deve ser reforçada,continuamente reformulada, e que o diálogo e adiscussão, o encontro entre os segmentos são aferramenta útil para a própria existência do Fórum eque aponta para políticas públicas efetivas. Existea necessidade; e é este elemento que impulsiona omovimento de economia solidária: a necessidadereal de trabalho e renda que leva para a reflexão,discussão e participação na criação edesenvolvimento de políticas públicas que tratem aeconomia solidária como realidade possível

ReferênciasASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EEMPRESAS DE AUTOGESTÃO E PARTICIPAÇÃOACIONÁRIA – ANTEAG (Org.). Atlas da EconomiaSolidária no Brasi l. 2005-2007. São Paulo: Todos osBichos, 2009.BARBOSA, R. N. C. A economia solidária como políticapúbl ica. São Paulo: Cortez, 2007.BOURDIEU, P. Compreender. In: BOURDIEU, P.(Coord.). A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO -MTE. O que é economia solidária. 2008. Disponível em:< h t t p : / / w w w . m t e . g o v . b r / e c o s o l i d a r i a /ecosolidaria_oque.asp>. Acesso em: 13 ago. 2010.FRANÇA FILHO, G. et al. Ação pública e economiasolidária: uma perspectiva internacional. Porto Alegre/Salvador, Edufrgs-Edufba, 2006.GIDDENS, A. Para além da esquerda e da direita: o futuroda política radical. São Paulo: UNESP, 1995.GONÇALVES, A. F. Experiências em economia solidáriae seus múltiplos sentidos. Katálysis, Florianópolis, v.11, n. 1, p. 132-142, jan./jun. 2008.HABERMAS, J. Soberania popular como procedimento:conceito normativo de espaço público. Novos estudosCEBRAP. n.26, 1990.LIMA, S. O. O Governo Wellington Dias, políticas públicase o desenvolvimento do Piauí (2003-2010). In:ASSUNÇÃO, R.; LIMA, S. O. (Org.). Governos e políticaspúbl icas: a experiência do Piauí. Rio de Janeiro:Booklink, 2009.POLANYI, K. A grande transformação: as origens danossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

*Advogada, Especialista em Administração Pública,Mestranda do Programa de Pós-Graduação emPolíticas Públicas/UFPI.([email protected]).

**Cientista social, Mestranda do Programa dePós-Graduação em Políticas Públicas/UFPI.([email protected]).

***Doutor em Economia, Professor do DECON e doPrograma de Pós-Graduação em Políticas Públicas/UFPI ([email protected]).

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Em “Cartas de Inglaterra”, Rui Barbosa (1929)dizia que “A pior democracia é preferível à melhordas Ditaduras”. Qual seria o significado dessamáxima e que vantagens a pior democracia,enquanto forma de governo, teria sobre a melhordas ditaduras? O alcance dessa discussão éamplo e controverso, por essa razão nos propomosanalisar, nesse trabalho, a concepção política deRousseau nos apropriando, como fio condutor, desua crítica à ideia de representação. Utilizaremoscomo recurso metodológico, a descrição que opróprio Rousseau fez dos primeiros progressos noespírito humano para identificar as mudançassociais significativas e “trazer o homem e o mundoao ponto em que o conhecemos” (ROUSSEAU,1991b, p. 258).

Representar é, grosso modo, fazer parecer realaquilo que não é. Nesse sentido, o ator querepresenta um personagem tem por finalidadefazê-lo de tal modo que possa parecer àqueles queo assistem verossímil; seu talento é medido pelacapacidade de cumprir essa tarefa. De acordo comRousseau, a explicação para a diferença entre sere parecer está na ordem social e na dupla face dohomem, que é, mas opta por parecer. Trata-se deum jogo necessário para o processo deequilibração e constituição de uma identidadehumana que é cindida entre os apelos da vidacomunitária e os interesses particulares. Veremos,através da análise rousseauniana, os efeitosnefastos desse jogo para a vida pública.

A sociedade é o lugar, por excelência, no qualse replica a desigualdade e o antagonismo entre oshomens sobre o disfarce de uma suposta igualdadeproclamada por meio das leis. As leis constituem acontenção dos desejos mais primitivos. O homemnatural teve que abdicar desses desejos para viverem harmonia com outros. No Segundo “Discurso”,Rousseau (1991b) aponta essa situação como apassagem do homem da vida natural para a vidaem sociedade. Os primórdios da socializaçãodistam do puro estado de natureza, portanto, nãoconstituem ainda um pacto (ou contrato), mas são

A DEMOCRACIA ENTRE A FESTAE O ESPETÁCULO Por Diana Patrícia Ferreira de Santana*

“A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; ela consisteessencialmente na vontade geral, e a vontade de modo algum se representa; ou é a mesma ou é outra; nãohá nisso meio termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser seus representantes; são quandomuito seus comissários e nada podem concluir definitivamente” (ROUSSEAU, 1991a, 107-108).

as primeiras experiências de uma vida comunitária.A família pode ser tomada, neste ínterim, comouma sociedade em pequena escala. O modelo dafamília, considerado por Rousseau o mais antigomodelo de sociedade, talvez explique a vocação deum povo para a subserviência em relação a um líder(ou chefe). A figura do pai protetor prevalecendosobre os outros membros da família sujeitos àssuas ordens e a sua orientação é compensada peloamor que a eles o pai devota. No estado, esseamor é substituído pelo prazer de comandar e opovo, como membros de uma grande família,espera em vão os cuidados desse pai imaginário,fruto de uma oportuna transferência.

Nas comunidades que emergiram peloagrupamento de várias famílias, o convívio vai,lentamente, intensificando os laços e tornando asrelações cada vez mais complexas. Rousseauafirma haver já nesta etapa os germes dasprimeiras desigualdades. Os homens passam a seolhar e a se comparar àquele que, na comunidade,é digno de estima. A inveja, o orgulho e a vaidadeentram no rol dos sentimentos humanos. “Cada umcomeçou a olhar os outros e a desejar ser elepróprio olhado, passando assim a estima pública ater um preço” (ROUSSEAU, 1991b, p. 263).

Nesse trecho do “Discurso”, Salinas Fortes(1997) afirma que Rousseau anuncia a abertura doespetáculo no qual o homem irá representar seudrama e escolher sua participação como ator ouespectador. As primeiras festas estreitam econsolidam os laços sociais, contribuindo tambéma fixação num certo espaço físico, o estabeleci--mento dos vizinhos e os encontros entre os sexos;nas palavras de Rousseau (apud SALINASFORTES, 1997, p. 44), as pessoas passaram “[...]a se reunir diante das cabanas ou em torno de umagrande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhosdo amor e do lazer, tornaram-se o divertimento ouantes a ocupação dos homens e das mulheresociosos e aglomerados”.

O caráter paradoxal dessas primeiras festas,preanunciando o início do espetáculo, se deve ao

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fato delas constituírem, ao mesmo tempo, umaaproximação e um afastamento. Aproximação namedida em que o homem abandona seu isolamentoe passa a se reunir com outros de sua espécie; eafastamento porque ao se oferecerem emespetáculo uns aos outros, não revelam o que sãoessencialmente. Essa situação vai piorandoquando os homens passam a se reunir não apenaspor suas paixões, mas também por interesses enecessidades; nessas ocasiões, o mascarar-se éindispensável.

A inauguração da vida política ocorre quando aintensificação das disputas entre os indivíduos,resultado das transformações do estilo de vida edas relações, vão se tornando cada vez maiscomplexas, colocando em risco a própria comuni--dade ou seus membros. Ocorre uma participaçãomaior dos membros no espaço público e a buscapor um código de regras que oriente a ação deseus membros, um decoro. Procurava-se umasolução para evitar o estado de guerra. SalinasFortes (1997) entende essa etapa como umamudança no cenário do espetáculo; novos protago--nistas tomam a cena, instaura-se um novo tempoe novas luzes, a paisagem também se transformae novos ruídos se sobrepõem às vozes da multidão.

Aqui vale a pena mencionar a concepçãopolítica de Hobbes (1974) para justificar aexistência do estado a qual Rousseau (1991a) seopõe. Para Hobbes, cada indivíduo possui preferên--cias e, ao interagir com outros indivíduos, busca amáxima satisfação pessoal. Não é difícil supor que,o que sobrevém dessa interação é um enormeconflito de interesses; principalmente se osrecursos para atender essas preferências foremescassos. Portanto, o homem não é, conformesupôs Aristóteles, um animal político, sociável pornatureza. O instinto de sobrevivência o impele parauma natureza belicosa. A razão, capaz deantecipar aos homens as consequências de suasações, prevê uma saída mediante um contrato.O contrato é o elemento que vincula os compromis-sos do estado com o indivíduo e vice-versa. Atravésdele, os indivíduos abrem mão de sua liberdadenatural pela garantia de segurança - tarefa delegadaao estado pelo consenso entre os indivíduos. Osindivíduos transferem para o estado a autoridadepara este agir em nome de todos; e ele passaassim a ser o seu legítimo representante. Deacordo com a teoria da Representação de Hobbes(1974, p. 102), “Uma multidão de homens étransformada em uma pessoa quando é

representada por um só homem ou pessoa, demaneira a que tal seja feito com o consentimentode cada um dos constituem essa multidão”.

Trata-se de um contrato de cada homem comtodos os homens, como se cada um pronunciasseao outro: “Cedo e transfiro meu direito de governar--me a mim mesmo a este homem, ou a estaassembléia de homens, com a condição detransferires a ele teu direito, autorizando demaneira semelhante todas as suas ações(HOBBES, 1974, p. 109).

Integrados a um corpo constituído artificialmenteatravés de um conjunto de pactos, a multidão saide cena para que seu representante passe a atuarpor eles. O papel desse novo personagem pode serassim definido: “Uma pessoa de cujos atos umagrande multidão, mediante pactos recíprocos unscom os outros, foi instituída por cada um comoautora, de modo a ela poder usar a força e osrecursos de todos, da maneira que considerarconveniente, para assegurar a paz e a defesacomum (HOBBES, 1974, p. 110).

Hobbes continua a sua exposição afirmandoque o portador dessa pessoa se chama soberanoe dizemos que ele possui poder soberano. Essepoder pode ser adquirido de duas maneiras: pelaforça natural ou pela concordância entre os homensde submeterem-se a um homem (ou assembleia dehomens) voluntariamente. Esse segundo modo é oque se costuma chamar de estado político ou umestado por instituição.

Rousseau se contrapõe fortemente a essaperspectiva hobbesiana, pois não vê compensaçãoalguma para aquele que a tudo renuncia.O conjunto de pactos hobbesiano tem caráter desubmissão. Um homem que se escraviza a outrosó é capaz de garantir a subsistência, mas perdetodo o resto. Além disso, o representante nãopassa de um lugar vazio para ser ocupado por umapessoa particular, cujos interesses próprioscostumam prevalecer sobre o bem comum; eis orisco da representação. É preciso então propor umnovo tipo de associação “[...] que defenda e protejade toda a força comum a pessoa e os bens decada associado, e pela qual, cada um, unindo-se atodos, não obedeça senão a si mesmo, epermaneça tão livre como anteriormente”(ROUSSEAU, 1991a, p. 32).

As cláusulas desse contrato são tacitamenteadmitidas e reconhecidas e não há, nessemomento (quando um povo se constitui povo),qualquer representação. A essência desse pacto é

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sustentada pela seguinte prerrogativa:Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todoo seu poder sob a direção suprema da vontade geral,e recebemos, enquanto corpo, cada membro comoparte indivisível do todo. [...] Essa pessoa pública, quese forma, desse modo, pela união de todas asoutras, tomava antigamente o nome de cidade e,hoje, o de república ou de corpo político, o qual échamado por seus membros de Estado quandopassivo, soberano quando ativo, e potência quandocomparado a seus semelhantes (ROUSSEAU, 1991a,p. 33).

O que o homem perde com esse contrato é aliberdade natural e o direito ilimitado de fazer o quebem quiser, porém, ganha a liberdade civil e apropriedade de tudo que possui. A liberdade civil élimitada pelas leis estatuídas pela vontade geralque rege a sociedade com base no interessecomum. A vontade geral é o denominador comumque unifica o grupo, portanto, é indivisível e nuncaerra, pois almeja sempre o próprio bem. O erroprovém do julgamento e não do ato da vontade.Um julgamento equivocado pode ser provocado porignorância ou por falsas opiniões, logo, convém queo povo seja instruído para que possa exercer comtodo discernimento sua vontade. O soberano é,portanto, um ser coletivo, não um senhor!Se o povo é submetido simplesmente a obedecer,dissolve toda a sua qualidade de povo, pois noinstante em que houver um senhor, haverá oescravo. Essa é uma razão para rejeitar comoforma de governo qualquer ditadura, inclusive amelhor delas. Por mais bem intencionado que sejao líder de tal ditadura, ele dorme sobre a sombra dailegalidade, da usurpação de um poder que a elenão foi conferido.

A concepção rousseauniana pressupõe umapermanente mobilização dos indivíduos atuando navida política, mas o novo tempo coletivo estabelecenovos papéis e funções sociais subtraindo doshomens o tempo que deveriam dedicar àparticipação pública. Envoltos numa rede deinformações e relações incompreensíveis, escritossob um roteiro ruim que evoca o tema da igualdadee da liberdade, enquanto a violência, a miséria e osescândalos públicos evidenciam a fragilidade nomundo real, o mais sensato aos indivíduos pareceser correr atrás dos próprios interesses.

Uma reunião de homens que tenta preservar aliberdade ao mesmo tempo em que estabelece leispara cercear suas ações sob uma suposta autori--dade é, num governo corrompido, um paradoxoque só pode ser solucionado por meio da retórica;fazendo um discurso enganador parecer verdadeiro;

convencendo os escravos de que eles não sãoescravos - eis o jogo político!

Colocar a igualdade no horizonte de umasociedade desigual, torná-la uma promessarealizável ao menos no plano ideal para que a durarealidade seja suportável - eis o mecanismo! Mascomo tornar legitima essa artimanha? De acordocom Rousseau, fazendo parecer que esta é avontade geral - eis a solução! Segundo Pitkin (apudSALINAS FORTES, 1997, p. 44), “A essência darepresentação é a delegação ou concessão deautoridade. Autorizar um representante é concederao outro o direito de agir por si próprio”.

O Soberano é, portanto, a personificação davontade geral. De acordo com Salinas Fortes(1997, p. 112), na perspectiva rousseauniana ela[...] não é apenas a idéia reguladora [...] para sepensar a legitimidade da ordem política, mastambém [...] a idéia reguladora do comportamento decada membro da associação. Se todos os membrosda associação fossem soberanamente governadospor essa Idéia, teríamos o estado perfeito ondeencontraríamos a solução das antinomias da vidapolítica.

Mas tal ideia não resistiu, pois não é a vontadegeral que vigora desde a instituição das primeirassociedades, mas o discurso de que ela vigoraproferida pela boca daqueles que se autoprocla--mam portadores da voz do povo ou seus legítimosrepresentantes. A única forma de governo capaz desustentar esse discurso enganador é ademocracia, que tem por slogan o famoso clichê:o governo do povo, para o povo e pelo povo.Impossibilitado de atuar como cidadão, pois é oque acontece numa democracia representativa,mas carregando peso da máscara, o indivíduoprocura compensação na busca desenfreada daprópria satisfação, transferindo para o planoparticular todo o seu potencial artístico na arte derepresentar.

A consequência inevitável que se estabeleceentre a vontade particular dos indivíduoscontraposta à vontade geral é a ruína do corpopolítico, pois a tendência do governo (composto porindivíduos com interesses privados) é a usurpaçãodo poder soberano e o silenciamento da vontadegeral. A perversão do corpo político consisteexatamente no engessamento da vontade geral pormeio de instituições, postos e cargos que se fazempassar por representantes dessa mesma vontade.Conforme anuncia Rousseau (s./d., p. 104):Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína,apenas subsiste através de uma forma vã e ilusória,quando o laço social se rompe em todos os

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corações, quando o mais vil interesse se adornaafrontosamente com o nome sagrado do bempúblico, então a vontade geral emudece, todos,guiados por motivos secretos, deixam de opinarcomo cidadãos, como se o Estado jamais houvesseexistido, e são aprovados falsamente, a título de leis,decretos iníquos cujo único fim é o interesseparticular.

Para preservar o corpo social, a vontade geralna figura do soberano deve esforçar-sefrequentemente por mostrar-se nas assembléias.No entanto, nas grandes nações, a reunião detodos é sempre problemática, pois haverá anecessidade de divisões e representaçõesintermediárias e, quanto mais a vontade érepresentada, mais se dissolve. Qual será, então,nas grandes nações que adotaram a democraciacomo forma de governo, o artifício para fazerparecer frutos da vontade geral os mandos edesmandos do governo?

A vontade geral será substituída pela opiniãopública. O governo deve cuidar para que estaopinião lhes resguarde o direito de agir sobre osmembros da sociedade. E mais do que nunca,talvez aqui faça sentido a afirmação de SalinasFortes (1997, p. 126) de que “Viver em sociedade,[...], é dar-se em espetáculo para o outro”.

O instrumento para essa intervenção cirúrgicano corpo social é tornar a pátria elemento de culto,um espetáculo cívico capaz de fortalecer o laçosocial. Pela exploração do amor à pátria, manipula--se a opinião pública para que prevaleça uma falsasensação de bem comum sob as vontadesegoístas. A festa cívica é o espetáculo onde(supostamente) todos são atores e espectadores.O carvalho e a fogueira da festa primitiva sãosubstituídos pela bandeira e pelo hino.Os costumes transformados em psicodrama e osroteiros das comemorações cívicas passam aconstituir as engrenagens para manter o coraçãodo corpo social e político funcionando, mesmodepois de constatada sua morte cerebral. É oespetáculo de Ayrton Senna correndo com abandeira do Brasil e uma final de uma Copa doMundo que nos faz sentir brasileiros.

Paradoxalmente, aqui se encontra a brechacapaz de tornar a pior democracia preferível àmelhor das ditaduras: como veículo da vontadegeral, os membros da sociedade podem manifestarsua opinião e se deslocar da posição de merosespectadores a atores no jogo político. Se, por umlado, podemos ser tragados e manipulados pelatirania da opinião, por outro, é através dela quepodemos reverter seus malefícios, posicionando-

-nos frente às questões relevantes da sociedade.De acordo com Salinas Fortes (1997), em matériade comunidade nacional é válido o mais completonarcisismo coletivo. O resgate de certo tipo defraternidade e a identificação com o todo que fazdas diferenças (mesmo que momentaneamente)apenas uma contingência são capazes dedespertar o germe da percepção para a potênciaintrínseca dessa união. Nas palavras de Rousseau(apud SALINAS FORTES, 1997, p. 183):Ao contrário, são necessários muitos espetáculos. Énas Repúblicas que eles nasceram, é em seu seioque os vemos brilhar com verdadeiro ar de festa [...].Pode haver um prazer mais doce do que ver um povointeiro entregar-se à alegria, num dia de festa, e todosos corações desabrocharem aos raios supremos doprazer que passa rápida e intensamente através dasnuvens da vida?

Para Starobinsky (apud SALINAS FORTES,1997, p. 182-183), a festa cívica é animada por ummovimento inverso à festa primitiva, trata-se doreencontro com a unanimidade e da superação doorgulho solitário para sobre ele surgir um orgulhoque ultrapassa a mera existência individual. A festaé o lugar da suspensão das desigualdades e a vidareal o palco das lutas. E o que é a vida real senãoa própria família, a escola da comunidade, o bairro,o ambiente onde desenvolvemos alguma atividadeprofissional?Esses lugares estão repletos de outraspessoas. O que tenho de comum em relação aelas? O que desejamos? Será que nossa vontadetem algum peso nas congregações a quepertencemos? E nossa opinião?

Bem, há duas possibilidades: contemplar, comoconvém a um bom espectador, ou começar a agircomo autor e ator nesses cenários

ReferênciasBARBOSA, R. Cartas de Inglaterra. São Paulo: Saraiva,1929.HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Abri l Cultural, 1974.ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social. São Paulo: Cultrix, s./d.ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social. São Paulo: NovaCultural, 1991a.ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade entre os homens. 5. ed. SãoPaulo: Nova Cultural, 1991b.SALINAS FORTES, L. R. Paradoxo do Espetáculo: Política epoética em Rousseau. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.

* Doutoranda em Filosofia Moderna/ USP-SP,Doutoranda em Educação/ UNICAMP, ProfessoraAssistente da Faculdade de Tecnologia ArthurAzevedo.

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O CIENTISTA SOCIAL É UMINTELECTUAL ORGÂNICO?Por Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos* e Ygor Rafael Leite Pereira**

1 Introdução, problematização e questõesmetodológicas

O objetivo deste texto é o esboço de umaresposta à pergunta acima enunciada. Sabe-se davastidão do tema em pauta e da impossibilidade deesgotá-lo, tampouco respondê-la de modototalmente adequado. Pretendemos esboçar umaresposta à luz de alguns elementos da condição docientista social brasileiro na atualidade.

O caminho a ser percorrido neste texto buscaráapresentar rapidamente a temática e algumasquestões metodológicas. Em seguida, passaremosa uma apresentação do argumento a partir do textode Antonio Gramsci (1975), que desenvolveu anoção de intelectual orgânico em seus Quadernidel Carcere. Faremos uso de alguns comentadorespara ajudar a nossa exposição e argumentaçãoacerca do tema em pauta.

Para começar, sabe-se que o legado de AntonioGramsci (1891-1937) fez parte de um sensocomum teórico-prático nas Humanidades. Ascategorias gramscianas de intelectual orgânico,além de bloco histórico, hegemonia, sociedadecivil, são comumente vulgarizadas e empregadas

fora de sua conceituação meticulosa e original emconexão com a historicidade empregada pelocomunista sardo (BIANCHI, 2008) em análisesempreendidas desde os anos 1970.

O texto do qual nos valemos para abordar aperspectiva de Gramsci acerca do intelectualorgânico é o décimo segundo caderno carcerário,um caderno de segunda redação1, provavelmenteescrito entre maio e junho de 1932 (cf. FRANCIONI,1984).

No que se refere à noção enunciada no título, écomum lidar com uma suposta definiçãogramsciana de que o intelectual orgânico seriaaquele revolucionário e o intelectual tradicionalseria aquele reacionário ou conservador. De mododiverso, pode haver intelectuais orgânicos etradicionais tanto da burguesia quanto doproletariado (COUTINHO, 2007). O exemplo docientista social comprometido com movimentossociais ou partidos políticos ou mesmo que atuariacomo mentor, ideólogo ou inspirador dos mesmoscompletaria a vulgarização conceitualproporcionada pelo conhecimento de segunda mãoda obra de Antonio Gramsci.

Ressalvamos uma formulação central deGramsci à pergunta em tela nesse texto. Gramscisustenta que nem todo homem exerce a função deintelectual numa dada sociedade, embora, naprática, todos sejam intelectuais e filósofos. Todofazer puramente físico tem, por exemplo, umaatividade intelectual criadora. Todo homem encerraem seu fazer, seja ele empírico ou teórico,consciente ou inconsciente, fragmentário ouintegral, contínuo ou descontínuo, uma concepçãode mundo, uma ordem intelectual, uma unidadeindissolúvel teórico-prática. Os filósofos ouintelectuais das universidades, dos laboratórios sãoapenas feições tradicionais de tal atividade noâmbito social (GRAMSCI, 1999, 2000).

Do ponto de vista metodológico, é possívelesboçar uma crítica a tais apropriações valendo-sedo que o professor Quentin Skinner (1969, p. 23-25)chama de “paroquialismo”. Trata-se da busca detrazer o universo categorial de um autor para umsistema conceitual que lhe é estranho, reforçando o

Resumo: O presente texto objetiva esboçar umaresposta à pergunta enunciada no título atravésdas seguintes etapas: (a) desenvolver parâmetrosmetodológicos adequados e rigorosos em torno daespecificidade da obra carcerária de AntonioGramsci, que implica, dentre outros pontos,questionar a mitologia do intelectual orgânicocomo intelectual de partido e/ou de movimentossociais; (b) apresentar resumidamente aformulação fragmentária e não sistemática deGramsci em seu caderno carcerário de número12, na qual o intelectual orgânico é umorganizador da sociedade em geral com o objetivoda criação de situações mais favoráveis àexpansão de uma determinada classe social; (c)discutir alguns elementos da realidade brasileiracontemporânea que esbocem uma reflexão nosentido de mostrar as diferenças entre o papel docientista social e o intelectual orgânico naacepção gramsciana.

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sistema conceitual particular ou familiar dopesquisador, mas sem nexo com a formulaçãooriginal do autor que é tomado como objeto dapesquisa. Encontramos um exemplo de talperspectiva em autor rotulado como neogramscianoe bastante conhecido na literatura acadêmica deRelações Internacionais, o cientista políticocanadense Robert W. Cox. Ao que parece,conhecedor não dos mais aprofundados da obragramsciana, ele menciona o seguinte em um deseus recentes livros:[...] Outros vinte e cinco anos na academia podemafiar a capacidade crítica e confirmar um sentimentode distância do engajamento social e político ativo.Minha experiência de vida não me compatibiliza como papel do que Gramsci chamou de um ‘intelectualorgânico’. Não há grupo social com o qual eu sintauma solidariedade especial e identidade e com oqual e possua uma consideração especial (COX,2002, p. 37, tradução nossa).

Por outras palavras, em se tratando de umaperspectiva bastante comum, o engajamentopolítico entre os estudantes de Ciências Sociais,bem como a discussão em torno do universoespecífico, das agendas partidárias dos partidospolíticos e dos movimentos sociais, é comumtrazer o entendimento de um suposto intelectual nocontexto específico da militância e discussãopolíticas. Antes de passarmos à definiçãopropriamente dita, reforçamos o problema posto notítulo, quando verificamos também naintelectualidade universitária nacional a abordagemà qual nos contrapomos. Como exemplo, aseguinte passagem (SCHWARTZMAN, 2009, p.272):Finalmente, a sociologia se profissionalizou comodisciplina universitária, e a atuação do cientista socialcomo intelectual orgânico, na fórmula proposta porAntonio Gramsci e simbolizada pela atuação políticade Jean-Paul Sartre até os anos 1960, perdeu muitode sua credibilidade, sobretudo, novamente, após ofim do “socialismo real”. Que papéis sociais aindacabem ao sociólogo, espremido entre a ciênciapolítica e a economia, sujeito às regras de carreiradas universidades, e sem um instrumental técnico eprofissional que o permita atuar como umprofissional “normal” , à maneira dos advogados,contadores e administradores?

Entretanto, veremos como essa ótica sedistancia da definição do pensador italiano sobre acategoria em pauta.

Com o mesmo objetivo de não distorcer oconceito em tela, retomamos também umafraqueza metodológica apontada pelo historiadorPierre Rosanvallon (1995): o reconstrutivismo - umraciocínio de reconstrução que, na prática, se

distancia do autor e sufoca-o, não fazendo jus asuas formulações. Nesse caso, a obra de Gramscinão seria levada a sério, seria observada de longe,buscando-se empreender um raciocínio oureconstrução a partir de fragmentos ou elaboraçõesfragmentárias, fora de contexto, que levassem aentender o intelectual orgânico como o líderintelectual da militância política. Isso guardaria,conforme já sublinhamos, enorme distância com aelaboração gramsciana. Contudo, não se trata deabordar a categoria em tela em perspectivaimanente, como se ela fosse datada e aplicávelexclusivamente ao seu contexto de definição noopus carcerário gramsciano.

Uma categoria como a do intelectual orgânicodeve ser entendida e adaptada na perspectiva deuma historicidade e contexto cultural peculiar. Opróprio Gramsci forneceu os elementos para talaplicação, através do que ele chamou detraducibilidade ou tradutibilidade. A tradutibilidadegramsciana toma como pressuposto umadiversidade de linguagens em cada contextocultural e sistema filosófico. Assim, apenas afilosofia da práxis - expressão que alude aomarxismo, por Gramsci usada no contexto dacensura que sofreu ao escrever na prisão - pode“traduzir” conceitos para contextos específicos emprofundidade. Assim, atenta para a suahistoricidade em grau orgânico e profundo, semincorrer no erro de buscar entender ou aplicar umconceito ou elaboração de modo esquemático,mecânico (GRAMSCI, 1999) para outrasrealidades.

Citando trechos dos cadernos carceráriosgramscianos de números 43 e 24, respectivamente,o trecho abaixo do professor Giorgio Baratta (2004,p. 234, grifos do autor) ajuda a complementar osentido da tradutibilidade:A “historicidade” de um texto significa que ele,hipoteticamente, pode ser traduzido em todas asoutras línguas do mundo. Gramsci está convencidode que uma boa tradução - indicando por “tradução” oque ele chama de um “princípio metódicofundamental” - seja uma “repetição”, mas umarepetição não mecânica, obsessiva, material”, acimade tudo, a sua “adaptação [...] às diversaspeculiaridades e tradições culturais” , um desvio, mastambém um enriquecimento, portanto, do seu sentidooriginário. Um texto é como um raio que, passandopor prismas diversos, produz refrações de luz diversa.

Por que não se pode aceitar as definições eaplicações de Cox e Schwartzman propostasacima? Afinal, o que é o intelectual orgânico nosentido gramsciano?

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2 O que é intelectual orgânico?Os estudos sobre a figura do intelectual estão

espalhados por várias obras de muitos pensadoresdas ciências sociais. Tal termo foi usado de muitasformas e com diversas intenções. Mas, dentreesses muitos pensadores, Antonio Gramsci ganhaum grande destaque. Com esse pensador, oconceito de intelectual ganha uma nova roupageme um papel de destaque em sua obra. E na ênfasesobre a função dos intelectuais na história e nosvários âmbitos da vida social constitui um dosaspectos mais originais do pensamento deGramsci. No contexto dos anos 1920 e 1930,nenhum outro pensador e militante, da entãorevolucionaria esquerda, tinha dado tantaimportância à categoria social dos intelectuaiscomo fator explicativo da realidade sociopolítica(BEIRED, 1998). Para o pensador latino-americanoJosé Aricó (1998),Gramsci foi o primeiro marxista que a partir da políticae da reflexão política parecia falar para nós, osintelectuais. Na realidade, era um dos nossos; dealgum modo expressava aquilo que queríamos tersido sem nunca conseguir: homens políticos capazesde reter a densidade cultural dos fatos do mundo,intelectuais cujo saber se desenvolve e se realiza nopróprio processo de transformação.

Para o pensador italiano Bobbio (1998), há duasformas principais de se pensar o substantivointelectual. A primeira delas é pensar essacategoria como um estrato social particular, que sedistingue pela instrução e pela competênciacientífica, técnica ou administrativa, superior àmédia, e que compreende aqueles que exercematividades ou profissões especializadas. Essasprofissões requerem um esforço puramenteintelectual e pouco físico. Enquadrando essadefinição na história, encontramos na Rússia doséculo XIX uma categoria de intelectuais que seencaixam nessa definição. No pensamento russo,esse termo é interpretado como intelligencija. Esteera entendido como um grupo social formado porindivíduos cultos e ligados a assuntos de interessepúblico, que com o passar dos tempos construiuuma consciência própria enquanto grupo autônomoe desligado dos outros estratos sociais. Ou seja,aqueles homens constituíram uma autoconsciênciacomo grupo social especifico e os membros dessegrupo se identificam entre si por acreditarem queconstituem a própria consciência do povo russo(BEIRED, 1998).

Ao lado da primeira acepção do termo, surgiuna França do século XIX uma nova construção para

designar aquilo que se entendia ser o intelectual.Essa figura passou a ser relacionada aos sujeitosdefensores e praticantes de uma ideologiamilitante, ou seja, passaram a ser reconhecidascomo intelectuais as pessoas defensoras de idéiaspolíticas que iam de encontro à ordem vigente(BOBBIO,1998). Essa imagem perdurou durantemuito tempo e alcançou a contemporaneidade. Nasciências sociais há um bom exemplo parademonstrar essa ideia. O pensador francês AlainTouraine (apud SILVA, 2009, p. 282) entendia asociologia como uma ação movida para expressãodaqueles que não são privilegiados pala sociedade.Ou seja, sociólogo seria aquele que desvendaria asideologias dominantes que escondiam as verdadesdas relações sociais. Essa forma de entender asociologia é delimitar seu campo de atuaçãoàqueles que são os explorados e não leva emconta que muitos pensadores sociais usam seuconhecimento em prol de outras causas alémdessa.

Analisando o primeiro conceito de Bobbio, épossível partir para uma definição daquilo queGramsci entende como um intelectual. Essaanalise ganha relevância pelo fato do conceitogramsciano ser um contraponto ao conceito deBobbio. A priori, o pensador sardo criticou aconcepção de que os intelectuais formariam umgrupo separado do restante do corpo social, ouseja, os intelectuais formariam um estrato socialautônomo e independente em relação às outrascamadas sociais (BEIRED, 1998). Para Gramsci(2000, p. 15),

Todo grupo social, nascendo no terrenooriginário de uma função essencial no mundo daprodução econômica, cria para si, ao mesmotempo, organicamente, uma ou mais camadas deintelectuais que dão homogeneidade e consciênciada própria função, não apenas no campoeconômico, mas também no social e político: oempresário capitalista cria consigo o técnico daindústria, o cientista da economia política, oorganizador de uma nova cultura, de um novodireito, etc.

Nessa passagem fica clara a noção de que osintelectuais são produtos de uma nova classesocial. Gramsci apresenta os intelectuaisintimamente ligados às relações sociais vigentes,pertencentes a uma classe, a um grupo socialvinculado a um determinado modo de produção(SEMERARO, 2006). Dessa forma, em cada épocahá um grupo de intelectuais que são reflexos de um

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modo de produção e que têm importante função demanter firmes as convicções culturais desse modode produção, ou seja, os intelectuais são parte deuma superestrutura e contribuem nas construçõesculturais e técnicas da ordem vigente. Paraexemplificar, Gramsci cita o papel doseclesiásticos na Idade Média que eramjuridicamente equiparados à aristocracia fundiária,com a qual dividiam o exercício da propriedadefeudal da terra e o uso dos privilégios ligados àpropriedade. Mas o monopólio das superestruturaspor partes dos eclesiásticos garantiram asobrevivência do poder dos monarcas até oabsolutismo (GRAMSCI, 2000). Este fator somadoao fator da dominação econômico-militar daaristocracia feudal formou as bases paraconsolidação e manutenção do período feudal.

Outra crítica levantada pelo marxista sardo foi ocritério para definir o intelectual com um ser que sediferencia dos outros membros da sociedade pelofato de seu trabalho ser ligado somente aointelecto. Para Gramsci (apud BIANCHI, 2008),buscar a distinção entre os intelectuais e os outrosgrupos sociais não está relacionado ao fator dedesgaste de intelecto, pois em todo trabalhohumano há utilização do pensar, ou seja, não háatividade puramente mecânica realizada pelohomem. A rigor, inexistem não intelectuais, namedida em que não existe atividade humana naqual se possa excluir toda intervenção intelectual,de tal modo que não é possível separar o homofaber do homo sapiens. Seguindo essepensamento, qual forma de distinguir as atividadesintelectuais de outras atividades da sociedade?Gramsci (2000) dizia que um operário, porexemplo, não se caracteriza por esse trabalhoinstrumental, mas por seu trabalho não serreconhecido socialmente e não ocupar um papel dedominação.

Com o exemplo anterior é possível entender quea distinção das categorias está relacionada acertas funções, quer nos processos de reproduçãoquer nos processos de transformação da ordemsocial (BEIRED, 1998). Essas funções estãorelacionadas com a organização da sociedade.Para Gramsci o intelectual se define pela capaci--dade de organizar os homens e o mundo em redorde si ou de uma ideologia que pretende serdominante.

Percebe-se, portanto, que Gramsci consideraas funções sociais como de suma importância paraidentificar os intelectuais numa determinada

sociedade. Mas há outra classificação com relaçãoàqueles que exercem a função de intelectuais.Nessa classificação encontram-se dois gruposdistintos: um dos chamados intelectuais orgânicose outro dos chamados intelectuais tradicionais.Esses ganham um papel de destaque quandoGramsci (apud MACCIOCCHI,1976, p. 189), emsua obra “Questão meridional” analisa o sul daItália. Nessa região ainda se mantinham muitosresquícios de uma época passada, ou seja, de umaregião carregada de fortes influências de um regimeprotocapitalista. Essas marcas ficavam presentesdevido à grande influência dos latifundiários e seusintelectuais. Esses realizavam o papel fundamentalde mediar as relações dos camponeses com oEstado. Dessas relações se formava um grandebloco agrário que representava um grande atraso aosul italiano, quando comparado ao norte. Percebe--se que esses intelectuais não nasceram junto anovas classes sociais, pois suas origens remetiama um passado de dominação e precariedade. Logo,esses intelectuais representavam antigasestruturas de poder. Com a decadência dessas e osurgimento de novas classes dominantes, elesforam incorporados às novas classes, masmantinham muitos de seus vícios adquiridosquando faziam parte da organização social. Devidoa esse fato, eram denominados de intelectuaistradicionais. Nas novas estruturas, eles ocupavamcargos de funcionários públicos, no clero, noexército e nas academias. Nesses espaços, suafunção era manter a ordem vigente e garantir ahegemonia dos grandes latifundiários.

Os intelectuais orgânicos, ao contrário, são osque fazem parte da sociedade vigente e quenasceram junto com ela. Esses intelectuaisapresentam muitos pontos de contato com essanova sociedade. Por isso estão ao mesmo tempoconectados com o mundo do trabalho, com asorganizações políticas e culturais mais modernasque cada grupo social desenvolve. Fazendo partedesse sistema, os intelectuais orgânicos não sófazem parte do mundo de produção de bens comotambém fazem parte da produção cultural exigidapela classe que a criou. Ou seja, além de seremespecialistas na área de sua profissão, elaboramuma concepção ético-política que os habilitam aexercer funções culturais, educativas eorganizativas para assegurar a hegemonia social daclasse que representam (SEMERARO, 2006). Valelembrar que cada classe cria seus própriosintelectuais orgânicos, os quais podem ser frutos

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tanto de uma classe hegemônica como tambémpodem nascer de um grupo social subalterno que jápossui certa consciência de sua posição social.É importante frisar que toda classe social produzseus intelectuais e que alguns desses vão exerceruma função organizativa dentro dos limites que aclasse abrange; logo, ser orgânico não é umaqualidade e sim uma função que alguns gruposintelectuais realizam.

3 A relação entre os intelectuais orgânicos eos cientistas sociais

Numa passagem já citada neste trabalho, osociólogo brasileiro Simon Schwartzman (2009)entendeu que, num certo período da construção dasociologia no Brasil, o sociólogo desempenhou umpapel de intelectual orgânico. O período que foireferido por volta das décadas de 1960 e 1970caracteriza o sociólogo com um militante político e,por vezes, ligado à defesa do socialismo. Porém, oque ficou claro com a apresentação do conceito deintelectual orgânico é que este não está nasociedade para fazer militância política e muitomenos como defensor do que ficou conhecidocomo “socialismo real”. O conceito gramsciano deintelectual orgânico não veio como forma deenaltecer a imagem daqueles que realizammilitância em prol dos grupos menos favorecidos. Opensador italiano entendia que todo grupo social aonascer cria consigo seus próprios intelectuais eesses vão exercer funções organizativas dentro docorpo social. Ou seja, num sistema capitalistaexistiram intelectuais responsáveis pela construçãoda homogeneidade dentro do corpo social, damesma forma que numa sociedade socialistaexistiram seus intelectuais orgânicos responsáveispela construção de uma uniformização da cultura.

As funções que os cientistas sociais exercemna sociedade brasileira pouco ou nada se parecemcom a real função dos intelectuais orgânicos. Nãoestamos querendo dizer que tais pessoas nãotiveram importância na sociedade brasileira; naverdade, a função exercida por muitos dessespensadores tiveram um papel de destaque naconstrução dos movimentos sociais no Brasil. Porexemplo, no período que Simon Schwartzmanentendia ser o sociólogo um intelectual orgânico,alguns pensadores das ciências sociaisdesempenharam um papel na construção dosmovimentos sociais. O exemplo mais clássico é deFlorestan Fernandes (apud BRAGA; BURAWOY,2009, p. 259, grifo nosso), que entendia o sociólogo

como um intelectual participante do movimentosocial, pois atua como agente da transformaçãosocial e como cientista, trabalhando pelaracionalização dos modos de conceber e organizaro mundo. Nessa análise dos autores sobreFlorestan Fernandes, mesmo havendo o termo“organizar”, fica claro que Florestan dizia que ocientista social iria construir um numa nova ideiasobre o mundo e nesse poderia organizá-la. Pois,no atual sistema, sua organização de nada serviria.O próprio Florestan ressaltava a contribuição ativados sociólogos para transformar ou criar “os canaissociais” (FERNANDES, 1971, p. 238).

As funções atuais do sociólogo ou do cientistasocial estão ligadas ao campo acadêmico e aostrabalhos de gestão social. Na década de 1990, asuniversidades brasileiras viram nascer muitoscursos ligados às políticas públicas e uma novaonda de profissionalização compartimentou aindamais nossas formas de fazer sociológico, quetransitaram rapidamente da direção de umconhecimento instrumental a serviços de objetivosdefinidos por poderosos clientes, seja o estado,sejam as empresas. O perfil militante das décadaspassadas cede lugar ao especialista da gestão daquestão social (BRAGA; BURAWOY, 2009).

Em linhas gerais, nos parece que o papel docientista social é diverso. O cientista social é umintelectual tradicional, porém, não é orgânico.Como sustenta Berger, suas funções estãorelacionadas a compreender a sociedade de umamaneira disciplinada. Essa atividade tem umanatureza científica. Isto significa, muitas vezes, queaquilo que o sociólogo descobre e afirma a respeitodos fenômenos sociais que estuda ocorre dentro decerto quadro de referências de limites rigorosos.Como cientista, o sociólogo tenta ser objetivo,controlar suas preferências e preconceitospessoais, perceber claramente ao invés de julgarnormativamente (BERGER, 1963).

4 ConclusãoPercebemos que muito do que se fala sobre o

intelectual orgânico não corresponde a uma leituragramsciana, pois tentam usar a credibilidade dopensamento de Gramsci para validar suas teorias.Nesses casos, não se respeita o uso original dotermo, que está muito aquém de designar um papelmilitante ou revolucionário ao intelectual queGramsci entendia exercer a função de orgânico.

Corroborando a idéia de Berger, o fazerintelectual do cientista social tem um sentido

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específico voltado para uma elaboração acadêmicamuitas vezes distanciada, com uma certaconcepção de cientificidade. Voltando a Gramsci,isso, em princípio, o torna muito mais umintelectual tradicional.

Em perspectiva de buscar traduzir - fazer usode uma categoria adaptando-a para suaespecificidade histórica e cultural - para umcontexto histórico próprio o que ele definiu comointelectual orgânico, conforme o dizer de Gramsci,teríamos que analisar o papel social de um grupocoletivo como intelectual para a produção ereprodução de um certo modo de vida e uma certaconcepção de mundo. Qual o papel que o cientistasocial cumpre nesse sentido? Essa é umapergunta crucial para a tradução dessa categoriapara outras perspectivas históricas e culturais comvistas ao profissional em pauta.

Sem a pretensão de esgotar o tema, masbuscando propor questões para futuras reflexõessob o ensejo da tradução na ótica gramsciana,caberia examinar em maior profundidade a funçãodo cientista social no Brasil e no mundo nessemomento, não somente na sua inserçãoacadêmica, mas também profissional. É sabido dabaixa profissionalização do cientista social noBrasil. Nessas poucas oportunidades, atuaprincipalmente em órgãos públicos. Há a atuação,embora em menor escala, em institutos depesquisa e análise de mercado, opinião pública eeleições. Tais oportunidades são muito maiores emais frequentes nos Estados Unidos, chegando talprofissional a ter a possibilidade de fazer pesquisasaté mesmo sobre certas comunidades em favor dosobjetivos das Forças Armadas, como já ocorreu noVietnã e ocorre neste momento no Afeganistão.Cabe, portanto, estar atento à dinâmica dadiversidade histórica e cultural para continuarbuscando respostas à nossa pergunta inicial

Nota:(1) Nesse sentido, ele é um texto “C,” conforme aclassificação da edição crítica de Valentino Gerratanapublicada pela primeira vez em 1975 na Itália(GRAMSCI, 1975, p. 1511-51). Ele retoma emsegunda redação pontos contemplados no cadernocarcerário de número 4. A edição crítica dos escritoscarcerários constatou textos de primeira redação(classificados como textos “A”) e segunda redação- textos reelaborados (classificados como textos “C”)-além de textos de redação única (classificados comotextos “B”). Uma questão metodológica central refereao cuidado com a cronologia e o movimento internode elaboração da obra gramsciana, um opus nãosistemático, incompleto e fragmentário. Em função docurto espaço aqui disponível, não nos alongaremos

ReferênciasARICÓ, J. 1998. Por que Gramsci na América Latina?Disponível em: < http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=323>. Acesso em: 22 jun 2010BARATTA, G. As rosas e os cadernos, Rio de Janeiro:DP&A, 2004.BEIRED, J. L. B. A função social dos intelectuais. In:AGGIO, A. (Org.). Gramsci: a vitalidade de umpensamento. São Paulo: UNESP, 1998.BERGER, I. P. Perspectivas sociológicas. Rio deJaneiro: Vozes, 1963.BIANCHI, A. O laboratório de Gramsci. São Paulo:Alameda, 2008.BOBBIO, N. Dicionário de Política, 11. ed. Brasília:UnB, 1998.BRAGA, R.; BURAWOY, M. Por uma sociologia públ ica.São Paulo: Alameda, 2009.COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seupensamento político. 3. ed. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2007.COX, R. W. The political economy of a plural world:critical reflections on power, morals and civilization.New York: Routledge, 2002.FERNANDES, F. Ensaios de sociologia geral eaplicada. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1971.FRANCIONI, G. L´Officina Grasciana: ipotesi sullastrutura del “Quaderni del cárcere”. Nápoles:Bibliopolis, 1984.GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. Torino: Einaudi,1975.GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1999.GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2000.MACCIOCCHI, M. A. A favor de Gramsci. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1976.ROSANVALLON, P. Por uma história conceitual dopolítico (nota de trabalho). Revista Brasileira deHistória, v. 15, n. 30, p. 9-22, 1995.SCHWARTZMAN, S. A sociologia como profissãopública no Brasil. Caderno CRH. v. 22, n. 56, p. 271-279, 2009.SEMERARO, G. Intelectuais orgânicos em tempos depós-modernidade. Cadernos Cedes, v. 26, n. 70, p.373-391, 2006.SILVA, L. M.; Touraine, Burawoy, Gramsci: do social aopolítico. Caderno CRH, v. 22, n. 56, p. 281-296, 2009.SKINNER, Q. Meaning and understanding in thehistory of Ideas. History and Theory, v. 8, n. 1, p. 3-53,1969.

* Professor Adjunto do Departamento de CiênciasSociais/UFPI e do Mestrado em Ciência Política/UFPI.Coordena grupo de estudos e pesquisas sobreAntonio Gramsci. Pesquisador do grupo “Marxismoe Pensamento Político” do Centro de EstudosMarxistas/UNICAMP.** Estudante de Ciências Sociais/UFPI, membro dogrupo de estudos e pesquisa sobre AntonioGramsci.

nesta advertência e temática. Tomamos por basepara a elaboração do presente texto a edição etradução brasileiras de Carlos Nelson Coutinhoreferentes ao caderno 12 (GRAMSCI, 2000, p. 13-53).

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4 6in f o rm e e c o n ôm i c oAno 11, n. 23, nov. 2010

DIREITOS HUMANOS ESOBERANIA POPULAR EMHABERMAS*

Na obra “Direito e Democracia”, Habermas(1992, 1997) busca superar duas posiçõesinsustentáveis acerca do direito - jusnaturalismo epositivismo -, indicando uma terceira posição, quevai além do que seja capaz de pensar doisconceitos: direitos humanos e soberania popular(tese da co-originariedade). Habermas, com a ideiade direito procedimental, não pensa no direitonatural, mas num processo coletivo deinstitucionalização de direitos, de ampliaçãodemocrática, capaz de trazer para a esfera públicaa reflexão, por exemplo, sobre a negação dedireitos.

A Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão, de 1789, refere-se ao homem (esfera daautonomia privada) e ao cidadão (esfera daautonomia pública). A primeira é enfatizada pelosliberais e a segunda pelos republicanos. Nadiscussão da filosofia política, o direito subjetivodesempenha um papel central na modernacompreensão do direito. Mas enquanto os direitoshumanos recebem uma conotação negativa(proteção da liberdade individual, direitos naturaispré-políticos), os direitos do cidadão recebem umaconotação positiva. A tese de Habermas (1992,1997) é que só podemos adquirir uma figurapositiva dos direitos humanos através da autonomiapolítica dos cidadãos (participação e efetivaçãoinstitucional).

O problema da relação entre ambas seria aconcorrência, não apaziguada, entre direitoshumanos e soberania popular; entre autonomiaprivada e autonomia pública. Dificuldades quepodem ser explicadas a partir das premissas dafilosofia da consciência e da herança metafísica dodireito natural.

A tradição política liberal interpreta os direitoshumanos como expressão de umaautodeterminação moral. A tradição republicana osinterpreta como expressão de uma autorrealizaçãoética. Os liberais evocam o perigo de uma tiraniada maioria, e postulam o primado dos direitos

Por Jorge Adriano Lubenow**

humanos, que garantem as liberdades pré-políticasdo indivíduo e colocam barreiras à vontadesoberana do legislador. Já os republicanos dãodestaque à auto-organização dos cidadãos. Navisão liberal, os direitos humanos impõem-se aosaber moral como algo dado, ancorado num mundonatural fictício. Na interpretação republicana, avontade ético-política da coletividade que está seautorrealizando não pode reconhecer nada que nãocorresponda ao próprio projeto de vida autêntica.Kant tinha sugerido um modo de ler a autonomiapolítica que se aproxima mais do liberal, ao passoque Rousseau se aproximou mais dosrepublicanos.

O problema para Habermas (1992, 1997) é quenem Kant nem Rousseau conseguiram descobrir onexo interno entre direitos humanos e soberaniapopular. Este reside no conteúdo normativo de ummodo de exercício da autonomia política, que éassegurado através da formação discursiva daopinião e da vontade (e não através de direitosnaturais pré-políticos). Ambas as concepções(liberal e republicana) passam ao largo da força delegitimação de uma formação da opinião e davontade (capaz de conferir legitimidade aosdireitos). Enquanto participantes de discursosracionais, os parceiros do direito devem poderexaminar se uma norma controvertida encontra oupoderia encontrar assentimento de todos ospossíveis atingidos. Por conseguinte, o almejadonexo entre direitos humanos e soberania popular sóse estabelecerá se o sistema de direitosapresentar as condições exatas sob as quais asformas de comunicação (necessárias para umalegislação política autônoma) possam serinstitucionalizadas juridicamente. O sistema dedireitos não pode ser reduzido a uma interpretaçãomoral dos direitos nem a uma interpretação éticada soberania popular, porque a autonomia privadados cidadãos não pode ser sobreposta nemsubordinada à autonomia política.

A co-originariedade da autonomia privada e

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Por Fábio Renault Aguiar Sales*

JUSTIFICATIVA PARA A POLÍTICAAMBIENTAL: falhas de mercado, benspúblicos, externalidades, incertezas e meioambiente

1 IntroduçãoA economia depende da biosfera para obtenção

de recursos naturais necessários à produção debens e serviços. A economia também descarregaresíduos para a biosfera. Quando o crescimentoeconômico ocorre, os recursos naturais seesgotam e os resíduos se acumulam na biosfera.As propriedades físicas da economia não podemescapar das leis da termodinâmica, como ocrescimento econômico, que sucessivamente,

Resumo: Em economias de mercado, aocorrência de falhas ou imperfeições(externalidades, incertezas, bens públicos etc.)fundamenta a atuação do estado na atividadeeconômica. Acreditamos que a sintonia entrepolítica ambiental e eficiência é umanecessidade lógica. O objetivo deste artigo,portanto, é mostrar a importância de consideraro conceito de eficiência quando a existência defalhas de mercado criar condições propícias àintervenção governamental e na regulamentaçãode política ambiental.

contribui para o aumento da entropia. Reservasecológicas também são afetadas pelo crescimentoeconômico, pois as economias naturais e humanascompetem por recursos.

A atividade regulatória governamental é vistapela tradicional abordagem neoclássica daEconomia como um meio para corrigir distorçõesalocativas no sistema de mercado. Nesse caso, ajustificativa de intervenção é a busca da eficiênciado sistema econômico. Na observação de Nogueirae Pereira (1999), são diversos os autores queargumentam que a gestão ambiental é tarefaeminentemente governamental; que o resultado doprocesso de escolha de meios para a consecuçãode objetivos ambientais e seu estabelecimento sedá com a ação deliberada de organismos ouinstituições do estado na busca de eficiênciaeconômica, na distribuição de renda, na provisãode bens públicos associados à conservação danatureza, na produção de informações, limitação deriscos e incertezas sobre consequênciasambientais da ação humana etc. Daí a natureza dacomplexidade da intervenção pública e, por

ReferênciasHABERMAS, J. Faktizität und Geltung. Frankfurt:Suhrkamp, 1992HABERMAS, J. Direito e democracia. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997. 2 v.

** Professor do Curso de Filosofia/UFPI e doMestrado em Ética e Epistemologia/UFPI. Doutor emFilosofia/UNICAMP, com período sanduíche naUniversität Flensburg/Alemanha.

* Texto apresentado na IV Semana Filosófica,promovida pelo Instituto Católico de EstudosSuperiores do Piauí- ICESP, no debate ocorrido apósconferência proferida, dia 28/10, pelo Prof. Dr.Manfredo Araújo de Oliveira/UFC, que abordou otema “Como se justificam hoje, filosoficamente, osdireitos humanos”.

pública somente se mostra quando conseguimosdecifrar o modelo de autolegislação através dateoria do discurso, que ensina serem osdestinatários simultaneamente os autores de seusdireitos. A substância dos direitos humanos insere--se, então, nas condições formais para ainstitucionalização jurídica desse tipo de formaçãodiscursiva da opinião e da vontade, na qual asoberania popular assume figura jurídica. O nexointerno entre autonomia privada e autonomiapública só pode ser explicitado se levarmos a sériotanto a estrutura intersubjetiva dos direitos como aestrutura comunicativa da autolegislação. Esta é atese de Habermas

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consequência, da escolha dos instrumentosadequados ao seu melhor desfecho.

Instrumentos que Mueller (2001), dentre aspolíticas sugeridas pela teoria neoclássica dapoluição, insere em dois tipos principais deabordagens:a) Instrumentos de Comando e Controle (ICC), quesão também conhecidos como instrumentos deregulação direta, pois são normas que resultam noestabelecimento de um sistema legal regulatório,orientado, na maioria das vezes, por relaçõestecnológicas, processos e padrões;b) Instrumentos de Incentivo Econômico (IIE) ouinstrumentos de estímulo econômico, que seriamaqueles que por meio da punição (tributação) ourecompensa (subsídio) financeiras fariam osagentes incorporar uma conduta ambiental maisadequada.

As políticas ambientais, de modo geral, visamao estabelecimento de medidas que restringem aatividade econômica com o objetivo de controlar osefeitos ambientais negativos decorrentes. Lustosa(2003) define a política ambiental como umconjunto de metas e instrumentos que visamreduzir os impactos negativos da ação antrópicasobre o meio ambiente, restringindo ou interferindonas atividades dos agentes econômicos.

De acordo com Jacobs (1991), os instrumentoseconômicos de política ambiental podem ser: (a)mecanismos voluntários (persuasão, fortalecimentode informações, tradição comunitária e comunal);(b) regulamentação (medidas administrativastomadas pelo governo baseadas em leis eregulamentos, mas que não envolvem gastos ouincentivos financeiros diretos pelo governo); (c)incentivos financeiros (impostos e taxas, licençasnegociáveis para poluir, depósitos reembolsáveis);d) gastos governamentais (infraestrutura, unidadesde tratamento, locais para disposição de rejeitos,reflorestamento).

Muitos economistas passaram a admitir comoregra que, numa sociedade atual, complexa, naqual a degradação ambiental tem característicasplurais e diferenciadas, com um crescente númerode agentes econômicos de vários tipos eassimetria de informações, a solução vianegociações de livre mercado dificilmente seriaalcançada. Para Perman et al. (1999), onde osmercados não atingem eficiência nessa alocação,diz-se que é atingido um estado de falência demercado (ou falha de mercado). A análiseeconômica identifica diversas situações onde

essas falhas de mercado podem ocorrer: (a) benspúblicos; (b) externalidades; (c) mercadosincompletos; (d) informações assimétricas, (e)comportamento não competitivo e (f) nãoconvexidade.

Nas observações de Zerbe Jr. (2001), as falhasexistentes (externalidades, incertezas, benspúblicos etc.) nos mostram de forma cristalina queo mercado não consegue resolver todos osproblemas relacionados à alocação dos escassosrecursos de uma determinada sociedade. Emeconomias de mercado, a ocorrência dessas falhasou imperfeições fundamenta a atuação do estadona atividade econômica.

Acreditamos que a sintonia entre políticaambiental e eficiência é uma necessidade lógica. Oobjetivo deste artigo, portanto, é mostrar aimportância de considerar o conceito de eficiênciaquando a existência de falhas de mercado criarcondições propícias à intervenção governamental ena regulamentação de Política Ambiental.

2 Bens PúblicosOs bens públicos constituem um exemplo

extremo de externalidade. De fato, a exemplo dosrecursos comunitários, a propriedade desses bensnão pode ser individualizada, em razão desse bemou serviço não ser divisível. Além disso,contrariamente aos bens privados, o ato deconsumir o bem público não reduz a quantidadedisponível para o consumo das outras pessoas.Portanto, os bens públicos apresentam duasimportantes características: o consumo dessesbens é não excludente e não rival.

Segundo Stiglitz (2003), o mercado nãocostuma funcionar muito bem quando se trata debens públicos, porque os bens públicos não têmpreço em si. O preço pode ser atribuído quando hádireitos de propriedade relacionados com asmercadorias. Isso é exatamente o que estáacontecendo com os bens públicos, faltam osdireitos de propriedade ou estão a tê-los maldefinidos. A imposição de direitos de propriedadesignifica que nós damos o direito de utilizar osbens de alguém, algumas entidades e clubes.

O dióxido de carbono (CO2) e outros gases sãoemitidos para a atmosfera terrestre. Entretanto, aprópria atmosfera é um bem público e é nãoexcludente, porque todos na terra podem emitir-lhequalquer coisa ou respirar-lhe o ar. É não rivaldesde que a minha emissão não reduza os direitosdos outros para emitir. Ela não tem preço e,

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portanto, nenhum mecanismo de mercadodisponível. No final, quando todos emitem gases deefeito estufa e CO2 para a atmosfera, em seguida,haverá estoques de poluição excessiva na mesma.Além disso, posteriormente, causando alteraçõesclimáticas.

Outros exemplos de bens públicos são osistema de defesa nacional, o conhecimentocientífico, um meio ambiente saudável e governoseficientes. Em comum, esses bens têm o fato deseu consumo ser não excludente e não rival.

3 ExternalidadesBem público não constitui a única exceção que

compromete a validade do Teorema Fundamentalda Economia do Bem-Estar. A presença deexternalidade, outra categoria de falha de mercado,também contribui para explicar porque osmercados privados são ineficientes para alocar osrecursos. No que se segue, examinaremos, emdetalhes, essa questão.

Segundo Verhoef (1999), externalidadesocorrem quando o consumo e/ou a produção dedeterminado bem afetam os consumidores e/ouprodutores em outros mercados e esses impactosnão são considerados no preço de mercado dobem em questão. Note-se que essasexternalidades podem ser positivas (benefíciosexternos) ou negativas (custos externos). Assim,por exemplo, uma empresa de fundição de cobre,ao provocar chuvas ácidas, prejudica a colheita dosagricultores da vizinhança. Esse tipo de poluiçãorepresenta um custo externo porque é a agricultura,e não a indústria poluidora, que sofre os danoscausados pelas chuvas ácidas. Estes danos nãosão considerados no cálculo dos custosindustriais, que inclui itens como matéria-prima,salários e juros. Portanto, os custos privados,neste caso, são inferiores aos custos impostos àcoletividade e, por consequência, o nível deprodução da indústria é maior do que aquele queseria socialmente desejável.

Vamos considerar o caso de um bem ou serviçoque envolva a geração de externalidades negativas.Esse é o caso, por exemplo, dos custos daempresa de fundição de cobre, que não estálevando em conta os efeitos negativos da poluição.O custo total dessa atividade para a sociedadeinclui tanto os custos privados da produção decobre como os danos causados pelasexternalidades (custos externos) aos agricultorese cidadãos.

Em presença de externalidades positivas, osníveis de produção, associados ao equilíbrio demercado, são inferiores àqueles que seriamsocialmente ótimos. Assim, por exemplo, aexpansão da educação básica gera benefícios paraa sociedade que extrapolam os benefícios auferidospelos estudantes e suas famílias. Esses benefíciosexternos não são considerados na decisão privadade frequentar a escola porque os estudantes nãosão compensados pelas vantagens usufruídas peloresto da coletividade, decorrente de sua decisão deestudar.

4 Mercados Incompletos e InformaçõesAssimétricas

Em um mercado incompleto, os custos deprodução do bem são inferiores ao valor que ospotenciais consumidores estão dispostos a pagar.Contudo, não há oferta do bem pelo setor privadoou a oferta é insuficiente. Essa situação pode sercausada por diversos fatores - destacando-se:atividades de alto risco, prazos de retorno doinvestimento muito longos, deficiência nofinanciamento da atividade (sistema financeiro emercado de capitais pouco desenvolvidos) eausência de coordenação entre setoresinterdependentes - e ocorre quando um bem ouserviço não é ofertado, ainda que o seu custo deprodução esteja abaixo do preço que os potenciaisconsumidores estariam dispostos a pagar, eenvolvem riscos, que nem sempre o setor privadoestá disposto a pagar.

Falha de mercado pode ocorrer quando umapessoa em uma transação não tem informaçõescompletas sobre qualquer ação ou sobre a segundapessoa. Isso pode implicar em uma qualidadedesconhecida de um bem ou a característicasocultas de um agente, como inerente inteligência.Existe assimetria de informações quando umusuário saiba mais sobre seu nível decomportamento do que a seguradora, ou ovendedor sabe mais sobre a qualidade de umproduto do que um comprador.

Segundo Withagen e Zeeuw (1999), seminformações completas, os mercados serãoincompletos e podem deixar de alocar recursoseficientemente. Dois tipos de problemas deassimetria de informações são referidos como riscomoral e seleção adversa. O perigo moral ouincentivo-problema surge quando nas ações deuma pessoa não são observáveis a segundapessoa.

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O problema de seleção adversa ocorre quandouma pessoa não consegue identificar o tipo ou anatureza da segunda pessoa. O risco moral criadois problemas para bens ambientais. Primeiro,quando os reguladores não podem controlar asações, um indivíduo tem um incentivo para fugir daredução da poluição, uma vez que ele suportatodos os custos de tal redução e recebe apenasuma parte dos benefícios.

Fuga ambiental é provável de ocorrer quando umindivíduo paga os custos de abatimento, masapenas recebe uma parcela do total dos benefíciospara a sociedade. Ignorando as externalidadesmobiliárias, o indivíduo tem um incentivo econômicopara reduzir o seu esforço para controlar a poluiçãoabaixo do padrão estabelecido pelos reguladores,resultando em muito poucos recursos dedicados àredução, e muita poluição em relação ao ótimosocial.

Em segundo lugar, quando o mercado privadonão pode controlar ações da poluição, a seguradorairá retirar-se da responsabilidade, porque omercado de prestação de seguros também afeta oindivíduo - incentivos de tomar precauções. Dadoque os derrames acidentais ou armazenamento depoluição podem criar potenciais passivosfinanceiros (por exemplo, custos de limpeza oudespesas médicas), o mercado produz umaalocação ineficiente do risco.

5 Incertezas e IrreversibilidadeSegundo Pindyck (2002), a primeira

complicação é que as funções de custo e debenefícios ambientais tendem a ser altamente nãolineares. Em outras palavras, os danos quepossam ser causados no ar ou água pela poluiçãonão aumentam linearmente com o nível de poluiçãoou emissões. Em vez disso, o dano pode serpouco perceptível para os baixos níveis de poluiçãoe, em seguida, tornar-se graves ou mesmocatastróficos, uma vez que algum limiar (incerto) éalcançado. Da mesma forma, o custo da reduçãoda poluição pode ser muito baixo para níveis baixosde redução, mas depois se torna extremamenteelevado para maior ou abatimento total. Istosignifica que não se pode simplesmente usar osvalores esperados, o valor esperado do custo oufunção do benefício será muito diferente da funçãodo valor esperado.

A segunda complicação é que as políticasambientais envolvem geralmente importantesirreversibilidades e estas, às vezes, interagem deuma forma complicada com a incerteza.

Existem dois tipos de irreversibilidades que sãorelevantes para políticas ambientais, e elastrabalham em direções opostas. Primeiro, aspolíticas destinadas a reduzir a degradaçãoambiental quase sempre impõem custosirrecuperáveis para a sociedade. Estes custosirrecuperáveis podem assumir a forma deinvestimentos discretos (por exemplo, utilitários dequeima de carvão podem ser obrigados a instalarfiltros) ou podem assumir a forma de fluxos dedespesas (por exemplo, um preço pago por umserviço público que tenha uso de carvão de baixoteor de enxofre em chamas). Em ambos os casos,se os custos e benefícios futuros da política sãoincertos, estes custos criam um custo deoportunidade da adoção da política, ao invés deesperar para obter mais informações sobre osimpactos ambientais e suas consequênciaseconômicas. Isto implica que a análise custo--benefício tradicional tenderá para a adoção depolíticas.

Em segundo lugar, os danos ambientais sãomuitas vezes parcialmente ou totalmenteirreversíveis. Por exemplo, a acumulaçãoatmosférica de Gases do Efeito Estufa (GEE) éduradoura. Mesmo se fôssemos drasticamentereduzir as emissões de GEE, os níveis deconcentração atmosférica levariam muitos anospara cair. Da mesma forma, os danos aosecossistemas de aumento global da temperatura,acidificação de lagos e riachos ou o corte raso deflorestas podem ser permanentes. Isso significaque a adoção de uma política deve ser realizada deimediato, ao invés de esperar que tenha umbenefício irrecuperável, que é um negativo custo deoportunidade. Isto implica que a análise custo--benefício tradicional será tendenciosa contra aadoção de políticas.

Em terceiro lugar, ao contrário da maioria dosprojetos de investimento de capital e mais outrosproblemas de ordem pública, políticas ambientaismuitas vezes envolvem muito tempo. Osinvestimentos das empresas raramenteultrapassam vinte ou vinte e cinco anos, os custose especialmente os benefícios de uma políticaambiental podem se estender por cem anos oumais. Os problemas da mudança climática global ea eliminação de resíduos nucleares são bemconhecidos exemplos com horizontes de longoprazo, mas também há outros. Para algumasflorestas e os ecossistemas que contêm o corte eoutras intervenções, pode haver consequências que

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5 1 Ano 11, n. 23, nov.2010in f o rm e e c o n ôm i c o

se estendam por várias décadas, mesmo para ascontaminações químicas no uso da terra ou água.

6 ConclusãoPara os economistas, as perdas associadas ao

desequilíbrio de ecossistemas ou aodesaparecimento de apenas uma das espéciessignificam a extinção de probabilidades epossibilidades de exploração continuada dessesrecursos, ou seja, representam um evidenteprejuízo econômico. O custo ambiental torna-se,assim, indissociável do custo econômico.

Os economistas ambientais estão interessadosem poluição e outras externalidades (os efeitos dasatividades produtivas e de consumo que não serefletem diretamente no mercado), ou seja,situações onde há um papel para a intervençãogovernamental. Sem embargo, quando ocorre umaexternalidade, o custo social de produção podeexceder o benefício, abrindo caminho para que aspolíticas públicas sejam um instrumento paraalterar o comportamento dos agentes econômicos.Com efeito, nesses casos, não havendointervenção estatal, de maneira a permitir que asforças de mercado atuem sem restrições, grandessão as chances de que muitos produtosconsumidos pela população sejam originados emsistemas produtivos altamente poluentes. Ao atuarvisando resolver esses problemas, o estado poderiainduzir as pessoas de uma determinada geração ase comportar de modo a considerar a satisfação ouutilidade das gerações futuras, ao maximizar seunível de satisfação no presente.

A política ambiental tem um papel fundamentalde intervir na esfera econômica para atingirobjetivos que os agentes econômicos nãoconseguem obter atuando livremente, ou seja, tentacorrigir falhas de mercado e, assim, melhorar aeficiência econômica, promovendo a eliminação dapobreza, proteção da agricultura nacional eproteção da qualidade ambiental e evitando falhasinstitucionais de governança, como, por exemplo,políticas ambientais mal planejadas e/ou malaplicadas, subsídios e outros incentivos queresultam em uso excessivo de insumos poluentesou de recursos naturais e políticas orientadas ainteresses de grupos específicos

* Graduado em Ciências Econômicas/UFPI,mestrando em Gestão Econômica do MeioAmbiente/UnB. E-mail: [email protected].

ReferênciasJACOBS, M. The green economy: environment,sustainable development and the politics of the future.London and Massachusetts: Pluto Press, 1991.LUSTOSA, M. C. J. Industrialização, meio ambiente,inovação e competitividade. In. MAY, P. H.; LUSTOSA,M. C.; VINHA, V. (Org.). Economia do meio ambiente:teoria e prática. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.MUELLER, C. C. Manual de economia do meioambiente: economia e a questão ambiental. Brasília:UnB, 2001.NOGUEIRA, J. M.; PEREIRA, R. R. Critérios e anál iseeconômicos na escolha de políticas ambientais.Brasília: UnB, 1999.PERMAN, R. et al. Market failure and public policy. In:PERMAN, R. Natural resource and environmentaleconomics. Second edition. Essex: Longman, 1999. p.127-149.PINDYCK, R. S. Uncertatnty in enviromentaleconomics. NBER Working Paper Series, Cambridge,n. 12752, December, 2006, 30 p. Disponível em:<http://www.nber.org/papers/w12752>. Acesso em: 29jul. 2010.STIGLITZ, J. E. La economía del sector públ ico.Barcelona: Antoni Bosch, 2003.VERHOEF, E. T. Externalities. In: VAN DEN BERGH, J.C. J. M. (Ed.). Handbook of environmental andresource economics. Cheltenham: Edward Elgar,1999. p. 197-214.WITHAGEN, C.; ZEEUW, A. Imperfect competition innatural resource markets. In: VAN DEN BERGH, J. C.J. M. (Ed.). Handbook of environmental and resourceeconomics. Cheltenham: Edward Elgar, 1999. p. 59-67.ZERBE JR., R. O. The failure of market failure. ZERBEJR., R. O. (Ed.). Economic efficiency in law andeconomics. Cheltenham, Northampton: Edward Elgar,2001. p. 164-187.

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5 2in f o rm e e c o n ôm i c oAno 11, n. 23, nov. 2010

ExpedienteIN FO RM E EC ON ÔM IC OAno 11 - n. 24 - nov. 2010Reit or UFPI: Prof. Dr. Luiz de Sousa Santos JuniorDiretor CCHL: Prof. Dr. Pedro VilarinhoChefe DECO N: Prof. Ms. João Soares da Silva FilhoCoord. Curso Economia: Profª Ms. Janaina VasconcelosSit e DECO N: http://www.ufpi.br/economiaCoord. do Proje t o Info rme Eco nô mico :Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima ([email protected])Conselho Editoria l: Prof. Dr. Antonio Carlos deAndrade/UFPI, Prof. Esp.Luis Carlos Rodrigues CruzPuscas/UFPI, Profª Drª Socorro Lira/UFPI, Prof. Dr.Solimar Oliveira Lima/UFPI, Prof. doutorando SamuelCosta Filho/UFPI, Prof. Dr. Vitor de Athayde Couto/UFBA, Prof. Dr. Wilson Cano/UNICAMP,Econ. Ms. Zilneide O. Ferreira.Coord. Publica ção e Diagra maçã o:Economista Enoisa Veras ([email protected])Revisão: Economista Zilneide O. Ferreira([email protected])Projeto Gráfico: MHeNJornalista Responsável: Prof. Dr. Laerte MagalhãesEndereço para Correspondência:Universidade Federal do Piauí - CCHL - DECONCampus Ininga - Teresina-PI - CEP.: 64.049-550Fone: (86) 3215-5788/5789/5790 - Fax.: 86 3215-5697Tiragem: 2.000 exemplaresImpressão: Gráfica UFPI

Em face da entrada em vigor das novas regrasortográficas, os artigos foram revisados,respeitando-se o estilo individual da linguagemliterária dos autores (seja culto ou coloquial),conforme a 5.ª edição do Vocabulário Ortográfico daLíngua Portuguesa (VOLP, 2009), aprovado pelaAcademia Brasileira de Letras.

LANÇAMENTO DE LIVROObra: Peões, vaqueiros e cativoscampeiros - estudos sobre aeconomia pastoril no BrasilOrgs: Mário Maestri e Solimar deOliveira LimaEditora: Universidade de PassoFundo-UFFAno: 2010

Números anteriores das publicações do Curso deEconomia - Informe Econômico e Texto deDiscussão -, bem como informações sobre oreferido Curso, encontram-se no site da UFPI, napágina do DECON: www.ufpi.br/economia.

NOTAS

A economista, aluna egressa do Curso deCiências Econômicas da UFPI, e colaboradoradesta publicação, Zilneide O. Ferreira, defendeusua dissertação no Mestrado em Ciência Política/UFPI, em 18/06. A banca foi constituída pelosprofessores doutores Ricardo Alaggio Ribeiro(orientador), Raimundo B. dos Santos Júnior/UFPIe Reginaldo C.Correa de Moraes/UNICAMP. Seutrabalho, intitulado “A expansão do investimentodireto externo espanhol e seu direcionamento parao Brasil (1995-2006)”, foi aprovado com mérito elouvor.

Em agosto, outros três economistas vinculadosao Curso de Ciências Econômicas/UFPI tambémdefenderam suas dissertações no referidomestrado, nos dias 25, 26 e 27, respectivamente:Marcio Martins Napoleão Braz e Silva (professoregresso).Título: “Estado, planejamento e políticasde desenvolvimento regional no Brasil”. Banca:Prof. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro (orientador), Profª.Drª. Ana Beatriz M. dos S. Seraine/UFPI e Prof. Dr.Solimar Oliveira Lima/UFPI;Antonio Carlos Mendes da Rocha (aluno egresso).Título: A articulação entre agentes públicos eprivados para a promoção do desenvolvimentoeconômico e social em âmbito municipal - Floriano-PI. Banca: Prof. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro(orientador), Prof. Dr. Raimundo B. dos S. Júnior/UFPI e Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima/UFPI;Walber José da Silva (professor do DECON/UFPI).Título: “O federalismo brasileiro e a capacidade dosmunicípios de implantar políticas de desenvolvimen--to econômico: o caso dos municípios piauienses”.Banca: Prof. Dr. Raimundo B. dos S. Júnior(orientador), Prof. Dr. Cleber de Deus P. da Silva/UFPI e Profª. Drª. Márcia Miranda Soares/UFMG.

“O projeto propunha-se estudar o processo deintrodução, consolidação e desenvolvimento daprodução pastoril, com destaque para o gado bovino,de 1780 a 1930, no Piauí, Mato Grosso do Sul e RioGrande do Sul, três regiões do Brasil onde a produçãopastorial desempenhou papel singular e, comumente,dominante, ou seja, onde não constituiu atividadesubsidiária, determinada fortemente por outras esferasda produção. A escolha das três regiões deveu-setambém às suas diversidades bioecológica e ao fatode não haver interligação e influência direta entre asatividades criatórias das mesmas”.Trecho da apresentação da obra, por Mário Maestri,coordenador do projeto de pesquisa “A produção pastorialno Piauí, no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande doSul - de 1780 a 1930: um estudo comparado”

O Professor Doutor Solimar Oliveira Limarecebeu, no dia 23 de agosto, o Título deCidadão Teresinense, concedido pela CâmaraMunicipal de Teresina, proposto pela vereadoraRosário Bezerra. Em seu discurso, agradeceu àCâmara pelo reconhecimento de um negro quesempre lutou contra todas as discriminações epreconceitos, sejam eles de cor, credo, opçãosexual, deficiência física ou mental, entre tantasoutras lutas enfrentadas por minorias sociais.

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