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1 Ano 14, n. 30, ago. 2013 i nforme econômico econômico 3 Homenagem a Reinaldo Carcanholo Luiz Carlos Rodrigues Cruz Puscas 4 A disciplina Economia Política por Flávio Bezerra de Farias, o capitão que não abandona o barco Samuel Costa Filho 17 Falhas de mercado e regulação no saneamento básico José Lourenço Candido 21 Política monetária brasileira no período de 2005 a 2012: uma aplicação da regra de Taylor Marcius Medson Campelo de Sousa e Edivane Lima 28 O governo e o sistema financeiro imobiliário Giovanni D. Montagnana 35 Movimento quilombola do Piauí: participação e organização para além da terra Daniely Monteiro Santos e Solimar Oliveira Lima 42 Política de garantia de preços mínimos para a cera de carnaúba: comparação entre preços mínimos e preços de mercado das safras de 2003/2004 - 2011/2012 Vera Lúcia dos Santos Costa, Taffarel Francisco Oliveira Soares e Jaíra Maria Alcobaça Gomes 50 O Piauí na rota do comércio internacional: a presença dos comerciantes franceses no sertão oitocentista Junia Motta Antonaccio Napoleão do Rego 58 Economia e hedonismo José João Neves Barbosa Vicente 62 Lideranças feministas e formulação de políticas públicas Francineide Pires Pereira e Lila Cristina Xavier Luz 71 Cãs na sala de aula: a velhice é tema acadêmico Francisco de Oliveira Barros Júnior e Antônio de Pádua Betencourt Silva 78 Resenha: um pouco do legado das formulações de Clausewitz sobre a guerra e a política Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos ISSN 1517-6258 Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 14, n. 30 ago. 2013 i nforme editorial As ruas do Brasil movimentaram também a academia. Nossas alunas e alunos estavam lá, portando faixas e cartazes, gritando por mudanças para o País e suas vidas. Alguns docentes também, embora a grande maioria tenha optado por analisar o recente fenômeno social entre corredores, salas de aula e redes sociais. Independentemente dos interesses e rumos das manifestações, a dinâmica social pareceu empurrar a academia para mais próximo da mobilidade, como ela deveria ser: um espaço em movimento. As ruas refletiram as aprendizagens da sociedade, muitas delas oriundas das vivências frente aos precários serviços públicos. As ruas indicam que esperam maior responsabilidade da academia para a compreensão da realidade e orientação das leituras e reflexões sobre essa realidade. Fiéis à pluralidade de ideias, apresentamos mais um número do Informe Econômico e abrimos a edição com uma homenagem a um grande economista, defensor intransigente do compromisso social da universidade publica: professor Reinaldo Carcanholo. Boa leitura! Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima Editor-Chefe

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1 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

econômico3 Homenagem a Reinaldo CarcanholoLuiz Carlos Rodrigues Cruz Puscas

4 A disciplina Economia Política por Flávio Bezerra de Farias, o capitão que nãoabandona o barcoSamuel Costa Filho

17 Falhas de mercado e regulação no saneamento básicoJosé Lourenço Candido

21 Política monetária brasileira no período de 2005 a 2012: uma aplicação da regra deTaylorMarcius Medson Campelo de Sousa e Edivane Lima

28 O governo e o sistema financeiro imobiliárioGiovanni D. Montagnana

35 Movimento quilombola do Piauí: participação e organização para além da terraDaniely Monteiro Santos e Solimar Oliveira Lima

42 Política de garantia de preços mínimos para a cera de carnaúba: comparação entrepreços mínimos e preços de mercado das safras de 2003/2004 - 2011/2012Vera Lúcia dos Santos Costa, Taffarel Francisco Oliveira Soares e Jaíra Maria Alcobaça Gomes

50 O Piauí na rota do comércio internacional: a presença dos comerciantes francesesno sertão oitocentistaJunia Motta Antonaccio Napoleão do Rego

58Economia e hedonismoJosé João Neves Barbosa Vicente

62 Lideranças feministas e formulação de políticas públicasFrancineide Pires Pereira e Lila Cristina Xavier Luz

71 Cãs na sala de aula: a velhice é tema acadêmicoFrancisco de Oliveira Barros Júnior e Antônio de Pádua Betencourt Silva

78 Resenha: um pouco do legado das formulações de Clausewitz sobre a guerra e apolít icaRodrigo Duarte Fernandes dos Passos

ISSN 1517-6258

Publicação do Curso de Ciências Econômicas/UFPI Ano 14, n. 30 ago. 2013

informe

editorialAs ruas do Brasil movimentaram também a academia. Nossas alunas e alunos estavam lá,

portando faixas e cartazes, gritando por mudanças para o País e suas vidas. Alguns docentestambém, embora a grande maioria tenha optado por analisar o recente fenômeno social entrecorredores, salas de aula e redes sociais. Independentemente dos interesses e rumos dasmanifestações, a dinâmica social pareceu empurrar a academia para mais próximo da mobilidade,como ela deveria ser: um espaço em movimento.

As ruas refletiram as aprendizagens da sociedade, muitas delas oriundas das vivências frente aosprecários serviços públicos. As ruas indicam que esperam maior responsabilidade da academia paraa compreensão da realidade e orientação das leituras e reflexões sobre essa realidade.

Fiéis à pluralidade de ideias, apresentamos mais um número do Informe Econômico e abrimos aedição com uma homenagem a um grande economista, defensor intransigente do compromissosocial da universidade publica: professor Reinaldo Carcanholo. Boa leitura!

Prof. Dr. Solimar Oliveira LimaEditor-Chefe

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2informe econômicoAno 14, n. 30, ago. 2013

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3 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

Conhecemos Reinaldo Carcanholo em 1982,ainda em Campina Grande (PB), quando eleretornava do exílio. Exílio? Isso mesmo. Comoaluno do curso de economia da Universidade deSão Paulo (USP) e membro do Centro Acadêmico,durante a ditadura militar, Reinaldo foi forçado a seexilar no Chile, de Salvador Allende. No exílio,nasceu seu primeiro filho, o economista MarceloCarcanholo, professor da Universidade FederalFluminense. Lá no Chile foi que concluiu o curso deeconomia e começou a participar de um movimentopara mudança do currículo dos cursos de economiadaquele país. Posteriormente, teve que sair doChile - com o golpe militar - e buscou exílio naCosta Rica, onde cursou o mestrado. Seudoutorado em economia, ele cursou naUniversidade Autônoma do México, tendo comoorientador Ruy Mauro Marini. Carcanholo viveu naCosta Rica (1974-1977), no México (1978) e emHonduras (1979-1982), sempre aliando suaatividade acadêmica à sua militância políticarevolucionária.

Em Campina Grande, Carcanholo foi professorde alguns dos professores do Departamento deCiências Econômicas da Universidade Federal doPiauí, Socorro Lira, Jaíra Gomes e Márcio Braz.Ele também participou da banca em que SolimarLima foi aprovado para professor do curso deeconomia desta institução. Aliás, ele considerou amelhor aula que até então tinha assistido em umabanca de concurso para professor.

Reinaldo Carcanholo, além de ser um excelenteprofissional na área de ciências econômicas, e deforma particular da economia política, era umparticipante efetivo de todos os movimentos. Foiele, com um grupo de colegas, quem fundou aAssociação Nacional dos Cursos de Graduação emEconomia (Ange), em 1985, buscando areformulação dos currículos de economia; ocasiãoem que fui seu companheiro na diretoria daentidade. Em 1996, ele fundou a SociedadeBrasileira de Economia Política (SEP), no Rio deJaneiro. Em 2005, fundou a Sociedade Latino-Americana de Economia Política e PensamentoCrítico (Sepla), com sede na Cidade do México, daqual era vice-presidente.

Nossa aproximação com Reinaldo Carcanholodeu-se, de fato, em dezembro de 1984, a partir do

movimento de criação da Ange. Carcanholo era umdefensor intransigente de um curso de economiaque tivesse em sua matriz curricular um caráter depluralidade e que procurasse dar uma formaçãoética e crítica a seus alunos.

A partir daí, podemos dizer que Carcanholotornou-se grande amigo do Curso de CiênciasEconômicas, da UFPI. Ele sempre esteve dispostoa participar dos congressos estudantis realizadosaqui, como o Encontro Nacional de Estudantes deEconomia (Eneco), em 1985 - um dos maisimportantes eventos dos estudantes de economia -,que cobrava uma mudança radical no ensino deeconomia do País, através da famosa “Carta deTeresina”. Como disse um ex-aluno de nossoCurso: “nunca participei de um evento de Economiaem que Carcanholo não estivesse presente eparticipando ativamente.”

Em junho de 2002 - outra das inúmeras vezesem que ele esteve conosco -, o Decon/UFPIpublicou um “Texto de Discussão” de ReinaldoCarcanholo em coautoria com o amigo inseparávelPaulo Nakatani - “O capital especulativo parasitário:uma precisão teórica sobre o capital financeiro,característico da globalização” -, no qual, baseadosem categorias econômicas marxistas, jácolocavam claramente a insustentabilidade da novaordem econômica mundial sustentada pelasconcepções neoliberais.

Durante o XIX Congresso da Ange, realizado emTeresina, em 2004, Carcanholo foi homenageadopelos relevantes serviços prestados ao ensino deeconomia; homenagem que recebeu juntamentecom os professores Chico de Oliveira e PedroMansur (in memorian).

Por tudo que ele fez pelo ensino de qualidadede economia em nosso país, pelo muito que elecontribuiu para o enriquecimento de nosso curso deeconomia na UFPI, sua partida, ocorrida no dia 30de maio do corrente ano, nos deixa saudades, masnunca esquecimento pela sua obra e pela sua açãoem busca de um mundo melhor.

Poucas pessoas tivemos a oportunidade deconhecer que possuísse a doçura, a competência ea firmeza de princípios como você, nosso queridoamigo Reinaldo Carcanholo.

HOMENAGEMPor Luiz Carlos Rodrigues Cruz Puscas*

*Professor do Decon/UFPI.

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A DISCIPLINA ECONOMIAPOLÍTICA POR FLÁVIO BEZERRADE FARIAS, O CAPITÃO QUE NÃOABANDONA O BARCO Por Samuel Costa Filho*

1 Introdução

O domínio avassalador das ideias e abordagenspós-modernas formou um contexto pós-marxistaque produziu novos valores e chegou ao ponto defazer com que os partidos socialistas,principalmente na União Europeia, aplicassem aspolíticas neoliberais - um processo dedemonização da classe trabalhadora e construçãodo pensamento único. Na área acadêmica, algunscientistas mudaram de posições, passando arealizar abordagem reformista, abandonando oanterior método marxista. Adotar e permanecer fielao método de Marx foi uma tarefa realizada porpoucos intelectuais da esquerda; o revisionismodominou; apareceram as novas leituras críticas deO Capital; novas abordagens dos que semprefaziam críticas de senso comum, acenando parao processo de superação do métodomarxista - diversas explicações, comentários ecríticas historicistas respaldadas na velhaabordagem da tradição estruturalista que se apegaa superficialidades. A reivindicação de supostaultrapassagem antológica e epistemológica exigiaintroduzir novas hipóteses e novas abstrações queultrapassassem o que Marx elaborou emO Capital.

Resumo: o presente artigo objetiva mostrar como se desenvolveu a disciplina Economia Política do curso depós-graduação em Políticas Públicas na Universidade Federal do Maranhão, ministrada pelo professor FlavioBezerra de Farias. Destarte, o artigo aborda a gênese, o desenvolvimento das ciências econômicas oueconomia política e a atualidade da formação social do capital. Na sequência, discorre sobre o método daobra “O Capital” (de Karl Marx), o estado capitalista contemporâneo, o processo de crise, bem como sobre acrise do capitalismo global como oportunidade histórica.Palavras-chave: Economia política. Marxismo. Estado capitalista. Crise.

Abstract: this article aims to show how it developed the Political Economy discipline of post-graduate coursein Public Policy at the Universidade Federal do Maranhão ministered by the teacher Flavio Bezerra de Farias.Thus, the paper discusses the genesis, the development of economic sciences or political economy and theactuality of capital social formation. Following, discusses the method of “The Capital” (Karl Marx), thecontemporary capitalist state, the process of crisis and also on the crisis of global capitalism as a historicopportunity.Keywords: Political Economy. Marxism. Capitalist State. Crisis.

O objetivo desse artigo, portanto, é mostrarcomo foi desenvolvido o Curso de EconomiaPolítica ministrado pelo professor Flávio Bezerra deFarias, cujas publicações representam um trabalhoque não somente apresenta o quadro geral e osignificado das diferentes escolas que compõema economia política, como aborda a questão docapitalismo, do Estado, a questão histórica e a lutarevolucionária que continua de suma importâncianessa fase da sociedade, na qual o capital temaprofundado o processo de degradação do serhumano e da natureza.

Inicialmente, seguindo a metodologia dadisciplina, a seção seguinte aborda a gênese, odesenvolvimento das Ciências Econômicas ouEconomia Política e a atualidade da formaçãosocial do capital. Na sequência, discorre sobre ométodo da obra O Capital, o estado capitalistacontemporâneo, o processo de crise, bem comosobre a crise do capitalismo global comooportunidade histórica.

2 A evolução da economia vulgar para aciência econômica vulgar

O ensino da teoria econômica tem sidorealizado conforme dois modelos diferentes: Hard

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Science e Soft Science. O Hard Science leva oestudante a aprender e a se familiarizar com oestágio e as últimas teorias da economia, nadenominada fronteira do conhecimento dessadisciplina, pressuposto segundo o qual ocorre umasuperação positiva nas controvérsias que existementre as diferentes escolas, com a ideia científicavencedora sendo incorporada ao estado atual daarte nas ciências econômicas - modelo típico doensino da economia no mundo anglo-saxão. Oestudo da história do pensamento econômicodesmascara esta visão defendida pela HardScience. Os cânones da superação positiva nãosão validados na área das ciências sociais. Oestudo do ser da natureza é diferente do estudodo ser social, e inexistem regras de validaçãoconsensuais que resolvam as controvérsias nocampo do estudo da Economia. Desse modo,faz-se necessário estudar e utilizar uma abordagemSoft Science. Assim, a dialética, como o métodode tese e antítese, que acaba fazendo ainda umasíntese, pertence à abordagem Soft Science, pelaqual os estudantes devem dominar os autoresclássicos da economia (Smith, Marx, Keynes etc.),estudar a história econômica, a história dopensamento econômico e a teoria econômica atual.Um economista deve dominar tanto as ciênciaseconômicas como a economia política (ARIDA,1996).

Acontece que uma abordagem das ciênciaseconômicas (em sentido amplo) pode ser explicadade outra maneira: a ciência econômica quecompreende a economia política (em um sentidoestrito - vulgar e clássica); a crítica à economiapolítica; e a análise econômica (marginalista ekeynesiana) (FARIAS, 2011).

A economia política divide-se em economiapolítica burguesa vulgar e economia políticaclássica; a vulgar percebe apenas as formasimediatas, superficiais, o mundo da aparência seconformando com o mundo imediato. Um expoentedesta corrente é Jean-Baptiste Say; já a economiapolítica clássica passou a fazer ciência.Os clássicos tinham uma visão de mundocomprometida com os ideais da burguesia,considerando o capitalismo como o melhor sistemapossível, a melhor forma de atender ao social,sendo, portanto, uma análise apaixonada eapologética. David Ricardo é o maior doseconomistas clássicos, que construiu umparadigma baseado no equilíbrio econômico nofuncionamento do capitalismo; uma abordagem que

penetra no conjunto real e íntimo das relações deprodução da sociedade capitalista em um nívelmuito superior aos economistas vulgares, masservindo também para o uso e a defesa daburguesia, da sociedade capitalista que estava seformando (FARIAS, 2011).

A crítica da economia política de Marxrepresenta uma análise científica em que aparecea essência contraditória do sistema capitalista (cf.FARIAS, 2011). Marx descobriu as leis econômicasdo movimento da sociedade capitalista, revelandoas relações que existem entre economia, política eluta de classes; explicando como se deu aformação, o desenvolvimento e a expansão dessemodo de produção, que representa o modo dedominação da burguesia sobre o proletariado. Marxconstruiu o paradigma da dinâmica contraditória naabordagem do modo de produção capitalista; e foiem sua obra que o capital apareceu comototalidade concreta e exprimindo um processodialético e histórico. Marx apreendeu o movimentoda totalidade da formação socioeconômicacapitalista a partir do método do concreto pensado,de uma maneira progressiva e, posteriormente,avançando para tratar dos elementos maiscomplexos e decisivos. Ele usou o processoanalítico abstrato para desvendar a essência ocultaatravés das diferentes mediações das relaçõessociais e da construção de fetichismos.

Essa abordagem da sociedade capitalistaemprega um método que vai do simples aocomplexo, do abstrato ao concreto no estudo datotalidade concreta da economia capitalista. Marxempregou usa o movimento de concretizaçãoprogressiva em um processo em movimento, emmutação, que revela as contradições das relaçõesda formação capitalista, mostrando que ocapitalismo tem vida, isto é, ocorre uma gênese,desenvolve-se e no futuro terá uma morte. É umaformação econômica historicamente determinadaque revela como contradição fundamental o caráterprivado da propriedade e seu caráter social naprodução, ou seja, a contradição entre burguesia eproletariado, que mostra o processo e a anarquiada produção (FARIAS, 1983a).

A ciência econômica assentada na análiseeconômica surgiu nas três últimas décadas doséculo XIX, via Escola Marginalista (análisesuperficial, subjetiva, com base no utilitarismoe que investiga o valor de troca abusando damatemática e se autodenominando economia pura,que provocou o retorno do domínio do paradigma do

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equilíbrio geral na agora denominada CiênciaEconômica, e somente encontrou uma oposição asuas ideias liberais nos anos 1930, quando surgiua escola reformista keynesiana, que construiu odomínio do paradigma da instabilidade - uma opçãoreformista em oposição à opção revolucionária domarxismo (FARIAS, 2011). A revolução keynesianaapareceu defendendo a intervenção do Estado parasalvar o capitalismo da crise, promover a paz sociale atuar em favor e na defesa de uma economiamonetária capitalista, com políticas reformistas,críticas à visão conservadora, já que acenava compolíticas de atendimento ao social, respaldando aformação do Estado do Bem-Estar Social pelavisão de mundo burguês educado.

A economia política que nasceu vulgar era umatécnica que observava os fatos que seapresentavam na superfície da sociedadecapitalista, de uma forma isolada, unilateral ouparticular; e que não conseguiu compreender einterpretar a nova realidade que se manifestavaatravés das coisas (sociedade que começavaa ser comandada pelo capital); e apresenta emsuas análises as leis e as coisas como eternase naturais. Era um estudo do empirismo e de umpositivismo das aparências, usando uma lógicaformal semelhante à aplicada na mecânica, comose o estudo do ser social pudesse ser realizado àsemelhança do que ocorre com o estudo da físicaou da biologia. Hoje, segundo Mészáros (2008),verifica-se o retorno e predomínio do discursovulgar liberal conservador nas diferentes escolasliberais americanas. A ciência social objetiva eimparcial pós-moderna levou ao desuso de termoscomo burguesia, proletariado, capitalismo, tudo setornou motivo para ser acusado de obsolescênciae análise tendenciosa.

Uma abordagem aprioristicamenteautocontraditória, contra-empírica e gritantementeideológica pode ser apresentada comoparadigma da metodologia isenta depressuposições, fundamentada empiricamente,rigorosa, cientifica - como a própria objetividadenão partidária (MÉSZÁROS, 2008, p.91).

A economia ortodoxa da atualidade retornou aoestudo de uma economia vulgar, especializando-seem elevado grau na construção ilusória docapitalismo financeiro global. Em uma pressupostadefesa científica de políticas liberais, estaabordagem foi realizada pelos novos economistasvulgares, por diferentes correntes, nas maisdiversas universidades norte-americanas,constituindo-se num verdadeiro contra-ataqueneoliberal que combatia as ações reformistas do

Estado do bem-estar social, apresentando umafalsa disputa do mercado contra o Estado, comuma abordagem de teoria liberal extremadaprocurando desmantelar o Estado providência,com o discurso da eficiência privada versusineficiência pública, sem a mínima compreensão deque o Estado e o capital fazem parte de um todoorgânico. Esses analistas positivistas vulgaresapresentam distintas versões de atuação doEstado: uma em que aparece o Estado queatrapalha o sistema capitalista; outra em que oEstado combate as crises; e outra ainda em quea intervenção do Estado foi a criadora do Estadodo bem-estar social.

O domínio desses novos economistas vulgaresiniciou nos anos 1960. Os monetaristas da Escolade Chicago, capitaneados pelo prêmio Nobel MiltonFriedman, realizaram uma forte critica à política deativismo do Estado. Pouco tempo depois apareceua Teoria da Escolha Pública, comandada por JamesBuchaman, que, em 1962, apresentou o Estadoleviatã e defendeu o Estado mínimo, mostrando asfalhas do Estado, devido à política de troca levar osindivíduos a buscar rent seeking, ou seja, a setornar caçadores de renda de monopólio no setorpúblico. Nos anos 1970, surgiu a Teoria daRegulação, que defendia a tese de que os órgãosreguladores priorizavam não os interesses dapopulação, mas das empresas que teriam o deverde regular, sendo as agências reguladorasfacilmente capturadas pelas empresas privadas asquais deveriam fiscalizar. Finalmente, ainda naqueladécada, surgiu a Teoria Novo-Clássica, do prêmioNobel de 1995, Robert Lucas, e do Nobel de 2011,Thomas Sargent. Todas essas escolas, conformeNassif (2007), eram ramos da teoria neoclássicae serviam para justificar cientificamente oneoimperialismo financeiro; formaram o contextoque impôs as políticas neoliberais de ajustemacroeconômico e a reforma do Estado como asúnicas medidas corretas para os países da periferiado capitalismo. Nesse contexto, os bancostornaram-se os maiores empregadores deeconomistas e começaram a dominar o discursoeconômico, com a formação de departamentoseconômicos, procurando influir nos rumos dodebate econômico diário, onde seus economistas,especialistas da economia vulgar, somentecompreendiam e elaboravam o tipo de análiserequerida pelo setor financeiro e pela sua visão domundo capitalista.

Os cursos de economia abandonaram as

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análises críticas dos problemas econômicos,sociais e políticos e passaram a formareconomistas vulgares especializados, que somenteobjetivavam melhorar a qualidade do processo detomada de decisão financeira - trata-se dosfamosos consultores ou analistas econômicosespecializados em: operar metas cambiais;elaborar projetos de viabilidade econômica; analisarliquidez para concessão de crédito em todos osperfis de bancos; e montar estratégias de aplicaçãofinanceira para pequenos investidores.

No mundo da vulgaridade predominavam asmedidas de política econômica da ciênciaeconômica vulgar, que passou a recomendar(OLIVEIRA, 2009): liberalização:desregulamentação dos mercados de trabalho efinanceiro; privatização: das empresas do Estadoe de serviços públicos; políticas sociaisfocalizadas: mudança das abrangências eoperação das políticas sociais; e práticas deatuação antiestatal: restringir as escolhas dogoverno em políticas de desenvolvimento.

Nesse cenário de desenvolvimento da ciênciaeconômica ou economia política, é fácil verificarque uma definição de economia política não pareceser consensual; são diversas as definições.Entretanto, a economia política jamais poderá serneutra e ficar indiferente às lutas de classehistoricamente determinadas. Essa é uma questãoque a ortodoxia sempre procurou esconder.Todavia, a abordagem crítica da economia clássicade Marx contém o método correto para a análiseconcreta das leis econômicas históricas e paradescobrir a raiz do problema do capitalismo; serveainda para levar à luta por uma utopia concreta, ouseja, por uma formação econômico-social quesupere o capitalismo: o comunismo. Desse modo,parece claro que não existe uma definição válidapara todos os tempos e lugares.

A posição crítica e revolucionária afirma que aeconomia política é uma ciência que apresenta aessência das leis do modo de produção capitalista.Como a economia política nasceu vulgar, com umatécnica que observava os fatos que seapresentavam na superfície da sociedadecapitalista, de uma forma isolada, unilateral ouparticular, não conseguiu compreender e interpretaressa realidade que se manifestava através dascoisas; apresentava suas análises como coisaseternas e naturais, com um estudo do empirismo ede um positivismo das aparências, que domina aanálise vulgar neoliberal.

Em Marx, a economia política é historicamentedeterminada pela necessidade social damercadoria. Necessidade social que já foi atendidapor outras formações sociais. Uma formação socialé um fenômeno em movimento, que tem vida, sedesenvolve e um dia morrerá. Marx realizou umaanálise concreta de um fenômeno historicamentedeterminado que existia independentemente dapercepção que os indivíduos tinham dessefenômeno; uma análise concreta de uma situaçãoconcreta; e mostrou que o ser social não tem apropriedade de revelar claramente e dizer o que elerepresenta, o que ele é, de uma forma imediata eque, na ciência, o método dialético histórico podelevar à compreensão do modo de produçãocapitalista.

3 A crítica da economia política: “O capital”

Os livros de Marx (1980) - “O capital” -apresentam análises críticas das abordagens quefaziam uma apologia ao modo de produçãocapitalista. Marx também era crítico das visões desocialismo utópico (Proudhon), da análisepositivista da economia política inglesa (Ricardo)e da filosofia do idealismo abstrato e totalizante(Hegel). Ele procurou realizar uma análise dasrelações sociais que surgem sob a forma de coisase mostrar que o capital é uma relação social deprodução. Conforme costa (2000), Marx usousimultaneamente a dialética, o materialismo e acrítica evolucionária desse modo de produção paramostrar como ele é histórico e transitório. Marxutilizou um quadro que deu primazia ao ser sociale distinguiu as formas aparentes das formasfundamentais. É famosa a sua afirmação de quese a aparência e a essência das coisas fossemconfundidas, toda ciência seria supérflua. Assim, ométodo marxiano parte dos fenômenos superficiais,das formas fenomenais na busca da essência, doser, da estrutura interna, e descobre a lei dosfenômenos que governam o mundo capitalista.

Entretanto, Marx buscava mais do que descobriro núcleo; buscava revelar a consciência docomportamento do modo de produção capitalista;comportamento que ele procurava compreenderpara influir na luta de classes e na superação docapitalismo. Marx (1980) mostrou que,diferentemente das abordagens positivistas, ocapital não é um simples objeto, um instrumento,uma máquina ou um equipamento que pertence aocapitalista. O capital significa uma relação socialespecífica de produção, uma fase da história da

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humanidade. Nos livros I e II, ele estuda o capitalem geral, mostrando como os capitalistasdominam e exploram os operários assalariados(individual e no seu conjunto), na busca daextração das mais-valias absoluta e relativa.Assim, o capitalismo é um modo de produção quecontinua o processo de exploração e dominaçãode uma classe (os capitalistas) sobre as outras(os operários), ou seja, a história da humanidadecontinua na linha da história da exploração dohomem pelo homem. Ocorre que somente atravésde análises científicas e críticas pode-secompreender e desvendar esse processo deexploração e dominação do capitalismo queencontra suporte e apoio do Estado liberal.Desse modo, Marx mostra a função da luta declasse como o motor da história; e, no capitalismo,é a classe do proletariado que é o sujeitorevolucionário.

A partir de uma abordagem marxista, pode-seapreender os aspectos quantitativos e qualitativosdo valor e, portanto, da mais-valia como formassociais e históricas de exploração, que estão nofundamento da dominação burguesa. A partirdesta base racional, é possível evitar dois novosfetichismos, não caindo nem na reificaçãoconcernente aos cognitivos inerentes à revoluçãocientífica e tecnológica, nem na mistificaçãoconcernente às inovações financeiras próprias àrevolução que estabeleceu a hegemonia dos quepersonificam os capitais portadores de juros(FARIAS, 2003, p. 153).

No livro II, Marx (1980) estuda o processo decirculação do capital, apresenta o capital-dinheiro,o capital produtivo, o capital mercadoria, a rotaçãodo capital e o processo de reprodução do capitalsocial; e mostra como o capital é uma totalidaderelativa para a realização da mais-valia.Marx realiza uma análise dos numerosos capitaisem concorrência e a função do crédito para fazeruma análise completa da totalidade, apresentandodeterminações mais complexas e mais concretasaté chegar à explicação do capital em geral; capitaleste que apresenta crises e, neste contexto, éonde aparece a explicação da queda da taxa médiade lucros como uma causa de crise do capitalismo.Todavia, o mesmo Marx, em seguida, apresenta assoluções que o sistema emprega e que levam auma desvalorização do capital e força a umarecomposição da superpopulação relativa paraaumentar o grau de exploração da força de trabalhoe como o capitalismo continua sua dinâmica deexploração.

O capitalismo é constituído pelos processos deprodução e de circulação de mercadoria, em umconjunto que altera fases de expansão com fases

de contração da atividade econômica, próprias danatureza do capital, levando ao aparecimento decrises (questão que não foi totalmente desenvolvidapor Marx, embora apareça em diversas passagensnos livros O Capital, dando margem às maisdiversas interpretações).

O processo de gênese, desenvolvimento,movimento do capital e vigência do capitalismo nãopodem se desenvolver sem a presença de umEstado. Assim, a relação capital e Estado estáentrelaçada no desenvolvimento do capital socialtotal, com a Forma-Estado sendo um ser social,concreto, complexo e contraditório, fornecendo ascondições prévias e as novas funções de quenecessita o capital. O Estado planejadorkeynesiano representa apenas uma propostareformista para que o sistema capitalista continueexistindo.

Marx, na sua economia política, demonstracomo o Estado que emerge das relações deprodução é diferente do Estado apresentado porHegel, para quem a mente humana (algum ideal,um conjunto das vontades humanas) criou oEstado. Para Marx, em condição normal, o Estadoé a expressão política de dominação, é uminstrumento essencial de dominação da classecapitalista, tendo os capitalistas e o Estadovínculos de classe. Embora não desenvolva umateoria do Estado, a economia política de Marx nãoignora a necessidade, a importância e o papel doEstado no sistema capitalista. Farias (notas deaula)1 ressaltou que apenas ou simplesmente Marxabstraiu o Estado. Não que não soubesse e nãofizesse parte dos seus planos tratar do Estado,pois ele tinha plena clareza do papel e dosignificado deste no modo de produção capitalista.

Viotti (1986, p. 96), ao tratar do Estado, concluique,

Na economia clássica, a restrição do papel doEstado teve a função de limitar o poder dasclasses ainda dominantes não identificadasinteiramente com os interesses da acumulaçãode capitais. Já na economia neoclássica, estandoo poder nas mãos da burguesia, o liberalismorepresentou um escudo ideológico contra aspressões dos trabalhadores por melhorescondições de vida. No entanto, só na economiakeynesiana, quando a crise dos anos trinta exigeaintrodução explícita do Estado, tanto na economiaquanto no pensamento que a interprete, é que setorna mais fácil a compreensão do verdadeirosignificado que o Estado capitalista sempre teve:a preservação e estímulo da acumulação decapital.

No estudo do capital, Marx iniciou do simples(abstrato) para o mais complexo. O capital comototalidade em movimento é um todo complementar

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onde os capitalistas exploram os trabalhadores.No capitalismo ocorre também uma luta deconcorrência intercapitalista. Nessa exploração dosoperários e nas formas de luta entre os capitais, asdiversas frações de complexidade do capital(bancário, comercial, agrícola, industrial)apresentam uma realidade que necessita pressupora existência de um Estado.

No livro I, a categoria do Estado foi abstraída,mas o papel do Estado se fazia necessário(FARIAS, 2011): (a) porque o capitalismo foigestado em um processo de acumulação primitiva(uso da força e da violência do Estado) para darmargem ao surgimento do capital; (b) na relaçãomercantil entre dois indivíduos, ou seja, na troca.Aqui o Estado é o elemento que mantém acondição prévia de garantir a relação de troca comigualdade, liberdade, e é o encarregado de emitir amoeda, o equivalente geral; e (c) na relação docapitalista com os operários, criando as leis e asnormas e atuando sobre a regulação das atividadesdos sindicatos. O Estado é o principal mediadordas contradições entre o capital e o trabalho.

No livro II, também é fundamental a suposiçãode que existe um Estado no sistema capitalista:(a) no processo de circulação do capital, no qualocorrem entrelaçamento de ciclo, divisão dotrabalho entre capitalistas, articulação complexada totalização dos círculos do capital onde oEstado determina as regras dos negócios nocapitalismo, além da infraestrutura (energia,estradas, portos, comunicação), que também ficaa cargo do Estado; (b) na rotatividade do capital(as máquinas e os equipamentos), com o Estadorealizando investimentos de elevados volumes erentabilidade pequena, desempenhando o papel deEstado capitalista, com suas empresas estatais;(c) no desenvolvimento da política científica etecnológica, que desenvolve a tecnologia de apoioao capital fixo e estimula o capital circulante,influindo com sua ação para controlar o ritmo dascrises ou equacionar problemas; (d) o Estadopermite o aumento da rotatividade do capital viasua intervenção; (e) o Estado planificador direcionae estabelece as prioridades, tem papel paraimpulsionar um desenvolvimento mais equilibradodo capital; e (f) apresenta ainda o papel demediador nas contradições que são próprias dasrelações e da competição intercapitalistas.

O Estado foi evoluindo e esse processo ocorreudesenvolvendo e consolidando a forma de Estadocapitalista - uma instituição socialmente

necessária e de controle dos conflitos sociais entreos diferentes interesses econômicos (mediador dosconflitos). Em Marx, não é o Estado que molda asociedade, mas a sociedade que molda o seuEstado. Dado que no capitalismo o Estado surgeda contradição entre os interesses comum detodos os indivíduos e representa o braço repressivoda burguesia, constitui-se elemento socialdominado pela burguesia e mediador dascontradições, agindo no interesse da burguesia.Não é sem razão que Lenin (apud FARIAS, 2011)disse ser a função primordial do Estado burguêsa legitimação do poder, legalização e perpetuaçãoda dominação capitalista. É a repressão parareforçar a reprodução da estrutura e das relaçõesde classe do sistema capitalista, mas que assumea forma democrática como meio para oferecer ailusão, o fetiche da participação da população, dasmassas no Estado.

4 O estado capitalista contemporâneo

Marx (1980) desenvolveu uma análise do Estadoe da sociedade civil que é produto das relações deprodução que estabelecem os homens entre si,fundamentando uma estrutura econômica socialreal (base) que deu margem ao surgimento de umasuperestrutura jurídica e política. Dadas ascondições de produção historicamentedeterminadas, a consciência do homem passou aser fruto da maneira de viver humana. Assim, é omodo de fazer a vida que determina a consciênciahumana e não a consciência humana quedetermina as condições de vida material e daexistência humana. O Estado aparece como órgãode classe; órgão que possibilita à classedominante manter o seu domínio em umasociedade formada e dominada pelasdesigualdades entre proprietários e nãoproprietários. O Estado mantém unida umasociedade de desiguais, devido à sua pronta eeficiente ação; e é um instrumento de coerção emfavor de uma classe, não existindo nem Estadobom nem Estado mau, pois o Estado perpetua asociedade dividida em classes; é um órgão queatua para resolver controvérsias, mediando aresolução de controvérsias.

Marx (2005) contesta a obra de Hegel por elenão enxergar a realidade, não entender a diferençaentre a monarquia e o Estado moderno,apresentando ainda uma visão distorcida doEstado, de que este representa e visa ao bemcomum. Marx mostra que o Estado é apenas o

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10informe econômicoAno 14, n. 30, ago. 2013

reflexo das relações sociais determinadas pelabase econômica da sociedade; assim, passa adefender a democracia como forma de participaçãoda coletividade no Estado, criticando a formamonárquica hegeliana, o voto indireto, por se revelaruma espécie particular de governar das classesdominantes. Ocorre que as visões do Estadosuperficial, isolado e abstrato são as que dominama consciência dos homens, ou seja, a visãoformalista, que apresenta um Estado que promovejustiça, bem comum e paz; a dimensão jurídica(normas e ordenamento) e regulacionista(instrumento de capital), que são abordagens deEstado instrumentalista, funcionalista ou atépositivista que predominam no cotidiano.

Farias vem ao longo de mais de 30 anosestudando a problemática do Estado nocapitalismo. No livro “O estado capitalistacontemporâneo”, Farias (2000) realizou um estudodo Estado que aparece como ser social e históricocontemporâneo, que apresenta uma naturezasocial, concreta, complexa e contraditória. Elebusca estabelecer rigorosamente a dialética doEstado burguês partindo e retomando os pontosessenciais e fundamentais do método de Marxdesenvolvido na sua crítica da economia política.Assim, a questão do Estado no método marxianodeve estudar, compreender e tratar das questõesda aparência, genealogia, fetichismo, silogismo,teleologia, em um processo de elaboração críticacontra as visões regulacionistas.

Segundo Farias (2000), há a Forma-Estado(generalidade, abstração de aspectos gerais dofenômeno estatal no capitalismo); a Forma deEstado (particularidade: um Estado capitalistaparticular) e a Forma do Estado (singularidade:Estado capitalista particular de um país). No modode produção e na formação sócio-econômicacapitalista, o Estado é uma forma social que sofrevariações temporais e espaciais; o Estado comototalidade e universalidade é um silogismo.

Na estrutura do Estado, o governo não deve serconfundido com o Estado, com o regime político.O fetichismo do Estado é a apresentação daobjetividade sob a forma de máquina burocrática eadministrativa e sua subjetividade sob a forma dedemocracia formal e da ideologia burguesacorrespondente. Predomina uma reificação(coisificação) onde a falsa aparência do Estadoaparece como tarefa de representar o interessegeral, embora trabalhe a correlação de forçasburguesas e organize a sociedade, promovendo a

paz social em favor do capital.A genealogia do Estado mostra que no

Renascimento ocorreu a gênese da sociedadeburguesa moderna e como neste contexto se deuo desdobramento desta sociedade civil e do Estadoabsolutista em Estado burguês. Hegelcompreendeu que o Estado seria o elementodeterminante da sociedade civil com um todo.O Estado seria o Deus aqui na terra. A sociedadecivil seria determinada pelo Estado, com uma visãoidealista do Estado (MARX, 2005).

Marx (2005) contesta a tese de Hegel eapresenta a tese da primazia da base no curso daevolução da história. A formação social e históricachamada capitalismo apresenta umdesenvolvimento contraditório. Marx estuda aontologia do ser social, as totalidades concretas,as contradições e as oposições de classes queexistem no sistema, as formas de aparência eresolução via mediações, as tendências e leisgerais.

Conforme Farias (2001a), o Estado, na épocada mundialização do capital, deu margem aHabermas defender a tese de que no capitalismorecente a política reformista transformou ocapitalismo e levou a uma pacificação do conflitode classe, devido ao surgimento de umintermediário, que é o novo Estado social, o qualsuperou a luta de classe, que deixou de ser omotor da história, passando, os movimentossociais, a ser os motores da transformação e dahistória. A classe trabalhadora deixou de serrevolucionária e foi eliminada pelo Estado social.Habermas construiu dois mundos distintos, comseu Estado cosmopolita não sendo o único mundosocial capitalista. Dessa maneira, Habermas nãoentende o aumento da intervenção do Estado naeconomia e sua atuação em favor do capitalfinanceiro no processo de dominação do capitalsobre o trabalho, para a permanência econtinuidade do processo de valorizaçãocapitalista. Dado que o comunismo da UniãoSoviética fora derrotado em um mundo que nãoexiste uma oposição e alternativa prática realcontra o capitalismo, os conservadores idealizaramum projeto do pensamento único, do Estadomínimo, no retorno e no reforço do paradigmaultraliberal e ultraconservador. Criou-se uma épocaque facilitou a atuação do Estado no processo dedominação de classe. Farias nega esta forma deEstado, com o modo estatal global, que não excluio Estado-nação.

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11 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

O mundo capitalista apresenta umdesenvolvimento desigual como forma típica dessaformação sócio-histórica. Em um contexto deevolução capitalista e no seu processo dedesenvolvimento, não é possível aceitar as utopiaspós-marxista de Estado globalizado.

Na análise das formas estatais globais [...],percebe-se a pertinência da tese de que “apesarde todos os problemas que os efeitoseconômicos do mercado mundial engendraram,as formas nacionais do capitalismo conseguirammanter-se” [...] contudo, as formas tendem aenvolver num mesmo silogismo suasdeterminações universais, particulares esingulares [cf. Quadro 1] (FARIAS, 2009, p. 18).

Esse pensamento pós-moderno faz a apologiade uma configuração estatal dada, elabora oretorno da ideologia do mercado autorregulável emuma sociedade sem história, e na defesa doEstado mínimo, cuja constituição formal garante aordem, na medida em que nega toda substânciamaterial e social e engessa os movimentos sociais.De acordo com Farias (2001a), o papel espacial doEstado sob o aspecto da divisão internacional dotrabalho situa-se para além do quadro nacional oulocal, inserindo-se nas relações entre as nações ea globalização. Em uma mesma divisão social dotrabalho, o Estado assume papel específico em umcontexto de desenvolvimento desigual ecombinado, tendo a questão estatal passado daregulação e da disciplina keynesiana para apacificação e o controle das questões depolícia - repressão e controle.

A vitória da técnica e da ciência positivistacapitalista permitiu: a generalização dodesenvolvimento desigual, sob a forma desociedade excludente; as práticas governamentaisefetivamente munidas, que representam osinteresses das empresas multinacionais e dasinstituições financeiras, e que têm que regular aeconomia internacional; o fim do nacionalismo real,recompondo a periferia, onde se abrem novasoportunidades para a ganância e para a guerra; e a

regulação tecnocrática do governo capitalista nanova ordem mundial, elevando a distância dasoberania popular, do poder legislativo nacionale da subordinação do poder judiciário ao poderexecutivo.

Somente o estudo da teleologia do Estadocapitalista revela como o Estado e o capital sãoformas cujas teleologias mudam, desde a gênesee o desenvolvimento (apesar do discurso dosapologistas do liberalismo ou da pregação dosreformistas sociais e democratas).

O estudo da questão fisco-financeira do Estadomostra que este depende da geração de recursospara que tenha condições de operar e representar oseu papel, que é simultaneamente material, social,espacial e histórico. Assim, o Estado temcondições de assumir o papel de mediador dascontradições na sociedade capitalista. Entretanto,as relações entre o capital e o Estado sãoorgânicas e historicamente determinadas no tempoe no espaço. Somente o estudo da dialéticaestrutural (aparência e essência), dialética entre osaspectos fisco-financeiro (acumulação elegitimação), a reificação (personificação efetichismo) e os aspectos teleológicos (sistêmicose antissistêmicos) permite uma completacompreensão do Estado capitalista.

5 O processo de crise é típico do capitalismo

Para o estudo do capitalismo, Marx (1977, p.226) apresenta um plano a adotar:

[...] 1º., as determinações abstratas gerais,convindo portanto mais ou menos a todas asformas de sociedade, mas consideradas nosentido anteriormente referido; 2º., as categoriasque constituem a estrutura interna da sociedadeburguesa e sobre as quais assentam as classesfundamentais. Capital, trabalho assalariado,propriedade fundiária. As suas relaçõesrecíprocas. Cidade e campo. As três grandesclasses sociais. A troca entre estas. A circulação. Ocrédito (privado). 3º., Concentração da sociedadeburguesa n forma do Estado. Considerado na suarelação consigo próprio. As classes <<improdu-tivas>>. Os impostos. A dívida pública. O créditopúblico. A população. As colônias. A emigração.4º., Relações internacionais de produção. A divi-são internacional do trabalho. A troca internacional.A exportação e a importação. Os câmbios. 5º., Omercado mundial e as crises.

Entretanto, uma série de problemas e o fato deMarx ter morrido impediram o grande mestre decontinuar sua obra. Dessa maneira, ele jamaispôde elaborar uma teoria definitiva das causas dacrise no capitalismo, porém, mostrou que somenteno modo de produção capitalista existem crises.Ao estudar a essência desse sistema, Marx tinha aperfeita e plena compreensão de que, em virtude de

Fonte: Farias (2009, p. 18)

Universal Particular Singular

Imperialismocoletivo idealplanetário

.Imperialismohegemônicocentral norte-americano.Subimperialismocentral europeu.Subimperialismoperiférico latino-americano

.Imperialismoestadunidense.Subimperialismofrancês.Subimperialismobrasileiro

Forma global Formas regionais Formas nacionais

Quadro 1 - Elementos do império mundial existente

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ser comandado pela lógica de acumulação decapital, ele apresentava uma dinâmica com fasesde expansão e de contração; característica própriado capitalismo que era elemento do conhecimentode Marx.

Ao apresentar a dinâmica do capital nos livros I,II, III e na obra Teoria da Mais-Valia, Marx deixoupistas que deram origem às mais diferentes ediversas explicações sobre a crise no capitalismo.Farias (2011) realizou uma síntese sobre a questãodas causas das crises, que revela uma abordagemque demonstra como Marx estudou as diferentescondições da crise capitalista, dividindo-as emtrês: (i) as condições permissivas das crises;(ii) as condições efetivas das crises; e (iii) ascondições verdadeiras e fundamentais das crises.Nas condições permissivas das crises estão:(a) a moeda como possibilidade geral das crises(onde realiza uma análise crítica da lei de Say,além de ter dado importância ao papel da moedacomo meio de pagamento); (b) a rotação do capitalfixo (devido a não coincidência eventual do valor docapital fixo ser efetivamente substituído); e(c) as flutuações da taxa de salário (elevaçãoprogressiva dos salários).

Farias (1983b, p.1-13) também apresenta ascausas efetivas das crises, ou seja, as causasaparentes: (a) o subconsumo, ou a insuficiênciade demanda efetiva, que tanta fama deu aoskeynesianos, embora também os marxistas, comoRosa de Luxemburgo, tenham tratado desse temade problema de mercados; (b) a desproporçãoresultante da simples anarquia da produçãocapitalista: 2.1 - que pode resultar emdesproporção entre os ramos de produção;2.2 - que pode resultar da desproporção quecondiciona a acumulação de capital e a repartiçãodo produto entre as classes; (c) e a tese maiscomentada de crise marxista, a baixa tendencialda taxa de lucros. Nesse ponto, Farias chama aatenção sobre como Marx, em capítulo seguinte,discorreu sobre os fatores contrários a essa lei, ouseja, as contratendências à queda na taxa delucro. Nesse sentido, Farias (1983b) concluiu queos verdadeiros fundamentos das crises no sistemacapitalista são: a contradição entre processo deprodução e de circulação; a contradição entreprocesso de trabalho e de valorização; e as crisescomo soluções temporárias das contradições.

Farias, em seus estudos, como na questão doEstado, está assentado na ideia geral marxiana deprimazia da base (técnica, e econômica) sobre a

superestrutura (direito, religião, ideologia, Estado).Conforme Farias (1983a), este método aparececomo o adequado a ser utilizado para entendertambém o momento atual de crise do capital, eserve para realizar uma crítica contra a regulaçãoda globalização ou mundialização (empregue onome que queira para esta etapa do capital).O imperialismo da tríade Estados Unidos daAmérica (EUA), União Europeia (UE) e Japão criouuma apologia via economistas reformistas queacreditam ser esse um processo inevitável dodesenvolvimento do capital e um modeloinsuperável, o fim da história. Esses cientistaspregavam que não existia necessidade histórica desuperação radical da sociedade do capital, tese quefoi largamente invalidada pelo hodierno processo dedesenvolvimento do capitalismo.

A queda e a bancarrota do capitalismo globalainda não eliminaram o domínio do Estado e daideologia neoliberal (principalmente na UE). Nomáximo, existe uma corrente lutando para darexplicações sobre a crise global que procurainstalar um novo regime regulacionista para aretomada do crescimento do sistema capitalista.Esse “neo-idealismo regulacionista mantém oprocesso desigual e combinado no capitalismo,que necessita de perpetuação requerendo amanutenção da ordem” (FARIAS, 2009, p. 7).

O processo de desenvolvimento desigual ecombinado do capitalismo mundial foi muito maisaprofundado nessa etapa de mundializaçãoimperialista, alargando o abismo que separa cadavez mais os países desenvolvidos e ricos dospaíses subdesenvolvidos e pobres nessa desordemdo capitalismo financeiro mundial. Conforme Farias(2009, p. 6), faz-se necessário:

[...] reformar o capitalismo mundial para fazê-lofuncionar cada vez melhor, no interesse de toda ahumanidade. Diante das desigualdades derepartição da riqueza, do desastre ambiental, dasdesordens financeiras e da ineficácia das políticaseconômicas nacionais, alimentadas pelo fracassodas instituições internacionais, que nãoconseguiram viabilizar o seu projeto de novaarquitetura após a crise asiática, o “desafio” atualreside precisamente no processo que o idealismohegeliano designava “negaçãoda negação”.

Uma abordagem da aparência, positivista, queoculta a natureza histórica e orgânica do sistemacapitalista, sua dinâmica, o fenômeno deexploração do proletariado na nova situaçãomundial de trabalho flexível, da sua maiormobilidade, cada vez mais pecuniário, procuraencobrir um capitalismo como sistemafundamentalmente anárquico e que funciona em

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benefício de uma classe, uma pequena minoria, aburguesia. Assim, a utopia de um governo mundialbem equilibrado, comandado pela triadeEUA-UE-Japão, rapidamente é desmascarada eesgota-se (FARIAS, 2003).

A lógica da dialética marxista deve serdesenvolvida, atualizada e enriquecida. O marxismorevela as desigualdades e a diversificação dabarbárie das relações sociais capitalistas, aexclusão do operariado, a nova reconfiguração doimperialismo com um novo papel para as formasestatais no seio de uma totalidade concreta,complexa e contraditória, mas que semeou muitoa desordem, a miséria e o desemprego pelomundo todo.

A totalidade do Estado e do capital continuaproduzindo desigualdade, oposição no processo desocialização humana, a lógica da dominação,e potencializando a via da dominação culturalburguesa. Assim, como afirma Farias (2009, p. 14):“O capitalismo liberal inovou em mitos e artimanhasque buscam quer segmentar o proletariado eimpedi-lo de apreender sua própria vida de conjuntoe subconjunto, quer ocultar suas realidades epráticas específicas.”

Entretanto, a sociedade capitalista necessitaser desnudada nos mais diversos mecanismos.Faz-se necessário estimular e levar os operários,a população e os movimentos sociais a refletir eentender a realidade de exploração humana,ambiental etc. que é realizada pelo e nocapitalismo.

6 A crise do capitalismo global comooportunidade histórica

Na realidade atual, embora o processo deglobalização seja múltiplo (financeiro, comercial,produtivo, tecnológico, cultural etc.), as finançasinternacionais têm-se desenvolvido de acordo comsua própria lógica e não mais em relação diretacom o financiamento dos investimentos e docomércio em nível internacional, delineando umregime de acumulação mundial que adquiriu amarca, cada vez mais nítida, de um capitalismopredominantemente rentista e parasitáriosubordinado às necessidades do capital dinheiro(CHESNAIS, 1996).

Na crise atual, o reformismo entrou em açãopara preservar o sistema capitalista e o Estado foinovamente chamado para salvar o capitalismofinanceiro e garantir sua sobrevivência. Osprogramas de resgate do sistema financeiro foram

de tal monta que evitou uma depressão econômica.Todavia, como o processo não objetivou mudar osistema e nem procurou penalizar os quecausaram a crise, essa dinâmica rentista queproduziu a crise logo retornou na Europa, levandoos apologistas liberais e conservadores aapresentar as consequências da atual crise globalnão como prosseguimento e consequência dosestragos causados pela crise do capital iniciadaem 2007, mas devido à ineficiência e à culpa doEstado do Bem-Estar Social e do keynesianismo,ou seja, passaram a afirmar que a crise não era docapitalismo e sim uma crise fiscal, crise doEstado, e fruto de má administração dos recursospúblicos pelo Estado providência.

Acontece que as políticas postas em práticaprocuraram socializar os prejuízos e não penalizaros que construíram a catástrofe do capital. Asrevoltas dos “indignados” que se espalharam pordiferentes países representam então uma afirmaçãoda população de que estava percebendo que ocapital financeiro continuava ganhando etransferindo os prejuízos para a sociedade, viapolíticas dos Estados do Bem-Estar Social para osricos (BAUMAN, 2010). Dada a gravidade da crisee as incertezas que se apresentam, uma questãoa ser respondida é o que nos reserva o futuro docapitalismo, bem como quais são as opções queexistem, como os cientistas sociais estãorealizando as análises e quais são as suasopiniões sobre o futuro do capital e da humanidade.

Para Bauman (2011), as noticias sobre amorte do capitalismo são um pouco exageradas; osociólogo acredita na capacidade surpreendente deressurreição e regeneração do capitalismo que éinerente a esse organismo parasitário, comoafirmava Rosa Luxemburgo. Já Wallerstein (2011)defende que o capitalismo chegou ao fim da linhae que está condenado; resta saber o quê irásubstituí-lo. Embora no fim, para Wallerstein,a questão que se apresenta é que o fim docapitalismo não será uma transição apocalípticae a alternativa que surgirá dependerá das escolhasda humanidade. Tanto pode ser para uma linhamais igualitária, democrática e moral, como podecaminhar para um sistema muito pior: maisdesigual, polarizado e explorador.

Para os economistas keynesianos eregulacionistas, a crise financeira global édecorrente da falta de moralismo nas práticas dosetor financeiro e bancário, ou seja, da falta e dafalha de regulamentação por parte do Estado. Dani

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Rodrik (FUCS, 2011) constata que predominou oque ele denomina de hiperglobalização, centradana abertura comercial e financeira que chegou aameaçar a democracia e a soberania das nações;e defende que os países que se deram melhornessa competição global foram os que seintegraram gradualmente na economia mundial,utilizando as políticas industriais e comerciaispara diversificar sua economia.

Bourdieu (2001) afirma que no processo decriação do euro os governos social-democratas esocialistas europeus foram levados a aceitar asmesmas tarefas que foram encomendadas aosgovernos conservadores neoliberais e, desse modo,promoveram um afastamento da política de umaparte cada vez maior dos seus cidadãos,abdicando de promover políticas públicas decoesão social mínima. Na linha marxista,Carcanholo (2011) defende que o quadro atual nãorepresenta uma crise final do sistema capitalista;trata-se do início do processo de colapso de umaetapa específica do capitalismo: do capital fictícioe rentista. Para Carcanholo, o capitalismoinfelizmente não acabou e continuará por muitotempo. Dierckxsens et al. (2010), por outro lado,afirmam que são múltiplas as crises que ahumanidade enfrenta nesta segunda década doséculo XXI: crises no aspecto econômico-financeiro, na geopolítica, no campo militar, na áreade energética, a crise alimentar, a grave criseecológica, crise na questão de uma falta de éticasem precedente e também crise no campo social.Todo este contexto decorre do desenvolvimento docapitalismo, mormente ao longo das quatro últimasdécadas que aprofundaram características instáveisda gênese do capital. Na realidade, afirma Fattorelli(2011), o que está ocorrendo é que os governos nafase de globalização passaram a conceder tudoaos bancos, impulsionando um processo dedegradação da democracia, e realizaram políticasde salvamento dos bancos por intermédio deempréstimos junto a esses mesmos bancos.Assim, como num passe de mágica, os bancos setransformaram em credores desses mesmosEstados.

A Europa assiste atualmente, com anuênciados partidos de esquerda e da mídia, ao poderautoatribuído dos mercados financeiros paranomear e demitir governos, impor metas e políticasque reduzem os direitos dos cidadãos, tornando aeconomia e a sociedade meros dentes de umaengrenagem reprodutora do capital a juro. Conforme

Mészáros (2011), trata-se de um período sob odomínio do capital, que torna alienados efetichizados o controle social que é exercido sobreo individuo e que subordina as funções reprodutivassociais ao imperativo absoluto da expansão docapital. O tripé capital, trabalho e Estadoconstituem o mais dinâmico, o mais poderoso e omais abrangente dos elementos de manutenção daformação econômico-social do capital, comoestrutura totalizante de organização e controle dadinâmica da sociedade, que a tudo e a todos obrigaa adaptar-se. Mais poderoso do que a religião, queperdoa os pecados, desde que o indivíduo confessesuas culpas, esse deus capital somente aceita aexpansão e a acumulação do capital, nãoperdoando quem desobedece aos seus ditames.É um sistema que não apresenta limite para suaexpansão, não objetiva o atendimento dasnecessidades humanas e sociais, mas sim criar ascondições para sua necessidade deautorreprodução. Forças antagônicas gestadas nointerior desta formação impedem o predomínioe a regulação do capital, pois é este capital que églobalmente dominante, ao ponto de levar àdestruição e à degradação crescentes da força detrabalho e do meio ambiente.

O método de Marx - dialético e histórico - foi ocaminho teórico usado para expressar umaconcepção de mundo como totalidade orgânica.Esse método revela as leis universais e concretas,as leis do real e, ao mesmo tempo, as leis dopensamento que domina a sociedade sob opredomínio do capital. É um método que mostra asleis e o movimento do todo, tanto do real como dopensamento aparente, que apresenta a totalidadedo organismo social com suas leis, revelando aindaas conexões internas que são necessárias para acompreensão dessa realidade, de um ponto devista crítico, no processo e no movimento docapital.

Marx revelou que o capitalismo é um processohistórico em permanente mudança, com suascontradições e lutas dos contrários quepossibilitam uma evolução da história. Ocapitalismo, ao superar e solucionar ascontradições do Antigo Regime, permitiu apassagem de um estado de exploração do homem,já superado, para outro novo tipo de exploração.Nessa linha, as contradições não foram excluídasou minimizadas, transformaram-se e sugiram novase maiores contradições em um sistema, queocorrem e se resolvem no interior da sociedade do

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15 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

capital - uma sociedade capitalista que tenta semostrar como uma forma de sociedadepermanente, como se não existisse possibilidadede outra forma de sua superação, sendo a formadefinitiva e mais evoluída de convivência que ahumanidade pode permitir, não podendo atingir umnovo estágio. Nesse processo, a mediação temservido como categoria exclusiva de alienação,fectichização do mundo do capital (MÉSZÁROS,2011).

Desse modo, o método positivista e osrevisionistas da burguesia não compreendem aatual crise que assola a economia burguesa. Ocapital e o capitalismo estão em crise e seusideólogos não apresentam qualquer contribuiçãodigna de consideração; estão a pregar mais domesmo, piorando o problema da grave criseestrutural do seu “perfeito”, “natural” e “a-histórico”sistema econômico. A farsa do fim da historia, dofim das ideologias, a farsa da vitória daglobalização virtuosa é que revela a crise estruturalda atualidade do capital. É urgente o retorno aMarx. Nessa linha, Febbro (2012, n.p.) sinaliza umcaminho a ser seguido:

Há textos filosóficos de Karl Marx que não sãomuito conhecidos e nos quais Marx queria arealização total do indivíduo fora dos circuitosmercantis: no amor, na relação com os outros, naamizade, na arte. Poder criar o máximo a partirdas disposições de cada um. Talvez seja o casode recuperar esse relato do Marx filósofo eesquecer o do Marx marxista.

O capitalismo planetário parece estar em faseterminal ou vai durar muito tempo? É uma perguntaque ninguém na sociedade sabe responder. Nãoparece existir luta pelo desmoronamento dacivilização do capital, que apresenta perspectivasde desdobramentos terríveis, podendo caminharpara a barbárie social ou para a humanidade tercondições de construir e buscar alternativassociais.

O problema é identificar se atualmente existeluta e se é possível identificar a disputa de projetosde sociedade (MONTAÑO, 2002). O capital e oprojeto neoliberal criaram uma sociedade compostapor indivíduos cada vez mais hedonistas, egoístas,consumistas, frívolos, obcecados pelos objetosinúteis e pela imagem, pelo que está na moda.Oobjetivo de vida na modernidade liberal é produzir,consumir e enriquecer - uma forma de vivermedíocre.

Os cientistas reformistas não apresentampotencial para conter os aspectos destrutivos docapital. Um projeto revolucionário tem a obrigação

de avançar e construir uma alternativa que deve seconcentrar para vencer a batalha de ideias para aconstrução de uma sociedade alternativa.7 Conclusão

A discussão da gênese, desenvolvimento eatualidade da formação social do capitaldemonstrou a forma vulgar da economia política,em sentido amplo, procurando aprofundar a visãodos alunos a respeito dos métodos empregados,com os economistas clássicos representando adefesa do modo de produção capitalista, realizandouma abordagem que implicou em uma visão quepassou a ser a dominante e na linha positivista,que defende uma abordagem técnica e neutra, aexternalidade do Estado em relação ao capital. Ométodo positivista deu margem a diferentesescolas de economia que caminham para oretorno, na atualidade, do domínio da economiavulgar, que representa uma apologia daglobalização e da mundialização do capitalismofinanceiro, das ideias neoliberais.

Neste artigo também se apresentou a forçamaior do curso, que foi desenvolvido a partir dométodo da obra “O Capital”, ou seja, de umaanálise crítica de todas as abordagensapologéticas anteriores, mostrandosimultaneamente a dialética/materialista e a críticarevolucionária contra este modo de produçãocapitalista, que é histórico e transitório, que utilizao fetiche para dominar o ser social e suaconsciência, e cujo funcionamento é de difícilcompreensão. Demonstrou-se, ainda, a abordagemde Farias a respeito do Estado capitalistacontemporâneo como entidade de natureza social,concreta, complexa e contraditória; bem como aquestão das crises como elemento típico dasociedade capitalista. Assim, pode-se inferir que ométodo de Marx é revolucionário e também visaestimular a superação do modo de produção docapital. Destarte, conclui-se que a disciplinaEconomia Política - objeto deste artigo - demonstraa fragilidade dos questionamentos, dasmodificações e das críticas à obra “O Capital”, deKarl Marx; e que mesmo diante do domínio da erade pós-modernidade, o professor Farias continuasendo um cientista que não se encantou com osucesso das abordagens neutras, técnicas, nemcom o as abordagens revisionistas que procuraramdesqualificar, modificar a abordagem de Marx emsua critica da economia política

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Nota:

(1) Notas de aula da disciplina Economia Política, doDoutorado em Políticas Públicas, ministrada peloprofessor Flavio Bezerra de Farias, em São Luís, naUFMA, no segundo semestre de 2011.

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*Professor do Departamento de CiênciasEconômicas/UFPI, mestre em Economia/UFC-CAENe doutorando em Políticas Públicas no DinterUniversidade Federal do Piauí/Universidade Federaldo Maranhão.

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FALHAS DE MERCADO EREGULAÇÃO NO SANEAMENTOBÁSICO Por José Lourenço Candido*

1 IntroduçãoSaneamento são todas as ações na sociedade

que objetivam a salubridade ambiental. Osaneamento básico pode ser entendido como amontagem de infraestrutura para abastecimento deágua às populações, recolhimento e tratamento deesgotos e detritos sanitário de todas as atividadessociais com o fim de gerar maior bem-estar sociale sustentabilidade ambiental.

No Brasil existem, historicamente, ineficiênciasno que se refere à oferta do serviço de saneamentobásico, de modo universal e de qualidade, devidoàs incertezas institucionais que ainda envolvem osetor, como a ausência de programas de incentivosa novos investimentos, indefinição da titularidadedos direitos de exploração dos serviços de água eesgotos etc.

Aliado aos problemas político-institucionaisexiste uma complexidade quanto à determinaçãode um modelo tarifário que abarque a recuperaçãode custos e a universalização dos serviços, devidoao caráter de monopólio natural e às falhas demercado características desse setor dainfraestrutura.

Assim, no que se refere a setores com caráterde monopólio natural, a teoria econômica defende aimplantação de um sistema regulatório que inter-venha na conduta do monopólio, ou seja, orienta-ção sobre preços a serem praticados, investimen-tos e qualidade dos serviços, uma vez que não épossível (como se verá mais adiante) estabeleceruma estrutura concorrencial no setor. No entanto,segundo Galvão Junior e Paganini (2009, p. 84),

Resumo: O serviço de saneamento básico é considerado em todo o mundo como um serviço de monopólionatural, ou seja, não é possível o estabelecimento de mercado para ofertar o serviço dada as economias deescala e economias de escopo. Assim, o objetivo do artigo é fazer um levantamento das falhas de mercado nosetor de saneamento básico e apresentar algumas das questões a serem resolvidas pela regulaçãoeconômica no Brasil neste setor.Palavras chaves: Falhas de mercado. Regulação econômica. Saneamento básico.Abstract: Basic sanitation service is regarded worldwide as a natural monopoly service, ie, it is not possible toestablish the market to offer the service given the economies of scale and economies of scope. The objectiveof this paper is to survey the market failures in the sector of basic sanitation and present some of the issues tobe resolved by economic regulation in this sector in Brazil.Keywords: Market failures. Economic regulation. Basic sanitation.

Para os serviços de infraestrutura, o formato deregulação depende da análise, entre outras, dasseguintes variáveis: falhas de mercado,características do mercado regulado, ambientepolítico-institucional, propriedade dos ativos,titularidade dos serviços e capacidadeadministrativa do Estado para regular os serviços.

O objetivo do artigo é fazer um levantamentodas falhas de mercado no setor de saneamentobásico e apresentar algumas das questões aserem resolvidas pela regulação econômica noBrasil neste setor.

2 Falhas de mercado

A teoria tradicional microeconômica consideraque, estabelecidos alguns pressupostos básicos,os mercados poderiam funcionar perfeitamente semqualquer intervenção estatal, de modo que ospreços e as quantidades estabelecidos nelesseriam de eficiência econômica. Entretanto, adificuldade em verificar os pressupostosempiricamente e as repetidas crises sistêmicaspelas quais passaram as sociedades revelam queos mercados apresentam falhas de funcionamentoque justificariam a intervenção pública desde aregulação econômica dos mercados até a entradado Estado na produção de bens e serviços.

As falhas de mercado podem ser classificadasem: externalidades (positivas ou negativas),informação assimétrica, bens públicos e poder demercados.

Para Pindyck e Rubinfeld (2010, p. 576),externalidade é a “ação de um produtor ouconsumidor que afeta outros produtores ouconsumidores, mas que não é considerada no

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preço de mercado”, ou seja, as externalidadespodem ser entendidas como consequênciaseconômicas do consumo ou da produção que nãopodem ser percebidas pelo mercado e, portanto,não entram na função custo das empresas(externalidade negativa) ou na função de benefícios(externalidade positiva) sociais, ou seja, os efeitosdo consumo ou da produção, como, por exemplo, apoluição, não têm mercado e, apesar de causarcustos à sociedade, o poluidor não paga por isso eassim produz em excesso.

O custo marginal da produção, que é o custoadicional por unidade produzida, pode ser divididoem duas partes: o custo marginal privado (CMgP) eo custo marginal externo (CMgE) que, somados,formam o custo marginal social (CMgS). O customarginal privado mede os custos da empresa aoelevar cada unidade produzida, enquanto o customarginal externo mede o custo gerado pela mesmaprodução, mas que não é absorvido pela empresa(como a poluição), mas percebido pela sociedade.Dessa forma, na determinação do preço demercado não entram os custos externos e o preço(Pp) fica abaixo do custo marginal social (Pe)elevando o nível de produção (Qp) para além donível de eficiência social (Qe), conforme a Figura 1.

Assim, o preço vigente no mercado não servecomo indicador preciso de escassez do bem ouserviço, ou seja, o preço é igual ao custo marginalprivado, mas inferior ao custo marginal social -aquele que é suportado por toda sociedade.Portanto, o mercado funciona com ineficiênciaeconômica na presença de externalidadesnegativas, produzindo mais do que o nívelsocialmente desejado.

No saneamento básico a externalidade positiva

surge devido ao significativo impacto sobre a saúdeda população, uma vez que o maior acesso à águatratada e esgotamento sanitário reduz o risco decontaminações principalmente de crianças.Portanto, a oferta desse serviço eleva o bem-estarda população ao mesmo tempo em que reduz oscustos sobre o sistema público de saúde.

Outra falha de mercado é a informaçãoassimétrica que, segundo Pindyck e Rubinfeld(2010, p. 550), é a “situação na qual o comprador eo vendedor possuem informações diferentes sobreuma transação”, ou seja, ela surge quando ocomprador ou o produtor (vendedor) de um bem ouserviço possui informação privilegiada acerca dobem ou serviço que o beneficia; a posse de ummaior nível de informação influencia o preço paraum nível diferente da condição de eficiência dePareto.1

No saneamento básico, a empresa deabastecimento de água possui informaçãoprivilegiada em comparação à agência reguladora(quando esta existe), a qual desconhece aqualidade das redes distribuidoras de água e decoleta de esgotos e, portanto, os principais ativosda empresa monopolista; informação esta que sópode ser prestada pela companhia. Isto eleva acomplexidade da mensuração do capital investidopela empresa e, por conseguinte, da proposição deum arcabouço regulatório mais preciso. Nessescasos, serão necessários custos adicionais paragerar ou nivelar as informações, o que nem sempreé viável economicamente, uma vez que o custo deobtenção pode ser maior do que os benefíciosgerados.

Outra falha de mercado são os chamados benspúblicos, que, para Varian (2006, p. 720), é apenasuma forma particular de externalidade.

[...] os bens públicos são exemplos de um tipoparticular de externalidade de consumo: todapessoa é obrigada consumir a mesmaquantidade do bem. Eles são um tipoespecialmente perturbador de externalidadeporque as soluções de mercado que oseconomistas gostam tanto não funcionam bem naalocação de bens públicos. As pessoas nãopodem comprar quantidades diferentes de defesapública, têm de decidir, de alguma forma, por umaquantidade comum.

Os bens públicos são não exclusivos, ou seja,não se pode excluir ninguém do consumo (ou uso);por exemplo, um serviço de combate a mosquitosem uma determinada região não pode ser ofertadono mercado, pois não é possível cobrar de cadamorador pelo serviço e não há como excluir dosserviços aqueles que não têm disposição a pagar;

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todos os moradores daquela região serãobeneficiados (efeito carona). Outra característicados bens públicos é que são não disputáveis,ou seja, o custo marginal de prover o bem paraum consumidor adicional é zero para qualquernível de produção. Como exemplos, têm-se:estradas, farol marítimo, televisão aberta etc.

O conjunto dessas características impede ofuncionamento pleno de um mercado, poisimpossibilitam a captação da disposição a pagardos usuários. Nesses casos, o Estado passa aofertar o bem ou serviço a partir de recursosorçamentários, os quais todos pagam de formaindireta via impostos, taxas ou contribuições.

E, finalmente, o poder de mercado oucompetição imperfeita, que é uma falha demercado que ocorre quando um produtor ou umgrupo de produtores ou consumidores exerce poderde mercado fixando o preço acima do customarginal (monopólio e oligopólio) ou abaixo do valormarginal (monopsônio e oligopsônio). Nessescasos, seria necessária a intervenção pública comobjetivo de incentivar a concorrência ou coibir amonopolização de tal modo a pressionar o preçopara próximo do nível competitivo.

Empresas monopolistas desfrutam de demandainelástica, de modo que conseguem auferir rendaseconômicas significativas. Um caso particular domonopólio é o monopólio natural, assimdenominado por não ser possível a existência deconcorrência, dado que o setor exige custos fixoselevados aliados a uma função de produçãogeradora de economias de escala, ou seja, ascurvas de custo médio e custo marginal sãodecrescentes para qualquer nível de produçãorelevante de mercado.

Conforme a Figura 2, nessas condições, ocusto marginal (CMg) estará sempre abaixo docusto médio (CMe), ou seja, se se tentarestabelecer competição neste mercado, a condiçãode equilíbrio (CMg=RMe) implicaria em um preço(Pc) menor que o custo médio, assim, com essaperspectiva de prejuízo econômico, nenhumaempresa se arriscaria a entrar neste mercado e nãohaveria oferta.

Nessas condições, faz-se necessária aregulação econômica do setor. Para Pinto Junior eFiani (2002, p. 515), “Define-se regulação comoqualquer ação do governo no sentido de limitar aliberdade de escolha dos agentes econômicos.”

A regulação de preço surge como forma de seevitar o ônus do monopólio sem inviabilizar a oferta

do bem ou serviço. Nos setores de infraestrutura, aregulação de preços ou tarifas (Pr) deveria serrealizada de modo que Pr se iguale ao custo médio(conforme Figura 2), quando, então, o monopolistanão desfrutaria de lucro econômico nem deprejuízo; no entanto, na prática, a definição dafunção custo não é tão trivial, devido às percepçõessubjetivas do regulador e do regulado, comotambém a dificuldades de mensurar custos dedomínio da empresa.

No setor de saneamento básico, além daseconomias de escala, há também economias deescopo, quando a oferta conjunta de água (A) eesgotamento (E) pela empresa x custa menos doque ofertar água pela empresa y e esgotamentopela empresa z, ou seja, não há viabilidadeeconômica na desintegração vertical com vistas àelevação da concorrência e da eficiênciaeconômica, conforme a expressão (1).

Assim, além da regulação do preço, a regulaçãoda conduta passa a ter um papel fundamental parao adequado funcionamento do setor, emboraquestões não econômicas, como a universalizaçãodos serviços, estejam subjacentes a estadiscussão, mas com a mesma importância.3 Alguns aspectos do saneamento básico noBrasil

No Brasil, a maior parte da companhias desaneamento são públicas e, por isso, estão àmercê da idiossincrasia política que em grandeparte renega tais considerações econômicas nomomento de tomar as decisões de investimento eminfraestrutura e na universalização dos serviços; daí

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a cogitação da implantação de sistemasregulatórios que pudessem atender às demandashistóricas dos sistemas de saneamento.

No entanto, uma maior preocupação com osetor de saneamento básico só passou a tomarmaior fôlego após a abertura econômica, por voltados anos 1990, e principalmente com asprivatizações em outros setores da infraestrutura.

Ao longo da década de 90 esteve em debate anecessidade de criação de estruturas deregulação e de marcos regulatórios para aprestação do serviço. Esta regulação, defendidapor diferentes atores do campo do saneamento,deveria ser voltada tanto para o controle efiscalização dos serviços prestados por entes decaráter público, como as empresas estaduais queoperavam sob concessão dos municípios, comopara o controle e fiscalização dos serviçosprestados por empresas privadas. O campo maisprogressista associa as idéias de regulação econtrole social, pensando a regulação comoinstrumento indispensável de controle público daprestação de serviços. [...] Um serviço essencialsob o regime de monopólio exige regulação bemestruturada para que seja garantida auniversalização e para evitar que os cidadãos ousejam privados do acesso ou paguem taxasexcessivas pelos serviços prestados. A regulaçãoe o controle público destes serviçosdependem – mais do que da designação formalde competências ao regulador setorial – de todauma complexa estrutura institucional e legal quedetermina as condições reais de acesso doscidadãos aos serviços públicos (BRITTO, 2013, p.11-12).

Portanto, o problema da regulação emsaneamento básico não pode resumir-se a fixaçãode tarifas, mas também garantir serviços universaise de qualidade, assim como a necessidade daparticipação pública no desenvolvimento destesetor, embora, segundo Britto (2013), verificou-seque ao longo dos anos 1990 houve uma forteretração dos investimentos no setorsimultaneamente ao estímulo das concessões aosetor privado.

Uma tentativa no sentido de definir critérios paraa regulação no setor de saneamento ocorreu naConferência das Cidades, em 2003, quando foramlançadas algumas propostas de marco regulatório,como:

[...] a garantia da gestão pública dos serviços, anecessidade de ampliação dos financiamentos,tendo como princípio a idéia de os investimentosem saneamento são investimentos em saúdepública e, portanto não oneram a dívida pública, anecessidade de definição de uma políticanacional de saneamento e de seus instrumentos,a defesa de uma gestão democrática, garantindoa participação da sociedade civil na definição depolíticas e o controle social da prestação dosserviços (BRITTO, 2013, p. 13).

No ano de 2007, a lei n. 11.445 veio aestabelecer o tão esperado marco regulatório e,apesar dos avanços ocorridos nesses aspectos,

ainda é polêmica a definição da titularidade dosserviços de saneamento em sistemas de interessecomum, como é o caso das regiõesmetropolitanas, sendo tal definição fundamentalpara desenvolvimento do aparato regulatório nosníveis estadual e municipal.

O problema da definição da tarifa de água eesgotos envolve a discussão entre recuperação detodos os custos das prestadoras e a busca doobjetivo de universalização dos serviços. A recupe-ração de todos os custos exige que a tarifa médiaesteja no nível pelo menos igual ao custo médio; noentanto, devido à necessidade de se alcançar umnúmero cada vez maior de usuários, a maioria dasempresas de serviços de água e esgotos nãoconsegue recursos suficientes para o seu auto-financiamento, recorrendo sempre aos recursosorçamentários e ao subsídio cruzado, “isto deixouos investimentos em saneamento dependentes denegociações políticas muitas vezes de caráterclientelista” (BRITTO, 2013. p. 7). De fato, asempresas públicas de saneamento têm atendidofundamentalmente a apelos políticos muitas vezesdistantes de modelos econômicos que possibilitema viabilidade das companhias, originando ainsegurança hídrica e de projetos de investimentosnas demais atividades econômicas da região.

4 Conclusão

A maioria dos setores de infraestrutura écaracterizada como monopólio natural, de modoque sua livre atuação, sem regulação, repercutesobre o bem-estar da sociedade devido ao ônus domonopólio. Assim sendo, faz-se necessário umasolução baseada na regulação onde o monopolistadeverá cumprir metas que levem ao objetivofundamental da eficiência econômica e social.

No caso do setor de saneamento básico,acrescentam-se às dificuldades referentes aomonopólio natural os objetivos de universalizaçãodos serviços, que obriga os prestadores a ofertá-loa todos os usuários, independentemente do poderde pagamento ou da sua disposição a pagar,podendo levar a uma situação conflituosa desubsídio cruzado.

No Brasil, a discussão acerca da titularidadedos serviços de saneamento, a dificuldade emdesenvolver um plano de investimento robusto parao setor ao longo dos anos, a gestão política dascompanhias impedem sobremaneira a construçãode aparato regulatório para todo o setor em nívelmunicipal ou estadual.

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A existência de várias propostas em torno domodelo tarifário e de regulação tem inviabilizado acriação de uma proposta nacional, de modo quecada município ou estado acaba escolhendo o seumodelo de tarifação e oferta dos serviços, mas quenem sempre garante a segurança hídricanecessária ao desenvolvimento econômico local

* Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisadordo Laboratório de Estudos em Desenvolvimento Regional (Leder). Mestre em Economia/UFPB.([email protected]).

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1 Introdução

A condução da política monetária através deuma taxa de juros que proporcione um baixo índicede inflação e favoreça o crescimento econômicotem sido um dos desafios das autoridadesmonetárias no Brasil. O Banco Central do Brasil(Bacen), por exemplo, tem utilizado o sistema demetas para convergir a taxa de juros e a inflaçãopara valores preestabelecidos.1 Dessa forma, apolítica monetária adotada pelo Bacen visacontrolar o nível de preço e o crescimento da taxade juros.

A partir dos regimes de metas de inflação oBacen pode estimar e divulgar uma meta deinflação que permita um controle da atividadeeconômica. Taylor (1993) apresenta uma regraprática que possibilita a obtenção de taxas de juros

POLÍTICA MONETÁRIABRASILEIRA NO PERÍODO DE 2005A 2012: uma aplicação da regra de Taylor*Por Marcius Medson Campelo de Sousa** e Edivane Lima ***

Resumo: O objetivo deste trabalho é verificar a formação da taxa de juros a partir da regra de Taylor eobservar se a aplicação desta regra permite suavizar a taxa de juros no período de 2005 a 2012. A Regra deTaylor é utilizada como metodologia apropriada; sendo a taxa de inflação, o hiato do produto e a taxa dejuros Selic as principais variáveis econômicas utilizadas. Os resultados apresentados mostram, de maneirageral, que é possível obter taxas de juros menores, em comparação àquelas praticadas no mercado duranteo período analisado, ressalvadas algumas exceções. Conclui-se que a regra de Taylor dá importantecontribuição para atenuar o comportamento da taxa de juros de curto prazo em boa parte do períodoanalisado.Palavras-chave: Política Monetária. Taxa de Juros. Regra de Taylor.

que garantam, em maior ou menor grau, obalanceamento da política monetária.

O período analisado no trabalho compreendeuma época de elevadas taxas de juros Selic.Durante este período, a elevação desta taxa teve afunção de restringir a demanda agregada, visandocontrolar a inflação e estimular a entrada decapitais para equilibrar o balanço de pagamentos. Aregra de Taylor é apresentada como uma alternativapara conter as taxas de juros elevadas no períodode 2005 a 2012.

Em seu formato original, a regra de Taylor érepresentada matematicamente por meio de umafunção linear simples, não sendo utilizadosmodelos econométricos para estimar a taxa dejuros. Por se tratar de um modelo simples e degrande previsibilidade da taxa de juros, a regra de

Nota:(1) No nível de eficiência de Pareto não se podemelhorar o bem-estar de alguém sem piorar o bem-estar de outra pessoa (agente econômico). Quando sealcança o eficiente de Pareto, todas as trocasvantajosas foram realizadas. Quando não é atingido oeficiente de Pareto, o bem-estar de alguém podemelhorar sem prejudicar o bem-estar de outrem.

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Taylor vem sendo utilizada por vários autores, taiscomo Mendonça (2001), Barcellos (2003), Carvalhoet al. (2007) e Sulzbach (2009), como modelocapaz de provocar uma redução da taxa de juros eaumentar a previsibilidade das autoridadesmonetárias, o que tem permitido maior confiançada população na política monetária brasileira.

Neste sentindo, o principal objetivo destetrabalho é a obtenção de taxas de juros brasileira apartir da regra de Taylor, na intenção de verificar sea aplicação desta regra é capaz de suavizar a taxade juros no período de 2005 a 2012. A taxa de jurosde curto prazo é um instrumento importanteutilizado pelas autoridades monetárias para atingiros objetivos da política monetária, dentre eles,reduzir o nível de inflação e proporcionar ocrescimento do produto.

Além desta introdução, o artigo apresenta nasegunda seção alguns conceitos sobre políticamonetária e metas de inflação. Na terceira seção, édesenvolvido o conceito da regra de Taylor eapresentado o processo metodológico que permitiuaplicar essa regra à economia brasileira no períodode 2005 a 2012. Em seguida, são apresentados osresultados da aplicação da regra de Taylor e, porfim, as conclusões.

2 Política monetária

Proporcionar o bem-estar da sociedade temsido um dos principais objetivos da políticamonetária. Ela é usada como mecanismo eficientede controle, fazendo uso de taxas juros e metas deinflação que busquem uma estabilidade de preçosna economia, o que tem sido alvo de trabalho dasautoridades monetárias, especialmente do Bacen.

A principal função de um banco central consisteem adequar o volume dos meios de pagamento àreal capacidade da economia e absorver recursos,sem causar desequilíbrios nos preços. Para isso,controla, por meio de instrumentos de efeito direto2

ou induzido,3 a expansão da moeda, do crédito eda taxa de juros, buscando adequá-los àsnecessidades do crescimento econômico e daestabilidade dos preços, além de zelar pelaestabilidade da moeda, permitindo a manutençãodo poder de compra da população (BACEN, 2008).

Carvalho et al. (2007) apresenta a formação dataxa de juros de curto prazo da economia sendo oresultado do confronto entre a oferta de reservas,definidas pelas atuações do Bacen nas operaçõescompromissadas4 e operações definitivas5 e osaldo do fluxo de entrada e saída de dinheiro para o

sistema bancário. Em contrapartida, a demanda dereservas dessas operações é definida pelas suasnecessidades de atender às exigibilidadescompulsórias e seus compromissos com o setornão monetário da economia.

A taxa de juros Selic remunera os títulospúblicos e apresenta a característica de transmitir-se ao mercado financeiro remunerando, assim, asdemais operações. Sua operacionalidade tem sidoconduzida pelo Comitê de Política Monetária(Copom), com o objetivo de estabelecer asdiretrizes da política monetária. Nesse sentido, oCopom trabalha com estabelecimento de metas deinflação para obter a taxa de juros mais apropriadaao controle e à estabilidade dos preços.

O controle da inflação permite um crescimentomais estável da economia. Segundo Barcellos(2003), o Bacen utiliza a taxa referencial de jurosSelic como principal instrumento de condução dospreços para o mais próximo possível da meta. Noentanto, as oscilações na taxa de juros terminamgerando impactos adversos nas demais variáveiseconômicas, especialmente nas decisões deconsumo, no nível de atividade produtiva e no fluxode capitais para o país.

A política monetária no Brasil é executadadentro do sistema de metas para a inflação (SMPI).Com este sistema, o Conselho Monetário Nacional(CMN) estabelece a meta para a inflação. A partirdessa meta, o Copom reúne-se periodicamentepara analisar a economia brasileira e a tendênciafutura da inflação; com base nessa análise, decidequal a taxa de juros mais adequada para atingir ameta. Uma vez definida a taxa de juros, o Bacenatua de forma a fazer com que a taxa de juros domercado seja efetivada durante o período devigência do regime de metas de inflação (BACEN,2008).2.1 Regime de metas de inflação

No trabalho desenvolvido por Sulzbach (2009), oautor argumenta que o regime de metas de inflaçãofoi iniciado pela Nova Zelândia, em 1990,espalhando-se posteriormente para outros países,6

inclusive desenvolvidos, como Reino Unido eCanadá, embora países como a Alemanha jáadotasse, desde a década de 1970, um regimesemelhante às metas de inflação.

A partir do segundo semestre de 1999, a políticamonetária brasileira passou a ser orientada peloconceito de meta de inflação. Sua sistemática foiestabelecida por decreto presidencial e serve comodiretriz para a política monetária, na tentativa de

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manter a liquidez da economia e assegurar ocrescimento econômico sustentado.

Assim, por lei, o Bacen tem a obrigação de usartodos os meios necessários de política monetáriapara a obtenção dessa meta. Uma vezestabelecida, ela não pode ser alterada, mesmoque ocorram choques externos ou internos.

Segundo Sulzbach (2009), o regime de metasde inflação é uma estratégia de política monetáriaem que o Bacen apresenta uma estimativa para ameta e divulga uma meta de inflação que estabilizea atividade econômica, e se compromete a atuar deforma a garantir que a inflação observada estejaobedecendo à meta preestabelecida. A partir desseconceito, a política monetária busca atingir seusobjetivos, como o nível de preços estáveis ecrescimento econômico favorável.

Mendonça, Dezordi e Curado (2005) mencionama transparência sendo um ponto que mereceatenção, porque a necessidade de seu aumento nacondução da política monetária tem sido um dosprincipais argumentos favoráveis à adoção demetas inflacionárias.

O regime de metas de inflação não pode serinterpretado como uma regra rígida da políticamonetária. Sobre o assunto, Mendonça (2001, p. 1)afirma que

[...] de forma diferente de simples regras políticas,as metas para a inflação permitem ao BancoCentral o uso de modelos de estrutura e decisãoem conjunto com todas as informações relevantespara determinar a ação política mais adequadapara obter a meta anunciada”. As metas deinflação devem se adaptar às melhores condiçõesque o Banco Central observa na economia.

Gomes e Holland (2003, p. 4) apontam que oregime de metas inflacionárias vem justamentepara dar apoio às funções de reação do Bacen.Com as metas inflacionárias “o manejo dosinstrumentos de política econômica se tornaprerrogativa do arbítrio das autoridades monetáriasque, por sua vez, devem ter transparência em suasatitudes e, também, devem prestar contas doscaminhos traçados”. Os autores ressaltam que, aoserem estabelecidas as metas inflacionárias, asautoridades monetárias devem torná-las públicaspara que os agentes econômicos possamaumentar a expectativa de consumo, buscando amaior transparência possível ao público.

Em um estudo realizado pelo Bacen (2010),“Regime de Metas para a Inflação no Brasil”, aautonomia operacional do Bacen apresenta-secomo um fator importante para o estabelecimentodas metas de inflação. O Bacen (2010, p. 8)

“menciona a necessidade de a situação fiscal estarsobre controle e o sistema financeiro nacionalestável, de modo a não comprometer o alcance dameta de inflação.”. As metas de inflação devemestimar valores aceitáveis; para realizar essaestimação, o Bacen deve ter conhecimento dasituação econômica do país e dos mecanismos detransmissão da política monetária para adequarmelhores modelos macroeconômicos e torná-losmais eficientes.

O Bacen almeja evitar grandes variações doproduto para manter as metas no nível programado.Barcellos (2003, p. 15), citando Mishkin e Schmidt-Hebbel, menciona que “quanto maior o tempo que apolítica monetária leva para ter efeito sobre aeconomia, maior a necessidade de um horizonte detempo para observar os resultados das açõestomadas pelo Banco Central.” Ele reforça adiscussão desses autores quando expressa aatuação da política monetária com regime de metade inflação da seguinte forma:

Esse procedimento é muitas vezes adotadoporque, se a política monetária leva muito tempopara surtir efeito, e o intervalo de tempo épequeno, qualquer choque na economia, geradorde um aumento generalizado de preços, terá queser reprimido fortemente para que a taxa deinflação não se desvie da meta (BARCELLOS,2003, p. 14).

As metas inflacionárias trabalham com umhorizonte de tempo determinado para verificar oalcance da meta, e ao final do período estimadoocorre o estabelecimento de outra meta com osindicadores da meta anterior, o que permiteestabelecer um novo período. Em geral, esseperíodo é de um a dois anos para estimação dessameta de inflação. Conforme o Bacen (2010), oregime de metas de inflação deve apresentar asprincipais características a seguir:a) escolha do índice de inflação;b) definição da meta, que pode ser pontual ouintervalar. No caso intervalar (banda), ainda existea alternativa de ter ou não uma meta central;c) horizonte da meta: definição do período dereferência para avaliar o cumprimento da meta paraa inflação;d) existência de cláusulas de escape:estabelecimento a priori de situações que podemjustificar o não cumprimento das metas;e) transparência: formas de comunicação daautoridade monetária visando informar à sociedadesobre a condução do regime de metas.

Portanto, o regime de metas de inflação atuacomo um guia para as autoridades monetárias

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alcançar a estabilidade dos preços. A partir de umregime de metas de inflação, o Bacen busca maiorprevisibilidade da atividade econômica, estruturandoum modelo capaz de suavizar o viés inflacionário.

3 A regra de Taylor

A regra de Taylor foi desenvolvida na obra“Discretion versus Policy Rules in Practice”. Nestaobra, lançada em 1993, nos Estados Unidos, oautor, John B. Taylor, demonstra que a políticamonetária deve seguir regras transparentes eaceitáveis para a obtenção de melhores resultados.Estes resultados são obtidos por meio daintrodução da taxa de inflação e da taxa decrescimento do produto em uma equação linear,juntamente com suas respectivas metas, com afinalidade de obter uma taxa de juros básica capazde suavizar os efeitos adversos de uma políticamonetária estruturada com taxas de juros elevadas.

Taylor (1993) apresenta uma função de reaçãobaseada no comportamento das taxas internas dejuros dos Estados Unidos no período entre 1987 a1992. De acordo com o autor, a formação da taxade juros nesse país pode ser representada pormeio de uma função linear, adotando a taxa deinflação e sua meta correspondente, juntamentecom a taxa de juros de equilíbrio e o desviopercentual do produto interno bruto (PIB) real e doPIB potencial, formando o hiato do produto.

Barcellos (2003) menciona que a regra de Taylornão foi estimada econometricamente. A equaçãoapresentada por Taylor (1993) adotou parâmetrosutilizados pelo Federal Reserve (FED).

A regra de Taylor é capaz de orientar asautoridades monetárias, ou seja, o banco central, aformular políticas monetárias baseadas em umataxa de juros que permita maior previsibilidadeeconômica. Entretanto, no caso em que ascondições expansionistas ou restritivas sãoadotadas, tem-se uma taxa de juros menor oumaior do que a ideal; em função disso, o bem-estarsocial que depende, em parte, tanto da inflaçãocomo do nível de emprego, somente pode seraumentado gradualmente, informando ao público osplanos de mudar para uma nova política.

A regra de Taylor incorpora indicadores deperíodos anteriores como resultado obtido atravésda inflação, do PIB real e potencial para alcançartaxas de juros que permitam às autoridadesmonetárias adotarem padrões mais confiáveisquando se estabelecem limites de políticasexpansionistas ou reducionistas. Essa regra foi

formulada a partir de resultados obtidos peloFederal Open Market Committee (FOMC), órgãoligado ao banco central americano.

Taylor (1993) defende a utilização de sua funçãode reação pelo banco central americano eargumenta que os formuladores de políticasmonetárias, tais como os membros do FOMC,baseiam suas decisões nos seguintes fatores: nosindicadores obtidos por políticas monetáriasanteriores; nos valores assumidos pela taxa dejuros e por meio da utilização de modelosfuncionais que absorvam melhores resultados paradefinir os valores da taxa de juros.

Os bancos centrais aumentam suaprevisibilidade ao adotarem novos mecanismos decondução de políticas monetárias, sendo a regra deTaylor uma função de reação capaz de conter o altonível de inflação e gerar percentuais positivos paraa produção do país.

Taylor (2007) mostra que o banco centralamericano reage de forma mais agressiva aoperceber um aumento da inflação, elevando asoscilações das taxas de juros. Por meio de umaaplicação da regra de Taylor nos Estados Unidos,foi possível, nesse país, reduzir o viés inflacionário,contribuindo para o aumento do produto ao reduziro ciclo de recessão e as grandes flutuações nastaxas de juros que tinham causado a grandevolatilidade na economia norte-americana.

Os bancos centrais têm atuado no controle daestabilidade dos preços, adotando regimes de metainflacionária, buscando reduzir os desvios doproduto. A regra de Taylor reflete o objetivo dosbancos centrais, atuando na estabilidade de preçose previsibilidade dos agentes econômicos, por meiodo equilíbrio das taxas de juros.

A função de reação apresentada por Taylor(1993) indicou que o melhor comportamento dastaxas de juros norte-americana foi durante operíodo presidido por Greenspan. A aplicaçãodessa regra foi amplamente confiável, estimandoum regime de política destinada à inflação baixa nolongo prazo e um nível estável de produção no curtoprazo.3.1 Metodologia empírica

A investigação empírica sobre o comportamentoda taxa de juros no período de 2005 a 2012(BACEN, 2013a), descrita nesta parte do trabalho,é constituída através da regra de Taylor original,com algumas adaptações.

A metodologia adotada por Mendonça (2001) éutilizada, também, como referência para a

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25 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

constituição da regra de Taylor. Este autor formulamelhores condições matemáticas da regra para ocaso brasileiro, apresentado a seguir.

A taxa de juros Selic é estabelecida a partir damédia percentual efetivada durante os períodosanalisados. Esta taxa é adotada por se tratar deum instrumento primário de política monetária eincidir sobre os financiamentos de curto prazo.Portanto, existe o interesse das autoridadesmonetárias de manter a taxa básica de juros(Selic) na meta estabelecida.

O trabalho adota a inflação medida com baseno índice de preços ao consumidor amplo (IPCA).O IPCA mede a inflação oficial do Brasil, sendodivulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia eEstatística (IBGE). A taxa de inflação adotada paraestimar a regra de Taylor é baseada na taxa deinflação acumulada ao final de cada períodoanalisado. Portanto, utilizando essas variáveis, otrabalho verifica se a regra de Taylor é capaz deatenuar o comportamento elevado da taxa de juros(Selic) durante o período de 2005 a 2012.3.1.1 Base de dados

A regra de Taylor é constituída a partir de dadosobtidos através da divulgação da meta da taxa dejuros e seus valores efetivos apresentados peloBacen. Também é adotada a inflação efetiva combase no IPCA, divulgada pelo IBGE (2012).A partir dessas variáveis, ocorre a formação daregra de Taylor, seguindo sua estrutura original,também aplicada com modificações por Mendonça(2001).A aplicação da regra é realizada com base nasseguintes variáveis: a)inflação: acumulada nosúltimos 12 meses; b) meta de inflação: divulgadapelo Bacen a cada ano; c) taxa de juros real: médiada taxa de juros Selic efetivada a cada ano; d) hiatodo produto: constituído pela diferença entre PIB reale o PIB potencial.3.1.2 Método utilizado

A regra de Taylor utilizada na determinação dataxa de juros segue a seguinte especificação:

it = ðt + r* + 0,5(ðt - ð*) + 0,5(yt)

it = Taxa básica de juros estimada pela regra deTaylor no período t;r* = Taxa real de juros efetiva no período de 2005 a2012;ðt = Taxa média de inflação efetiva para o período t;

ð* = Meta da taxa de inflação estabelecida para osanos de 2005 a 2012;yt = Hiato do produto no período t.

Este modelo, em seu formato original, foidesenvolvido por Taylor (1993), sendo adaptadopor Mendonça (2001) para ser aplicado à economiabrasileira. O cálculo do hiato do produto tambémfoi realizado de acordo com Taylor (1993), sendoformulado da seguinte maneira:

yt = 100 .

4 Aplicação da regra de Taylor no casobrasileiro

4.1 Resultado da regra de Taylor para o ano de2005

Em 2005, através da aplicação da regra deTaylor foi possível obter uma taxa de juros menorque a praticada no mercado. A taxa Selicpermaneceu na média de 19,14%; já por meio dautilização da regra de Taylor obteve-se umataxa de juros de 15,08%. Este valor abaixo dataxa básica de juros proporcionado pelaregra de Taylor atribui-se ao aumento da inflaçãono ano de 2005. Durante esse ano, a inflaçãoefetiva divulgada pelo IBGE (2012) foi de 5,69%,distanciando-se da meta estabelecida. Através daaplicação da regra de Taylor observou-se que ainflação, ao se distanciar da meta estabelecidapelas autoridades monetárias, proporciona taxa dejuros menores que a praticada no mercado. O PIBreal durante o ano de 2005 permaneceu próximo doPIB potencial, não provocando uma grandevariação no cálculo do hiato do produto.4.2 Resultado da regra de Taylor para o ano de2006

A regra de Taylor também permitiu umaredução da taxa de juros para o ano de 2006,quando a taxa de juros básica (Selic) foi de15,05%. Através da aplicação da regra de Taylor, ataxa de juros é reduzida para 7,94%. Neste mesmoano, a taxa de inflação ficou em torno de 3,14%;enquanto a meta estabelecida manteve-se em4,5%. A inflação efetiva manteve-se abaixo da metaestabelecida, proporcionando taxas de juros aindamenores que as aplicadas no mercado (IBGE,2012). O hiato do produto não apresentou umavariação muito acentuada, devido à aproximação doPIB real com o PIB potencial.

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4.3 Resultado da regra de Taylor para o anode 2007

A aplicação da regra de Taylor permitiu umaestimativa da taxa de juros de 13%, percentualmaior que a taxa Selic, que foi de 11,86%. Ainflação efetiva no ano de 2007 permaneceu bempróxima da meta, o que revela o sucesso daspolíticas monetárias. Nessa situação, a regra deTaylor não foi capaz de provocar a redução da taxade juros. A taxa de inflação divulgada pelo IBGE(2012) foi de 4,46%, já a meta manteve-se em4,5%. A regra de Taylor não permitiu estimarvalores menores da taxa básica de juros duranteesse ano, devido à aproximação dos valoresefetivos da inflação e sua meta estabelecida.Nesse ano, ocorreu um aumento da perspectiva decrescimento econômico do país, mas ocrescimento do PIB real manteve-se próximo ao doPIB potencial, não contribuindo com uma grandevariação do cálculo do hiato do produto.

4.4 Resultado da regra de Taylor para o anode 2008

No ano de 2008, a taxa de juros Selicefetivou-se em 12,50%. A taxa de juros obtida pelaregra de Taylor foi de 12,44%, o que demonstraequilíbrio entre as duas taxas. Este equilíbrio,resultado da aplicação da regra de Taylor, foiprovocado pelo aumento da inflação e pelo aumentodo PIB real, aproximando a taxa de juros Selic dataxa de juros estimada pela regra de Taylor. Esseano também registrou aumento percentual dainflação de 5,90% (IBGE, 2012). O PIB real foi de5,10%, sendo que o PIB potencial foi estimado em4,5%. Nesse caso, o aumento do hiato do produtoutilizado na Regra de Taylor foi capaz de estimaruma taxa de juros menor, mas bem próxima àquelaestabelecida pela taxa de juros Selic.4.5 Resultado da regra de Taylor para o ano de2009

A taxa de juros Selic, durante o ano de 2009,efetivou-se em 9,73%. A aplicação da regra deTaylor permitiu obter uma taxa de juros maior,equivalente a 11,27%. Neste ano, o Brasilapresentou um período de recessão. Emcontrapartida, a regra de Taylor, em seu formatooriginal, não atende às condições de recessão, jáque foi desenvolvida para economias em períodosnormais de crescimento econômico. A regra deTaylor aplicada à economia brasileira foi estimadadesconsiderando o período de recessão,acumulando o crescimento do produto ao longo do

ano. A partir desse método, a regra de Taylor foicapaz de obter uma taxa de juros de 11,27%,situando-se acima da taxa Selic, devido ao baixocrescimento do PIB.4.6 Resultado da regra de Taylor para o anode 2010

Em 2010, a taxa de juros Selic efetivou-seem 9,93%. Nesse ano, o PIB real apresentou umcrescimento de 7,5%. Esse crescimentocontribuiu para a redução da taxa de juros nomodelo de Taylor; o que permitiu obter um taxa dejuros de 1,89%. É possível que este valor reduzidotenha sido resultado de um afastamento do PIBreal em relação ao PIB potencial. Esse valorreduzido da taxa de juros foi o menor durante operíodo analisado, confirmando que o afastamentodos resultados obtidos da meta planejada é capazde provocar uma redução da taxa de juros, quandose utiliza a regra de Taylor.4.7 Resultado da regra de Taylor para o anode 2011

No ano de 2011, a aplicação da regra de Taylorpermitiu a obtenção de uma taxa de juros de3,48%. Este valor percentual manteve-se abaixo doestimado pelo Bacen, sendo de 11,68%.O hiato do produto absorveu o crescimentoeconômico obtido no ano de 2010, registrando omaior crescimento durante os períodos analisados.O PIB potencial foi estimado em 4,8%;efetivando-se em 2,7%, segundo o IBGE. Odistanciamento do PIB real, em relação ao PIBpotencial, permitiu estimar uma taxa de jurosinferior àquela estabelecida pelas autoridadesmonetárias. A inflação (IBGE, 2012) efetivamanteve-se superior ao estabelecida pelo Bacen,contribuindo para o baixo valor encontradopela regra de Taylor.

4.8 Resultado da regra de Taylor para o anode 2012

A taxa de juros Selic efetivou-se em médiadurante o ano de 2012 em 8,05%. Utilizando aregra de Taylor para este ano, foi possívelestabelecer uma taxa de juros de 5,67%, maisuma vez abaixo da taxa de juros Selic. O aumentodo valor obtido pela regra de Taylor no ano de 2012em relação a ano de 2011 ocorreu por meio daaproximação do PIB real e do PIB potencial,favorecendo um aumento percentual da regra deTaylor, apesar de o Bacen ter obtido sucesso noalcance e na redução da taxa de juros Selic.

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5 Conclusão

A análise da regra de Taylor como estratégia decondução da política monetária permitiu chegar aconclusões interessantes durante boa parte doperíodo analisado. Observou-se que para o Bacenobter taxas de juros mais brandas, o cumprimentodas metas torna-se fundamental. A aplicação daregra de Taylor demonstrou-se sensível aosdistanciamentos das metas, apresentando valoresmenores na presença destes distanciamentos.Taylor (1993) demonstrou que as mudanças nataxa de inflação e no PIB real influenciaram atrajetória da taxa de juros, o que é confirmado pelaaplicação do modelo ao caso brasileiro.

Os desvios das metas de inflação e do PIB realem relação ao PIB potencial desempenharam umpapel importante na determinação da taxa de jurospela regra de Taylor, quanto maior a magnitude dosdesvios da meta, menores as taxas de jurosestimadas por esta regra.

Os resultados obtidos a partir da metodologiaadotada por Taylor (1993) demonstraram quequanto maior for o hiato do produto, melhor apossibilidade de estabelecer taxas de jurosmenores. O hiato do produto, além de contribuircom a formação de taxa de juros menores, tambémdemonstra que a economia está crescendo,conforme a estimativa feita a partir do PIBpotencial.

A regra de Taylor apresenta limitação por nãoser estimada econometricamente, mas Taylor(1993) utiliza-se das experiências de estudos deoutros autores para avaliar que modeloseconométricos não necessariamente são capazesde prever, com precisão, todos os comportamentosda política monetária. Outra limitação da regra deTaylor con--siste em não prever se aumentos da inflação sãotemporários ou permanentes, sendo necessária autilização de pesquisas ou análises mais precisasque aumentem o índice de confiança do método.

Ao se aplicar a Regra de Taylor à economiabrasileira no período estudado, foi possível obter,de maneira geral, um comportamento suave dataxa de juros, ressalvadas algumas exceções, masque não comprometem sua aplicação, nem aanálise

Notas:(1) Para ver históricos das taxas de juros e das metas deinflação, cf. Bacen (2013a, 2013b).(2) Os condicionantes diretos da política monetária sãoatribuídos ao uso dos instrumentos clássicos: as operaçõesde mercado aberto, o redesconto e as reservas obrigatórias.(3) Como efeitos indiretos da política monetária são atribuídosa reorganização das finanças públicas e os ataquesespeculativos sofridos pela moeda nacional.(4) Consiste na compra e venda de títulos em que o vendedorse compromete a recomprar o título a um preço acordado, eem data especificada, do comprador.(5) Neste tipo operação, o título se incorpora à carteira dainstituição compradora.(6) Austrália e Finlândia (1993), México (1994), Tailândia,Coreia do Sul, Filipinas e Indonésia (1997), Rússia (1998),Argentina (2002), Polônia e República Tcheca (1998).

* Este artigo é baseado no trabalho de conclusão decurso de graduação em Ciências Econômicas (UFPI),intitulado “A regra de Taylor como estratégia decondução da política monetária brasileira no períodode 2005 a 2011”.** Bacharel em Ciências Econõmicas (UFPI) emestrando em Ciência Política (UFPI)*** Professora adjunta do Departamento de CiênciasEconômicas (UFPI).

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28informe econômicoAno 14, n. 30, ago. 2013

O GOVERNO E O SISTEMAFINANCEIRO IMOBILIÁRIOPor Giovanni D. Montagnana*

Resumo: O objetivo deste artigo é elucidar que o brasileiro, ou pelo menos grande parte dele, vive mal; emostrar, em uma análise sobre a eficiência do acesso ao crédito de várias formas - seja por atuação dogoverno ou do mercado financeiro habitacional -, que a atual política habitacional está contribuindo para que oagente possa sozinho optar por melhorar de vida no que diz respeito a ter um endereço de qualidade.Palavras-chave: Políticas de habitação. Sistema financeiro habitacional. Inflação nos preços. Sub-habitações.Abstract: the objective of this paper is to elucidate that the Brazilian, or at least most of it, live badly, andshow, with an analysis of the efficiency of access to credit in several ways - either by government action orfinancial market of the housing - which the current housing policy is contributing to the agent choose alone toimprove your live with regard to having an dwelling of the quality.Keywords: Housing policy. Housing finance system. Inflation in prices. Sub-housing.

1 Introdução

O Brasil é um país de dimensões continentais enecessidades da mesma proporção, comproblemas deveras históricos que têmcaracterísticas próprias. Se este autor tentar listarparte deles, este artigo não teria fim e propósito.Mas um deles, sem dúvidas, e de importânciafundamental, é o problema da habitação no seusentido mais amplo. Sabemos que o poder decompra do brasileiro historicamente foi baixo. Édifícil imaginar os malabarismos feitos até entãopara um cidadão comum obter um imóvel; piorainda para a população de baixa renda. As políticasvoltadas para esta classe social desfavorecida,conforme Sachs (1999), somente começaram a seconcretizar no Governo Vargas (1930-1945), com odecreto-lei n. 58, de 1937 - regulando o espaçourbano com a venda de lotes à prestação e logo porcarteiras prediais dos institutos de aposentadoriase pensões1 - e também com o decreto-lei doinquilinato, de 1942 [decreto-lei n. 4.598],congelando os aluguéis, que, na prática,desestimulou a construção de novas casas paraeste fim (INFOMONEY, 2003). A insuficiência derenda e a crescente demanda por imóveis acaboupor estimular a formação de casas na periferia.

As periferias no Brasil são outro grandeproblema; geralmente tratadas como áreas dehabitações irregulares, porque não seguem nenhumpadrão arquitetônico decente, ainda situam-se emterrenos invadidos ou adquiridos a preços ínfimosdiretamente com intermediários ilegais. Semnenhum equipamento urbano adequado, esta

população tem, historicamente, enfrentado grandesproblemas locais. Não bastasse o problema demorar em sub-habitações sensíveis a quaisquerintempéries, os moradores da periferias convivemcom o desconforto gerado por aglomeradosfamiliares entre pais, filhos, tios, sobrinhos,cunhados etc., tendo praticamente que dividir omesmo quartinho, e passam por problemasdiariamente como esgoto a céu aberto, falta decaminho para fruição de águas pluviais, em muitoscasos, falta água encanada, eletricidade coleta delixo etc. Cada favela tem sua peculiaridade deproblemas, mas um ponto em comum entre elas éa ausência do Estado e a presença da violência.

O objetivo deste artigo não é fazer umaradiografia da desgraça e sim elucidar que obrasileiro, ou pelo menos grande parte dele, vivemal; e mostrar em uma análise sobre a eficiênciado acesso ao crédito de várias formas - seja poratuação do governo ou do mercado financeirohabitacional -, que a atual política habitacional estácontribuindo para que o agente possa sozinho optarpor melhorar de vida no que diz respeito a ter umendereço de qualidade. Neste sentido, a segundaseção deste trabalho faz uma análise sobre ocrescimento demográfico e seus impactos; aterceira trata da estrutura do sistema financeirohabitacional e sua contribuição para o aumento dofunding para o setor; a quarta seção trata daspráticas que desenvolve o sistema financeiroimobiliário sob iniciativas da legislação e regulaçãodo sistema financeiro habitacional; por fim, aconclusão.

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2 Uma análise do crescimento demográficobrasileiro

Em 1950, segundo o Insttuto Brasileiro deGeografia e Estatística (IBGE) (apud GIRARDI,2008), o Brasil tinha uma população urbana de 11milhões de habitantes. Em 2010, passou para 160milhões; e foram financiados 25% dos imóveis noperíodo em que funcionou o Banco Nacional daHabitação (BNH), de 1967 a 1986.

Os dados da Tabela 1 mostram que a populaçãode 1991 a 2010 cresceu 30%, com maiorexpressão no estado do Pará, com 53,15%;São Paulo, com aumento de 30,6%; Rio deJaneiro, 24,8%; Minas Gerais, com 24,5%; eBahia, com 18,1%. No entanto, o crescimento doproduto interno bruto (PIB) foi muito baixo emrelação ao crescimento populacional no mesmoperíodo, como se pode observar na tabela 2.

O crescimento do PIB no período em análise foide 18,5%. Já o crescimento médio anual dapopulação foi de 1,5%, enquanto o PIB teve umcrescimento anual médio, no mesmo período, de0,9% ao ano. Em comparação com o crescimentopopulacional, vê-se que o crescimento do PIB nãoacompanhou a evolução deste crescimento para

que se pudesse acomodar as demandas dapopulação.

crescimento se dá mais por migrações do quecrescimento natural do município. Em geral, isto sedeve à população advinda dos mais variadosrincões do País que procuram, historicamente, nacidade melhores oportunidade de vida (SACHS,1999). A maioria desta população tem baixo nívelagregado de mão de obra, além de seremdesprovidos de poupança para melhor se situarem.O resultado são subempregos, informalidade,aglomerações e as piores formas de condições devida.

O Brasil ainda é um país com grandes bolsõesde pobreza em quase todas as suas localidades.Cerca de 85% da população vive em áreas urbanascomutadas em vias favoráveis e desfavoráveis, ondecasas e boas vias são compartilhadas com casasmal construídas sem planejamento arquitetônico.

Nos anos 1980, ocorreu a decaída do sistemahabitacional, porque os recursos de depósitos parafinanciamentos tornaram-se insuficientes,acompanhado de aumento na inadimplência,principalmente da classe média, em razão docrescimento da inflação, gerando aumento do valor

Tabela 1 - População. Brasil. 1991-2010(em milhões de habitantes)

Fonte: Ipeadata (2013).

Tabela 2 - Crescimentodo PIB. Brasil.1991-2010 (em %)

Font

e: IB

GE

(20

13)

Se tomarmos comoexemplo o município de SãoPaulo, nesse mesmo período(1991-2010), o crescimentopopulacional foi de 16,9%,resultado da diferença de umcrescimento populacional de9.626.894 habitantes para11.253.503 habitantes(PASTERNAK, 2010); umcrescimento, em termosabsolutos, de 1.626,629 milhabitantes, o que equivale -somente este crescimento - auma população maior que ade Recife (PE), mesmoTaschner e Bógus (2000)tendo detectado um pequenodecrescimento populacionalno período de 1986 a 1994,devido a efeito dodeslocamento de parte daindústria paulistana para ointerior, diminuindo a oferta deempregos. Este fator gerauma tensão muito grande, seconsiderar que este

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nas prestações dos imóveis em descompasso como aumento dos salários corrigidos pela correçãomonetária com os programas de compensaçãosalarial (AZEVEDO, 1988)2 provocando aumento nainadimplência, como se pode observar na Tabela 3.

O BNH garantiu, por um período, uma fonteestável para os financiamentos, porém, não foramatingidas as metas das demandas sociais de umpaís tão grande, como o Brasil. Por ser um caráterde jogo financeiro, demorou para que o governosubsidiasse os projetos, dando prioridade aossistemas de recursos de retorno financeiro, que,assim excluindo grande parte da população debaixa renda.

A grande preocupação do governo era acrescente inadimplência. Sofreram, até mesmo, osfinanciamentos da Companhia Metropolitana deHabitação (Cohab), criada pelo BNH em 18 de abrilde 19743 (AZEVEDO, 1988). Diante disto,aumentaram os critérios para os financiamentosaos de renda mínima, de três para cinco saláriosmínimos para o financiamento habitacional. Se omínimo de três salários mínimos já não atendia aosmais desvalidos, a elevação para cinco saláriosaumentou o abismo de necessitados de habitação.

Esta é a grande discussão. “A concentração dodéficit na faixa de até três salários mínimos: 89,4%das famílias, e para as famílias de renda de atécinco salários mínimos é de 6,5%” (BRASIL, 2009,p. 28).

Como se pode observar no Gráfico 1, houve umpico de crescimento nos financiamentos do SFH,entre os anos 2000 e 2010, de 7.239 milhões decasas para 11.815 milhões; um aumento de 63,2%,ante um crescimento de 36,39% dos anos 1990 a2000.

Desde a extinção do BNH em 1986, devido adesgastes políticos, endividamento excessivo e orepúdio da população ao associar o banco à épocainflacionária dos anos 1980, os recursos passarama ser administrados pela Caixa Econômica Federal(CEF), trazendo dificuldades técnicas iniciais pelainexperiência de seus funcionários ante aosexperientes do BNH que foram demitidos. Váriosministérios foram direcionados para administrar aquestão da habitação no Brasil, até que em, 1º demarço de 2003, criou-se o Ministério das Cidades,que passou a definir para onde iriam osinvestimentos (IPEA, 1989).

Já no início do segundo mandato do presidenteLula, em novembro de 2007, o governo federal criouum pacote de investimentos chamado Plano deAceleração do Crescimento (PAC), que incluiuvários projetos de investimentos em infraestruturapara todo o País, além da construção de milhõesde habitações e saneamento, como forte apelosocial a fim de extinguir o deficit habitacional doPaís, com o slogan “Minha casa, minha vida”. Esteprograma foi incorporado ao Ministério dasCidades, que libera os recursos através da CEF,advindos da caderneta de poupança, Fundo deGarantia por Tempo de Serviço (FGTS) e subsídiosdo governo. Os mecanismos para liberação derecursos têm seu destino às construtoras eincorporadoras que apresentam projetos a CEF,tendo uma comissão de análise para aprová-los eliberar todos os recursos necessários para osempreendimentos (CEF, 2013).

O programa do PAC para habitação concedefinanciamento habitacional na área urbana afamílias com três tipos de faixa de renda (dados de2012) (CEF, 2013): famílias de renda bruta de atéR$ 1.600,00; com renda entre R$ 1.601,00 e R$3.100,00; e as de renda de R$ 3.100,00 a R$5.000,00. Isto é possível através do financiamentodo Fundo de Arrendamento Residencial (FAR),criado pela lei n. 10.188, de 12 de fevereiro de

Fonte: Santos (1999, p. 15)

Ano Até trêsprestações

Mais de três prestaçõesem atraso

Total

1981

1983

1984

1980

1982

21,8 4,3 26,1

24,1

28,7

34,1

31,5

4,8

3,7

12,3

23,1

28,8

33,5

46,4

54,6

Tabela 3 - Nível de inadimplência do SFH. Brasil1980-1984 (em %)

Gráfico 1 - Financiamentos do SFH. Brasil. 1970/2012.(em milhões)

Fonte: Abecip (2012).

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2001, autorizando a CEF a “criar um fundofinanceiro privado com o fim exclusivo desegregação patrimonial e contábil dos haveresfinanceiros e imobiliários destinados ao Programa.”(art. 2º)4 em parceria com os órgãos estaduais emunicipais. Seus valores máximos para as famíliasde baixa renda (renda bruta de até R$ 1.600) variampara cada município: o maior valor fica para SãoPaulo, Distrito Federal e nas capitais com suasregiões metropolitanas (R$ 76 mil) e o menor valoré para o interior dos estados de Rio Grande do Sul,Paraná e Santa Catarina (máximo de R$ 60 mil),uma diferença de 21,05%. Fatores comovalorização local dos terrenos são levados emconta neste cálculo. Há subsídio de até 90% dosvalores feito pelo governo e nas parcelas nãoincidem taxas e nem juros com correção, somentepela taxa referencial (TR). Os financiamentos sãode até 10 anos e com prestações de até 10% dossalários (CEF, 2009). Para a faixa de renda de atéR$ 3.100,00, as famílias são beneficiadas comsubsídios financiados pelo FGTS e os de renda deaté R$ 5.000 têm o benefício do fundo garantidor dehabitação (CEF, 2012).

3 Sistema financeiro habitacional

O mercado financeiro imobiliário, queengatinhou por muito tempo sustentado poremissão de letras hipotecárias, cartas de créditoetc., desenvolveu-se a partir de 1997, quando foicriado pelos ministros Pedro Malan e AntonioKandir, o SFI, com a lei n. 9.514, de 20 denovembro de 1997, possibilitando a formação deorganização de fundos de captação ampliada parafinanciamento de empreendimentos imobiliários.Sua função é obter funding de longo prazo. Criam-se vários fundos imobiliários a rentabilidadesatraentes, assim como o Certificados deRecebíveis Imobiliários (CRIs) e várias companhiasde securitização.5 O CRI, de acesso restrito,somente era destinado a investimentos com capitalmínimo de R$ 300 mil que, por lei, destina 65% dosseus recebíveis diretamente na caderneta depoupança para financiar imóveis. Desde então,surgiram outros fundos para o fortalecimento domercado secundário.6 Isto proporcionou que osinvestidores institucionais migrassem suasaplicações tradicionais para os certificadosimobiliários, ajudados pela inflação e, em certaépoca, pagando juros maiores que as do TesouroNacional. “Levantamento da Uqbar (apudACIONISTAS.COM.BR) demonstra que os bancos

ainda são os maiores participantes deste mercado.Eles representam 47,7% dos investidores. Mais de25% são pessoas físicas, 12,5% são fundos deinvestimentos, 7,1% são entidades de previdênciaprivada, e 5,2%, instituições financeiras.”

Um grande atrativo para a entrada deinvestimentos foi a criação de uma emenda àmedida provisória 460, com a lei n. 12.024, de 27de agosto de 2009, que desobriga os fundosimobiliários a recolherem imposto de renda, assimaumentando a rentabilidade das carteiras deinvestimentos dos aplicadores, incentivando amigração de grandes fundos institucionais para osfundos imobiliários.7 Tal incentivo propiciou acriação de companhias hipotecárias e bancosentrando em operações similares. Também adecisão judicial desde a remuneração da poupançaaté a facilitação na liberação do crédito é de grandevalida aqui para ser analisada. Este mercado, comlastro em construção e aluguel de imóveis, propiciaa participação de grandes seguradoras para darhedge ao mercado e ampliar o número deinvestidores. Mas isto não seria viável se algumaspráticas de facilitação de acesso ao crédito, bemcomo de garantias reais não fossem implantadaspelo governo.

Os dados do Gráfico 2 evidenciam o predomíniodo funding gerado pela caderneta de poupança,com 70% de participação. Em seguida, vêm osdepósitos do FGTS, com 20,4%; logo após, vem aparticipação do SFI, liderado pelas Letras deCrédito Imobiliário, 14,3%, devido a isenção deimposto de renda (IR), seguida dos CRIs, com7,4% e a letra hipotecária (LH), com 0,5%. Emcomparação com os anos anteriores, todas ascategorias de fundos cresceram, tais como osdepósitos em poupança disponíveis em mais de

Gráfico 2 - Funding

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140% no período, além do FGTS, que cresceu414%, estoque de letra imobiliária (LI) e LH, em455%, e os CRIs, com mais de 1255%; isto devidoà sua abertura a investimentos a pessoas físicas enão somente privilegiar investidores qualificados(investidores com mais de R$ 300 mil de capitalinvestido).

4 Práticas que desenvolvem o sistemafinanceiro imobiliário

Lazari Junior (apud MOROOKA, 2012) concluique o SFI, com sua segurança jurídica regulatóriaconsolidada, desenvolveu o mercado desecuritização. Isto trouxe maciços investimentosdos bancos. O autor frisa também a atenção àeducação e ao desenvolvimento técnico do créditoimobiliário através de certificação como fatoresatrativos positivos ao financiamento imobiliário.Também como fator positivo de atrativo, o nível deinadimplência se encontra em 1,4%, o que garante

ampliação do mercado para liberação de crédito àpopulação de baixa renda devido ao nível decomprometimento da renda em honrar com asprestações.

No Gráfico 3, vê-se uma queda muito grande donível de inadimplência de 2004 a 2011,principalmente na inadimplência de longo prazo, de4,4% para 0,4%. Isto se deve a progressiva quedana taxa de juros, aumento na renda, relativa quedana inflação e mecanismos flexíveis para obtençãode financiamentos, com destaque para adiminuição das hipotecas e aumento da alienaçãofiduciária (que será explicado adiante), o quetambém ajuda na queda dos juros. Porém, ogrande financiador de empreendimentos de longoprazo para a população de baixa renda ainda é ogoverno. Como o país ainda convive com altíssimoíndice de pobreza, informalidade e baixos salários,é natural que o governo tenha um papelfundamental nisto.

Gráfico 4 - Deficit habitacional por faixa de renda (em salário mínimo)

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Se considerarmos que 72% da população brasileira vive com até 5 salários mínimos e confrontar com osdados do Gráfico 4, há de se imaginar o tamanho do problema: investimentos maciços devem ser feitos, emparticipação dos fundings criados e os a se desenvolver para absorver toda esta demanda.

Gráfico 3 - Inadimplência por faixa de tempo (em %)

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Se a Holanda ultrapassa os 100% do seu PIBna concessão de crédito habitacional (cf. Gráfico5), o Brasil, em 2012, ainda não ultrapassou os 6%do seu PIB (cf. Gráfico 6). Por esta razão, não sesustenta a tese de que o Brasil esteja Passandopor um boom imobiliário, o que pressupõe arecente inflação nos preços devido a fundamentoseconômicos de oferta e demanda. Esses são osdados. O Brasil somente ultrapassou os 2% de

crédito imobiliário/PIB, na série histórica, em 2009,com 2,12% do PIB. Em 2012 o crédito habitacionalchegou próximo aos 6% do PIB, ante 4,3% do PIBem 2011 (Gráfico 6). Com uma situação de taxa dejuros reais baixos, os investidores terão queapostar em aplicações menos rentáveis e de longoprazo. Isto pode ser uma oportunidade para omercado habitacional, que é um setor sólido e debase jurídico institucional.

Gráfico 5 - Ranking crédito imobiliário/PIB. 2010. (os 15

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Fonte: Abecip (2012).

Gráfico 6 - Crédito imobiliário/PIB. Brasil. 2002-2012 (em %)

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Notas(1) Decreto-lei n. 4.565, de 11 de agosto de 1942. Até estadata, a legislação era bastante flexível e a inflação era baixa,não havendo problemas com os reajustes nos preços. Comesta lei, já influenciada pelas novas leis trabalhistas,congelaram-se os preços e dificultou-se o despejo dosinadimplentes. Houve, então, uma queda nos investimentosneste ramo em contramão com o aumento da demandadevido ao aumento da população (INFOMONEY, 2003).(2) Desde os primeiros anos da criação do SFH, implicaçõespolíticas de queda dos salários devido a flutuações naeconomia diminuía a capacidade de pagamento do mutuáriogerando aumento na inadimplência e descompassoscontábeis causados por políticas anti-inflacionárias,resultando em baixo crescimento na economia e baixossalários reais. Porém, houve aumento nas prestaçõesprejudicando os mutários. Criou-se, portanto doismecanismos: um era o Plano de Equivalência Salarial, quereajustava anualmente as prestações de acordo com oaumento médio dos salários; e o outro era o Fundo deCompensação das Variações Salariais, espécie desobreprestação mensal que foi criada para os novosmutuários a fim de financiar um fundo de compensação dasvariações salariais, assim quitando o saldo devedor dosremanescentes mutuários (SANTOS, 1999).(3) Os principais atuantes nas construções de casaspopulares eram as Cohab. Existiam também as cooperativashabitacionais, institutos de caixas de pensão que ,juntamentecom as Cohab, eram definidas como agentes operadores doSFH. (7) Nestes dois casos, além do comprovante de renda, tem-seque apresentar o imposto de renda de pessoa física.(8) Securitização: criada nos anos de 1970 pelo mercadofinanceiro internacional como prática de estruturar e venderinvestimentos negociáveis vendido a diversos investidoresum risco absorvido por somente um credor, transformandoseus passivos em títulos distribuídos no mercado e não maiscom empréstimos. É uma grande saída para países cujodeficit habitacional é grande, afinal, o SFH não temcondições de levantar um volume de capitais suficiente parafinanciamentos em série. O SFI ajudou as empresasconstrutoras, incorporadoras e instituições financeirasvoltadas para o setor. Neste caso, a securitização é avinculação destes créditos a diversos títulos de créditos erecebíveis. O prazo do investimento é igual ao prazo dofinanciamento, o que inibe a entrada de investidoresautônomos (ALVES, 2005).(9) Um grande problema apresentado é a baixa liquidez domercado secundário, ou seja, não existe, efetivamente, ummercado forte de compra e venda normal do mercado deações com os certificados imobiliários após a sua emissão.Isto porque os adquirentes de certificados costumam mantê-los até o final do prazo de vencimento.(10) Segundo Sorima Neto (2013), as aplicações em fundos deinvestimentos imobiliários cresceu mais de três vezes de2011 para 2012, chegando a 95 mil investidores.

ALVES, Paulo Roberto Rodrigues. O desenvolvimento dosistema financeiro imobiliário e da securitização de recebíveisimobiliários na redução do déficit habitacional brasileiro. 2005.79 f. Monografia (Bacharelado em Economia) - Instituto deEconomia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, 2005.AZEVEDO, S. Vinte e dois anos de política de habitaçãopopular (1964-1986). Revista de Administração Pública, Riode Janeiro, v. 22, n. 4, p. 107-119, out./dez. 1988.BRASIL. Decreto-lei n. 58, de 10 de dezembro de 1937. DiárioOficial da União, 13 dez. 1937, retificado no D.O.U.17.12.1937. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del058.htm>. Acesso em: 20mar. 2013.BRASIL. Decreto-lei n. 4.598, de 20 de agosto de 1942. DiárioOficial da União, 21 ago. 1942. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=4598&tipo_norma=DEL&data=19420820&link=s>.Acesso em: 20 mar. 2013.BRASIL. Lei n. 9.514, de 20 de novembro de 1997. DiárioOficial da União, 21 nov. 1997, retificado no D.O.U. de 24 nov.1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9514.htm>. Acesso em: 20 mar. 2013.BRASIL. lei n. 10.188, de 12 de fevereiro de 2001. DiárioOficial da União, 14 fev. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10188.htm>.Acesso em: 20 mar. 2013.BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional deHabitação. Déficit habitacional no Brasil 2007. Brasília:Ministério das Cidades, 2009.CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF. Um milhão de casas paraos brasileiros. 2009. Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/popup/resources/hotsite_mcmv_25062009.swf>. Acesso em: 07 out. 2012.CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF. Demanda habitacional noBrasil. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.caixa.gov.br/habitacao/mcmv /habitacao_urbana/ate5000/index.asp>. Acesso em: 10 abr. 2013.CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF. Cartilha Minha CasaMinha Vida. Disponível em: <ttp://downloads.caixa.gov.br/_arquivos/habita/mcmv/Cartilha_MCMV.pdf>. Acesso em: 10abr. 2013.GIRARDI, P. E. O rural e o urbano. Presidente Prudente: 2008.Disponível em: <http://www.geo.uel.br/didatico/omar/modulo_b/a12.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2013.INFOMONEY. Lei do Inquilinato: ruim para proprietários e piorpara inquilinos – 2003. Disponível em: <http://www.infomoney.com.br/minhas-financas/imoveis/noticia/137540/lei-inquilinato-ruim-para-propriet-aacute-rios-pior-para-inquilinos>. Acesso em: 20 mar. 2013.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -IBGE. Séries estatísticas. 1902-2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 12 mar. 2013INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA. Aspolíticas federais de desenvolvimento urbano em 1988.Brasília: Ipea, 1989.IPEADATA. Social: temas. Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br/>. Acesso em: 20 mar. 2013.MOROOKA, T. O crédito imobiliário pesa cada vez mais noPIB. Revista SFI, n. 37. p. 8-14, 2012.PASTERNAK, Suzana. O estado de São Paulo no Censo 2010.Observatório das Metrópoles. 2010. Disponível em: <http://web.observatoriodasmetropoles.net/download/Censo_2010_Sao_Paulo.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2013..SACHS, Céline. São Paulo, políticas públicas e habitaçãopopular. São Paulo:Edusp, 1999.SANTOS, C. H. M. Políticas federais de habitação no Brasil.Texto para discussão, Brasília, n. 654, 1999. Disponível em:<http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/1349872065.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2013.SORIMA NETO, João. Renda fixa com jeitinho de rendavariável. O Globo, 31 mar. 2013. [on line]. Disponível em:<http://oglobo.globo.com/economia/renda-fixa-com-jeitinho-de-renda-variavel-7992605>. Acesso em: 12 abr. 2013.TASCHNER, S. P.; BÓGUS, L. M. M. A cidade dos anéis: SãoPaulo. In: RIBEIRO, L. C. Queiroz (Org.). O futuro dasmetrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro:Revan; IPPUR/UFRJ-FASE, 2000. p. 153-174.

5 Conclusão

Há muito a se fazer e o potencial decrescimento ainda é real e animador, podendocontar com a tendência de desaceleração dospreços dos imóveis, a disponibilidade de acesso aocrédito crescente pelo sistema brasileiro depoupança e empréstimo e FGTS, aumentosconstantes da renda real acima da inflação,diminuição nas taxas de juros e a determinação emos agentes desejarem morar melhor e achar queisto é viável. Sem dúvidas, isso dinamizará o futurocrescimento da economia brasileira

ReferênciasACIONISTA.COM.BR. Investimentos. Disponível em: <http://www.acionista.com.br/investimentos/040510_cri.htm>.Acesso em 20 mar. 2013.ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS ENTIDADES DE CRÉDITOIMOBILIÁRIO E POUPANÇA - ABECIP. A revolução do créditoimobiliário 1967/2011. São Paulo: Abecip, 2012. *Mestrando em Economia/FEA/PUC-SP.

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MOVIMENTO QUILOMBOLA DOPIAUÍ: participação e organização paraalém da terra Por Daniely Monteiro Santos* e Solimar Oliveira Lima**

Resumo: Os movimentos sociais na sociedade contemporânea vêm assumindo uma complexidade crescentee uma riqueza organizativa destacável. O objetivo principal deste artigo é apresentar uma reflexão sobre asexperiências do movimento quilombola no Piauí, iniciado no final da década de 1980 e fortalecido nos últimos10 anos.Palavras-chave: Movimentos sociais. Movimento quilombola. Cidadania.

1 Introdução

Os movimentos sociais no Brasilcontemporâneo caracterizam-se por complexidadecrescente e pluralidade organizativa; dentre eles,destaca-se a articulação política de populaçõestradicionais, a exemplo dos remanescentes deescravizados organizados como movimentoquilombola. Objetiva-se neste artigo apresentar atrajetória do movimento quilombola no Piauí,iniciado no final da década de 1980 e fortalecidonos últimos 10 anos, que contribuiu para ampliar adiscussão de questões pertinentes à luta dospovos quilombolas na definição de políticaspúblicas no estado, tais como territorialidades,identidades, cidadania e regularização fundiária.

A criação, em 1990, de uma coordenaçãoestadual de comunidades quilombolas fortaleceu aluta pela posse da terra, a busca pela garantia deinstitucionalização de seus direitos sociais e aelevação de identidades negras em cerca de 170comunidades quilombolas identificadas no estadodo Piauí. A referida coordenação favoreceu aefetivação de políticas públicas de inclusão,transformando-se em um dos movimentos maisorganizados do estado. A presença negra no Piauíiniciou com a ocupação do atual território, noséculo XVII, com a utilização de mão de obra negraescravizada para a atividade econômicapredominante - a pecuária - e se mantém comoreferência principal nos séculos de vigência dosistema escravista.

Segundo Lima (2005), práticas senhoriais decastigos e violências simbólicas buscavam amanutenção da estabilidade dessas relaçõesescravistas. Contudo, nesses longos anos decativeiro, foi recorrente o processo de resistênciada população negra cativa com o intuito desuperação da condição de escravizados e da busca

de sua liberdade perdida. Nesse sentido, aresistência negra manifestou-se em diferentesformas. Uma delas, e provavelmente a maiscomum, foi a fuga de escravizados; e foram a partirdessas fugas que, em geral, surgiram osdenominados quilombos, lugares onde osescravizados refugiavam-se com o principal objetivode assegurar sua liberdade. Para Costa (2009, p.56) “quando o escravizado cometia o ato da fuga,colocava-se de modo ativo em relação ao seuproprietário, bem como o próprio sistemaescravista, reclamando assim o direito de ser livre.”

A historiografia tradicional sobre a escravidão ea formação dos quilombos no Brasil narra, namaioria das vezes, uma trajetória de construçãodos quilombos a partir da resistência através defugas migratórias realizadas pelos escravizados.Silenciam, assim, outras possibilidades analíticasde resistência dos mesmos. Quando analisamos atrajetória de formação das comunidadesquilombolas piauienses, deparamo-nos com outrosprocessos de resistências. Através da construçãohistórica da memória coletiva dos moradoresaquilombados, nova ferramenta de análise daformação dos quilombos piauienses emerge, comoa formação de comunidades remanescentes dequilombos através de concessões e doações deterras das fazendas públicas e particularesexistentes no sertão nordestino.

A construção histórica das comunidadesquilombolas tem por base a memória coletiva dosremanescentes de quilombos, materializada eminúmeros espaços de memórias representados pelocemitério, pelas casas mais antigas, pelo rio, pelaseca, pelas roças, enfim, lugares de memória(NORA, 1993), que consiste na necessidade deregistrar a memória coletiva construída no seio dacomunidade como garantia de continuidade,

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legitimidade territorial e pertencimento. Comoafirma Pollak (1992), ela é essencial paramanutenção e vivência em grupo, pois está ligadaàs construções de identidades múltiplasnecessárias à coesão do grupo.

O testemunho oral dos moradores aliado àdocumentação disponível nos laudosantropológicos permitem uma análise sistemáticado surgimento dessas comunidades. O uso dahistória oral como metodologia reveladora damemória quilombola torna-se fundamental elegítima, uma vez que parte desses grupos de nãoletrados quase não deixou registro escrito e atradição oral revela o lugar privilegiado para oconhecimento das trajetórias desses grupossociais. Neste sentido, pode-se registrar quenegros ajudaram a estabelecer comunidades nointerior do Piauí. Essas comunidades sãodenominadas quilombolas, cuja formação tempossibilitado a continuidade como remanescentesda luta de resistência dos negros escravizados.

2 Comunidades rurais quilombolas

Segundo Boakari (2005), as populações negrasrurais são consideradas comunidades porque, emsua maioria, os habitantes (a) têm relações deparentesco e descendência comum, ou seja, ex-escravizados, (b) mostram grande sentimento depertencimento ao território em que vivem, (c)orientam-se por normas históricas baseadas nasinfluências da presença dos seus antepassados,valorizando suas identidades e a vida em grupo.Estas comunidades, reconhecidas negras rurais,ganhariam uma nova identidade a partir daConstituição Brasileira de 1988, com a elaboraçãodo artigo 68 do Ato das Disposições TransitóriasConstitucionais. Nele, garante-se o direito aosremanescentes das comunidades de quilombos oreconhecimento da propriedade definitiva sobre asterras que estiverem ocupando, com o dever estatalda emissão dos respectivos títulos.

Portanto, o referido artigo, quando cria o deverda titulação de terras, constrói também uma novacategoria política - remanescentes de quilombos -para as comunidades rurais negras espalhadas portodo o País. Ou seja, a partir da constituinte de1988, o Estado garante uma existência jurídica aospovos remanescentes de quilombos, o que implicao surgimento de um sujeito constitucionalespecifico. A partir de então, surgiu a necessidadede o conceito quilombo ser ressignificado ereinterpretado, exigindo uma leitura para além davisão historicista.

Para Fiabani (2007), atualmente os quilomboscontemporâneos são considerados territórios deresistência cultural do qual fazem parte gruposétnicos raciais que se identificam. Ele identificaque são determinados como comunidades negrasremanescentes de quilombos conforme oscostumes, as tradições e as condições sociais,culturais e econômicas específicas que osdistinguem de outros setores da coletividadenacional. Assim, no ano de 2003, o governo federaleditou o Decreto n. 4887 que regulamenta, no planoconstitucional, o reconhecimento das ocupaçõesquilombolas, apresentando avanços na absorção deconceitos, como territorialidade, identidade eautorreconhecimento.

A partir de então, a legalização das terras dosremanescentes de quilombos brasileiros passa pordiscussões e redefinições em torno de questõescomo identidades e territorialidades. Quando setrata das identidades, o fator identitário levou aspopulações negras rurais a se agruparem sob umamesma expressão coletiva, a declararem pertenci-mento a um grupo, a afirmarem territorialidadeespecífica e a encaminharem organizadamentedemandas ao Estado, exigindo o reconhecimentode formas intrínsecas de acesso a terra e políticaspúblicas e de exercício da cidadania.

Nesse sentido, a inclusão de novos atores naformulação e implementação das políticas públicas,ouvindo-os, institucionalizando sua participação elegitimando parcialmente suas demandas, em umcenário em que o fazer passou a ser de iniciativada sociedade, que não pode esperar pelo Estado,

Torna-se mais complexa a tessitura da esferapública [...] a política amplia-se [...] para asconcepções conservadoras, elitistas, vem aexigência de admitir a co-presença de atorespopulares [...]; para as concepções de esquerda,vem a exigência de admitir outros referencias quenão o de classe[...] referenciais que implicam,igualmente numa pluralização deste sujeito(BURITY, 2005, p. 71).

Em suma, à medida que avançou o processo dedemocratização, depois da crise econômicainstaurada na década de 1980, emergiu umcrescente número de demandas e atores sociais,como o movimento quilombola, em busca deatendimento e reconhecimento. A pluralidade deidentidades dos atores sociais, como dosremanescentes de quilombos, revela a necessidadede ampliação da cidadania, o reforço da malhaassociativa, a reconstrução dos laços desolidariedade e a reciprocidade entre indivíduos egrupos, tanto no âmbito da sociedade civil como noâmbito do Estado.

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Neste sentido, a identidade negra é entendidacomo um processo construído historicamente emuma sociedade que padece de um racismoambíguo e de um mito de uma democracia racial.Ela se constrói no contato com o outro, nocontraste com o outro, na negociação, na troca, noconflito e no diálogo. São, portanto, os ativistasnegros os chamados a falar, explicar e expressartodo o saber que acumularam na construção desua identidade negra.

Para Telles (1999), a elevação e construção desua identidade amplia a cidadania e se fazpresente a partir das reivindicações dos primeirosmovimentos sociais da década de 1980. Aesperança da cidadania e a generalização dedireitos que essas mobilizações foram capazes desuscitar formaram uma dinâmica de negociaçõescentrada nos conflitos e na justiça social, e nãocentrada no Estado. Neste sentido, a autora apontapossibilidades reais de invenção democrática, queteve resultado na descoberta de direitos e açõesorganizadas pela sociedade civil e reconhecidaspelo Estado. Tais possibilidades são acontratualidade entre sociedade e Estado; medidasde equidade, com políticas sociais alternativas quepassaram a ser discutidas pelas organizaçõespopulares; e formas de negociação que osmovimentos sociais passaram a estabelecer comgovernos locais e que a participação tempossibilitado uma gestão pública realmente pública.

Quando se trata das territorialidades, énecessário compreender as comunidadesquilombolas como territórios de pertencimento queforam sendo construídos historica e politicamenteatravés das mobilizações por livre acesso aosrecursos básicos em diferentes regiões e temposhistóricos. O processo de territorialização, comoafirma Almeida (2008), é, logo, resultante de umconjunto de fatores envolvendo a capacidademobilizatória, em torno de uma política deidentidades, e do jogo de forças em que os agentessociais travam suas lutas e reivindicam direitosface ao Estado.

Os remanescentes quilombolas caracterizam-sepor modos específicos de ser, viver e fazer. Sãoseus territórios, os espaços de produção destasmanifestações e, neste sentido, condiçãofundamental para a sobrevivência da própriacomunidade. A territorialidade representa, portanto,o esforço de uma coletividade em ocupar, usar,controlar e identificar-se com um grupo específico.Assim, a territorialidade é entendida como uma

expressão concreta e abstrata do espaçoapropriado, comunidade rural, e produzido, formadopor sujeitos que o redefinem no seu cotidiano.

A organização quilombola tem o diferencial defixar-se na discussão em torno da territorialidadesob duas bases fundamentais: a herança africana,fixação de seus saberes originários, e a defesa deum território. A territorialidade é baseada na relaçãode parentesco, no respeito aos mais velhos, nopapel de cada um dentro da comunidade, nareligiosidade, nos espaços concretos e simbólicose na manutenção e transmissão de seuscostumes.

Portanto, a construção política de umaidentidade coletiva em que seja possível assegurara maneira estável do acesso a recursos básicosresulta, deste modo, em uma territorialidadeespecífica que é produto de reivindicações e delutas dos remanescentes de quilombo por acesso aterra e a políticas públicas de inclusão social. Coma regularização fundiária, as comunidadespassaram a reivindicar, além do título da terra, oacesso a várias políticas públicas do governofederal destinadas aos remanescentes dequilombo, como abastecimento de água, estrada,eletrificação, serviços de saúde, saneamentobásico e educação; direitos básicos para oexercício da cidadania.

3 A luta pela regularização da terra

Apesar de considerar a auto-atribuição comocritério da identidade quilombola, é necessário queas comunidades quilombolas busquem estereconhecimento junto ao Estado. As etapas quedevem ser seguidas para a identificação, ou seja,abertura dos processos de reconhecimentoenquanto comunidade quilombola, são: criar umaassociação comunitária em sua comunidade,registrar em cartório, encaminhar para a FundaçãoCultural dos Palmares (FCP) um documento emque se autodefinem como remanescentes deex-escravizados e pedir o seu cadastramento parasolicitar a regularização fundiária de suas terras(cf. BRASIL, 2007). Logo após a publicação noDiário Oficial da União e no Diário Oficial doEstado, a FCP encaminha a solicitação deregularização para o Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária (Incra), órgãoresponsável pela delimitação e titulação das terras.Para que o mesmo inicie os trabalhos nascomunidades, elas devem apresentar a certidão deregistro no Cadastro Geral de Remanescentes de

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Comunidades de Quilombos, emitida pela FCP(BRASIL, 2009).

A primeira parte dos trabalhos do Incra consistena elaboração de um estudo da área, destinado àconfecção do Relatório Técnico de Identificação eDelimitação do território. A segunda etapa é a derecepção, análise e julgamento de eventuaiscontestações. Aprovado em definitivo esse relatório,o Incra publica uma portaria de reconhecimento quedeclara os limites do território quilombola. A faseseguinte corresponde à regularização fundiária,com a saída de ocupantes não quilombolasmediante desapropriação e/ou pagamento deindenização e demarcação do território. O processoculmina com a concessão do título de propriedadeà comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e emnome da associação dos moradores da área,registrado no cartório de imóveis, sem qualquerônus financeiro para a comunidade beneficiada(BRASIL, 2009).

Segundo Assunção Aguiar, (2010), então doInstituto de Assistência Técnica e Extensão Ruraldo Estado do Piauí (Emater-PI), as comunidadesquilombolas defendem o título coletivo para oquilombo, pois a coletividade é um dos elementosde sua identidade e se estende para além datitulação. A titulação das áreas quilombolas mostraser um processo difícil e complexo, pois envolverelações que não são somente geográficas e simculturais, religiosas, simbólicas e políticas. Nestesentido, a constituição de um território quilombolaextrapola a questão geográfica e administrativa.

Para Alberti e Pereira (2007), o movimento negrourbano contribuiu significativamente para avisibilidade da organização quilombola, ampliando-apara o espaço público. Esta visibilidade existenteiniciou-se por meio de um processo histórico delutas pela manutenção do território quilombola e porpolíticas públicas de inclusão nas comunidadesnegras rurais. Essa luta começou a mais de duasdécadas, quando se institucionalizou a relaçãoentre o Estado e as comunidades quilombolas porintermédio da FCP, ligada ao Ministério da Culturae da Secretaria Especial de Promoção daIgualdade Racial, órgãos que têm como objetivoajudar na garantia dos direitos territoriais aspopulações aquilombadas.

O movimento negro é entendido como umsujeito político cujas reivindicações conseguiram, apartir do ano 2000, influenciar o governo brasileiro eseus principais órgãos com uma trajetória históricaintegrante do contexto atual da organização dos

movimentos sociais que emergiram a partir dadécada de 1970. Esse reconhecimento tempossibilitado uma mudança dentro de váriossetores do governo no processo de implementaçãode políticas públicas e práticas de açõesafirmativas voltadas para a população negra.

Segundo Gomes (2011), enquanto sujeitocoletivo e político, esse movimento é visto comouma coletividade onde se elaboram identidades ese organizam práticas através das quais defendeminteresses, expressam vontades e constituem-seidentidades, marcados por interações e processosde reconhecimento recíprocos. O movimento negro,portanto, inserido num contexto de uma sociedadedeterminada pelo racismo, pauta a necessidade denegar a história oficial e contribuir para aconstrução de uma nova interpretação da trajetóriados negros no Brasil; assim se distinguem dosdemais movimentos sociais e populares.

Um dos setores do governo criado nestecontexto foi a FCP, que é uma instituição públicafederal, criada em 22 de agosto de 1988, pela lei n.7.668, em resposta às pressões do movimentonegro organizado no Brasil que lutava pelaoportunidade de contribuir para uma mudança maisrápida da realidade discriminatória e excludente dasociedade brasileira. Logo depois de criada, elatomou para si o combate à intolerância racial noBrasil, além de potencializar a participação dapopulação afro-brasileira no processo dedesenvolvimento do País; sua principal função,portanto, é o reconhecimento das terrasquilombolas, além de conduzir o processo deformulação de políticas públicas que atendam àsdemandas e especificidades dos povosremanescentes de quilombos (BRASIL, 2013).

A Secretaria de Políticas de Promoção daIgualdade Racial foi criada pelo governo federal nodia 21 de março de 2003. Sua criação é mais umreconhecimento das lutas históricas do MovimentoNegro Brasileiro; sua missão é estabeleceriniciativas contra as desigualdades raciais no paíse, dentre seus principais objetivos, podemosdestacar: a promoção da igualdade e a proteçãodos direitos de indivíduos e grupos raciais eétnicos, com ênfase na população negra;acompanhar e coordenar políticas de diferentesministérios, especialmente o Ministério deDesenvolvimento Agrário, e outros órgãos dogoverno brasileiro para a promoção da igualdaderacial, articulando e promovendo a execução deprogramas de cooperação com organismos

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públicos e privados, nacionais e internacionais(BRASIL, 2005).

4 Organização quilombola no Piauí

A organização quilombola em âmbito nacionalsurgiu a partir do Movimento Nacional dasComunidades Negras Rurais Quilombolas, que éhoje um dos mais ativos agentes do movimentorural no Brasil. “Unidos pela força da identidadeétnica, os quilombolas construíram e defendem umterritório que vive sob constante ameaça deinvasão.” A partir da década de 1990, configura-seuma articulação própria quilombola com contornosnacionais. Em 1995, foi realizado em Brasília, de17 a 20 de novembro, o I Encontro Nacional deComunidades Negras Rurais Quilombolas (TERRADE DIREITOS, 2011, n.p.).

Em maio do ano seguinte, foi criada aCoordenação Nacional de Articulação deComunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq),em Bom Jesus da Lapa (BA). Ela ainda não possuipersonalidade jurídica; seu trabalho consiste emdiferentes formas de organização: associações,coordenações e conselhos. Os objetivos da Conaqsão “lutar pela garantia do direito a terra [e] pelaimplantação de projetos de desenvolvimentosustentável das comunidades, preservar oscostumes, a cultura e a tradição entre as gerações[das populações quilombolas]”, propor políticaspúblicas, “levando em consideração a organizaçãopré-existente das comunidades de quilombo, taiscomo o uso comum da terra e dos recursosnaturais, sua história e cultura em harmonia como meio ambiente.” (MDA, 2004, p. 54-55).

O movimento negro junto com o movimentoquilombola fazem parte de um mesmo contexto delutas pelo alcance do reconhecimento,redistribuição e representação política na esferapública para os negros no Brasil. Assim, no Piauí,o movimento quilombola surgiu em meados de1988 - época em que todos negavam a existênciade quilombos no estado - com a necessidade demelhorias das condições de vida das populaçõesnegras que viviam isolados no interior. Nomes comoSeu Andrelino, Negro Bispo, Naldinho, MariaRosalina e Oswaldina dos Santos surgiram como objetivo de alavancar discussões e lutas para aspopulações quilombolas (BATISTA, 2010).

Os trabalhos nas comunidades quilombolaspiauienses iniciaram com a influência da IgrejaCatólica, em 1985, realizando trabalhos deidentificação das comunidades, introdução política

e religiosa, evangelizando e organizando os váriosnúcleos de trabalhadores a fim de discutir e proporsoluções para diversos problemas sociais queafligiam as comunidades rurais. Neste período,houve a entrada do movimento social negro no meiorural, criando um vínculo entre esses últimos atorese as comunidades negras, o que foi essencial paraa organização e surgimento do movimentoquilombola do Piauí (SANTOS, 2006).

No início da organização quilombola do Piauí,um dos primeiros pontos que se privilegiou notrabalho com as comunidades foi a valorização dacultura negra, desenvolvido a partir da década de1990 pelo Grupo Coisa de Negro, de Teresina. Ogrupo foi responsável pela introdução de novosmilitantes voltados para o fortalecimento cultural eartístico nas comunidades. Com as iniciativas deRuimar Batista, Assunção Aguiar, Lúcia Araújo,Halda Regina, Deputada Francisca Trindade(in memoriam), entre outras pessoas, utilizaram-seda cultura negra para mobilizar e sensibilizar ascomunidades quilombolas. Outros temas foramparalelamente trabalhados a exemplo daparticipação da mulher na organização dascomunidades e a elevação da identidadequilombola com a formação política (AGUIAR, 2010).

O movimento negro de Teresina, na figura deRuimar Batista, Amparo Aguiar, Áureo João eoutros militantes, iniciou, neste período, umprocesso de formação de uma coordenação delideranças quilombolas e, logo após, a criação deum núcleo de articulação estadual com o objetivode incluir os debates sobre consciência negra,identidade quilombola, reconhecimento de sua raçanegra e de sua religião, além de formação políticapara os moradores das comunidades quilombolasdo estado (BATISTA, 2010).

Como resultado deste processo, despertou nascomunidades rurais o desejo por lutar pela causaquilombola: liberdade e terra. Assim, iniciou-se acriação de sindicatos e associações comunitáriasnas comunidades com o objetivo de desenvolver,politica e socialmente, a implementação depolíticas públicas que atendessem àsnecessidades reais das comunidades quilombolas.

Podemos concluir que a partir da criaçãodacoordenação estadual das comunidadesquilombolas do Piauí, no final da década de 1990,ocorreu uma maior relação entre o Estado e ascomunidades, bem como uma articulação maiorcom o movimento nacional. Através disso, aidentificação dos quilombos, os trabalhos de

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formação e as políticas públicas adquiriram maiseficácia e efeito, melhorando as condições de vidae ampliando o acesso às políticas públicas nascomunidades quilombolas, como, por exemplo,projetos de desenvolvimento cultural e socialligados à Petrobras, inventários de mapeamentodas comunidades quilombolas e de suasmanifestações culturais, realizados pelo Institutodo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,projetos de assistência à agricultura familiar,realizados pela Emater e Secretaria de AssistênciaSocial e Cidadania (Sasc), dentre outros).

Pensando nas especificidades do meio rural,surgiram projetos iniciais introduzidos nascomunidades quilombolas no Piauí. Um deles foi oprojeto de Assessoria Técnica e Extensão Rural(Ater) no quilombo. Este projeto é financiado pelaOrganização das Nações Unidas para a Agriculturae Alimentação (ONU/FAO), pelo MinistérioExtraordinário da Segurança Alimentar/Fome Zero,pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário emparceria com o Emater-PI. Ele, o projeto, tem porobjetivo o desenvolvimento sustentável dascomunidades quilombolas através de projetos nasáreas de caprino e ovinocultura, galinha caipira,apicultura, horta orgânica e comunitária, algodão,mamona e outras áreas que a comunidadedemandar. Além de realizar um trabalho deassistência técnica e ações na área social, comocursos sobre afrodescedência, cultura negra,associativismo, cooperativismo, segurançaalimentar dentre outros (PIAUÍ, 2010).

Segundo dados do Emater-PI (PÍAUÍ, 2010), oprojeto atuou em 67 comunidades quilombolas dasregiões de Picos e Paulistana, envolvendo cerca de40 técnicos do Emater, da Fundação Cultural doEstado do Piauí, Sasc, Secretaria deDesenvolvimento Rural, Grupo Afro Cultural Coisade Nego, Núcleo de Pesquisas sobre Africanidadese Afrodescendentes da Universidade Federal doPiauí (Ifaradá) e educadores populares dascomunidades.

Hoje, temos no Piauí 172 comunidadesquilombolas que são reconhecidas comoremanescentes de quilombos pela Emater, comapoio da ONU/FAO, apoiada pela SecretariaNacional de Igualdade Racial (SOUSA, 2013).

Outro exemplo de projeto implementado emcomunidades quilombolas é o caso do QuilomboSalinas, localizado no município de Campinas doPiauí. Conforme Ferreira (2012), as manifestaçõesculturais da comunidade são alvos de projetos de

incentivos culturais realizados pela Petrobras.Manifestações como samba de cumbuco, capoeirade quilombo e reisados são tradições dacomunidade passadas de geração a geração,responsáveis pela preservação cultural dosmoradores de Salinas. Com o dinheiro provenientedos projetos e investido na comunidade são criadosoficinas e projetos de manutenção da cultura negraafricana dentro da comunidade, tais como corte ecostura, computação, oficina de violão e batuque eestética africana. Atualmente, devido à forteatuação e participação do movimento quilombolapiauiense, temos na Conaq duas representantes,Maria Rosalina dos Santos, do quilombo Tapuio,em Queimada Nova, e Cleane Silva, do quilomboSalinas, em Campinas do Piauí, ambas levando ogrande desafio de transmitir para outrascomunidades a importância da valorização epercepção enquanto ser negro e quilombola.

5 Conclusão

Embasados na reflexão de Flávio dos SantosGomes (2003) a despeito da sociedade escravistaque se impôs sobre nosso país, observamos queos cativos e outros segmentos sociaisconstituíram-se como sujeitos de suas própriasvidas e histórias. As lutas contemporâneas, tantonas cidades como no caso estudado, nas áreasrurais representam nada mais do que o desdobra-mento desse processo contra a exclusão social.

As comunidades quilombolas cada vez maisprocuram forjar significados que legitimem suabusca por liberdade. Seja no século XIX seja nacontemporaneidade, buscam sua liberdade sob aforma de aquilombamento, que se caracterizacomo protestos reivindicatórios, ora para que nãofossem vendidos ou transferidos, ora para amanutenção na terra com condições de dignidade.

Os quilombolas, historicamente, vivem embusca de sua liberdade e luta por transformaçõesem suas vidas. O desejo desta população parece iralém das políticas públicas; ela buscareconstrução de sua história, articulando as lutaspelo acesso, direito à propriedade da terra e acontinuidade de sua cultura originária.A recuperação da história dos quilombos é umcapitulo importante para a luta em torno do acessoa terra e de conquista de cidadania. Trata-se,portanto, de um capítulo da história de um país quese apresenta como estado democrático de direitovoltado a garantir a dignidade e o respeito àdiversidade étnico-racial de seu povo

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* Aluna do Mestrado em História do Brasil daUniversidade Federal do Piauí (UFPI) e membroGrupo de Pesquisa da Escravidão à Autogestão([email protected]).** Professor do Departamento de CiênciasEconômicas e do Mestrado em História do Brasil naUFPI. Doutor em História/PUCRS([email protected]).

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POLÍTICA DE GARANTIA DEPREÇOS MÍNIMOS PARA A CERA DECARNAÚBA: comparação entre preçosmínimos e preços de mercado das safras de2003/2004 - 2011/2012Por Vera Lúcia dos Santos Costa*, Taffarel Francisco Oliveira Soares**e Jaíra Maria Alcobaça Gomes***

Resumo: O objetivo geral é analisar a política de garantia preços mínimos para a cera de carnaúba nassafras de 2003/2004 - 2011/2012. Especificamente, objetiva-se identificar a metodologia para a fixação dopreço mínimo da cera de carnaúba e analisar o comportamento dos preços mínimos e de mercado. Osfatores que determinam o preço o mínimo são os custos de produção, o preço de mercado e o preço deparidade.Palavras-chave: Carnaúba. Cera. Política de garantia de preços mínimos.

1 IntroduçãoA cera de carnaúba, produzida a partir do pó

cerífero, tem grande demanda em decorrência desuas características físico-químicas, permitindo-lheampla aplicabilidade industrial. Os estados em quehá produção de cera de carnaúba são o Piauí, oCeará e o Rio Grande do Norte. Constituem omercado da cera de carnaúba o interno (mercadobrasileiro) e o externo (mercado mundial), contudo,a maior porcentagem da produção de cera destina-se ao mercado externo, ficando os produtores àmercê da conjuntura econômica global. Emdecorrência disto, os preços da cera oscilam tantono mercado interno como no externo, sendonecessária a intervenção do governo por meio deuma política que estabilize os preços. Para atingiresse objetivo, foi criada, no Brasil, em 1943, apolítica de garantia de preços mínimos (PGPM) pormeio da Comissão de Financiamento da Produção.

No caso da cera carnaúba, as primeirasintervenções nos preços ocorreram nas safras de1951/1952, de 1952/1953 e de 1961/1962. Só apartir da safra de 1970/1971 foi que,definitivamente, a cera de carnaúba passou a seramparada, permanentemente, pela PGPM(CASADIO, 1980). A mudança seguinte ocorreu apartir da safra de 2008/2009, quando a PGPMcontemplou, também, produtos dasociobiodiversidade; e a política foi desdobrada emuma nova modalidade denominada de PGPM-Bio.

A PGPM-Bio é resultado do plano nacional de

promoção das cadeias de produtos dasociobiodiversidade, o qual estabeleceu, em seuterceiro eixo de ação, a estruturação e ofortalecimento de mercados que seriamconseguidos por meio de estudos e pesquisassobre os mercados desses produtos, capacitaçãodos agentes da cadeia produtiva, ampliação daslinhas de crédito para comercialização, ampliaçãodo acesso ao mercado, divulgação e promoçãodesses produtos, desenvolvimento e implantaçãode mecanismos de avaliação de conformidade eadequação do marco regulatório às especificidadesdos produtos (MDA; MMA; MDS, 2009).

Conforme a temática aqui desenvolvida, caberessaltar que um dos meios para realizar essameta é a ampliação do número de produtoscontemplados na PGPM-Bio. Os produtosenquadrados nessa política são: babaçu(amêndoa), açaí (fruto), borracha natural, castanha-do-brasil, baru, carnaúba (pó cerífero e cera), pequi(fruto), piaçava (fibra), mangaba e umbu.

A pesquisa baseia-se nos estudos sobre aPGPM para o pó e cera de carnaúba de Casadio(1980), D’Alva (2004), Cerqueira, Gomes e Silva(2011); bem como no estudo da cadeia produtiva dacera de carnaúba de Gomes, Santos e Silva (2006)e no estudo sobre extrativismo da carnaúba deAlves e Coêlho (2008).

Este estudo é resultado do projeto de pesquisaintitulado “Eficiência e eficácia da política de

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43 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

garantia de preços mínimos para o pó e cera decarnaúba”, desenvolvido no período de agosto de2011 a julho de 2012, com o apoio do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq).

O objetivo geral desse artigo consiste emanalisar a PGPM para a cera de carnaúba nassafras de 2003/2004-2011/2012. Especificamente,objetiva-se: identificar os critérios de fixação dopreço mínimo da cera de carnaúba e analisar ocomportamento dos preços mínimos e de mercado.

Para tanto, a seção seguinte discorre sobre aintervenção do governo no mercado de produtosagrícolas, com uma breve caracterização domercado da cera de carnaúba e da PGPM; emseguida, tem-se os procedimentos metodológicos,a comparação dos preços mínimos e de mercadoda cera de carnaúba e conclusão.

2 Intervenção do governo no mercado: anecessidade de estabilizar preços

Conforme a teoria econômica clássica, omercado funciona bem quando não há intervençãode agentes externos; as forças de mercado,compradores e vendedores sempre encontram umponto de equilíbrio; e a ação de qualquer agenteestranho ao mercado altera esse ponto desejável.Contudo, o mercado falha, o que torna necessária aexistência de uma mão visível que o conduza parao ponto de equilíbrio. Para que haja esse equilíbriode mercado, é necessário que a concorrência sejaperfeita - grande quantidade de produtores e decompradores - quando, na realidade, o mercadoque mais se aproxima da concorrência perfeita é ode produtos agrícolas, na condição coeteris paribusde não haver nenhum acontecimento extraordinário,como mudanças no clima, aumento de chuvas ouredução destas e outros (EATON; EATON, 1999).

Conforme a teoria da microeconomia (EATON;EATON, 1999), no mercado perfeitamentecompetitivo, o preço é determinado num ponto emque a quantidade ofertada é igual à demanda,resultando num preço de equilíbrio. Em preçosmais elevados que estes, os produtores aumentamas quantidades ofertadas, porém, essa ação serefletirá no preço que tende a baixar. É nestemomento que entra o governo com a política desuporte de preços, com o objetivo de, ao aumentara quantidade ofertada, manter o preço do produtonesse mercado competitivo.

Há alguns fatores que justificam a intervençãodo governo nos preços dos produtos e é em função

desses fatores que os governos de diversos paísessubsidiam sua produção agrícola. SegundoMcConnell e Brue (1990), tais fatores sãoproblemas relacionados ao curto prazo - flutuaçõesano a ano dos preços e rendas agrícolas - e aolongo prazo - declínio do setor agrícola. Segundoos autores, “o problema agrícola de curto prazo é oresultado (1) de uma demanda inelástica porprodutos agrícolas, combinada com (2) flutuaçõesna produção agrícola e (3) de deslocamento dacurva de demanda por produtos agrícolas”(McCONNELL; BRUE, 1990, p. 329).

A fim de se proteger das flutuações dos preços,a partir da segunda metade do século XX,formaram-se grupos (lobbies) bem-sucedidos deagricultores no Brasil, Estados Unidos e outrospaíses, inclusive os da Europa, com o objetivo deconseguir um suporte de preços para uma série deprodutos agrícolas junto ao governo (EATON;EATON, 1999). Nessa concepção, o governo podeatuar por meio de dois programas genéricos:programas de estoques reguladores e programa desubsídio de preços. No primeiro, há a compra doproduto a um preço de suporte determinado earmazenamento de toda quantidade adquirida. Nosegundo, o governo pagaria aos produtoresagrícolas um subsídio por unidade produzida igual àdiferença entre o preço de suporte designado e opreço pelo qual o produto fosse efetivamentevendido no mercado.

No Brasil, a intervenção governamental naagricultura iniciou-se com a criação da Carteira deCrédito Agrícola e Industrial do Banco do Brasil,que tratava de questões relacionadas aofinanciamento; e com criação da Comissão deFinanciamento da Produção, em 1943, paragarantir preços na comercialização de produtos(GRAMACHO, 1993).

Lucena e Souza (2001), ao analisar a políticaagrícola e o desempenho da agricultura brasileirano período de 1950 a 2000, fizeram um panoramada política agrícola brasileira realizada nesseperíodo. Segundo os autores, nas décadas de 1950a 1970, o governo brasileiro preocupou-se emmelhorar a infraestrutura de comercialização,especialmente por meio de investimentos emtransporte e armazenamento e na modernização dosetor agrícola, por meio de subsídios à importaçãode insumos modernos, ao crédito rural e àampliação do sistema de assistência técnica. Paratanto, na década de 1960, implantou o SistemaNacional de Crédito Rural.

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Em função desta política, juntamente com ocrescimento da demanda interna e externa, aagricultura cresceu aproximadamente 66% nadécada de 1970 (LUCENA; SOUZA, 2001).Contudo, no final dessa mesma década, a políticade crédito rural deteriorou-se em função dosdesequilíbrios macroeconômicos internos.A consequência de toda essa conjuntura foi amudança de foco na política agrícola e, dessemodo, o governo passou, então, a dar prioridade àpolítica de preços mínimos, pela qual o governoassegura uma renda mínima ao produtor rural eprotege o setor agrícola das oscilações de preços,acentuadas na época de comercialização da safra,quando a oferta é maior que a demanda (LUCENA;SOUZA, 2001).

Já na década de 1990, houve uma reformulaçãona política agrícola brasileira. Foi nessa décadaque a política agrícola passou a fazer uso dosmercados futuros, nos quais os produtores seprotegem de riscos e perdas financeiras causadaspor variações nos preços de seus produtos; foiintroduzida a securitização - alongamento dasdívidas dos produtores rurais, dando a opção aoprodutor de entregar em produto o valor equivalenteao refinanciamento do débito - e a adoção dapolítica de preços mínimos associada à de gestãode estoques (LUCENA; SOUZA, 2001). Nessamesma década, foi criado, também, o ProgramaNacional de Fortalecimento da Agricultura familiar(MASSUQUETTI; SOUZA; BEROLDT, 2010).

No início da década de 2000, o governo criou oprograma de modernização Moderfrota, viabilizandouma grande expansão no estoque de máquinas eimplementos agrícolas e a isenção do imposto derenda sobre as atividades agrícolas (GUANZIROLI,2006).

Em 2008, foi realizado o “Seminário nacionaldas cadeias dos produtos da sociobiodiversidade:agregação de valor e consolidação de mercadossustentáveis”, coordenado pelo Ministério do MeioAmbiente (MMA), Ministério do DesenvolvimentoAgrário (MDA) e Ministério do DesenvolvimentoSocial e Combate à Fome (MDS), com o objetivode fortalecer as cadeias de produtos dasociobiodiversidade e consolidar os mercados paraestes produtos (MMA; MDA; MDS, 2009). Nesteâmbito, foram inseridos produtos da sociobiodi-versidade na PGPM, passando esta a serdenominada de PGPM-Bio, como já mencionado.

Observa-se o esforço do governo ao longo dosanos em apoiar o desenvolvimento do setor

agrícola através de políticas e programas quebeneficiem os agentes socais que estão na base dosetor como, por exemplo, o produtor rural e oagricultor familiar.2.1 Cera de carnaúba: caracterização do mercado eda PGPM

O estudo do mercado da cera de carnaúbacompreende análises da oferta, da demanda, dosprodutos substitutos e da conjuntura econômica.Entretanto, para caracterizar o mercado, fez-seapenas a identificação por meio de estudos járealizados sobre a temática como a pesquisa daCasadio (1980); o artigo de Cerqueira, Gomes eSilva (2011); o artigo de Oliveira e Gomes (2006)e o artigo de Souza, Bezerra e Gomes (2006).

A cera de carnaúba é obtida do pó cerífero pormeio de processos químicos na indústria ou deforma artesanal. A produção de cera ocorre nosestados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte, osquais ofertam tanto no mercado interno comoexterno. Nesses estados, há várias empresas queprocessam de forma industrial a cera de carnaúba,concorrendo entre si. Segundo Souza, Bezerra eGomes (2006), a concorrência entre elas chega aser predatória, baixando o preço até certo limite,forçando o aumento da demanda somente para suaoferta.

A demanda interna é formada pelas indústrias depolimentos, moldes, papel carbono, cosméticos,alimentícia e outras situadas principalmente nasregiões Sul e Sudeste; exceto os estados doCeará, Piauí e Pernambuco, na região Nordeste;Amazonas e Pará, na Região Norte; Goiás eDistrito Federal, na região Centro-Oeste (OLIVEIRA;GOMES, 2006). A demanda externa é constituídapor distribuidores nos Estados Unidos e na Europa,sendo que os maiores distribuidores estão noJapão, nos Estados Unidos e na Alemanha. Entreos ramos industriais a que se destina a cera decarnaúba, citam-se polidores de couro,farmacêutico e material de limpeza (SOUZA;BEZERRA; GOMES, 2006). Como o número deprodutores de cera de carnaúba é menor que o decompradores, estes têm o poder de negociação nomercado, de barganhar melhores preços e,consequentemente, têm maior influência naformação do preço do produto.

Os substitutos da cera de carnaúba, parafina,cera de candelila e cera microcristalina, segundoCasadio (1980), tinham preços mais baixos, o queameaçava o mercado da cera de carnaúba. Citam-se ainda a cera da cana-de-açúcar, de jojoba, de

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45 Ano 14, n. 30, ago. 2013informe econômico

retamo, do farelo de arroz, de mirtilo, da alfafa, docânhamo, do linho, do café, de esparto, de bambu,de cortiça de algodão, de chá e do Japão(OLIVEIRA; GOMES, 2006). Estes tipos de cerasão de origem vegetal, mas existem outras que sãoas de origem animal, mineral e sintéticas.

Outro fator que influencia os preços da cera decarnaúba é a conjuntura econômica do período. Emmomentos de crise, a demanda se retrai, tornandoa oferta maior e os preços mais baixos; e, na fasede expansão da economia, os preços ficam maisaltos. A cera de carnaúba, por ter sua demandaessencialmente externa, sofre as consequênciasda conjuntura econômica mundial (COSTA, 2011).No Gráfico 1 tem-se a variação do valor dasexportações de cera de carnaúba do Piauí, Ceará eRio Grande do Norte no período de 2000 a 2010.

A redução do valor exportado no período de2001-2003 e no ano de 2009 pode ser explicadapela conjuntura econômica global. SegundoLourenço (2003), a economia mundial sofreu umdesaquecimento no período de 2000-2003, sendoexplicado pela reversão do boom acionário da novaeconomia dos Estados Unidos, causando retraçãodo comércio internacional; pela recessão japonesaque foi alimentada pelos créditos podres do seusistema financeiro; e pela crônica estagnação daUnião Europeia. Embora o preço das commoditiestenham se elevado de forma geral no ano de 2003(MENEZES et al., 2010), o preço médio da cera nomercado externo reduziu em relação aos anosanteriores. No ano de 2008, ocorreu a criseeconômica mundial que ocasionou a retração detodo o setor exportador brasileiro. Como a cera decarnaúba é um produto dependente do mercadoexterno, sendo empregado largamente na

composição de produtos de empresasmultinacionais, o setor produtivo teve, com a criseeconômica, sua demanda reduzida.

Com as desestabilizações do mercado,afetando o preço da cera de carnaúba,consequentemente afeta a oferta do produto, cujabase de sua produção provém do extrativismo dopó cerífero. A indústria de cera de carnaúba reduz ademanda por essa matéria-prima, atingindo o lucroda produção dos extrativistas. Daí provém anecessidade de intervenção do governo, dandosuporte ao preço do produto.

A cera de carnaúba foi enquadrada nasseguintes políticas: financiamento, executado pormeio da Carteira de Crédito Agrícola Industrial doBanco do Brasil, a partir de 1948; aquisição deexcedentes da produção por meio da Carteira deComércio Exterior do Banco do Brasil; e fixação depreços mínimos por meio da Comissão deFinanciamento da Produção (CASADIO, 1980).

Inicialmente, a fixação de preços mínimos pelogoverno tinha por objetivo estabilizar os preços dacera de carnaúba no mercado externo; depois,passou a ter outra justificativa, a garantia de rendaaos produtores. Casadio (1980) cita que aspremissas para formalização da política de renda,conforme trabalhos feitos sobre a cera de carnaúbano início de 1979 eram: (a) queda sucessiva noconsumo de cera de carnaúba decorrenteprincipalmente de diminuição de seus usos(indústrias de papel carbono e polimento) e suasubstituição por ceras artificiais (montana emicrocristalina) e outros produtos sintéticos; (b)existência de dois mercados principais para a cerade carnaúba: produtos cosméticos com demandainelástica e papel carbono com demanda elástica;(c) os substitutos da cera de carnaúba têm preçosmenores e regularidade de abastecimento; e (d)custo de oportunidade nulo, pela inexistência deoutra atividade alternativa na entressafra de outrasculturas.

O primeiro estudo específico sobre a PGPMpara a cera de carnaúba foi realizada por Casadio(1980). A autora analisou a eficiência desta políticapor meio dos seguintes indicadores: exportaçõesde cera, emprego e distribuição de renda. Osegundo que também tratou do tema foi o de D’Alva(2004), ao abordar o extrativismo da carnaúba noCeará. O terceiro foi publicado por Cerqueira,Gomes e Silva (2011). Estes autores fizeram umaanálise da influência da PGPM sobre os preços demercado do pó e cera de carnaúba. Este estudo

Gráfico 1 - Valor corrente (US$ FOB) de cera de carnaúbaexportada dos estados do Piauí, Ceará e Rio Grande doNorte. 2000-2010

Fonte: Costa (2011)

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concluiu que o principal problema para aoperacionalização da PGPM é a falta deinformação dos extrativistas em relação à política eque a PGPM não influi no preço de mercado do póe cera de carnaúba.

O mercado da cera de carnaúba é caracterizadopor uma pequena demanda interna concentrada naregião Sul e Sudeste e demanda externa queabsorve mais da metade da produção, sendo queos maiores compradores estão nos EstadosUnidos, Japão e Alemanha. A cera de carnaúbaconcorre com outras ceras que, no entanto, nãosão substitutos perfeitos. A conjuntura econômicatambém influencia o mercado de ceras, afetandosua demanda.

3 Procedimentos metodológicos

Nesta pesquisa, é analisada a PGPM nosestados do Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte,nos quais há produção de cera de carnaúba.

Para verificar os critérios de fixação do preçomínimo da cera de carnaúba, fez-se a análise dodecreto-lei n. 79, de 19 de dezembro de 1966; erevisão bibliográfica do trabalho Moura (2005).

A pesquisa utilizou dados secundáriosreferentes ao preço de mercado da cera decarnaúba, fornecido pela gerente de produtos dasociobiodiversidade da Companhia Nacional deAbastecimento (Conab), Ianelli Loureiro (2012), pormeio de correio eletrônico; e preço mínimo da cerade carnaúba divulgado pela Conab, Título 47 -Normas específicas de cera de carnaúba - safra; eDiário Oficial da União. Além disso, fez-se visitatécnica à Conab e foi realizada uma oficina sobre aPGPM para o pó e cera de carnaúba em março de2012 com produtores e técnicos da Conab naUniversidade Federal do Piauí, campus deParnaíba, no dia 30 março de 2012.

A cera de carnaúba é classificada em grupos etipos. Os grupos são cera bruta - obtida do pócerífero em fusão com água ou extração comsolventes orgânicos e é feita de forma artesanal - ecera refinada - obtida a partir da cera bruta porprocessos físicos e/ou químicos para a melhoria daqualidade, sendo produzida na indústria -, ambassão provenientes do pó cerífero do tipo A (olho) e dotipo B (palha). A cera bruta é classificada em trêstipos: cera olho - extraída do pó olho e apresentacoloração amarela; cera gorda - extraída do pópalha e apresenta coloração de marrom escura apreta; cera arenosa - extraída do pó palha eapresenta coloração cinza (BRASIL, 2004). A cera

refinada pode ser centrifugada, filtrada e clarificada,sendo classificada em cinco tipos, conforme oQuadro 1.

Os preços de mercado da cera de carnaúbafornecidos pela Conab foram: cera tipo 1 e tipo 3 doPiauí; cera tipo 1, tipo 4 e tipo 5 do Ceará; e ceratipo 1 e tipo 4 no Rio Grande do Norte.

4 Comparação de preços mínimos e demercado da cera de carnaúba nas safras de2003-2004 a 2011-2012

Segundo Moura (2005), os critérios utilizadospara a determinação do preço mínimo são o custode produção; preço pago ao produtor; preço noatacado e preço de paridade; e importação eexportação. O custo de produção inclui, também,gastos com escoamento.

Em 2009, a Conab fez uma revisão dametodologia dos cálculos de custos de produção, aqual serve de base para a fixação do preço mínimo.O objetivo era atualizá-la a fim de evitar adefasagem dos cálculos (CONAB, 2010a). Isso fezcom que a PGPM para a cera de carnaúba fossemais condizente com a realidade.

De acordo com a pesquisa de Santos et al.(2006), realizada no período de maio de 2003 asetembro de 2004 nas empresas do Piauí, aestimativa do custo unitário da produção de cera decarnaúba, incluindo os custos de escoamento,variava de R$ 3,42 a R$ 6,68, sem especificar otipo de cera. Já a pesquisa de Alves e Coêlho(2008) estimou o custo de produção da cera deorigem nos anos de 2005 e 2006 no Ceará, sendoque o custo unitário foi de R$ 1,88. Neste caso,estão inclusos os custos com a matéria-prima, noentanto, omite os custos com o escoamento daprodução, ressaltando-se que o produtor de ceratambém faz a extração do pó cerífero.

Cabe destacar que a cera produzida naindústria, ao agregar valor, possui custo de

Quadro 1 - Grupos e tipos de cera de carnaúba dosgrupos cera bruta e cera refinada

Fonte: Brasil (2004)

Pó Cera bruta Cera refinada

A

BArenosa

Prima 1 ou filtrada amarelaOlho

GordaMédia 2 ou filtrada extra gorda

Bruma 4 ou filtrada cinzaClara 3 ou filtrada gorda

Negra 5 ou centrifugada cinza

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produção maior que a cera produzidaartesanalmente, sem uso de máquinas ou qualquerproduto tecnológico. De acordo com Moura (2005),o coeficiente técnico mais relevante do custo deprodução é a mão de obra; e o critério de maiorpeso na determinação do preço mínimo da cera decarnaúba é o preço recebido pelo produtor. Paratanto, o órgão faz levantamentos mensais junto aosprodutores com o objetivo de acompanhar asoscilações do mercado. Para que a análise fossemais detalhada, seria necessário fazer umacompanhamento da variação do custo deprodução da cera ao longo do período proposto.

Os preços mínimos são fixados anualmentecom antecedência mínima de 30 dias antes doinício da atividade extrativa (BRASIL, 1966). Para oestabelecimento do preço mínimo, segundo otécnico da Conab, Humberto Pennacchio, segue-seo seguinte fluxo para a aprovação: (a) a Conabelabora a proposta e submete-a ao Ministério daAgricultura e Pecuária (Mapa); (b) o Mapa analisa ecoordena a reunião com o Ministério da Fazenda eo Ministério do Planejamento; (c) após aaprovação, o Mapa prepara e encaminha a voto aoConselho Monetário Nacional (CMN); (d) o CMNaprova; (e) o Mapa faz a Portaria; (f) a Conabprepara e divulga as normas operacionais; e (g) aConab executa as operações. Juntamente com ospreços mínimos, são definidos também osinstrumentos de operacionalização e o ano devigência para a safra.

Os instrumentos de operacionalização dapolítica para a cera de carnaúba são: aquisições dogoverno federal (AGF), empréstimos do governofederal (EGF), empréstimos do governo federal sem

opção de venda (EGF/SOV) e subvenção direta aoextrativista (SPDE).

Para a operacionalização dos recursosfinanceiros, deve-se observar o Manual do CréditoRural (MCR), que estabelece os limites e prazosdos recursos. Conforme o MCR, fica estabelecido olimite de 50% da capacidade anual da unidade debeneficiamento ou de industrialização e, no casode unidades de beneficiamento ou deindustrialização não veiculadas à cooperativa deprodutores rurais, o valor dos créditos fica limitadoa R$ 40 milhões, respeitado o disposto no MCR 3-4-3 e o limite por tomador constante do item 9(BACEN, 2010).

Os beneficiários de AGF são produtores rurais,associações formais de produtores rurais,cooperativa de produtores rurais e produtores. Osbeneficiários de EGF/SOV incluem estes e asindústrias e beneficiadores (BRASIL, 2002). Já osbeneficiários da subvenção são extrativistas,cooperativas e associações (BRASIL, 2011). NoQuadro 2, estão os preços mínimos para os tiposde cera de carnaúba e os instrumentos deoperacionalização permitidos para a execução dapolítica para as safras de 2001/2002-2011/2012.

Com a PGPM-Bio e a revisão metodológica doscustos de produção, o preço mínimo da cera decarnaúba na safra de 2009/2010 aumentou em64,79% para a cera tipo 1 e tipo 2; 67,25% para acera tipo 3 e tipo 4; e 37,10% para a cera tipo 5,permanecendo constante nas safras seguintes.

Quanto aos preços de mercado da cera decarnaúba, foram disponibilizados pela Conab osdados da cera tipo 1 para o Piauí, o Ceará e o RioGrande do Norte; tipo 3 para o Piauí; tipo 4 para o

Políticas Safras Cera T 1 e T 2

Cera T 3 e T 4

Cera T 5 Instrumentos de operacionalização

PGPM convencional

2003/2004 5,05 2,90 ... - 2004/2005 5,05 2,90 2,90 AGF 2005/2006 5,40 3,10 2,78 AGF 2006/2007 5,40 3,10 2,78 AGF 2007/2008 5,40 3,92 2,78 AGF; EGF

PGPM BIO

2008/2009 5,51 4,00 2,83 AGF; EGF 2009/2010 9,08 6,59 3,88 AGF; EGF 2010/2011 9,08 6,59 3,88 AGF; EGF 2011/2012 9,08 6,59 3,88 EGF; SPDP

Quadro 2 - Preços mínimos nominais (R$) para os tipos de cera de carnaúba e instrumentos deoperacionalização nas safras de 2003/2004 – 2011/2012

Fonte dos dados básicos: Conab (2011). Nota: Sinal convencional utilizado:... Dado numérico não disponível.

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Ceará e o Rio Grande do Norte; e tipo 5 para oCeará, conforme consta na Tabela 1, quedemonstra a evolução da média do preço nominalde mercado anual para os tipos de cera decarnaúba nos estados do Piauí, Ceará e RioGrande do Norte.

No Piauí, a média do preço nominal de mercadoda cera tipo 1 sofreu variações de alta e baixa.Cabe destacar a variação do período de 2006-2007,que foi a menor de todo o período analisado.Também houve variações positivas e negativas nopreço médio nominal de mercado na cera tipo 3. NoCeará, a cera tipo 1 teve a menor variação noperíodo de 2005-2006 e, depois, teve variaçõespositivas; enquanto as ceras tipo 4 e tipo 5 tiveramtendência crescente na variação dos preços. NoRio Grande do Norte, tanto na cera tipo 1 quanto nacera tipo 4, os preços de mercado variarampositivamente.

A comparação dos preços médios nominais demercado com o preço mínimo foi feita por safras,que compreendem o período de julho do anocorrente a junho do ano seguinte. Ao fazer acomparação dos preços médios nominais demercado da cera tipo 1 com o preço mínimo,observou-se que, nas safras analisadas, o preçomínimo sempre se manteve abaixo do preço demercado.

Quanto ao preço médio nominal de mercado dacera tipo 3 no Piauí, ele esteve sempre acima dopreço mínimo nas safras de 2003/2004 e 2009/2010; a cera tipo 4, no Ceará, esteve abaixo dopreço mínimo na safra de 2005/2006; e o da ceratipo 5, ficou abaixo do preço mínimo nas safras de

2004/2005 e 2005/2006; No Rio Grande do Norte, opreço mínimo da cera tipo 4 esteve abaixo do preçomédio de mercado na safra de 2012/11.

Conforme a pesquisa de Cerqueira, Gomes eSilva (2011), realizada para as safras de 2001/2002a 2009/2010, a Conab não foi acionada por partedos produtores nos períodos em que os preços demercado estiveram abaixo do preço mínimo.Segundo os mesmos autores, isto se deve à faltade informação sobre a política por parte dosprodutores, mesmo que para algumas safras dacera de carnaúba o governo tenha estabelecido olimite de recursos financeiros a ser despendidocom política.

Para a safra de 2002/2003, o governoestabeleceu o limite de recursos de até 60 mil reaispara produtores, cooperativas e associaçõesformais de produtores rurais para EGF de cera decarnaúba (BRASIL, 2002). Na safra 2007/2008,para os EGFs de cera de carnaúba, foramestabelecidos os limites de: 100 mil reais paraagricultores familiares e produtores individuais;100 mil reais para cooperativas de produtores quecomercializem, beneficiem ou industrializem oproduto livre negociação entre as partescontratantes; e 10 milhões de reais parabeneficiadores e indústrias (CONAB, 2008).

A partir da safra de 2008/2009, com aPGPM-Bio, os limites dos EGFs passaram a serdeterminados pelo manual do crédito rural.Segundo a Conab (2010b), a estimativa dedesembolso financeiro para a safra de 2010/2011para a cera de carnaúba (não especificado o tipo)era de 670 mil reais. O limite de recursos para a

Fonte dos dados básicos: Conab (2011). Nota: Sinal convencional utilizado: ... Dado numérico não disponível.

Tabela 1 – Média anual do preço nominal de mercado (R$) da cera de carnaúba nos estados doPiauí, Ceará e Rio Grande do Norte. 2003-2011.

Tipos de cera / ano

Piauí Ceará Rio Grande do Norte Tipo 1 Tipo 3 Tipo 1 Tipo 4 Tipo 5 Tipo 1 Tipo 4

2003 5,89 2,97 ... 2,87 2,70 ... ... 2004 7,86 4,18 10,45 3,08 2,83 ... ... 2005 8,51 4,59 8,29 3,05 2,82 ... ... 2006 7,65 3,78 6,87 3,29 3,07 ... ... 2007 5,52 3,28 7,71 6,13 5,68 ... ... 2008 8,44 6,16 8,21 7,46 7,00 ... ... 2009 8,15 6,17 8,53 7,18 6,70 ... ... 2010 10,16 7,78 9,95 7,17 6,75 10,58 6,32 2011 ... ... 11,60 7,38 ... 10,78 6,94

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subvenção direta por extrativista, cera tipo 4, é de1.365 reais e foi concedida para a safra de 2011/2012 (BRASIL, 2011).

5 Conclusão

Após a fixação do preço mínimo pelo governo,cabe à Conab publicá-lo no Título 47 - Normasespecíficas de cera de carnaúba - e operacionalizara PGPM quando acionada. A determinação dopreço mínimo leva em consideração diversosfatores que incluem custos, basicamente os custosde produção, preço de mercado e o preço deparidade.

A PGPM para a cera de carnaúba beneficiaprodutores individuais, cooperativas e associaçõesformais nos estados do Piauí, Ceará e Rio Grandedo Norte.

Com as mudanças ocorridas a partir de 2009,revisão metodológica dos custos de produção ecriação da PGPM-Bio, os preços mínimosaumentaram substancialmente, aproximando-semais dos preços de mercado. Com a PGPM-Biosurgiu também uma nova modalidade deoperacionalização, a subvenção direta aoextrativista

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* Bacharel em Ciências Econômicas pela UFPI,mestranda em Desenvolvimento e Meio Ambientepelo TROPEN/PRODEMA/UFPI, ex-bolsista PIBIC/CNPq e bolsista DAAD, e-mail:[email protected].** Estudante do curso de Ciências Econômicas/UFPI, bolsista PIBIC/CNPq.*** Professora do PRODEMA/TROPEN/UFPI e Depto.de Economia/UFPI, Doutora em Economia Aplicada/ESALQ/USP, e-mail: [email protected]

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O PIAUÍ NA ROTA DO COMÉRCIOINTERNACIONAL: a presença doscomerciantes franceses no Sertãooitocentista Por Junia Motta Antonaccio Napoleão do Rego*

A expansão comercial francesa no Brasil, noséculo XIX, foi um processo histórico articulado àevolução da própria economia francesa como umtodo, mais especialmente à evolução da indústria edo comércio exterior na França, nesse período.Centrando-se a atenção na presença do capitalmercantil francês no Brasil no século XIX, deve serobservado o crescimento havido na França, nodecurso do chamado segundo império francês(1852-1870), mais especialmente nos anos de1850. Para o objetivo desta pesquisa, talconstatação é fundamental, porque foramexatamente esses anos que marcaram o começoda expansão comercial francesa para o Brasil.

O desenvolvimento do sistema de transportes,especialmente o ferroviário, possibilitou ummercado nacional unificado; o desenvolvimento danavegação (em 1860, a França inaugurou suanavegação transatlântica); e a instalação de redetelegráfica que cobre toda a França, a partir de1851, a comunicação instantânea do pensamento,acompanhando o transporte rápido das pessoas edas coisas, operava uma revolução no grandecomércio - faziam parte das transformaçõesestruturais vividas pela França e serviram deestímulo à realização de investimentos de capital etrabalho no exterior. Diante de tais condições, atendência do comércio exterior era crescer. Nosanos de 1850 a 1860, a indústria francesaincorporou uma série de descobertas e invençõestecno-científicas fundamentais ao setor deprodução. Novos procedimentos na produção deaço e o desenvolvimento da la nouille blanc(eletrometalurgia) criaram complexas inovaçõestecnológicas que introduziram a industrialização daFrança em vias totalmente novas (REGO, 2010).

Resumo: o objetivo deste artigo é explicar de que forma comerciantes franceses, estabelecidos em Parnaíba(PI), porto exportador e importador, articularam a integração da economia do Piauí a partir do século XVIII eexplicar como a economia do Piauí se articulava, por intermédio desses comerciantes franceses, ao mercadonacional, notadamente à economia do Ceará, Maranhão e Pará e à economia internacional, caso de paísescomo a França.Palavras-chave: Parnaíba. Comércio. Franceses.

Associado ao incremento da atividade industrial,verificou-se, a partir do Segundo Iimpério, umprocesso de urbanização progressiva, um aumentocontinuado da população urbana. Paris,especialmente, teve um considerável aumentopopulacional. As chamadas indústrias parisienses,empregando boa parte dessa população, forneciam,nos anos de 1864 a 1868, um quarto dos artigosmanufaturados vendidos no mercado externo. Noscentros urbanos, a atividade comercial crescia,dando lugar a novos e renovados agentescomerciais, que passaram a servir deintermediários, estabelecendo relações entreindustriais e comerciantes e entre industriais efornecedores de matérias-primas. Nesse contexto,ganharam importância o comissário de mercadoriae os representantes ou viajantes do comércio(REGO, 2010).

Todo esse impulso tomado pela economiafrancesa no período -especialmente o industrial- manifestou-se na evolução de seu comércioexterior. A intensificação da produção demercadorias exigia mercados cada vez maisamplos. A França, assim como a Inglaterra, entravana etapa de ampliação do capitalismo, através daconquista dos mercados externos, o que significaque o objetivo desse comércio não se restringiaapenas à aquisição de mercados consumidores demercadorias produzidas em série, mas a conquistade um mercado fornecedor de matéria-prima e demão de obra barata e com disposição para asparticularidades das relações capitalistas deprodução. A predominância de um objetivo ou deoutro foi definida no correr do processo e em funçãodas áreas conectadas.

Sob o Segundo Império, o comércio exterior

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francês atingiu índices nunca antes alcançados. Asimportações francesas, tomadas em seu conjuntoe no correr de todo o século XIX, caracterizaram-se,essencialmente, pelas matérias-primasnecessárias à indústria (como algodão, carvão, lã,seda bruta, peles, madeira) e pelos produtosalimentícios (açúcar, cereais, carnes, cacau ecafé). As exportações, por sua vez, estiverambaseadas nas manufaturas compostas por tecidos,objetos de luxo e decoração (os chamados artigosde Paris) e por vinhos (TAKEYA, 1995).

Para que o Brasil passasse a integrar aeconomia internacional, mesmo em condiçõesdesfavoráveis, em face de alguns países jáplenamente integrados ao sistema capitalista deprodução, foi necessário que medidas de ordemestrutural e diplomática fossem tomadas ao longodo século XIX. A integração do Brasil com ocomércio internacional, com a abertura dos portose a consequente quebra do monopólio da metrópoleportuguesa, em 1808, estimulou o aumento donúmero de navios que frequentavam os portosbrasileiros, bem como a diversificação denacionalidades (REGO, 2010).

O comércio direto entre Brasil e França, naprimeira metade do século XIX, era feito, sobretudo,através dos portos de Havre e Marselha. De Havre,a região mais industrializada e povoada da França,partia a única linha francesa de navios à vela, entãoexistentes, para o Brasil. A França, portanto,dependia de embarcações inglesas e de outrasnacionalidades para efetuar o transporte dasmercadorias que circulavam em seus portos(REGO, 2010).

É importante observar as rotas de navegaçãocomercial no Brasil no século XIX. Uma das rotasfazia-se dentro do litoral ocidental e a outra, nolitoral setentrional do País. Esta última, que tinhaBelém (PA) como principal porto, e, maissecundariamente, São Luís (MA) e Fortaleza (CE),era frequentada por embarcações europeias enorte-americanas através, principalmente, de rotasdiretas, isto é, aquelas que, vindas da Europa oudos Estados Unidos, dirigiam-se diretamente paraos portos do Norte do Brasil, e daí retornavam paraseus portos de origem sem escalas no litoralocidental (TAKEYA, 1995).

Acompanhando a expansão comercial, ocorreuuma onda de emigração francesa para o Brasil.Esses imigrantes franceses eram dos maisvariados ramos e profissões. Interessam, nesteestudo, os comerciantes e as casas de comércio

que, vendendo as mercadorias francesas no Brasile comprando matérias-primas para exportação,viabilizaram a expansão do capital estrangeiro emterras brasileiras.

Importância crescente no incremento dessaatividade desempenhou a figura do commissionaire,o comissário, agente descrito por Leon (apudTAKEYA, 1995) como um regulador da atividadeindustrial. Na França, os anos de 1850 a 1860registraram um grande crescimento no número decomerciantes - na qualidade de comissários emmercadorias - com negócios no mercado brasileiro.Esses negociantes, em sua maioria,estabeleceram uma matriz de sua casa comercialem Paris e uma filial no Brasil. Essa casacomercial agia nos dois polos do comércio (tantono setor de exportação como no de importação).Tal posição privilegiada permitia aos comerciantesauferir lucros da venda dos produtosindustrializados franceses, e europeus de modogeral, no Brasil, assim como das matérias-primasbrasileiras no mercado francês e em outrosmercados externos (REGO, 2010).

As filiais dessas casas francesas no Brasilforam, inicialmente, estabelecidas nas grandescidades portuárias do Rio de Janeiro, de Recife ede Salvador e expandiram-se mais tarde paraoutras regiões do País. As principais mercadoriascomercializadas por essas casas eram, em ordemde importância, tecidos, artigos de Paris, relojoaria/joalheria/ourivesaria, gêneros alimentícios,chapelaria/sapatos, livros, perfumes, móveis,drogas e instrumentos musicais (TAKEYA, 1995).Foi nesse contexto que os irmãos Boris chegaramà Província do Ceará, onde estabeleceram suacasa comercial, e, mais tarde, os irmãos Jacobfizeram o mesmo em Parnaíba (PI).

O interesse do governo francês pela cidade deParnaíba já se manifestava de forma efetiva desde1863, quando a agência consular da França foicriada em 19 de março daquele ano, tendo comoseu primeiro titular o tenente coronel JoséFrancisco de Miranda Filho. A agência consularaendia ao interesse de comerciantes francesesatuando em Parnaíba, caso da firmaNaeff Nadler & Co., cuja matriz ficava no estado doMaranhão (NUNES, 2007) e do Sr. Lalanne,comerciante francês.

Na análise de Takeya (1995), muitos brasileirosdesempenhavam o papel de agente consular daFrança - sobretudo naquelas cidades de menorimportância econômica e onde franceses eram

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escassos ou inexistentes -; eram pessoas dedestaque na sociedade local, geralmente oscomerciantes mais importantes.

Como era um cargo honorífico e quem o possuíatinha um certo prestígio, o tenete coronel JoséFrancisco de Miranda Filho representou osinteresses da França até o estabelecimento, emParnaíba, de Marc Jacob, em 1886. Marc Jacob,assumindo o cargo de agente consular, representouo governo francês durante várias décadas, sendosubstituído, após seu falecimento, por seu sobrinhoRoland Gabriel Jacob, que oficialmente assumiu ovice-consulado em 9 de janeiro de 1927. Arepresentação que pertenceu aos Jacob por muitosanos passou depois para Marcel Seligman,membro da mesma família que substituiu os Borisno consulado do Ceará (REGO, 2010).

As relações comerciais entre a França e oBrasil tiveram início em 1814, embora oconhecimento produzido sobre o Brasil comomercado date das primeiras décadas do século XIX.Visando atender às necessidades relativas àexpansão do comércio francês no País, foramabertas representações consulares que formaram amaior e mais sistemática fonte de informaçõessobre o Brasil. A representação consular elaboravaextensos e minuciosos relatórios contendoinformações as mais variadas sobre o País. Ascidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife foramas primeiras a terem consulados. A estas ligava-seuma série de agências consulares - restritas, naverdade, à pessoa do agente -, formando umaverdadeira rede coletora de informações (REGO,2010).

A representação consular era a medula da redede informações passadas para os industriais enegociantes franceses. As informações colhidastiveram um papel importante na origem de umaliteratura voltada para a identificação daspossibilidades do Brasil como um dos mercadospara a expansão comercial francesa dirigida aosindustriais e negociantes. Outra função vislumbradaseria a de servir de ponto de apoio para apenetração do capital mercantil francês emdiferentes mercados. Cabia ao agente consularconhecer as perspectivas do mercado brasileiro,indicar as possibilidades e obstáculos para oconsumo de manufaturas e produtosindustrializados, conhecer a província e acapacidade de consumo de produtos e mercadoriasfrancesas. Relatórios contendo informaçõescomerciais e notícias sobre agricultura, colheitas,

impostos, problemas climáticos, fornecedores dematérias-primas, preços e câmbios eram enviadospara a França, em boletins e relatórios aoMinistério das Relações Exteriores da França, que,por sua vez, elaborava outros relatórios.Essa massa de informações era destinada aosindustriais, comerciantes e negociantes em geral;o objetivo último era aprimorar as relações entre aprodução de manufaturas francesas e o mercadoconsumidor brasileiro e a necessidade dematérias-primas na França à produção brasileira,de forma a garantir um perfeito conhecimento eaproveitamento das possibilidades que o Brasiloferecia (REGO, 2010).

Como apontou Takeya (1995), ao consulado deRecife, em 1876, estavam ligadas as agênciasexistentes no Pará, no Maranhão, no Piauí e noCeará. Isaie Boris chegou ao Ceará em 1878 e foi oprimeiro dos membros da família a exercer arepresentação consular francesa na província. Essarepresentação consular pertenceu aos Boris até1925 e permaneceu vaga por dois anos, quandoAdrien Seligman, membro da família Boris,assumiu o cargo - momento em que dividia adireção da Casa Boris com Aquille Boris, do finaldo século XIX ao começo do século XX.

Em 1869, fundava-se, no Ceará, a CasaTheodore Boris & Irmão, cujos sócios eram osirmão Alphonse e Theodore, que chegaram aFortaleza, respectivamente, em 1865 e 1867; osmesmos eram franceses e naturais da Província deLorena. Os arquivos comerciais dessa firma inicialnão foram conservados e nada indica que tenhamexercido um comércio além da compra e venda deartigos da praça ou, quando muito, com praças deestados vizinhos. Depois da guerra franco-alemã de1870-1871, os dois irmãos voltaram à França eassociaram-se a outro irmão mais jovem (IsaieBoris) para fundar, em Paris, a casa Boris Frères(REGO, 2010).

Pouco tempo depois, Theodore voltou aFortaleza na companhia de seus irmãos gêmeos -Achiles e Adrien - e, com eles, abriu uma novafirma, na Rua da Palma, que se desenvolveurapidamente, pois, em poucos anos, suas relaçõescom praças de estados vizinhos estenderam-se apraças europeias e americanas. Inicialmente, osnegócios limitavam-se à importação de tecidos,confecções, perfumaria, artigos de decoração,mobílias, artigos de cozinha, papelaria e materialde escritório; mais tarde, acrescentou-semaquinário, cimento e carvão. Na pauta de

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exportação, estão produtos regionais, tais como:algodão, cera de carnaúba, couro, peles, borracha,café, penas de ema e cumaru (REGO, 2010).

Na década de 1880, a Boris Frères expandiuseus negócios para outras cidades do Ceará,incluindo pequenas vilas, como Ibiapina, situadapróxima à divisa com o Piauí. Neste estado, háregistro de suas atividades comerciais comTeresina, desde 1875, e, depois, com Picos eParnaíba, em 1883; em julho deste ano,comercializava café, açúcar, algodão e caroço dealgodão, courinhos, chifres, ossos, garras, cabelos,cera de carnaúba, mangabeira e pena de ema.Importa ainda dizer que os produtoscomercializados pela Casa Boris Frères, desde suaabertura, incluindo os subprodutos do gado, fizeramparte da pauta de exportação do Piauí até, pelomenos, meados do século XX (REGO, 2010).

Na análise do movimento comercial da vila(depois cidade) de Parnaíba, impôs-se, comoprimeiro passo, conhecer a documentação doscomerciantes, suas casas comerciais, e analisarsuas formas de atuação. Tornou-se pertinente,também, conhecer o esquema de comercializaçãodentro da província/estado, com a cidade deFortaleza e com o exterior.

A leitura da correspondência comercial,realizada nos arquivos da Casa Boris, emFortaleza, forneceu informações relevantes sobreparcerias comerciais no Piauí e sobre o papel dacidade de Parnaíba como porto receptor edistribuidor de mercadorias vindas do Ceará e daEuropa ao longo da segunda metade do século XIX.Na correspondência, foram localizadas, para estapesquisa, mais de 100 cartas de comerciantesparnaibanos encarregados de receber e reembarcaras mercadorias enviadas pela Casa Boris paraTeresina. A correspondência da Casa Boris doCeará com comerciantes do Piauí aponta aexistência, em Teresina, de casas comerciaisfrancesas anteriores à de Marc Jacob, situada emParnaíba. Relações comerciais entre essas firmasexistiriam desde 1875, como o atesta a presençade papéis de carta com o timbre Casa Francesa(REGO, 2010).

Havia uma firma de propriedade dos MayerFrères e outra, de propriedade de O´Donnell deAlencar, além de uma terceira, pertencente aocomerciante francês Salomon Baumann. Não foipossível localizar, além das cartas, outros registrosdessas firmas. Faltam, portanto, informações sobreo início e o término de suas atividades, entre

outras. O exame da correspondência estabelecidaentre essas firmas data do período de 1876 a 1884,o que indica que o início de suas atividades foianterior à abertura da Casa Comercial Marc Jacob,em Parnaíba.

A casa Mayer Frères estava sediada emTeresina, e a ligação comercial com a Casa Borisde Fortaleza era realizada através de Parnaíba porintermédio de um comerciante local, Antonio Diasde Miranda, que, além de receber, conferir edespachar as mercadorias para Mayer, escrevia aBoris, em nome de Mayer, reclamando, cobrandosoluções ou apenas acusando o recebimento dasmercadorias.

O exame da correspondência entre essas trêsfirmas mostra o teor e a situação das relaçõescomerciais dessa época. Pela correspondência de27 de abril de 1876, tomou-se conhecimento daencomenda de mercadorias que fizeram os Srs.Mayer Frères, de Teresina, ao Sr. Boris Frères, doCeará. Nota-se, nessa correspondência, a relaçãoentre o que estava sendo pedido e os ramos decomércio praticados pela Casa Boris, o ramo desapatos e os chamados artigos de Paris. Constado pedido: três dúzias de botinas de muito boaqualidade, com polimento e enfeitadas, parasenhoras e meninas, cujo preço variava entre 20 e60 francos. Havia também uma seleção de tecidos,a serem adquiridos conforme as amostrasenviadas, consistindo estas de cambraia branca,brim de linho pardo, brim branco de algodão e chitaadamascada, de preferência nas cores verde eencarnada, num total orçado em mil réis. Consta,ainda, nessa correspondência, a encomenda demadapolão para ceroulas, além de outros artigos,como brincos dourados e xales de boa qualidade.Entre estes, eram preferidos os de cor roxa, preta,marrom e cor-de-rosa; e, para os estampados, osde cores vivas, excluindo os de fundo azul e verde(REGO, 2010).

A compra dos artigos deixa claro que a casaMayer Frères tinha uma freguesia feminina, cujogosto era conhecido e respeitado. Uma escolha tãodetalhada dos artigos femininos, em termos dequalidade e cartela de cores, mostra empenho ematender às senhoras e senhoritas da sociedade,com atenção às suas preferências, e o gosto dagente luso-americana, que foi ficando plebeu,matuto ou fora de moda com a introdução dostecidos ingleses (FREYRE, 2000). A descriçãodetalhada das mercadorias permite deduzir que setratavam de artigos de luxo consumidos por um

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contingente de pessoas abastadas de uma elite.Esse mesmo cuidado não era exclusividade da

casa francesa como se pôde verificar na lista denovidades oferecidas pela Livraria Econômica,situada na Rua Paissandu, em Teresina, em 1875:coques enfeitados para senhoras, gravatas ecolarinhos bordados, leques com plumas parasenhoras, botinas de cano alto para senhoras,chapéus para homens e senhoras, popelines, lãs etartalanas, chitas finíssimas, padrões novos,vinhos, licores, doces, biscoitos, passas, queijos(CHAVES, 1987).

Não somente pedidos foram encontrados emmeio a essa documentação. Havia, igualmente,cartas de reclamação. O comerciante Dias deMiranda, por exemplo, queixava-se dascompanhias de vapor (por exemplo, a CompanhiaPernambucana), que, por falta de embarcação, nãomandaram a carga para a cidade de Parnaíba,descarregando a mercadoria no Porto deAmarração, sob a alegação de que “[...] quemquiser mandar vir para aqui há de mandar conduzi-la a sua conta, correndo todos os riscos que possahaver na dita condução” (REGO, 2010, p. 183).

Outra reclamação dizia respeito à Alfândega deFortaleza, que não enviava as guias ou notas doconteúdo dos caixotes de mercadorias, o queimplicava no pagamento de direitos de importaçãoe na multa de verificação do conteúdo dos volumes,uma vez que não havia dados precisos paralegalizar o despacho. “Declarar o conteúdo dosvolumes era uma exigência do Art. 544 doRegimento das Alfândegas, para isentar asmercadorias da multa constante no parágrafo 2 doArt. 545.” (REGO, 2010, p. 183).

A Casa Boris Frères também enviava circularcomunicando o aumento de preços de suasmercadorias. Em 8 de março de 1889, a CasaBoris informa que (REGO, 2010, p. 184):

Muitos artigos subiram de valor por causa doaumento dos direitos gerais de importação,sobretudo algodãozinho (panos de algodão liso,entrançado, ou cru; riscados lisos e entrançados;lonas, meias de toda qualidade...) que hoje pagamais 20% de direito sobre a antiga taxa. E aindaque, mesmo que o câmbio conservasse os tiposatuais de 27 a 28, não se poderão fazer grandesreduções de preços [...].

O aumento de preços das mercadorias era alvofrequente de comentários e críticas. A firma MayerFrères escrevera a Boris Frères, em 17 de janeirode 1880, reclamando tanto do preço como dacontagem das velas de carnaúba remetidas poreles. Segundo a carta, havia erro na contagem dasvelas, já que, na caixa declarada com 23

quilogramas a 12 réis a arroba, faltavam trêsquilogramas, e, na caixa de 35 réis a arroba,faltavam 300 velas; as velas, dizia ele, eram depéssima qualidade (misturadas com fava); a maiorparte delas veio misturada na mesma barrica, nãosendo possível distinguir entre as de 10, 14 e 15réis o milheiro. Além disso, reclama Mayer,nenhum tratamento foi dedicado à embalagem,pois, segundo salienta, “[...] nem ao menos palhana cabeça das barricas foi colocada, resultando nagrande quantidade de velas quebradas, só tendosido possível contá-las pelos fios.” (REGO, 2010, p.184).

Essas informações revelam que coexistiam umcomércio incipiente realizado na província, ao ladode uma rede comercial que atravessava o Atlântico.As condições estruturais reduzidas apresentadaspelo Piauí traziam dificuldades para o recebimentodas mercadorias nos centros consumidores e oconsequente encarecimento.

Em carta do dia 20 de abril de 1880, a CasaMayer Frères comunicou a Boris que dissolveuamigavelmente a sociedade da praça de Teresina,ficando o ativo e o passivo da mesma firma a cargode M. Mayer, que pediu a Boris para manter oapoio e a consideração que dispensava à casaanterior. Embora a decisão (oficial) de dissolver afirma Mayer Frères tenha sido comunicada maistarde por M. Mayer, Boris já havia sido informado(antes) por Salomon Baumann sobre essa decisão.Salomon Baumann era um comerciante francêscomprador de café da Casa Boris, produto que eratransportado através de vapor vindo de Parnaíba,reembarcado por Francisco da Costa Fernandes.Salomon Baumann, por sua vez, encaminhava asmercadorias tanto para Boris como para seu irmão,em Paris (REGO, 2010).

Em carta do dia 17 de abril de 1880, Baumanntratou de seus próprios assuntos comerciais emencionou a liquidação da casa dos Srs. Mayer,nestes termos:

[...] os Srs. Mayer vão liquidar a casa porque oPedro Mayer descobriu muita ladroeira que o Sr.Mayer fazia, por isso ele quer apartar a sociedade,eu acho que a liquidação da casa vai serjudicialmente, o José Mayer como fiador da casaMayer Frères (REGO, 2010, p. 185).

A contenda foi de tal magnitude que, segundoBaumann, “[...] outro dia o Sr. Pedro Mayer quasequebrou a cabeça do Sr. Mayer”. As cartas deSalomon Baumann são reveladoras tanto darelação comercial que tinha com Boris como deuma relação social mais próxima com ocomerciante francês, já que tomava a liberdade de

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relatar, como se vê acima, uma briga familiar queevoluiu para a agressão física e antecipou oencerramento da sociedade comercial dos irmãos.Na mesma carta, na parte comercial, Baumanncomunicava a Boris que não lhe mandou as penasde ema porque o “[...] Sr. José Martins Teixeira mepaga também a 8.000 réis o quilo, e os cabelos a600 réis o quilo sendo por isso melhor vender aqui”.Além disso, anunciava sua viagem de negóciospara a França no fim do mês, só retornando emagosto. Acrescentou: “[...] caso queira me escreverpode dirigir-se a Jules Baumann em Chalôns surMarne, França”. Chalôns deve ter sido a cidade deorigem de Salomon Baumann, pois seu irmão Julesresidia lá. Havia outro irmão, Miguel Baumann, queera comerciante em Paris e recebia de Salomonremessas de penas de ema de primeira qualidade,além de cabelos (REGO, 2010, p. 185).

A partir da leitura das cartas, fica clara acirculação de mercadorias entre França, Ceará,Teresina e Parnaíba. As cartas comerciais de 1882mostram, além da regularidade comercial entreSalomonn, em Teresina, e Boris, no Ceará, umarelação de confiança, indicada pelo pedido deSalomonn a Boris para que “[...] remeta,mensalmente, por intermédio de sua casa emParis, a quantia de cinquenta francos a seu irmãoJules, em Chalôns.” O crédito solicitadodemonstra, da parte de Baumann, uma certeza ou,pelo menos, uma boa expectativa de sucesso nasua atividade comercial. Os negócios em Teresinaiam bem e, assim, era possível remetermensalmente dinheiro a seu irmão em Paris(REGO, 2010, p. 185).

A transferência da capital da Província do Piauíde Oeiras para Teresina teve como objetivo, comoapontou Gandara (2008, p. 136) “mudar paraprogredir”. A nova capital teria uma novaconfiguração espacial citadina, favorável àintegração comercial. Seu posicionamento, emuma área cuja topografia facilitava os movimentosfluviais e terrestres, conferia-lhe excelentespotencialidades para se desenvolver e se afirmarcomo centro urbano e como entreposto comercial.A ambição do projeto criou um sentimento deeuforia, atraindo muitas pessoas. A decisão delocalizar um porto e um comércio no mesmoespaço atrairia, gradativamente, um e outro para aproximidade do rio, afinal, um grupo de indivíduosajudaria a atrair e a manter outro. Além do que,teoricamente, as pessoas estabelecem-se, deforma natural, no lugar em que lhes seja a vida

mais produtiva e agradável. A nova capitalcertamente oferecia para um grupo decomerciantes vindos de diversos lugares e países,dentre eles a França, muitos atrativos (REGO,2010).

As casas comerciais francesas estabelecidasem Teresina e já mencionadas, possivelmentepertencentes a proprietários judeus, começaram afuncionar no Piauí, como indica a documentação,bem antes da Casa Marc Jacob, e já eram clientesda Casa Boris. Elas aparecem, posteriormente, em1886, como clientes da Casa Marc Jacob. Noslivros “Diário” e nos “Copiadores de Cartas” da CasaMarc Jacob, foram localizadas transaçõescomerciais realizadas entre essas casas.

Em correspondência datada de 22 de outubrode 1888, Marc Jacob fatura várias mercadorias paraBaumann, remetendo-as pelo vapor Teresinense.Eram pacotes contendo tecidos, como casemira delã, setinetas, morins e algodõezinhos (das marcasCupido, Cheguem Todos, Pechincha, Serve paraTudo, do Pereira e outros), além de duas dúzias degarrafas de vermute (REGO, 2010).

José Mayer recebia diversas mercadorias deMarc Jacob, como pimenta e botija de genebra.Conforme anotação no “Diário n. 2”, Mayer devolveua Marc Jacob quatro latas de chá preto, seis latasde biscoitos pequenos e duas latas de biscoitosgrandes, todas estragadas. A ligação de Jacob comos Mayers teve destaque em julho de 1891, quandoJosé Mayer enviou as cópias do testamento de M.Mayer para Marc Jacob, possivelmente para seremencaminhadas à família na França (REGO, 2010).

Importa dizer que, apesar de terem-seestabelecido no Piauí em data anterior a MarcJacob, essas casas instituíram com essecomerciante uma parceria comercial articuladora darede comercial que conectava Teresina, Parnaíba,Ceará e Europa.

Boris, Mayer, Baumann, O’Donnell e Jacoberam franceses, judeus e negociantes atuando noPiauí, no comércio de importação e de exportação.Além da correspondência da Casa Boris, pôde-selocalizar, no Arquivo Público do Piauí, em Teresina,algumas cartas do ano de 1886, reveladoras dessaatividade, e sabe-se através delas que tipo demercadoria circulava na cidade e o nome doscomerciantes. As cartas fazem referência aofornecimento de gêneros aos estabelecimentos daMarinha, existentes em Parnaíba - a Capitania, aEscola de Aprendizes de Marinheiro e o Farol daPedra do Sal (REGO, 2010).

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Paulino José Coelho Bastos fornecia, entreoutras mercadorias, açúcar branco grosso, arroz,azeite doce, bacalhau, chá verde, vinho do porto,colchões e pares de sapato. Os Irmãos Verasforneciam carne seca e pão. E Singlehurst Nephew& Cia fornecia carne verde, açúcar refinado,chinelos de couro, cera em vela, pratos pequenosde folha, tijolos ingleses, tinta preparada, remosnovos, sabão, catecismos, tabuadas, livros deprimeira, segunda e terceira leitura e outrosprodutos. Havia, ainda, pedidos feitos aosnegociantes Madeira Brandão, João Teodorico deSouza Torres e Alfredo Pereira & Cia, os quaisincluem galinha, marmelada, óleo de linhaça,lamparina de vidro, talheres de ferro, goma-arábica,papel almaço pautado, genovês e mata-borrão.Quase todos esses negociantes foram encontradosnos livros contábeis da Casa Marc Jacob (REGO,2010).

Por volta de 1881, Marc e Lazare Jacob, doisdos cinco filhos do casal de fazendeiros francesesJoseph Jacob e Marie Beatrix, vieram deSchalbach, na Lorena, França, para o Ceará,Brasil. Mais tarde, outros dois irmãos juntaram-sea eles, em Parnaíba: Myrthil e Charles. Os irmãosJacob chegaram a Parnaíba, possivelmente, emdiferentes momentos, tendo cada um permanecidolá por diferentes períodos. Dispostos a trabalhar e ainvestir na cidade, em 31 de outubro de 1891, osirmãos Jacob estavam construindo um armazém naRua Grande. A presença dos quatro irmãos emParnaíba, desde 1886, e dois deles negociandodurante quase 40 anos, indica a consolidação deseus negócios na cidade, através do incremento desuas atividades comerciais. A crença no potencialda cidade e na possibilidade de investir em umaatividade comercial de retorno seguro deve tê-losmotivado (REGO, 2010).

A vinda de uma família de franceses paraParnaíba suscita muitos questionamentos. Oprimeiro conjunto de perguntas seria: por quedeixaram a França? O que teria levado os irmãos aemigrar para o Brasil? A que se deve a escolha deParnaíba, no Piauí? Quando chegaram a Parnaíba?

Para entender como chegaram primeiro aoCeará e incorporaram-se, direta ou indiretamente, àCasa Boris Frères, é necessário um segundoconjunto de perguntas: vieram com alguma garantiaprévia de emprego com Boris Frères, de quemeram parentes? Montaram seus negócios com quecapital? Financiado por quem? Pecúlio pessoal oupecúlio familiar? Não se tem a intenção de

responder a todas essas perguntas, apenasàquelas que a documentação pesquisada permitir.

À primeira pergunta, Marc Theophile Jacoblevanta uma hipótese: a de que a guerrafranco-prussiana, encerrada em janeiro de 1871, ecujo resultado foi o Tratado de Paz assinado emVersalhes, no qual a França foi obrigada a ceder amaior parte de Lorena à Alemanha, teria motivado apartida dos irmãos. A Alemanha deu aos residentesna região anexada um prazo até 1º de outubro de1872 para decidirem entre manter a nacionalidadefrancesa e emigrar, ou permanecer e tornar-secidadãos alemães. Como o sentimentoantigermânico era intenso, expatriaram-se daFrança mais de 120 mil jovens. Pergunta-se: Teriasido esse o real motivo da partida dos irmãosJacob para o Brasil? Essa hipótese, no entanto,suscita uma questão adicional, qual seja: se elesdeixaram a França, conforme indica Jacob, após aguerra (1871-1872), para onde teriam ido antes dechegar ao Ceará, em junho de 1881, como constanos primeiros registros da Casa Boris? Entre o fimda guerra e as primeiras referências, transcorreram--se quase 10 anos! Possivelmente, a guerra nãoteria sido a motivação imediata para a partida dosirmãos da França rumo ao Brasil. Supondo quetenham vindo diretamente para o Brasil, passa-se arefletir sobre quais atrativos o Brasil apresentava.A indagação não desconsidera, certamente, que ocontexto político francês à época era favorável àemigração de sua população.

Já a outra indagação - por que o Brasil? - exigeconsiderações mais amplas para chegarmos auma resposta ainda que parcial. Vamos, pois,fazer uma tentativa de interpretação,necessariamente superficial e, certamente, falha.O Novo Mundo, como um todo, impressionava oeuropeu: amplitudes territoriais quando, naEuropa, a propriedade das terras estavasedimentada há séculos, sem espaço para novosempreendedores rurais e cujos proprietáriosexigiam dos seus colonos mais do que estes lhespoderiam pagar para terem um nível de vidaconfortável; populações crescentes que nãoesqueciam facilmente os períodos de fomeendêmica e de grandes mortandades decorrentesda cólera e outras doenças coletivas [...]O Novo Mundo era o oposto disto tudo: não haviaintolerância religiosa, a terra era de quem dela seapoderasse, ou vendida a preços acessíveisquando já tivessem sido legalizadas; as safrasmagnânimas; o clima, menos inclemente, emuitas fantasias cheias de esperançaspermeavam o imaginário dos recém-chegados(JACOB apud REGO, 2010, p. 190).

Por que Parnaíba? A hipótese do trabalho é a deque Parnaíba já despontava, há muito, como portoexportador de produtos regionais (tais como: gado,couros salgados, couros secos, madeiras, resina,

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entre outros) e importador de mercadorias, inclusiveas que já vinham sendo enviadas pela Casa BorisFrères para Teresina. É preciso lembrar que umvice-cônsul francês já atuava em Parnaíba, desde1863, dando suporte às atividades comerciais doSr. Lalanne, e que pelo menos três casascomerciais francesas já estavam atuando emTeresina, desde 1875. Uma rede de negociantesfranceses parece, assim, já estar consolidada, e aida dos Jacob, parentes dos Boris, para Parnaíba,viria a somar, tanto com a ampliação dos negóciosdo próprio Boris, como para a colônia de emigradosda Alsácia-Lorena radicados em Fortaleza, quecontava, inclusive, com alguns primos maisdistantes dos Jacob, os Gradvhol. Nessaempreitada, beneficiaram-se todos, os Boris e osMayer, que estabeleceram com os Jacob umaprofícua e longa parceira comercial, e, a médioprazo, as casas francesas de Teresina, que,também em parceria, compravam e vendiam viaCasa Marc Jacob (REGO, 2010).

A história do comércio e dos comerciantes dacidade de Parnaíba está vinculada aos aspectoseconômicos de todo o Piauí, território voltado, aprincípio, para a pecuária extensiva. Quando aatividade pastoril desenvolvida no interior daProvíncia começou a se expandir e alcançar novasterras para o pasto, o escoamento das reses peloscaminhos terrestres tradicionais começou a ficardistante e oneroso. O transporte pelo rio Parnaíbafoi, portanto, uma opção natural. A chegada dasreses na foz desse rio desencadeou um intensomovimento portuário na Vila de São João daParnaíba, o que levou ao estabelecimento dosprimeiros comerciantes estrangeiros. As vantagenseconômicas advindas da comercialização daprodução ligada à criação de gado - como ocharque, os couros e as peles - demandou umaabertura marítima eficiente para os outros portos doBrasil, mas também e, sobretudo, para outrosportos do mundo.

Com o do declínio da atividade charqueadora, omovimento comercial foi dinamizado pela chegadade novos comerciantes, entre eles, os franceses,atraídos pela comercialização de produtos oriundosda agricultura. Para compreender a atividade dascasas comerciais estrangeiras em Parnaíba, foipreciso, antes de tudo, conhecer o quadro maisgeral do comércio piauiense com a França, e asmotivações que impeliram alguns franceses,particularmente os irmãos Marc e Lazare Jacob, adeixar sua terra natal e virem a se estabelecer em

Parnaíba, além dos laços comerciais quemantinham com seu país de origem. A chegadados novos produtos ao mercado nacional einternacional proporcionou a oportunidade de ummaior incremento para a economia de Parnaíba.

As atividades comerciais exportadoraspropiciaram a Parnaíba se tornar a capitaleconômica do Piauí. Essa posição somente foipossível pela atuação dos comerciantes locais edas casas comerciais estrangeiras como a CasaMarc Jacob, que foi essencial no processo dearticulação da economia piauiense ao mercadonacional (notadamente, às economias do Ceará edo Maranhão) e ao mercado internacional. Aatuação dos comerciantes estrangeiros a partir doséculo XVIII teve reflexos importantes não somentesobre a economia, mas também sobre a vida sociale cultural da cidade de Parnaíba

*Professora do Departamento de CiênciasSociais da Universidade Federal do Piauí.Doutora em História Social/UFF.

ReferênciasCHAVES, J. Como nasceu Teresina. 2. ed. Teresina: PMT/Fundação Cultural, 1987.FREYRE, G. Ingleses no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 2000.GANDARA, G. S. Rio Parnaíba... cidades-beira. 2008. 397 f.Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduaçãoem História, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.NUNES, O. Pesquisa para a história do Piauí. Teresina:Fundapi, 2007. v. IV.REGO, J. M. A. N. Dos sertões aos mares. história docomércio e dos comerciantes de Parnaíba (1700-1950).2010. 290 f. Tese (Doutorado em História Social) - Instituto deCiências Humanas e Filosofia, Universidade FederalFluminense, Niterói, 2010. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/stricto/td/1279.pdf>. Acesso em:02 jun.2013.TAKEYA, D. M. Europa, França e Ceará. Natal: EDUFRN,1995.

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ECONOMIA E HEDONISMOPor José João Neves Barbosa Vicente*

Resumo: o objetivo deste artigo é contribuir para uma leitura do pensamento filosófico de Michel Onfray, apartir da análise da sua crítica à economia liberal fundamentada em princípios hedonistas, como aparece,essencialmente, em seu livro “A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão” (2001).Palavras-chave: Capitalismo. Insubmissão. Política. Prazer.

Nascido na França em 1959, influenciado pelohedonismo antigo e pelo pensamento de Nietsche,como evidencia a sua obra “A escultura de si: amoral estética”, Onfray (1995) não mede esforçoem suas reflexões no sentido de resgatar aperspectiva filosófica hedonista que defende desdeEpicuro, a busca do prazer como condição essen-cial da vida humana, isto é, “o prazer” como “oinício e o fim de uma vida feliz” (EPICURO, 2002, p. 37).

O hedonismo é, para Onfray (1995, p.145), uma“moral que necessita de um cálculo permanentevisando determinar, incessantemente, as condiçõesde possibilidades do máximo de prazer para si epara o outro”. É uma perspectiva utilitarista nosentido anglo-saxônico do termo, pois “a utilidadeou o principio da maior felicidade como a fundaçãoda moral” admite, segundo Mill, que apenas sãocorretas, as ações que promovem a felicidade. “Porfelicidade se entende prazer e ausência de dor; porinfelicidade, dor e privação de prazer” (MILL, 2000,p. 187). O hedonista é um ser autônomo que, paraexercer a sua diferença, busca no outro elementosque se conjugam aos dele. Ele traça o seu própriocaminho que o conduz ao júbilo. Assim, a práticahedonista permite ao indivíduo viver em condiçõesmelhores, livres da escravidão induzida pelasreligiões e das leis do mais forte inerentes aocapitalismo liberal.

“Para mim é tão odioso seguir quanto guiar”.Esta citação de “A gaia ciência” de Nietzsche(1977), que tem como prólogo, “Zombaria, ardil evingança”, e como apêndice, “Canções do príncipefora da lei”, abre o livro de Onfray (2001), “A políticado rebelde: tratado de resistência e insubmissão”,no qual o individuo é tomado como valor central e afilosofia hedonista é explorada através da vertentepolítica: busca de prazer e luta. Apoiado emNietzsche, mas também em outros pensadorescontestadores, como Deleuze, Foucault eBlanquis, Onfray desenvolve um pensamento quese opõe à autoridade e ao sistema capitalista.Assim, a submissão, a dependência e a autoridadesurgem, para ele, como impossível, intolerável e

insuportável. Para combater as virtudes cristãs dahumildade, propõe um orgulho justificado; parareencantar o mundo submisso ao economismo,propõe “submeter a economia a um projetohedonista de vida em comum” (ONFRAY, 2001, p. 93).

Para levar a cabo a sua resistência contra aeconomia liberal, contra o capitalismo e a favor dainsubmissão, Onfray não dispensa, por exemplo, oúnico livro escrito por Max Stirner (2004), “O únicoe a sua propriedade”. Com esse título enigmático,em forma de provocação, Stirner apresenta ohomem como único, não redutível à dimensãocoletiva (social, política, religiosa); por isso, pode,de direito, considerar todo o resto como “suapropriedade”. Para ele, é sempre uma afronta àsexigências do eu, do “único”, pedir-lhe que sesubmeta a uma norma exterior. Apesar de conside-rado por muitos como um pensador que negue alegitimidade de qualquer forma de instituição, dasociedade em particular, Stirner, na verdade, rejeitaapenas a sociedade cuja tendência é constituir-seem uma instância autônoma que exerce sobre ohomem uma dominação material e espiritual, emvez de servi-lo. Mas Onfray não ignora, também,as tragédias que a “esquerda” legitimou e quepossibilitou os períodos sombrios. Assim, elepensa a esquerda na contramão daqueles queacreditaram e dos que ainda acreditam que épreciso acabar com a propriedade privada. Paraque as tragédias e as ditaduras possam serevitadas, “a esquerda que não se satisfaz com omundo tal qual ele se apresenta”, deve “evitar fazerda propriedade privada o bode expiatório” (ONFRAY,2001, p. 92).

Onfray elogia e pretende reatualizar Proudhon(1975) que, em sua obra “O que é a propriedade?”,ataca as teses dos juristas e dos economistas deseu tempo, que justificavam a propriedade,instituição essencial do capitalismo, apresentando-a como fundamento da ordem e da prosperidade,direito absoluto e sagrado. De acordo comProudhon, só haverá ordem se a igualdade forgarantida; a propriedade, que é um roubo

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econômico, engendra a violência social e destrói,portanto, qualquer sociabilidade. Contra apropriedade, suicídio da sociedade, ele preconiza,no entanto, a posse. Essa posse não foi definidapor Proudhon, mas Onfray (2001) entende quedentro do projeto anarquista do autor, apreconização da posse significa conservação dapequena propriedade privada.

Em Marx e Engels, principalmente no texto“Manifesto do partido comunista” (2001), quepropõe o princípio diretor segundo o qual a históriade toda a sociedade é a história das lutas declasses, e termina com a seguinte palavra deordem que ficou celebre: proletários de todo omundo, uni-vos!, Onfray acredita ter encontradofundamentos para afirmar que a solução para ainsatisfação com o mundo não está na abolição dapropriedade privada: a opção libertária da esquerdaestá mais concentrada na proposta de umaeconomia alternativa do que na destruição dapropriedade privada ou expropriações violentas. Suaprioridade, como constata Onfray (2001, p. 92),está voltada para “a elaboração de modospolimorfos de produção paralelos aos docapitalismo, ou seja, modalidades transversaisdentro do próprio capitalismo.”

Mas, para isso, uma troca ou uma mudançaradical precisa acontecer antes. A morte do políticose deu, de acordo com Onfray, com o triunfo docapitalismo que, por sua vez, transformou oshomens e a política em seus serventes. A política,como arte da vida em comum, foi substituída, apósa revolução industrial, pela ciência da submissãodos escravos aos senhores. Assim, constataOnfray (2001), para que o mundo possa serreencantado, e a volta do político possa acontecer,é necessário acabar com a condição de submissosna qual os homens e a política se encontram emrelação à economia; mas, também, exigir que aeconomia se submeta aos princípios político ehedonista de vida em comum e comece a serviraos homens e parar de exigir ser servida. Ela devefuncionar como meio e não como fim; é preciso,portanto, “acabar com essa religião da economiaque faz do capital seu deus e dos homens vulgaresfiéis, sujeitos a impostos e corveias à vontade”(ONFRAY, 2001, p. 93).

Não é uma tarefa fácil, se pensarmos que essaenfermidade é antiga. No texto “Dos deveres”, deCícero (1999), onde está exposto que existe umahierarquia dos deveres e que é preciso saberescolher um em vez do outro para preservar a

honra, mas que o principal é respeitar ahonestidade baseada na prática das virtudesessenciais: sabedoria, justiça, firmeza, moderação,Onfray encontra e apresenta o filósofo estóico doséculo II antes de nossa era, que já ensinava aprática da primazia da mercadoria sobre o homem.Ele se chamava Hecaton e não hesitava em ensinarque a preservação do interesse próprio devesempre estar em primeiro lugar; isto é, o interessepessoal deve sempre estar acima da humanidade.

Essas ideias, sublinha Onfray, ajudam acompreender o fundamento da religião daeconomia. Assim, todos aqueles “que praticam aeconomia como atividade isolada e a entendemcomo ciência dos bens, das riquezas, excluindo ohomem e a humanidade de seus objetos, de suaspreocupações” (ONFRAY, 2001, p. 94), são,portanto, atingidos pelos ensinamentos deHecaton. Nesse sentido, as coisas permanecerãocomo estão, ou seja, “o desencantamento domundo, o niilismo contemporâneo, o pessimismogeneralizado durarão enquanto a ordem das coisasfor celebrada segundo as modalidades desejadaspelo antigo filósofo” (ONFRAY, 2001, p. 95).

Não se pode perder de vista, também, enfatizaOnfray, que o mecanismo econômico, desde ostempos antigos, funciona no sentido de sugar aessência daqueles que dispõem unicamente deseus corpos. Ele sempre teve como meta fazer odinheiro dos senhores através da extração de suordo corpo dos escravos. As riquezas produzidaspela prática de uma atividade econômica isoladafinanciam as despesas suntuosas dos senhores,como, por exemplo, as pirâmides, as catedrais, asrepresas, os foguetes, as fábricas e os capitaisflutuantes. Em todos esses casos, constata ofilósofo: “trata-se de afirmar a potência e asoberania do poder temporal, depois no poderespiritual no qual se inspira ou que o sustenta...o sangue dos homens pobres cimenta a pândegaextrema” (ONFRAY, 2001, p. 96).

Hoje, para garantir o aumento das massasmonetárias virtuais que circulam obedecendoapenas às suas leis, os escravos modernos sãoconcebidos totalmente como meios, utilizados edispensados de acordo com o interesse domercado. Os capitais flutuantes não possuemfronteiras nem proibições, observa Onfray(2001, p. 96),

seus princípios de ação se assemelham aos das“forças armadas de uma superpotência dominandoplanetariamente [...] distribuem a miséria ou ariqueza à sua passagem”. Portanto, a nossa época

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não é diferente das outras que “colocaram aideologia, a religião, a filosofia, a arte a serviço doscultos prestados à produção” (ONFRAY, 2001, p.97). Basicamente, todos ou quase todos sesacrificam ao capital flutuante que funciona comoDeus, com características onipresente, onipotentee onisciente.

Em “A essência do cristianismo”, uma obra quese apresenta como uma hermenêutica destinada apenetrar o segredo da religião cristã, Feuerbach(2007) afirma, logo de início, que só o homem temconsciência de si e é objeto para si mesmo emnível de espécie. O homem, ao tomar consciênciade si mesmo, toma também consciência de suahumanidade em geral. Ele não se sabe apenasindivíduo; reconhece-se também, em suaexistência individual, sua participação na espéciehumana em geral. Assim, quando fala de si, ohomem se comunica com sua essência, que é algoinfinito, porém, algo ilimitado. Depois disso,Feuerbach começa a analisar a religião e sublinhaque o texto religioso deve ser levado a sério paraque seja possível desprender o seu sentido.Destarte, sobre Deus, ele afirma que é apenas aessência humana apresentada na imaginaçãocomo uma realidade exterior; sobre ascaracterísticas atribuídas a Deus, são apenascaracterísticas do homem enquanto ser que pensa;quanto à ideia da divisão entre o homem e Deus,isso não passa da divisão do homem consigomesmo; sobre a inferioridade do homem diante deDeus, sublinha Feuerbach, isso é simplesmente acondição da exteriorização da essência humana. Areligião cristã é, pois, a relação do homem consigomesmo ou, mais exatamente, com sua essência,mas com sua essência como outro ser.

Para Onfray, esses princípios justificam aalienação. “Em suas sublimações, as civilizaçõesexprimem aquilo que lhes falta, depois seusdeuses, se não seu Deus” (ONFRAY, 2001, p. 98).Assim, não é de se espantar que a “santidade dodinheiro” tornou-se possível graças à miséria doshomens. Nessa devoção, a manifestação de Deusacontece através do luxo; e o capital, queproporciona esse luxo, está longe do alcancedaqueles que canalizam suas energias vitais parapromovê-lo e tornar possível seu fluxo. Nessareligião, existem “aqueles que dela desfrutam,evidentemente, e aqueles que acreditam poder deladesfrutar um dia e, por esta razão, desejam amanutenção das regras do jogo” (ONFRAY, 2001, p. 99).

Além de privar os escravos de suas existências,

o capitalismo faz deles uma massa alienada quesonha um dia conseguir estar no lugar do qual estáexcluído para sempre; isto é, que sonha em seralgo do qual nunca conseguirá: ser senhor. Se naépoca de Marx ele conseguia rastrear, pelo menos,as explorações, em nossa época, diz Onfray, issoé praticamente impossível. Ninguém consegueperceber ou detectar os responsáveis pelarepartição desigual das riquezas, registra-seapenas os fatos e os danos: “um indivíduo fazendofortuna, um outro falindo, uma sociedade anônimasurgindo aqui, uma região massacrada ali e,sempre, a maior parte mantida na miséria, sofrendoe se submetendo aos efeitos dos fluxosmonetários” (ONFRAY, 2001, p. 99). O capitalflutuante segue os passos semelhantes aos doDeus dos teístas, prefere, também, aparecer comoencarnação, o efeito produzido, a obra e nuncadiretamente.

Esse Deus (capital flutuante) exige de seus fiéisuma ilimitada dedicação e submissão, pretendeque todos se transformem em escravos, segundo adefinição de Aristóteles (1985), sem nenhum podersobre seus corpos: “instrumentos” para a ação,“propriedades de seus senhores e daqueles que,num retorno miserável e lastimável, lhes fornecemesmola, salário, os meios de sobreviver ou de viver,porém nada mais” (ONFRAY, 2001, p. 100).Funcionando de forma isolada, submetendo todosàs suas leis, a economia capitalista requisitaesses escravos de acordo com a necessidade daprodução, enquanto os senhores tentam convencê-los de que os dois possuem os mesmos interes-ses, estão a bordo do mesmo barco. Apesar disso,Onfray não deseja o fim da luta de classes. Ela“prossegue por toda a eternidade, querer erradicá-laé impensável” (ONFRAY, 2001, p. 101). É impensá-vel e indesejável, também, uma sociedade semclasses; pelo contrário, deve-se desejar e solicitara multiplicação das diferenças, mas nunca permitirque elas sejam exploradas economicamente.

A economia capitalista surgiu “como arte dedistribuir os lugares em função das necessidadesdo culto a ser praticado” (ONFRAY, 2001, p.102).Sem nenhum poder e nem direito sobre seu própriocorpo, o escravo serve permanentemente a umaordem na qual não tem escolha. Ao fazer atransmutação do tempo dos escravos em dinheiropara os senhores, o capitalismo sobressai-se.Assim, como ela se configurou atualmente, aeconomia capitalista “não é nada menos do que oreflexo de uma metafísica que a subentende, como

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se acharam subentendidas todas as variaçõesregistráveis do modo de produção capitalista dasriquezas” (ONFRAY, 2001, p. 102).

Onfray propõe uma libertação fundamentadanuma mística de esquerda. Mas, antes, diz ele,deve-se reconhecer o mercado livre, aconcorrência, a divisão do trabalho, a submissãode uma classe aos interesses de outra, a mãoinvisível, os paraísos anunciados para amanhã,como os grandes mitos gerados pela economiaatravés das ideologias ou pensamentos dominantesda época que, de um modo geral, contribuíram“para a formação de uma metafísica danecessidade que reuniu a quase totalidade doseconomistas, mesmo que fossem aparentementeopostos, tais como Adam Smith e Karl Marx”(ONFRAY, 2001, p. 103, grifo do autor). É preciso,portanto, uma outra visão do mundo e uma místicainsinuante e harmoniosa para que seja possíveluma outra maneira de considerar a economia.

Refletir sobre os temas abordados pelo“Discurso do método”, de Descartes (1993), obrade referência para a filosofia erudita, mas tambémpara um público mais amplo, é, por exemplo, umpasso que deve ser dado antes de propor umaoutra visão do mundo. De acordo com Onfray, afilosofia laica, com o advento do sujeito moderno,esse eu que se opõe a Deus, que ganhouvisibilidade e força com Descartes, contribuiu paraum recuo do cristianismo (catolicismo). Esse recuopossibilitou, por sua vez, aquilo que Onfray (2001,p. 103, grifo do autor) denominou de “oeconomismo, esse monstro híbrico que fez daeconomia uma religião.” A proposta de Descartesconsistia, ainda, em “promover todas as ciênciasque permitissem ao homem tornar-se ‘mestre epossuidor da natureza’. Ainda não se fala deeconomia propriamente dita, mas aquilo querepresenta o conteúdo do termo já está presente noséculo” (ONFRAY, 2001, p. 104).

A primeira manifestação da ciência econômicasurgiu no século XVIII com o pai dos fisiocratas,François Quesnay, o pensador do rei Luis XIV. Foi,portanto, com os fisiocratas, que o homemcomeçou a ser desvalorizado e a terrasupervalorizada sob o princípio da monarquiabaseado em direito divino, que luta para evitar que aordem natural não seja perturbada. A crítica aosfisiocratas levada a cabo por Adam Smith (2008) éinteressante, mas isso, no entanto, comoconstatou Onfray, não o desvencilhou da ideia deuma harmonia preestabelecida e nem de uma

teoria da necessidade. Onfray cita, entre outros, amão invisível, por exemplo, como reguladora domercado. Assim, Smith “supõe o trabalho empermanência para os operários, e lucros ebenefícios sem conta para os proprietários [...]exploração dos primeiros funcionando comocondição de possibilidade dos segundos”(ONFRAY, 2001, p. 106).

Darwin (1982), no entanto, suplantou o modelocartesiano, suas ideias (como a seleção naturaldas espécies, entre outras) podem ser facilmenteutilizadas para se falar do mundo da economiacapitalista. Na verdade, para não desaparecer, ocapitalismo utiliza constantemente o seu poder demetamorfose como, por exemplo, as guerras, ocolonialismo, o imperialismo, a globalização etc., oreal foi submetido pela economia liberal à lei domercado e, por mais estranho que isso possaparecer, é preciso ser dito que a maioriacompartilha dessa ideia, e “aos olhos dos defenso-res do economismo, é lesa-majestade colocar emquestão a verdade do dogma” (ONFRAY, 2001, p.109).

É uma situação que não adianta querer resolvê-la, por exemplo, desejando o fim do capitalismo, aabolição da propriedade privada, apropriaçãocoletiva dos meios de produção, uma sociedadesem classes, ou na crença em teorias teleológicasfundamentadas na possibilidade de um fim e deuma conclusão da história. A opção libertária deve,portanto, abrir mão desses meios; o ódio àpropriedade privada não resolve nada. Assim, paraque a economia possa ser reconciliada com oconjunto dos domínios da atividade humana, épreciso praticá-la “longe da opção leibniziana oudas lógicas darwinianas, aos antípodas dosfisiocratas assim como dos marxistas” (ONFRAY,2001, p. 111).

A proposta de Onfray para reencantar o mundoconjuga “uma preocupação libertária e uma opçãonietzschiana, uma vontade pragmática e um desejode energia” (ONFRAY, 2001, p. 112); mas, também,seguindo Proudhon, principalmente em sua obra“Filosofia da miséria” (2007) que analisa ascontradições inerentes às principais noções daeconomia política, fazendo uma crítica geral doponto de vista das antinomias sociais; insurgindoao mesmo tempo contra economistas esocialistas, contra o capitalismo e o comunismo,considerando que uma mesma noção comportadois aspectos, um bom e outro ruim, e que convémconservar esse dualismo a fim de eliminar o ladoruim, Onfray posiciona-se a favor da ideia que

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afirma que as maquinarias devem ser utilizadaspara aliviar a pena do trabalhador e não unicamentepara visar ao lucro e ao beneficio do proprietário,elas devem contribuir para aliviar as tarefas dostrabalhadores. O triunfo de uma ideia dessa “valeriacomo um recuo da ideologia dos devotos da religiãodo capital” (ONFRAY, 2001, p. 112). Mas, para quea “tecnicidade da economia” se submeta ao projetode sociedade, não basta, certamente, refletirapenas sobre o maquinismo, é necessáriotambém, que se reflita intensamente e sem cessarsobre “o valor, o status de novas tecnologias, aqualidade de trabalho, sua quantidade, sua relaçãocom o dinheiro, a pressão fiscal, a espiral docrédito, o direito à habitação, a desigualdade dianteda posse sob todas as suas formas” (ONFRAY,2001, p. 116).

O essencial, portanto, é que o homem se liberteda economia, reaproprie-se de si mesmo. Paraisso, a economia precisa ser enquadrada dentro deum projeto político hedonista, capaz de transformá-la em uma força positiva a serviço de todos. Paraque esse projeto se realize, “é preciso submetera economia a um princípio dionisíaco e dela fazeruma técnica celebrando os impulsos da vida”(ONFRAY, 2001, p. 117), e a política parar de sesubmeter à tirania dessa economia celebrada soba forma de religião que tem como meta possibilitara riqueza dos ricos através do aumento da pobreza

ReferênciasARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985.CÍCERO, M. To. Dos deveres. São Paulo: Martins Fontes:1999.DARWIN, C. A origem das espécies. Brasília: UnB, 1982.DESCARTES. R. Discurso do método. Lisboa: Edições 70,1993.EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo:Unesp, 2002.FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Rio de Janeiro:Vozes, 2007.MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. PortoAlegre: L&PM, 2001.MILL, J. S. Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Lisboa: Guimarães, 1977.ONFRAY, M. A escultura de si. Rio de janeiro: Rocco, 1995.ONFRAY, M. A política do rebelde. Rio de Janeiro: Rocco,2001.PROUDHON, P. J. O que é a propriedade? Lisboa: Estampa,1975.PROUDHON, P. J. Filosofia da miséria. São Paulo: Escala,2007.SMITH. A. A riqueza das nações. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.STIRNER, M. O único e a sua propriedade. Lisboa: Antígona,2004.

* Mestre em Filosofia pela Universidade Federal deGoiás (UFG), doutorando em Filosofia pelaUniversidade Federal da Bahia (UFBA) e professorassistente de Filosofia da Universidade Federal doRecôncavo da Bahia (UFRB).([email protected]).

dos pobres, e exigir que ela se submeta às suasleis. “A economia liberal entendida comogenealogia sombria da miséria cartografada emmontante obriga uma revolução copernicana”(ONFRAY, 2001, p. 119)

LIDERANÇAS FEMINISTAS EFORMULAÇÃO DE POLÍTICASPÚBLICAS Por Francineide Pires Pereira*e Lila Cristina Xavier Luz**

É comum admitir que, após a redemocratizaçãodo país, nos anos 1980, a maior parte dosmovimentos de defesa de mulheres “se propôs nãosó a buscar, desde seu espaço na sociedade civil,uma interlocução com o governo, mas também apenetrar nos aparelhos de Estado” (PITANGUY,2003, p. 28). Este debate tem seu cerne napreocupação com a perda de autonomia dosmovimentos configurada no risco de cooptação peloEstado. Relembrando este movimento, Pitanguy(2003) informa que o mesmo se dividiu entre os queestavam dispostos a participar do governo e os quedesejavam apenas apoiar e subsidiar os governos.

Esta divisão, a partir dos anos 2000, aconteceu

em conjuntura na qual os partidos políticos outroraapoiadores dos movimentos ou nos quais asmulheres militavam ascendem ao poder. Como nãopoderia deixar de ser, as lideranças femininaspassaram a ser chamadas a contribuir com novasgestões, na condição de quadros políticos. Talprocesso se acentuou quando, em 2003, foi criadaa Secretaria Especial de Políticas para asMulheres, vinculada à Presidência da República e,em 2004, foi realizada a 1ª Conferência de Políticaspara Mulheres. Em 2011, aconteceu a terceiraconferência, avaliada como exitosa, posto terconseguido impor-se como necessária e terconquistado previsão orçamentária para as políticas

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para as mulheres. No caso do Piauí, não houvemudanças substanciais, sendo que asdeliberações das conferências estaduais nãorepercutiram na elaboração do Plano Plurianual(PPA). A segunda conferência de políticas para asmulheres, em 2007, continha a deliberação deexigir participação no processo de formulação doPPA do estado do Piauí, o que não se efetivou noprocesso de elaboração do PPA 2008-2011.

Este trabalho é parte dos resultados dapesquisa “Gênero e desenvolvimento” (PEREIRA;LUZ, 2011) entre parlamentares e liderançasfeministas no estado do Piauí, realizada comfinanciamento do Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).O foco aqui é o discurso de lideranças feministasacerca do tema. O objetivo é esmiuçar os dilemasenfrentados por estas lideranças e analisá-los à luzdas teorias de gênero.

Quando as lideranças de movimentos demulheres brasileiras avaliavam sobre aconveniência ou não de participar dos governoseleitos, na esteira da luta pela redemocratização dopaís, carregavam não somente uma granderesponsabilidade. Sob esta discussão havia umhistórico de lutas e de conquistas de tal modorelevantes que um grande historiador chegou atratar as mudanças produzidas pelo ingresso dasmulheres no mundo público como um dos pilaresde uma revolução cultural ocorrida na segundametade do “breve século XX” (HOBSBAWM, 1995).

O Piauí também participou deste processo. Napesquisa, contabilizamos cinco entidades quetinham como sujeitos-alvo de sua intervenção asmulheres. São elas: a União das MulheresPiauienses, a União Brasileira de Mulheres -secção Piauí, a Liga Brasileira de Lésbicas, ogrupo Matizes e uma ONG feminista, a Gênero,Mulher, Ação Social e Cidadania (Gemdac). Apesquisa atingiu lideranças de todas estasentidades, que aqui estão identificadas comoliderança feminista, idade e cor autoatribuída.

O título liderança feminista atribuído àsentrevistadas é uma liberalidade generalizadora dapesquisa. A autodefinição apareceria, então, aofinal da pesquisa e seria motivo de análise.Sabíamos que falar sobre feminismo significavatratar sobre o movimento que mais trouxequestionamentos à ordem a partir da segundametade do século XX. Nesse caso, concordamoscom Rago (1996, p. 12), quando afirma tratar-se de:

[...] um movimento social, político e intelectual queteve um profundo impacto na sociedade brasileirae no mundo, de modo geral. Ao lado de outrosmovimentos sociais dos anos sessenta e setenta,como o movimento negro, especialmente o norte-americano, o feminismo adquire uma enormeimportância ao questionar a organização sexual,social, política, econômica e cultural de um mundoprofundamente hierárquico, autoritário, masculino,branco e excludente.

Sabíamos também que, contraditoriamente,esse crescimento não era, na maior parte dasavaliações, inclusive de lideranças, atribuído aofeminismo. Sobre ele, ainda é mais comum ouvirsobre seu desaparecimento e, pior ainda, sobresuas lideranças, que continuariam “sendoassociadas a um estereótipo que vem de longadata, e não apenas dos anos 1970, definindo-ascomo ‘machas, feias e mal-amadas’” (RAGO, 1996, p. 11).

A chave gênero era, a nosso ver, bem maispalatável para início de uma pesquisa, pois aincorporação deste termo se deu de modo bastantegeneralizado, tanto na academia como nosmovimentos sociais. Como, entretanto, a relaçãode pesquisadores(as) e lideranças é profundamentepolissêmica, o tema foi elemento para pesquisa, aoinvés de premissa.

A primeira tentativa das entrevistadas foi definirsua posição sobre gênero, diferenciando-se deoutras que, segundo elas, também existem. Este éum indicador claro não só da polissemia dacategoria, mas também do lugar que cada umaocupa no movimento, haja vista que este é povoadopor polêmicas e disputas. Cada relato é, ao mesmotempo, uma afirmação e algumas negações, comoneste relato:

[...] quando eu falo de gênero, da questão darelação de gênero, eu não falo só nessadiferenciação, dessa mudança de lugares,homens e mulheres tem que ocupar,classificatório, aquela visão do compartilhamento.Eu não falo exatamente dessa visão decompartilhamento, porque muitas vezes aacademia fala de gênero, vendo essa perspectiva.Mulher também tem que tomar parte, tem queestar onde ninguém sabe, como é que essamulher que estar tomando parte, como ela sepercebe como mulher? Com esse lugar, comesse status de mulher no contexto dessasrelações sociais. Porque as relações de gêneropra mim são estruturadas nas relações sociais(Liderança feminista, 70 anos, branca).

Segundo a entrevistada, é preciso “um espaçodemocrático, em que homens e mulheres possamestar neles nas mesmas condições, com osmesmos privilégios” (Liderança feminista, 70 anos,branca). O vínculo estabelecido por esta liderançaentre gênero e poder, agregando a necessidade deque as mulheres acessem todos os espaços

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sociais relaciona-se com sua posição claramentefeminista. Além disso, aparece, neste relato, umacrítica à incorporação do gênero pela academiaque, segundo ela, vincula-se somente àclassificação entre homens e mulheres.

O importante a reter aqui é que se o “gênero éum compromisso ou acordo social que se baseianas definições e interpretações dos outros” (WEST;ZIMMERMAN apud DIAS; MACHADO, 2008, p.580), é possível se posicionar questionando asinterpretações predominantes. Então, o acordosocial proposto pelos autores dirige-se aohegemônico, mas não observa as posiçõessocialmente minoritárias, no momento da pesquisae que poderão ser maioria no futuro. É assim que,quando a entrevistada precisa definir sua interpreta-ção, ela o faz negativamente, ou seja, afirmandosua posição contra o que os outros entendem porgênero. Então, vemos que a igualdade entrehomens e mulheres é o princípio que norteia adefinição da entrevistada e esta apresenta umainterpretação crítica com relação à visão conserva-dora de gênero, segundo a qual há papéis diferen-ciados para homens e mulheres, simplesmente,sem questionar a construção de tais papeis.

Alguns elementos novos foram agregados aoconceito quando o lugar onde falou a entrevistadaera de movimento pela diversidade. Uma delasdisse, inicialmente:

Primeiro, a ideia de que está associado àconstrução de papéis, né? É... e que, obviamente,se você trabalha com a dicotomia masculino efeminino, né? Mas, só essa dicotomia, acho quenão dá conta, até mesmo porque você tem aquestão das travestis, das transexuais, não é?Que, vamos dizer assim, entre aspas,bagunçaram um pouco aí essa coisinhaarrumadinha que se criou, para você fazer osarranjos de gênero masculino igual homens.Gênero feminino igual mulher, né? Para fazeressa, esse link não se sustenta mais! (Liderançafeminista, 39 anos, afrodescendente).

A experiência desta entrevistada agrega novoselementos ao conceito, ou seja, a crítica ànaturalização e ao binarismo do gênero. Sendoassim, ela propôs a superação da associaçãosimplista “do que se coloca nessa associaçãogênero masculino igual a homem, gênero femininoigual a mulher, porque, como Simone Beauvoir jácolocava não se nasce mulher, torna-se mulher.”

A partir da experiência pessoal e do movimento,a posição desta liderança pode ser situada com acrítica à matriz dominante de inteligibilidadecultural do gênero de Butler (1990). Segundo estaautora, “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles que, dealguma forma, instituem e mantêm relações de

coerência e continuidade entre sexo, gênero,práticas sexuais e desejo.” (BUTLER, 1990, p. 17).Questionando esta matriz heterossexual, omovimento filosófico que passou a ser conhecidocomo “queer”:1

[...] busca evidenciar como conhecimentos epráticas sexualizam corpos, desejos, identidadese instituições sociais numa organização fundadana heterossexualidade compulsória (obrigaçãosocial de se relacionar amorosa e sexualmentecom pessoas do sexo oposto) e naheteronormatividade (enquadramento de todas asrelações – mesmo as supostamente inaceitáveisentre pessoas do mesmo sexo – em umbinarismo de gênero que organiza suas práticas,atos e desejos a partir do modelo do casalheterossexual reprodutivo) (BUTLER, 1990, p. 17).

Essa liderança, portanto, estava sensívelquando do monitoramento das políticas públicas, apartir de uma matriz subversiva de gênero. Omesmo não ocorreu com a representação sobregênero de outra liderança feminista, branca, 43anos. Segundo ela, gênero é:

Tudo o que vem historicamente colocado nacabeça da gente. O gênero feminino e é, que euacho que a maioria das mulheres pensam assime depois a gente vai lendo e a gente vai sabendoporque que a gente pensa assim. O Gênero damulher, gênero feminino é da dona de casa,daquela que cuida do menino, daquela que leva omenino da escola, daquela que confere as lições,daquela que espera o marido. [...] Então o quevem na cabeça da gente como gênero é tudoaquilo que ensinaram a gente a fazer, queensinaram a gente desde quando a gente épequenininha, que é o jeito da mulher, o jeito quea mulher deve ser em casa e na rua.

Nessa interpretação, a entrevistada percebe ogênero como a classificação rotineira que asociedade faz entre masculino e feminino. A partirdaí, ela trata da evolução que pode acontecer nestaacepção; por meio da participação da mulher nomovimento social, adviria com o questionamentodesses papéis. Assim, gênero é, para ela, aatribuição de papéis. Então, ela informa:

Sempre percebi, sempre! Eu sempre trabalheimuito. Olha, eu trabalho desde os 14 anos e eu játrabalhei já numa, numa instituição lá em SãoPaulo, privada, aonde eu, eu era a coordenadora.Eu trabalhava muito, eu que chegava mais cedo esaia mais tarde e eu ganhava menos do quequalquer um deles que estava lá. Eu fazia desde,chegava e a primeira coisa que eu fazia, já fazia ocafé, e eu era a coordenadora, mas já punha águapro café. Já deixava o café pronto, entendeu? Querdizer, eu, qual era, de conferência de material, euera mil e uma utilidades, era igual a bombril! Sóque eu ganhava, se não ganhasse igual, eu nãoganhava mais que qualquer um dos auditores queestavam lá e eu era auditora assim como eles,trabalhava muito mais que eles e não ganhavamais do que eles. E eu vejo isso no serviçopúblico também, lá era privado e aqui é serviçopúblico e eu trabalho muito. E a gente não vê issodaí, eu já escutei, já que eu não vou nem falar onome do chefe, que falou assim: “olha, elatrabalha tanto, ela trabalha como se fosse um

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homem!” Rapaaazzz, quer dizer, mais preconceitoque esse daí não tem! Quer dizer, eu trabalho, eutrabalho tanto, que pareço um homem: muito.Olha, que absurdo! Quer dizer, eu não trabalho...Então, se eu trabalho muito, eu não mereço... euacho que eu não trabalho como um homem, eutrabalho como uma mulher, porque eu trabalhomuito mais do que um homem. É ao contrário(Liderança feminista, 43 anos, branca).Este diálogo entre a entrevistada e o patrão

ausente induz a uma disputa acerca de certaaferição sobre quem trabalha mais, se o homem oua mulher. Partindo da situação real, o patrão afirmaque a mulher trabalha como se fosse homem e aentrevistada conclui que este era preconceituoso eque a mulher trabalha mais do que o homem.Enfim, dialogando com a classificação atual sobrepapéis, instaurou-se um diálogo que não leva àdiscussão sobre mudanças, mas somente àdisputa entre homens e mulheres nos termosexistentes.

Talvez tais posicionamentos possam ser melhorexplicados por do meio da análise sobre o modocomo o poder é articulado e mantido através deideologias (THOMPSON apud GABRIELLI, 2007).Este autor apresentou cinco modos gerais deoperação da ideologia: a legitimação, adissimulação, a unificação, a fragmentação e areificação; cada um destes modos se baseia emestratégias de construção simbólica.

A representação manifestada pela liderançapoderia ser situada na estratégia de operação dadissimulação, que significa a adoção de estratégiasde deslocamento (recontextualizar termos de umcampo para outro, valorizando-os de acordo com aideologia que o emprega) e da eufemização(valorização positiva de ações, relações e/ouinstituições sociais), descartando os pontosnegativos destas, e o tropo (empregar palavras emsentido figurado). A liderança em questão opôs avaloração do trabalho dos homens à valoração dotrabalho das mulheres sem, no entanto, ultrapassara construção ideológica desta categoria.Tambémoutra liderança ingressou com a relação entregênero e papéis sociais. Quando convidada ainformar sobre o que vinha à sua cabeça, informou:

Vem uma discussão, vem um debate.Normalmente [...] quando eu escuto no meu gruposocial a palavra gênero, geralmente ela vemseguida de uma discussão das relações sociaisentre, das diferenciações entre homem e mulherna sociedade (Liderança feminista, mais de 40 emenos de 50, dúvida entre ser negra ou índia).

Então, uma das pesquisadoras insistiu: em quesentido essas diferenciações; como é que vocêclassifica ou categoriza?

No sentido, assim, dos papéis sociais.Notadamente, ressaltando as desigualdades,entendeu? Quer dizer, as pessoas do meu gruposocial quando falam de discussão, de gênero,estão se referindo a isso: a essa desigualdadesocial que existe entre homens e mulheres edessa necessidade de se aprofundar isso(Liderança feminista, mais de 40 e menos de 50,dúvida entre ser negra ou índia).

A questão da idade e da raça tem sido muitodelicada, do ponto de vista da matriz dominante deinteligibilidade cultural do gênero (BUTLER, 1990).Nesse sentido, esta entrevistada demonstrou muitoincômodo:

Liderança feminista: Risos... Olha idade...Pesquisadora: Não fala, se você não quiser. Podeser assim “estou na faixa”... Liderança feminista:Risos, eu acho que é uma, é uma perguntacompletamente desnecessária, na pesquisa(risos). Digamos que eu passei dos 40 e aindanão cheguei aos 50. Risos... Ótimo!

Quanto à questão da raça/etnia, interrogadasobre a cor com a qual se define segundo oInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), ela enunciou o seguinte:

Liderança feminista: A cor, no sentido, se soubranca, preta? Pesquisadora: Hum rum, é!Amarela, verde... Liderança feminista: Risos, eudiria que eu sou, quer dizer, eu na verdade eu nãosou negra e tenho elementos indígenas, mas,assim eu não me caracterizaria como umapessoa indígena. Então, sei lá... Pesquisadora:Descendência, uma mistura aí. Liderançafeminista: É, porque assim, todos nós somos,todas neguinhas, todas branquinhas, entendeu?Eu nem sei, sabia? No IBGE, eles falam que éparda. Mas, eu acho tão complicado dizer assim:“sou parda!” Eu sou, na verdade, uma misturadessas coisas todas.

Aqui aparece a questão dos padrões impostostantos à feminilidade como à raça/etnia. Isto põeinteressantes questões para análise. A primeiradelas é o fato de que, em fazendo parte de ummovimento social questionador da ordem vigente, aentrevistada muito provavelmente teve acesso àsdiscussões acerca das consequências destasimposições, inclusive tendo acesso aosmovimentos em favor de mudanças quanto a isso.Entretanto, do ponto de vista pessoal, isso nãoparece ser relevante para ela. Como, do ponto devista metodológico, a opção da pesquisa é pelaautodefinição, optamos por apresentar a definiçãodada pela própria entrevistada e não aquela que elainforma ser a do IBGE.

Já outra liderança - que, ao olhar daspesquisadoras, pareceria morena, o que seriatraduzido pelas definições do IBGE como parda -autodefiniu-se como negra. Isto provavelmente serelacione com o fato de ela ter experienciado aparticipação e o apoio aos movimentos

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quilombolas. Nesse caso, ela sabe sobre aimportância da afirmação da negritude e daoposição a um dos modos de operacionalizaçãoideológica, isto é, da reificação (que apresentaconstruções sociais e culturais comoindependentes da ação humana). Este processoideológico se dá por meio de três estratégiastípicas de construção simbólica: a naturalização(criação social e histórica tratada comoacontecimento natural), a eternalização (fenômenossócio-históricos apresentandos como permanentes)e a nominação/passivação (privilegiamento dedeterminados temas em detrimento de outros,ofuscando ações e atores) (THOMPSON apudRESENDE; RAMALHO, 2009).

Quanto questionada sobre o tema gênero edesenvolvimento, uma das entrevistadas tratou,primeiramente, da relação entre ambos e dainsuficiência do desenvolvimento para contemplaras questões do gênero. Conforme ela:

De cara, a primeira coisa que me chama aatenção é a relação entre as duas categorias, degênero e classe, né? Que eu tive que enfrentarquestões de, de, as situações deempobrecimento das mulheres e embora gêneronão seja só a questão das mulheres, na verdadea tematização de gênero é em razão dasdesigualdades. [...] Pra mim, a primeira imagem érelacionada ao enfrentamento concomitante dedistribuição de renda e as desigualdades degênero. [...] Daí a necessidade do recorte degênero (Liderança feminista, 46 anos, negra).

Segundo sua interpretação, a inclusão dorecorte de gênero leva à percepção da insuficiênciadas políticas de desenvolvimento, do ponto de vistado gênero:

Eu acho que os projetos, as políticas, só políticasde desenvolvimento, elas não dão conta deenfrentar, porque as políticas de desenvolvimentovão levar em conta as situações gerais deempobrecimento, e essas situações gerais deempobrecimento não levam em conta a, a essapeculiaridade de gênero, de raça e etnia. Enfim, é,é de orientação sexual e, não levando em contaessas especificidades, aí o projeto não dá contade enfrentar esse, esses problemas internos(Liderança feminista, 46 anos, negra).

E como, então, a questão do gênero não estariacompletamente contemplada pelos projetos dedesenvolvimento?

[...] porque, se você pensa desenvolvimento,mesmo que você complexifique, desenvolvimentovai além da idéia de progresso, que não sejaessa concepção fechadinha de progresso que setem, é desenvolvimento quando eu tô num lugareu paro, vou pra outro lugar, né?, essa perspectivaevolucionista, mesmo que você complexifique,desenvolvimento não dá conta dessa, dessademanda que, que mulheres, gays, lésbicas,pessoas negras apresentam (Liderançafeminista, 46 anos, negra).

O gênero situaria-se, então, aquém e além daspolíticas públicas, isto é:

[...] eu preciso de três coisas: moradia, é..., saúde,educação. Mas, eu preciso ser reconhecido comosujeito de direito e esse ser reconhecido comosujeito de direito não tá dentro de nenhumadessas políticas públicas. Não é só uma questãode políticas publicas, é uma questão dereconhecimento social, mesmo; é uma questãode reconhecimento dos pares, de reconhecimentodas pessoas com quem você convive, ou seja, éuma demanda por mudança social! (Liderançafeminista, 46 anos, negra).

Para cuidar das dimensões reconhecimento,subjetividade ou mesmo da conquista da felicidade,careceríamos, segundo esta liderança, de “[...] algomais específico; algo que implica em umaintervenção no campo individual e no campo social”(Liderança feminista, 46 anos, negra).

Fica evidente, no trecho da entrevista, umacrítica à expectativa ou à estratégia feminista queestaria apostando tudo nas políticas públicas, porexemplo. As teorias feministas terão, portanto, queresponder a esta importante questão. Senão,vejamos: haveria espaços da vida social que nãoseriam alvo ou sofreriam as consequências daintervenção estatal? Ou, ao contrário, as políticaspúblicas não se dirigem aos aspectos vinculadosaos relacionamentos afetivos?

A questão que se coloca não foi indagada àsentrevistadas, mas emergiu do debate acerca darelação gênero e desenvolvimento. O modo como arelação gênero e desenvolvimento foi abordadapelas lideranças permitiu, de certo modo, entendercomo elas interpretam ser o lugar do gênero noprocesso de constituição do desenvolvimento noPiauí. Será, então, que o desenvolvimento não podeser avaliado, levando em conta tais questões?

Segundo Connell (1987), a resposta a estasquestões é: todos os espaços sociais sãosubmetidos ao gênero. Até chegar a esta resposta,a autora2 elabora uma revisão das teoriassociológicas em busca de uma teoria do gênero.Em síntese, para esta autora, os limites daquelasteorias estão no fato de destacarem apenasaspectos das relações humanas para teorizá-las ouapenas elevarem à condição de conceitos aspráticas existentes, como o fazem as teoriasconservadoras.

Então, para abarcar o conjunto da vida social, épreciso um conceito de gênero que dê conta disso.Segundo ela, falar de gênero significa dizer “nosmais amplos termos, a forma pela qual ascapacidades reprodutivas e as diferenças sexuaisdos corpos humanos são trazidas para a prática

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social e tornadas parte do processo histórico”(CONNELL, 1995, p. 189). Com este conceito, épossível observar que o gênero é uma prática sociale, portanto, passível de intervenção coletiva otempo todo; é o processo de naturalização, que éinteiramente social e atende aos interesses degrupos hegemônicos, que produz a ideia de que ascapacidades reprodutivas e as diferenças sexuaisdos corpos humanos não são socialmenteconstruídas. Em assim sendo, como compreendera questão posta pela entrevistada: os planos dedesenvolvimento não tratam das questões afetivase de reconhecimento?

A resposta de Connell (1987) é que há umaestrutura social, denominada como cathexis ouconexão emocional. Segundo ela, cathexis é adimensão do relacionamento humano que seconfigura como “relacionamento sexual social”, ouseja, o conjunto de “relacionamentos organizadosem torno da ligação emocional de uma pessoa aoutra” (CONNELL, 1987, p. 111-112). Estaexplicação ajuda a compreender a sexualidadecomo social do começo ao fim. Assim, ficasuperada a imagem de que há uma sexualidadehumana e um corpo pré-sociais. Pelo contrário, “adimensão corporal não existe antes ou fora daspráticas sociais em que os relacionamentos entrepessoas são formados [...]” (CONNELL, 1987, p.112). Também define a divisão de papéis nosrelacionamentos familiares, no cuidado com ascrianças etc.

Avaliando o mundo por meio do conceito degênero, podemos observar que há um modelosocial predominante do desejo que se constituicomo um sistema interligado de proibição eincitação. A pista apresentada por Connell (1995)vem na forma de dois princípios de organizaçãomuito óbvios em nossa cultura. São tão óbvios quepensamos que seja natural. O primeiro é aquelesegundo o qual objetos de desejo são definidospela dicotomia entre feminino e masculino; osegundo é o de que a prática sexual é principal-mente organizada na forma de relacionamentos decasal. Desfaz-se, então, o mistério que leva amaioria das pessoas a estabelecer famíliasconjugais heterossexuais, em que homens sãoincitados a ser agressivos e proibidos de ser“moles” e mulheres são incitadas a ser “frágeis” eproibidas de ser agressivas. Estes tenderão a criarseus filhos e filhas seguindo este modelo. Emsíntese, a estrutura de cathexis, tem a ver com:

[...] escolha de objeto, desejo e desejabilidade;com a produção da heterossexualidade, dahomossexualidade e do relacionamento entreelas; com os antagonismos de gêneroestruturados socialmente (ódio à mulher, ódio aohomem, ódio a si mesmo); com confiança edesconfiança, ciúmes e solidariedade emcasamentos e outros relacionamentos; e com osrelacionamentos emocionais envolvidos nacriação de crianças (CONNELL, 1987, p. 97).

Os planos governamentais, as práticasprofissionais e até mesmo a maioria da população,incluindo as lideranças de movimentos, podem teresse modelo hegemônico de masculinidadedominante e feminilidade subordinada, excluindo asoutras identidades psicossexuais como pressupos-to. Isto impede que o tema surja, a não ser queoutras categorias sociais prejudicadas passem aquestionar esta aparente universalidade. Em nossapesquisa, uma das entrevistadas destacou isto:

Exatamente para finalizar essa questão daconstrução, de algo como uma construçãocultural. [...] quando se trata da questão de gênero,é óbvio que o gênero não diz respeito só àquestão da condição feminina, não é? [...] seentrecruza com outras questões que sãomotivadoras de discriminação, de desigualdade,como a questão racial, como a questão deorientação sexual, a questão da própria condiçãosocial, não é? (Liderança feminista, 39 anos,afrodescendente).

Desse modo, mesmo que ainda não estejamosalertas e capacitados(as) para perceber as diversasmediações envolvidas na construção desse modelopadrão de cathexis nos planos de desenvolvimento,pelo menos sabemos que teremos que ficaratento(as) a seu funcionamento.

Relacionando esta interpretação com osdiscursos até aqui registrados, pode-se ver commais detalhe que a experiência da liderançafeminista vinculada aos movimentos pela diversi-dade ultrapassou o modelo dicotômico, masculinoversus feminino e apresentou a experiência detravestis como uma desorganização do modelo dedesejo tradicional. Já para a segunda entrevistada,não é possível tratar de desenvolvimento e abarcartodos os espaços nos quais ocorrem práticasrelativas ao gênero. Temos, então, que analisar é aamplitude das práticas sociais às quais asentrevistadas vinculam o gênero e o desenvolvi-mento. Se Connell (1995) estiver correta, porexemplo, os planos de desenvolvimento fatalmenteimporão modelos de gênero, inclusive por meio doapoio, consciente ou não, a determinados modelosde cathexis. Em assim sendo, a avaliação dosplanos de desenvolvimento ficará mais rica se levarem conta o conceito de cathexis que estásubentendido ou explicitado nele e a que categoria

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social favorece e a quantas outras prejudica.Ainda quanto a isto, fica mais esclarecido o

incômodo com a idade manifestado por uma daslideranças feministas, que se relaciona como ummodelo padrão de feminilidade, vinculado a certo“prazo de validade” para as mulheres no “mercadomatrimonial”, assim como com o padrão decathexis por meio do qual mulheres desejáveis sãoaquelas cuja idade esteja no período reprodutivo.Então, parcela das mulheres termina por escolher oocultamento da idade, a fim de não sofrer taislimitações.

Após conseguir elaborar uma categoria paraexplicar o funcionamento da ordem de gênero,ainda falta explicar como e por que o mundo édominado por homens brancos e heterossexuais.

Para Connell (1987), a estruturação engendradada sociedade pode ser compreendida, agregando-se à cathexis as estruturas da produção e dopoder. Isto significa que “o gênero é muito mais queinterações face a face entre homens e mulheres,[...] é uma estrutura ampla, englobando aeconomia e o estado, assim como a família e asexualidade” (CONNELL, 1995, p. 189, grifo nosso);é efetivado por meio da prática social, entendidaaqui como “substância do processo social [...]”(CONNELL, 1987, p. 93), o que significa que éhistórico e pode, portanto, ser transformado.A adoção deste conceito leva-nos a superar asinterpretações que têm buscado distinguir umainstituição particular como sustentadora do gêneroe da sexualidade, principalmente a família e oparentesco.

Quanto à estrutura chamada por ela deprodução, temos que tratar a organização dotrabalho como uma categoria ampliada que englobe“a organização do trabalho doméstico e do cuidadoinfantil, a divisão entre trabalho pago e não-pago, asegregação do mercado de trabalho e a criação de‘empregos masculinos’ e ‘femininos’, adiscriminação no treinamento e promoção e asdesigualdades de salário e carreira” (CONNELL,1987, p. 97). Apesar de ser mais aceita comopassível de intervenção pública, tanto comoreivindicação dos movimentos como comformulação de políticas, esta conceituação deConnell ainda precisa ser incorporada nas análisese nas intervenções.

Connell (1987) propõe que olhemos para aestruturação engendrada do trabalho, sintetizando-a em dois maiores princípios: a lógica engendradada acumulação e a economia política da

masculinidade. Pelo primeiro, podemos identificar aorganização global de gênero do trabalho, com aconcentração de benefícios em uma direção - aoshomens, é lógico -, e perdas econômicas em outra,em escala suficiente para produzir uma dinâmicade acumulação em seus próprios termos. Osegundo princípio tem a ver com a definição demasculinidade e sua mobilização como um recursoeconômico; um exemplo é a questão do cuidadocom a infância:

[...] desde que os homens têm mais controlesobre a divisão do trabalho que as mulheres, suaescolha coletiva é não realizar o trabalho de cuidarde criança, [...] refletindo a definição dominantedos interesses masculinos, e, de fato, ajuda-os aconservar o poder predominante (CONNELL,1987, p. 106).

No nível da formulação de política pública, estemesmo princípio pode ser seguido. Já que são asmulheres que cuidam, vamos criar políticas que asajude a cuidar ou, o que é pior, políticas para puni-las por não cumprirem suas “funções”. Esta visãonão apareceu de modo claro em nenhuma dasentrevistadas desta pesquisa. Sendo um processosocial muito complexo, seu tratamento comoobjeto de ação dos movimentos e de intervenção nomomento de formulação de políticas e projetos éassunto ainda a ser construído.

Falta tratar sobre a estrutura de poder. SegundoConnell (1987), ela envolve “a autoridade, o controlee a coerção: as hierarquias do Estado e negócios,violência interpessoal e institucional, regulaçãosexual e vigilância, autoridade doméstica e suacontestação” (CONNELL, 1987, p. 96-97); não ésomente o poder como acesso e usufruto decargos nas instituições e no estado.

A obviedade do funcionamento do poder comouma estrutura social se dá pelo fato de que “acoerção, na prática, se estende para a questãoelementar da sobrevivência” (CONNELL, 1987, p.101). Aqui se define a relação entre o poder e amasculinidade, pois, “[...] se a autoridade é definidacomo poder legitimado, então nós podemos dizerque o ponto central da estrutura de poder de gêneroé a conexão geral da autoridade com amasculinidade (CONNELL, 1987, p. 109). Aautoridade é tal que, ao descobrir-se sendoconforme o modelo, mesmo descobrindo que háimposição, uma pessoa pode experimentar a culpade não conseguir mudar:

Lógico que depois a gente vai lendo e a gente vaivendo que isso pode se desfazer, que a gentepode modificar o mundo, mas o que vem aindaincutido na cabeça da gente, que tá tão enraizado.Por incrível que pareça, quando a gente vê, eu

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estou fazendo isso em casa, por mais que eu vejaque não é só minha função de fazer isso, quandoeu vejo eu estou fazendo um monte de coisa queeu sei que não é só minha função que o homemtambém pode fazer, mas sou eu que estoulavando a louça, rsrsr, que estou limpando a casa,quer dizer (Liderança feminista, 43 anos, branca).

Há, portanto, uma determinação (umaqualidade) do destino das mulheres como categoriasocial. Assim:

Neste regime, as mulheres são objetos dasatisfação sexual dos homens, reprodutoras deherdeiros, de força de trabalho e de novasreprodutoras. Diferentemente dos homens comocategoria social, a sujeição das mulheres,também como grupo, envolve prestação deserviços sexuais a seus dominadores. Esta soma/mescla de dominação e exploração é aquientendida como opressão. (SAFFIOTI, 2004, p.105).

Há uma máquina (SAFFIOTI, 2004) em ação,que beneficia - ainda que diferenciadamente, emface das outras determinações - todos os homens.Voltando à relação entre gênero e desenvolvimento,com a avaliação desta liderança feminista (43 anos,branca):

O desenvolvimento cultural, eu acho, vamos supor,é isso que eu te falei... vindo gente nova pra cá,trazendo outras informações... Eu acho que essatroca de informações é muito grande, ou quando agente vai pra fora pra fazer um curso, ou quandovem pra cá pra dar essas capacitações pra gente,eu acho muito bom e esse desenvolvimento. Agente também sente no Controle Social, eu achoisso! Por mais que falem que o Controle Social,que ele ainda não está forte, realmente, não tánão, mas ele desenvolveu muito. Tanto que lá noConselho Estadual de Saúde você vê que lá nacadeira que a gente, tem [...] o Movimento dasProstitutas, o Movimento de Mulheres, tem oMovimento LGBT.

Este movimento pode ser explicitado por meioda eufemização, pois que sua participação comomembro de conselho de direitos fez com que elasuperdimensionasse tal processo em detrimento deum olhar para o processo social mais amplo.Então, desenvolvimento fica reduzido a novasaquisições de conhecimento por conselheiros(as) eaumento do controle social.

Atualmente, quando tratamos de mercado detrabalho, referimo-nos à parte paga do trabalho queé vendido e comprado fora do espaço privado. Atépouco tempo, pensava-se esta relação nomasculino, supondo-se que às mulheres cabia aparte do trabalho no espaço doméstico, a chamadareprodução social. E como esta parte do trabalhonão é paga, não é considerada trabalho. Bertaux(1979) redefiniu o conceito de trabalho, de modo arestabelecer a unidade entre espaços público eprivado, com o conceito de produçãoantroponômica, ou seja:

A produção dos próprios seres humanos, nãoenquanto seres biológicos, mas enquanto seressociais. A reprodução ‘biológica’ está subordinadaà produção social; o social utiliza o biológico,como o econômico utiliza a técnica; mas lhe dásua forma exterior e, podemos dizer, seu conteúdo(BERTAUX, 1979, p. 56, grifo nosso)

Pelas descobertas de Bertaux (1979),concluímos que a produção de seres humanosacontece de modo subordinado à produçãoeconômica, o que leva à conclusão de que aspessoas se produzem e se distribuem conforme asnecessidades de consumo de sua energia, de suascapacidades, pelo mercado. Como cada pessoa,individualmente, não poderá viver fora da sociedade,esta tenderá a se fazer no sentido de atender àsdemandas majoritárias em sua época. É por issoque a pessoa, ao fazer parte de uma maioria, faztanta questão de destacar este fato, como o fezuma das entrevistadas: “sou feminista,heterossexual (entonação da voz com destaque).Tenho tido uma prática nessa linha, né? Emboradefenda todas as outras manifestações do desejo,dentre elas, a homossexualidade e a lesbiandade”(Liderança Feminista, 46 anos, negra). Ou então,outra liderança, incomodada com a pergunta sobresua idade, relembrando: “Olha idade... (risos...). Euacho que é uma, é uma pergunta completamentedesnecessária, na pesquisa (risos). Digamos queeu passei dos 40 e ainda não cheguei aos 50(risos...). Ótimo! (Liderança Feminista, mais de 40,menos de 50 anos, mistura de raças).”

A década em que as mulheres brasileiras foramchamadas a formular políticas públicas para asmulheres e a compor organismos governamentaisfoi a mesma década da chamada “ofensivaneoliberal”, quando passou a ser apresentada comoa solução para os dilemas sociais a redução deinvestimentos em políticas de caráter distributivase, o seu corolário, a transferências daresponsabilidade de atendimento destas demandaspara a sociedade (CISNE; GURGEL, 2008, p. 72).A ofensiva neoliberal, também efetivada na AméricaLatina, institui parcerias com a sociedade civil e,dentre estas, com as organizações nãogovernamentais (ONGs).

Tidas como mais “eficientes” e “técnicas”, asnovas entidades precisavam conquistar espaço no“mercado de projetos” (ALVAREZ apud CISNE;GURGEL, 2008, p. 75) e se tornarem parceiras doEstado e dos organismos transnacionais definanciamento. Somando-se este novo fenômeno àpresença de numerosas lideranças femininas(feministas ou não), temos como consequência um

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esvaziamento dos movimentos sociais. Agora,submetidas à dupla institucionalização - na gestãopública e na gestão de projetos de ONGs parceiras-, a disputa agora se desloca para novo espaço - ogabinete.

A consequência óbvia foi a desmobilização dosmovimentos sociais, incluindo-se o de mulheres efeministas, agora substituídos pelo que ficouconhecido como onguizações da sociedade civil,as quais passaram a compor o chamado terceirosetor. A invenção desse novo espaço socialcumpre, segundo Montaño (2002, p. 13), duplafunção: “instrumentalizado pela estratégianeoliberal, tem a função tanto de justificar elegitimar o processo de desestruturação daSeguridade Social estatal como de transformar aluta contra a reforma do Estado em parceria com oEstado.” Segundo Montaño (2003), as consequên-cias são esvaziamentos dos movimentos sociais,com a substituição dos mesmos pelas ONGs, eONGs representando a sociedade civil, agora comoparceiras, negociadoras, em lugar do caráteroutrora reivindicatório dos movimentos.

No caso em análise, as lideranças estãovinculadas a entidades situadas em três situações:apoiadoras dos governos eleitos na última década eparticipantes destes; fora do governo e críticasdestes; e participantes do governo e membro deONG. Deste contato, concluímos que há, além dosdeslocamentos já descritos, uma pressão muitogrande para que não sejam feitas críticas àsinsuficiências das políticas, em função do risco defavorecer aos segmentos políticos mais atrasados,segundo esta visão. Por outro lado, a crítica aoacesso aos gabinetes, em detrimento das ruas, foiincisiva no discurso de algumas. Por exemplo:“Eu acho, dá um sentimento de frustração. Aísomado, aquela coisa que eu já te disse, você temum Conselho que é só de fachada! Você não tementidades feministas para estar cobrando isso. Aínão pode funcionar.” (Liderança feminista, 39 anos,afrodescendente). Mais que a ausência demovimento, a entrevistada cita algo novo:

Ah, isso era a coisa mais grave, mais grave! Aconveniência. Quando era conveniente, eu eragestora [...]. Quando é conveniente, no ConselhoEstadual de Direitos Humanos, eu sou doMovimento Social, eu represento a minha ONG.Claro que isso eu não vi em lugar nenhum doBrasil, quando eu fui visitar os outros estados [...].Porque todo lugar, você tem bem aqui emPernambuco, aquela feminista histórica, num seio quê [...] a primeira coisa que ela fez: se afastou.

O arrefecimento dos movimentos, sejaproduzido pela conjuntura neoliberal, seja pelos

novos controles realizados pelas própriaslideranças, termina por enfraquecer todo o projetode mudança da sociedade, se é que se entendefeminismo como um projeto de subversão da ordemsocietária atual. Desse modo, e sem o apoio queoutrora as alçaram ao poder, resta a pergunta: queapoios conseguirão, a fim de se manter no poder?Notas:(1) Para uma melhor compreensão sobre a filosifia queer, verJudith Butler (1990).(2) O livro citado foi publicado por Robert Connell. Temposdepois, ele se submete a cirurgia para mudança de sexo,tendo mudado seu nome para Raewyn Connell. Para maioresinformações sobre autora e obra, ver sua página na internet.<http://www.raewynconnell.net/2011/09/discussions-of-raewyns-work.html>. Acesso em: 10-09-2012.ReferênciasBERTAUX, D. Destinos pessoais e estrutura de classe. Riode Janeiro: Zahar, 1979.BUTLER, J. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1990.CISNE, M.; GURGEL T. Feminismo, estado e políticas públicas.Ser Social, Brasília, v. 10, n. 22, p. 69-96, jan.-jun. 2008.CONNELL, R. W. Gender & Power. California: StanfordUniversity Press, 1987.CONNELL, R. W. Masculinities. California: University ofCalifornia Press, 1995.HOBSBAWM, E. Era dos extremos. São Paulo: Companhiadas Letras, 1995.GABRIELLI, C. P. Análise crítica do discurso e teoriafeminista. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL MU-LHER ELITERATURA, 3., Ilhéus, 2007. Anais...Ilhéus, 2007. Disponível em: <http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/CASSIANA%20PANISSA%20GABRIELLI.pdf >. Acesso em:10 abr. 2012.MONTAÑO, C. E. O projeto neoliberal de resposta à “questãosocial” e a funcionalidade do “terceiro setor”. Lutas Sociais,São Paulo, v. 8, p. 53-64, 2002. Disponível em: <http://www.pucsp.br/neils/downloads/v8_sumario.pdf>. Acessoem: 10 abr. 2012.MONTAÑO, C. E. As políticas públicas de gênero. In:MONTAÑO, S.; PITANGUY, J.; LOBO, T. As políticas públicasde gênero. Mujer y desarrollo, Santiago de Chile, n. 45, p. 7-20, jun. 2003. [online]. Disponível em: <http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/12689/lcl1920p.pdf>. Acesso em: 20 set.2012.PITANGUY, J. Movimento de mulheres e políticas de gênerono Brasil. In: MONTAÑO, S.; PITANGUY, J. LOBO, T. Aspolíticas públicas de gênero. Mujer y desarrollo, Santiago deChile, n. 45, p. 23-40, jun. 2003. [online]. Disponível em:<http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/12689/lcl1920p.pdf>. Acesso em: 20 set. 2012PEREIRA, F. P.; LUZ, L. C. X. Gênero e desenvolvimento entreformuladores/as de políticas públicas e lideranças feministasno Piauí. Relatório de Pesquisa, Conselho Nacional dePesquisa (CNPq). Teresina, 2011. (mimeo).RAGO, M. Adeus ao feminismo? Cadernos AEL, Campinas, v.2, n. 3-4, p. 11-43, 1996.RESENDE, V.; RAMALHO, V. Analise de discurso critica. SãoPaulo: Contexto, 2009SAFFIOTI, H, I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 2004.

*Professora do Departamento de Serviço Social/UFPI e do Mestrado em Sociologia/UFPI. Doutora emCiências Sociais/PUCSP**Professora do Departamento de Serviço Social/UFPI e do Mestrado em Sociologia/UFPI. Doutora emServiço Social/PUCSP

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CÃS NA SALA DE AULA: a velhice étema acadêmicoPor Francisco de Oliveira Barros Júnior*e Antônio de Pádua Betencourt Silva**

Resumo: as reflexões feitas no texto resultam de uma experiência desenvolvida em sala de aula, naabordagem do tema velhice. A sua relevância é defendida e é exposta numa série de questões básicas paraquem inicia uma reflexão sobre o assunto focalizado. Ancorado em uma perspectiva que vê a realidade comouma construção social, o argumento aponta para a possibilidade de ser produzido um novo olhar sobre oenvelhecimento. As ideias explicitadas encontram fundamentação teórica em um conjunto de autores que sãoreferência no campo da gerontologia social. Um olhar complexo e multidimensional sobre o sujeito queenvelhece aponta para velhices, no plural, pois os idosos estão inseridos nos mais diversos contextossocioeconômicos. Uma visão crítica propõe uma politização do debate.Palavras-chave: Envelhecimento. Educação. Maturidade.

Inserir o tema da velhice no conteúdoprogramático de uma disciplina voltada para osalunos da área da saúde é um objetivo por nóstraçado no desenvolvimento de “Tópicos emsociologia da saúde”. O impulso para tal inserçãose deve ao nosso engajamento no ProgramaTerceira Idade em Ação, da Universidade Federal doPiauí. No presente texto nos propomos a fazer umasérie de reflexões sobre o desenvolvimento destaexperiência de ensino junto aos alunos dagraduação. A iniciativa de abordar o citado assuntoestá ancorada em uma justificativa que divulga asua relevância. Tomamos como baseargumentativa a literatura que aponta para aemergência da sociedade em envelhecimento como fim do culto à juventude (SCHIRRMACHER,2005).

Levar o tema da velhice para a sala de aulaexige do educador uma capacitação teórica queforneça um conjunto de conceitos que lhepossibilitem desenvolver reflexões sobre oprocesso de envelhecimento. Embasado em umaperspectiva crítica e desconstrutora, o professorobjetiva sensibilizar os educandos para a relevânciado assunto focalizado. As nossas colocaçõesestão fundamentadas em uma década de trabalhona condução da disciplina “Tópicos em sociologiada saúde”, obrigatória para a formação dos alunosdo curso de enfermagem. Dentre os vários temasnela abordados, está o envelhecimento. Nasequência deste artigo discorreremos sobre oconteúdo que é desenvolvido ao longo de nossasaulas expositivas sobre o assunto. A avaliaçãopositiva do trabalho desenvolvido constitui umestímulo para que ele tenha continuidade.

A relevância do tema na atualidade é outro fatorestimulante.

As mudanças no mundo com o aumento dapopulação mais velha constituem um problemaimportante a ser reconhecido pela sua relevância.Em nome de uma maior lucidez e de umcompromisso intelectual mais corajoso, convémenfocar os tópicos ligados ao processo deenvelhecimento de uma maneira que seja relevante,ou seja, “que nos possibilite compreender,simultaneamente, como eles se relacionam com oser humano e a sociedade e como seu estudopoderia contribuir para um avanço autêntico doconhecimento” (MOSCOVICI, 2009, p. 163).

Norberto Bobbio (1997) ao iniciar a primeiraparte do seu livro “O tempo da memória”, afirmaque a velhice é um tema não-acadêmico.Entre nós ele passou a ser. O aumento dapopulação mais velha, apresentada como arevolução dos idosos (SCHIRRMACHER, 2005),é assunto debatido em disciplinas universitárias,grupos de trabalho em congressos científicos e temsido alvo de pesquisas acadêmicas divulgadas soba forma de dissertações e teses. A relevância deestudarmos a emergência da sociedade emenvelhecimento é reforçada com a extensão dosprojetos de universidades da terceira idade. Osestudantes que delas participam realizam a cadadois anos os seus encontros nacionais. Um estudosobre o perfil dos docentes nelas engajados concluique “a educação para adultos maduros e idososapresenta-se como uma resposta inovadora aosnovos desafios e demandas sociais gerados pelaemergência de um novo grupo etário e de uma novafase no curso de vida” (CACHIONI, 2003, p. 215).

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Através de questionário, pedimos aos alunosque justificassem a relevância de encararmos aquestão do processo de envelhecimento. Ajustificativa está nas mãos deles:

Devemos nos preocupar mais cedo em entendero processo de envelhecimento, pois, de acordocom estatísticas, nossa geração participará dessafase por muito mais tempo. E justamente porcausa disso é preciso aprender a lidar com asdificuldades próprias da velhice para que atémesmo haja uma transformação nocomportamento da sociedade frente aos idosos,que é bastante preconceituoso, na intenção deque nosso futuro seja menos sofrível emcomparação ao tratamento atual dispensado aosidosos (L. C. S. C. – sexo feminino).

Os pensadores e construtores da educaçãoprecisam pensar em um planejamento escolar queinsira em seu contexto a valorização e o respeitopelo idoso. Convém captar os sentimentos, visõese pensamentos dos jovens sobre o ser velho e avelhice. Uma pesquisa sobre a imagem que ojovem educando tem do idoso propõe evitarmos aspolarizações entre juventude e velhice para quesejam atingidos os objetivos de “quebrar antigosparadigmas e desenhar novos horizontes para umenvelhecimento saudável e desejado” (NUNES,2005, p. 115).

O que os jovens pensam sobre a velhice? Coma palavra, alunos da disciplina explicitam os seuspontos de vista sobre o envelhecimento. O registroescrito está inserido em um questionário aplicadoentre eles. Fragilidade é uma palavra-chave notexto seguinte:

A velhice é uma das fases do desenvolvimentohumano onde ocorrem inúmeras mudanças, tantofísicas quanto psicológicas e sociais. Por contadessas mudanças, que por sua vez podem gerarmuitos conflitos, é importante que se tenha umaatenção especial com esses indivíduos nessafase, uma vez que estes, na maioria das vezes, seencontram fragilizados devido às alterações nasrelações sociais em função da diminuição daprodutividade (L. M. S. N. – sexo feminino).Os efeitos físicos, os problemas e o futuro do

envelhecimento estão entre os temas de interesseda reflexão sociológica. Saúde, doença eenvelhecimento estão relacionados em umasociologia do corpo que indaga: “como aexperiência pessoal de envelhecimento é forjadapor fatores sociais”? No glossário, encontramos otermo velhicismo, que significa “discriminação oupreconceito contra uma pessoa com base naidade.” Na construção de uma imagem do servelho, o texto exibe uma foto de sorridentessenhoras, fazendo atividades físicas e encarnandoo chamado “poder grisalho”, que anuncia: “A velhicenão é mais o que era uma vez” (GIDDENS, 2005, p.144-148).

Convém apresentar imagens da terceira idade.Elas são as mais variadas. Diversas linguagenspodem ser utilizadas para que atinjamos esteobjetivo. A literatura, a fotografia, o cinema e amúsica, dentre outras, possibilitam a captação demúltiplos olhares lançados sobre o envelhecimento.As diferentes representações justificam o uso dotermo velhice no plural. Na trilha da desconstruçãode um conjunto de estereótipos produzidoshistoricamente sobre a figura do(a) velho(a), éapresentada uma velhice bem-sucedida com a novaimagem da terceira idade (MASCARO, 1997).

Buscamos mostrar imagens e representaçõessociais do envelhecimento na música popularbrasileira (MPB). A leitura e a audição musical dasletras de vários compositores na sala de aula émais um recurso didático pedagógico utilizado como objetivo de ampliar os olhares lançados sobre otema. No imaginário lírico de Nelson Cavaquinho, o“bardo dark” da MPB, encontramos a velhice comoum dos temas recorrentes da sua densa poéticamusical. As imagens da letra “Degraus da Vida”(de Nelson Cavaquinho, Cesar Brasil e AntonioBraga) reforçam a caracterização do compositorcomo um malabarista da dor, em composições queabordam o luto, a melancolia e a angústiaexistencial (SOUZA, 2010). As rugas e os cabelosbrancos fazem residência na cabeça de umchoroso e desgostoso velho:

Sei que estouNo último degrauDa vida, meu amorJá estou envelhecidoAcabadoPor isso muito eu tenho choradoEu não possoEsquecer o meu passadoForam-se os meus vinte anos de idadeJá vai muito longe a minha mocidadeSinto uma lágrima rolarSobre o meu rostoÉ tão grande o meu desgosto.(“Degraus da vida”)O controle da realidade de hoje através da

de ontem revela o poder e a claridade dasrepresentações sociais. As investigações empsicologia social concluem que“Nossas experiências e ideias passadasnão são experiências ou ideias mortas, mascontinuam a ser ativas, a mudar e a infiltrar nossaexperiência e ideias atuais. Sob muitos aspectos,o passado é mais real que o presente”

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(MOSCOVICI, 2009, p. 37-38). As imagens erepresentações sociais que associam velho comdoença e confundem senescência com senilidadesão combatidas pelos propagadores da “revoluçãodos idosos”. Segundo eles, “elas não têm maisrazão”. E propõem: “Devemos desaprender o quenossa cultura e nossa biologia nos inculcaramsobre o envelhecimento” (SCHIRRMACHER, 2005,p. 174).

Quando se discute envelhecimento biológico, édefendida a ideia de que velhice não é doença(MASCARO, 1997). No final dos anos 1960,Gilberto Freyre criticava uma atitudesegregacionista voltada para os velhos, alvos deuma “solução demasiadamente simplista de umproblema que de modo algum deveria ter sidoconfundido com o de desvios da normalidade socialpor doença” (FREYRE, 2004, p. 68). A situaçãodescrita a seguir foi alvo de levante gerontológico,ancorado em corrente de opinião médica esociológica:

Essa segregação pode estender-se aosindivíduos simplesmente de idade avançada, aosquais faltem filhos ou netos ou parentes ouamigos capazes de os sustentarem em suascasas, sendo considerável, em modernassociedades industriais, o número de indivíduosque a simples idade avançada, nem sempreacompanhada de doença, reúne em grupos desegregados em hospícios, como se a suasituação fosse a de desviados da normalidadesocial por enfermidade (FREYRE, 2004, p. 68).

No final dos anos 1960, Gilberto Freyre na suasociologia da medicina relaciona um conjunto deproblemas médico-sociológicos situados em umaépoca de transição aguda - de um tempo modernoa outro, pós-moderno. Dentre eles, o aumento demédia de vida que veio a dar maior importância àgerontologia. Naquele momento histórico, ele eradestacado, entre outros. Uma emergentesociedade em envelhecimento rebentava.Desafio para os gerontólogos:

Problemas, como é evidente, do maior interesse,que se apresentam ao mundo de hoje: inclusiveao chamado universo tropical onde se eleva, coma média de vida, a presença do indivíduo –pessoa sênior nas populações, que já não podemser de todo descritas como populações nacionaisjovens (FREYRE, 2004, p. 45).

No dia 8 de março de 1988, Raquel de Queirozescreveu uma crônica intitulada “Velho: o você deamanhã”. O alerta, contido no título, tem umdestinatário particular: “hoje eu queria trazer paravocês, jovens, um problema social” (QUEIROZ,1989, p. 174). Atenta para a emergência dasociedade em envelhecimento, a cronista dos anos1980 apresentava-se como “uma velha que trabalha

todos os dias, fielmente”. Ao concluir reafirma “quenós somos os vocês de amanhã após ter iniciadocom dados demográficos.” (QUEIROZ, 1989, p. 174).

Já repararam que, na hora atual, não se morremais como antigamente? Até mesmo aqui noBrasil (fora as áreas mais desfavorecidas – masesse já é outro drama). Se no começo do século amédia de vida do brasileiro não passava doscinquenta e poucos anos, agora, salvo acidente,câncer, ou infarto, a esperança de viver cresceumuito. Todo o mundo chega aos setenta, quasetodos alcançam e passam os oitenta, e uma belaproporção atinge a outrora quase inacessívelbarra dos noventa (QUEIROZ, 1989, p. 174).

Partindo do toque de alerta dado por Raquel deQueiroz, lançamos a seguinte pergunta dequestionário: “Velho: você amanhã?” Uma dasalunas escreveu:

Sim, eu, assim como todos os jovens de hojeserei “velho”. Espero que somente por possuiridade avançada e muita experiência adquirida,jamais por falta de vitalidade. Não tem como fugir,se estivermos vivos até lá, é para a velhice quecaminharemos (M. M. S. L. – sexo feminino)

Norberto Bobbio no texto original“De senectute”, de 1996, pede permissão para falarem público sobre as suas experiências de velho.Sintonizado com a emergência da sociedade emenvelhecimento, ele fornece um dado: “Nestesúltimos anos o limiar da velhice deslocou-se emcerca de duas décadas” (BOBBIO, 1997, p. 17).O deslocamento antes referido vai na direção danovidade do fenômeno da geração dos matusaléns(SCHIRRMACHER, 2005). O velho Bobbioconceitua as velhices burocrática e fisiológica nocontexto de uma nova imagem da velhice:

Hoje um sexagenário está velho apenas nosentido burocrático, porque chegou à idade emque geralmente tem direito a uma pensão. Ooctogenário, salvo exceções, era considerado umvelho decrépito, de quem não valia a pena seocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, nãoburocrática mas fisiológica, começa quando nosaproximamos dos oitenta, que é afinal a idademédia de vida, também em nosso país, um poucomenos para os homens, um pouco mais para asmulheres (BOBBIO, 1997, p. 17-8).

Na primeira década do século XXI, uma Europa“abatida, confusa e cada vez mais apreensiva”,“está ficando grisalha”. No novo capitalismo global,a aventura daquela que durante séculos sentiu-se eagiu como “a rainha do planeta”, defronta-se com odesafio do encanecimento da sua população(BAUMAN, 2006, p. 22). O sociólogo dos “temposlíquidos” fornece números da demografia:

[...] os demógrafos nos dizem que na década atualo número de europeus com menos de 20 anos deidade cairá 11 por cento, enquanto o de pessoascom mais de 60 será acrescido da metade.Haverá, ao que parece, um bolo menor para dividirpor um número maior de comensais (BAUMAN,2006, p. 22).

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O pessimismo contemporâneo é destacadopor quem observa uma espiral da frustração e aconsagração e descrédito da democracia. Nestecontexto, como pensar a esperança em umasociedade da decepção? As oportunidades de nosdesvencilharmos da insatisfação não sãodescartadas, pois, “quanto mais frustrante é asociedade, mais ela promove as condiçõesnecessárias para uma re-oxigenação da vida”(LIPOVETSKY, 2007, p. 80). Estimulados a umrevigoramento subjetivo, não desprezemos asrazões para ter esperança. Uma delas é aemergência da sociedade em envelhecimento.Sermos centenários está no nosso horizonte.Os dados são animadores:

No decorrer das duas últimas décadas, houve umaumento na expectativa de vida correspondente àproporção de três meses por ano. Uma meninatem atualmente 50% de chances de chegar aos100 anos. Uma vida mais longa e com maissaúde: isso não é pouco. Portanto, não sejamosinsensíveis agora que estamos tão próximos deconcretizar esse antiquíssimo anseio dahumanidade (LIPOVETSKY, 2007, p. 79).

Os homens estão em processo deencanecimento. O que isto significa? Vamos aodicionário: Encanecer, do latim incanescere, temos seguintes significados: tornar branco pouco apouco (o cabelo, a barba). Envelhecer. O termomatriz é cãs, palavra de origem latina (canas,‘brancas’), substantivo feminino que traduz cabelosbrancos (FERREIRA, 1999). Quando se expressapara os alunos, no momento em que se introduz otema da velhice, que se está encanecendo,pergunta-se para eles sobre o significado daafirmação. Dificilmente aparece alguém queconheça o termo focalizado. O nosso primeirocontato com ele foi através da leitura do bíblico esapiencial livro de Jó: “Está nas venerandas cãs asabedoria, e o entendimento com os anciãos” (Jó,12,12) e no livro de Provérbios: “Coroa de honra sãoas cãs; são obtidas por uma vida justa” (Pv. 16, 31).

A velhice ou juventude em anos, não importa.A questão não é cronológica. No contexto de umareflexão sobre ética, responsabilidade e vocaçãopara a política, Max Weber (2002) dá umsignificado à frase o diabo é velho; envelheça paracompreendê-lo. O importante é amadurecer. Elenão se refere à idade em termos de anoscronológicos:

Jamais me permiti mencionar numa discussãouma referência a uma data num certificado denascimento; mas o simples fato de que alguémtem 20 anos de idade e eu tenha mais de 50 nãome deve fazer pensar que isto constitui umarealização, em si, perante a qual me deva

atemorizar. A idade não é decisiva; o que édecisivo é a inflexibilidade em ver as realidadesda vida, e a capacidade de enfrentar essasrealidades e corresponder a elas interiormente(WEBER, 2002, p. 87).

Envelhecer, no contexto da sociologiacompreensiva weberiana, tem um significado nãorestrito ao etário, ao cronológico. Weber (2002)afirma o valor da ciência em uma vida imanenteque encerra uma luta incessante dos deuses entresi (valor científico versus ódio ao intelectualismo)e propõe o enfrentamento dos poderes e limitesdas forças diabólicas. Assumindo o seuenvelhecimento, lança uma advertência direcionadaaos jovens:

Cuidado, o diabo é velho; envelheci também paracompreendê-lo. Isto não significa a idade, nosentido da certidão de nascimento. Significa quese desejarmos haver-nos com esse diaboteremos de não fugir à sua frente, como gostamde fazer tantas pessoas, hoje. Em primeiro lugar,temos de perceber-lhe os processos, paracompreender seu poder e suas limitações(WEBER, 2002, p. 105).

“Envelhecer é obrigatório; amadurecer éopcional” (LEGRAND, 2005, p. 53). Neste sentido,a maturidade é um projeto a ser desenvolvido aolongo de nossas vidas. Objetivar o amadurecimentosignifica dizer que o simples passar dos anos nãoo traz automaticamente. Atingi-lo requerinvestimento, transpiração. No plano cotidiano,encontramos sexagenários que explicitam verdurano modo de refletir e encarar situações existenciaise nos deparamos com pessoas na faixa etária dos30 anos que demonstram ser maduras na maneiracomo enfrentam os desafios que cruzam os seuscaminhos. Quando pensamos em comportamentospolíticos eticamente responsáveis, a idade não éum quesito importante. Um comovido Max Webertraça para nós um possível encontro com umapostura ética e humanística responsável:

É profundamente comovente quando um homemmaduro – não importa se velho ou jovem em anos– tem consciência de uma responsabilidadepelas consequências de sua conduta e realmentesente essa responsabilidade no coração e naalma. Age, então, segundo uma ética deresponsabilidade e num determinado momentochega ao ponto em que diz: “Eis-me aqui; nãoposso fazer de outro modo”. Isso é algogenuinamente humano e comovente. E todosnós que não estamos espiritualmente mortosdevemos compreender a possibilidade deencontrar-nos, num determinado momento,nessa posição (WEBER, 2002, p. 88).

Na sua biografia, intitulada “Meus Demônios”,Edgar Morin escreve sobre uma permanentedialógica envolvendo as idades da vida (infância,adolescência, maturidade, velhice). Sentí-las em sié uma experiência na qual se misturam

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envelhecimento e rejuvenescimento com a vivênciada união e oposição entre “os segredos damaturidade e os da adolescência” (MORIN, 1997,p. 256).

“Cora Coralina, quem é você?” Em um de seusversos, ela escreve: “venho do século passado etrago comigo todas as idades”(CORALINA, 1997, p. 73). Em outro texto, revela:“Fui velha quando era moça. Tenho a idade demeus versos” (CORALINA, 1997, p. 91). A velhae a menina poetisa nos remetem a uma tipologiadas velhices. Ei-la: a velhice censitária oucronológica, a velhice burocrática e a velhicepsicológica ou subjetiva. Esta última está muitobem representada pelos fragmentos literários antescitados e recebe um reforço das letras de NorbertoBobbio(1997, p. 18):

Biologicamente, considero que minha velhicecomeçou no limiar dos oitenta anos. No entanto,psicologicamente, sempre me considerei umpouco velho, mesmo quando jovem. Fui velhoquando era jovem e quando velho ainda meconsiderava jovem até há poucos anos. Agorapenso ser mesmo um velho - velho.

Abordando questões de método, pensamos nasfontes de pesquisa. O acesso aos mais variadostemas através do texto literário é uma via traçadapor uma antropologia que valoriza o detalhesignificativo (LAPLANTINE, 1991). Seguindo estarota metodológica, encontramos exemplos: ageração mais nova, viuvez, solidão, morte,degeneração física, produção intelectual, tempo ememórias formam um conjunto de tópicosrelacionados à velhice, em Machado de Assis(GUIDIN, 2000). As representações sociais doenvelhecimento na literatura possibilitam ao leitorperceber os desdobramentos subjetivos doenvelhecer através das múltiplas experiênciasvividas pelos sujeitos que envelhecem.Reforçando a ideia de velhice(s), destacamos umfragmento literário focado em um personagem queindaga sobre o sentido quando se encontraincontinente e impotente:

O urologista que diagnosticou meu câncer quandoeu tinha sessenta e dois anos comentou comigodepois, solidário: “Sei que isto não consolaninguém, mas o senhor não está sozinho – essadoença virou uma verdadeira epidemia nosEstados Unidos. Tem muitos outros homensengajados na mesma luta que o senhor. No seucaso, é uma pena eu não lhe dar essediagnóstico só daqui a dez anos”, dando aentender que, num tempo futuro, a impotênciacausada pela remoção da próstata seria umaperda menos dolorosa. Assim, resolvi minimizar aperda me esforçando para fazer de conta que odesejo havia diminuído naturalmente, até queentrei em contato, por menos de uma hora, com

uma mulher bela, privilegiada, inteligente,tranquila, lânguida, de trinta e dois anos, cujostemores a tornavam sedutoramente vulnerável, econheci a amarga sensação de desamparo de umvelho que, sentindo-se provocado, morre devontade de voltar a ser um homem inteiro(ROTH, 2008, p. 68-9).

O uso do cinema na sala de aula, comolinguagem educativa, possibilita o desenvolvimentode atividades baseadas no conteúdo fílmico. Comum amplo repertório de títulos de obrascinematográficas, encontramos um conjunto defilmes com os seus temas transversais. Dentreeles, destacamos os que focalizam a velhice comoárea principal. No incremento didático,incorporamos filmes como algo mais do queilustração de aulas e conteúdos(NAPOLITANO, 2003). As representações sociaissobre o envelhecimento recebem os mais diversosolhares dos escritores e diretores que concebemos textos cinematográficos. Recurso humanísticono contexto educacional, a metodologia prática nautilização do cinema gera impacto sobre os alunos(GONZÁLEZ BLASCO, 2002). Munidos de umroteiro de análise, penetramos no denso filmesueco, de 1978, “Sonata de outono, de IngmarBergman. A velhice é tema transversal na citadaobra. Em uma de suas cenas, mãe e filha seenfrentam em um tenso diálogo de acerto decontas. A primeira profere um discurso no qualreflete, ancorada em sua própria vivência, sobreo desencontro entre maturidade e envelhecimento:

Às vezes, quando fico acordada à noite,Me questiono se realmente tenho vivido.Será que é assim para todo mundo?Ou será que algumas pessoas têm mais talentoDo que outras para viver?Ou será que há pessoas que nunca vivem,Simplesmente existem?Então, o medo me pega e vejo umRetrato horrível de mim mesma.Eu nunca amadureci.Meu rosto e meu corpo envelheceram,Adquiri memórias e experiências,Mas por dentro, nunca nasci”.

Na trilha que acompanha o complô da geraçãodos matusaléns, a politização do debate sobre aampliação da longevidade populacional no mundodesvenda as potencialidades da questão da velhice,na atualidade. Falando em velhices, no plural,deparamo-nos com a criação de tipologiasenvolvendo os idosos. Em um exercício decontextualização histórica, situamos a discussão

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acerca do envelhecimento na sociedade deconsumidores, onde impera a vida para consumoem uma cultura consumista na qual observamos atransformação das pessoas em mercadoria(BAUMAN, 2008).

Afirmativo, o pensador projeta o fim do culto àjuventude em meio aos envelhecimentos (social,econômico e mental):

Sim, o envelhecimento se tornará política.A velhice será uma fonte de informações paralevantamentos demoscópicos, programaseleitorais e lançamentos de novos produtos nomercado. Haverá inúmeros tipos diferentes deidosos. Há anos os peritos em marketing jáfazem a diferença entre idosos da primeira,segunda, terceira e quarta idade(SCHIRRMACHER, 2005, p. 112).

Na era do consumo, enfrentamos uma “novaideologia para a nova sociedade individualizada”.Como se dá a preparação dos indivíduos que nelaestão inseridos? O sociólogo que caracteriza a“sociedade líquido-moderna dos consumidores”responde: “cada membro individual é instruído,treinado e preparado para buscar a felicidadeindividual por meios e esforços individuais”(BAUMAN, 2008, p. 68). A “nova perspectiva”,segundo ele, é explicitada através da seguinte“frase da moda”: “Estado de bem-estar? Já nãopodemos custeá-lo [...]” (BAUMAN, 1998, p. 51).A sociedade da incerteza, insegura dasobrevivência e medrosa, é vítima da precariedadeda ordem que dita: “Não há mais seguro coletivocontra os riscos: a tarefa de lidar com os riscoscoletivamente produzidos foi privatizada”(BAUMAN, 1998, p. 52, grifo nosso). Nestecontexto de mal-estar,no qual inserimos a questãodo envelhecimento global, pensamos sobre o abalodos sistemas sociais com a expectativa de vidamais longa e a redefinição dos sistemaseconômicos e políticos dos países provocada pelaonda dos idosos (SCHIRRMACHER, 2005).

Situar a sociedade em processo deenvelhecimento no contexto de um mundoglobalizado é um dos objetivos da proposta de levara questão da velhice para os alunos da graduação.Nosso tempo é hoje, mas o debate sobre ela deveser marcado por um exercício de contextualizaçãohistórica que leve em conta as principaiscaracterísticas do mundo atual: individualista,turbulento, vazio, incerto, cruel. São muitos osadjetivos usados pelos pensadorescontemporâneos para falar de uma realidadeambivalente e paradoxal. Avanços e retrocessos.O avanço tecnológico caminha lado a lado com asmais variadas formas de exclusão.

A “re-humanização” das nossas relações é umprojeto que está em andamento em algunsespaços profissionais. Progressos e regressõesnos mais variados campos. O aumento dalongevidade da população é algo a ser festejadocomo consequência da melhoria na qualidade devida de considerável parte da população, mascoloca uma série de desafios a ser enfrentados noplano das políticas públicas. Como será o novochoque de gerações? O que muda no mundo como aumento da população mais velha? Falar nageração dos matusaléns provocará o fim do culto àjuventude? Um complô em gestação ou a revoluçãodos idosos projetam o nosso futuro. Um toque édado: vocês são um deles (SCHIRRMACHER,2005).

A capacitação para enfrentarmos taisquestionamentos exigirá de nós, educadores, umaprimoramento no tocante aos referenciais teórico-metodológicos usados em nossas análises. Estão,eles, congruentes com uma visão multidimensionale complexa do processo de envelhecimento? Umaperspectiva desconstrutora, coerente com aconstrução de uma nova imagem do ser velho,combate estereótipos e estigmas produzidos aolongo da história. O outono da vida humana, parausar uma figura metafórica, não é sinônimo decaduquice, apatia, abandono de projetos.

Na sociedade em envelhecimento, ganha forçaa ideia de que cidadania não tem idade.O protagonismo do sujeito idoso tem sido alvo dedebate em eventos que promovem a organizaçãopolítica do mesmo. No reforço desta dimensão, asdisciplinas humanísticas ofertadas nos programasde ensino para a terceira idade podem aprofundaro nível de consciência crítica em torno dos desafiosque estão postos para a ampliação do espaçopolítico. Não podemos perder de vista que aquestão da longevidade populacional está posta naagenda recente da história. Estamos aindaincipientes no aprendizado do seu enfrentamento.Os espaços de convivência freqüentados pelosidosos devem ser lugares onde festa e políticamarquem presença. Não infantilizemos os velhos.Histórias vivas, em um momento singular de suasvidas, com perdas e ganhos, deixemos que elesassumam o politizado protagonismo.

A abordagem de tais questões na sala de aulacom graduandos abre para um diálogointergeracional. Jovens e velhos, dialogando,pensam juntos em soluções para os diversosdesafios que estão postos em escala planetária.

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Ao refletirmos sobre o processo de envelhecimento,colocamo-nos, em grupo, diante do nosso próprioencanecimento. Um projeto de como queremosenvelhecer requer investimentos no aqui e agora.Nós e os alunos seremos os potenciais idosos doamanhã. Qual será a nossa qualidade de vidafutura? A resposta a estas perguntas podem serencontradas no hoje. Um primeiro passo já estásendo dado, pois não estamos fugindo de nósmesmos. Falar de velhice no espaço escolar éatingir um impasse: envelhecer ou morrerprematuramente. Para quem escolher a primeiraopção, urge principiar a montagem de um projetoque visualize uma ancianidade viçosa ou umamocidade quinquagenária. Os(as) moços(as) dadisciplina “Tópicos em sociologia da saúde”,recebem o toque: velhos: vocês em 20...

ReferênciasBAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 1998.BAUMAN, Z. Europa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2006.BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2008.BOBBIO, N. O tempo da memória. Rio de Janeiro:Campus, 1997.CACHIONI, M. Quem educa os idosos? Campinas,SP: Alínea, 2003.CORALINA, C. Meu livro de cordel. São Paulo: Global,1997.FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio Século XXI. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 1999.FREYRE, G. Sociologia da medicina. Brasília: UnB,2004.GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.GONZÁLEZ BLASCO, P. Medicina de família & cinema.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.

GUIDIN, M. L. Armário de vidro. São Paulo: NovaAlexandria, 2000.LAPLANTINE, F. Antropologia da doença. São Paulo:Martins Fontes, 1991.LEGRAND. 365 mensagens & reflexões. BeloHorizonte: Soler, 2005.LIPOVETSKY, G. A sociedade da decepção. Barueri, SP:Manole, 2007.MASCARO, S. A. O que é velhice. São Paulo:Brasiliense, 1997.MORIN, E. Meus demônios. Rio de Janeiro: BertrandBrasil, 1997.MOSCOVICI, S. Representações sociais. Petrópolis,RJ: Vozes, 2009.NAPOLITANO, M. Como usar o cinema na sala deaula. São Paulo: Contexto, 2003.NUNES, J. O. S. O velho que eu (não) quero ser. In:SILVA, N. L.(Org.). Gerontologia. Aracaju: J. Andrade,2005.QUEIROZ, R. Mapinguari. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1989.ROTH, P. Fantasma sai de cena. São Paulo:Companhia das Letras, 2008.SCHIRRMACHER, F. A revolução dos idosos. Rio deJaneiro: Elsevier, 2005.SONATA de outono. Produção de Ingmar Bergman.Suécia, Alemanha Ocidental e França: Versátil, 1978.DVD.SOUZA, T. Nelson Cavaquinho. Rio de Janeiro: MediaFashion, 2010.WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro:LTC, 2002.

* Professor Dr. Associado do Departamento deCiências Sociais e do Mestrado de PolíticasPúblicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI).** Graduado em Ciências Sociais e mestrando emPolíticas Públicas na UFPI.

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RESENHA: um pouco do legado dasformulações de Clausewitz sobre a guerra ea política Por Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos*

STRACHAN, Hew: Sobre a guerra de Clausewitz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Carl von Clausewitz (1780-1831) foi um generalprussiano que teve como um de seus principaislegados uma obra clássica, “Da guerra”, umareferência obrigatória sobre o fenômeno bélico.Escrita provavelmente entre 1812 e 1831, foipublicada postumamente graças ao esforço de suamulher Marie von Clausewitz (ARON, 1986a); foi oprincipal resultado de experiência e enormeelaboração de vasta obra do general prussiano,soldado do exército prussiano desde 1792 ecombatente nas guerras napoleônicas semprecontrariamente à França comandada por NapoleãoBonaparte. mesmo quando a Prússia se aliou aNapoleão após ser derrotada. Naquele momento,Clausewitz renunciou à sua patente como oficial noexército prussiano e se alistou no exército russo;desempenhou papel importante na retirada daPrússia da aliança pró-França quando o GrandArmée napoleônico bateu em retirada em suamalsucedida campanha na Rússia. Reintegrado aoexército prussiano e à sua patente, Clausewitzparticipou de teatros de operações secundários nasações decisivas até a derrota definitiva deNapoleão; suas convicções antinapoleônicas lhecustaram desconfiança e um preço muito caro: apartir de então, sua ascensão até o generalatorenderam-lhe posições secundárias eadministrativas sem comando de tropas, dentreelas, a direção da Academia Militar de Berlim. Nofinal deste contexto foi escrita “Da guerra”.

É sobre tal obra que escreve o professor deHistória Militar da Universidade de Oxford e generalde brigada reformado do exército britânico HewStrachan. Seu livro aqui resenhado foi o único porele escrito e que teve tradução para a línguaportuguesa. Trata-se de uma biografia que descrevea gênese e algumas das principais tendências derecepção e influência de “Da guerra”. Dentre asobras de Strachan, além de vários escritos epublicações sobre história militar, é possívelencontrar outra especificamente sobre Clausewitz(STRACHAN; HERBERG-ROTHE, 2007) - voltadapara as aplicações e repercussões do pensamento

de Clausewitz no século XXI -, além daquela que éobjeto do presente texto.

Para começar a tratar da obra referida dogeneral prussiano, o livro remete à segunda metadedos anos 70 do século XX, quando uma onda deretomada dos estudos clausewitzianos ocorreucom a tradução muito bem conceituada do alemãopara o inglês de Michael Howard e Peter Paret de“Da guerra” (CLAUSEWITZ, 1984). Além disso,houve o despertar de toda uma geração nosEstados Unidos para tal clássico, inclusive o entãocoronel do exército norte-americano Colin Powell,futuro secretário de Estado na gestão de BushFilho.

O vínculo entre a guerra, a política e a dinâmicahistórica das distintas sociedades é sem dúvida oleitmotiv do livro de Strachan. Todavia, o mesmolivro assinala que não foi nesta direção a fortunaque “Da guerra” obteve na maior parte de suarecepção nas mais distintas tradições intelectuaise militares, inclusive de historiografia militar.A leitura seletiva e vulgarizada de Clausewitz teveseu ponto marcante na influência alavancada porHelmut von Moltke, o chefe do Estado-Maiorprussiano que comandou a espetacular vitóriagermânica na guerra franco-prussiana do fim doséculo XIX. Ao atribuir seu êxito ao livro deClausewitz, os Estados-Maiores dos diferentesexércitos nacionais incorporaram às suas doutrinasde emprego de forças teses incompatíveis com opensamento integral do general prussiano: ochoque frontal e sem manobra às trincheiras, asuperioridade do ataque sobre a defesa (STRACHAN,

2008). Parafraseando Raymond Aron (1986a, 1986b),Clausewitz foi alçado ao banco dos réus da históriacomo uma espécie de apologeta do derramamentode sangue a qualquer preço e do choque frontal dasmassas. O veredito pelo ocorrido na Grande Guerrafoi certamente aquele de culpado.

Um raciocínio certamente bem distinto daqueleque forjou na trajetória de Clausewitz, a elaboraçãocalcada na experiência e na trajetória histórica;

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certamente marcada pela peculiaridade históricaque a Revolução Francesa proporcionou para umainovação sem precedentes no fenômeno bélico,com o enorme envolvimento e energia de toda asociedade francesa na mobilização para ascampanhas napoleônicas, produzindo umgigantesco exército sempre buscando batalhasdecisivas e sem tréguas, com uma aproximaçãocom a guerra absoluta - aquela classificação daguerra elaborada por Clausewitz para umamanifestação concebível apenas logicamente.Foi uma erupção fantasiosa e extrema da violêncianuma única manifestação que liquidouinapelavelmente o adversário. A caracterizaçãodeste quadro e a atenção para sutilezas e pontosimportantes da tradução a partir do alemão originalque podem gerar controvérsias são certamente ospontos altos do livro de Strachan (2008).Entretanto, o livro não pode ser comparado aostrabalhos de Aron (1986a, 1986b) e Peter Paret(1985); indubitavelmente, referências fundamentaispara a compreensão mais ampla da vida e obracompleta de Clausewtiz.

Assim como a tradução do alemão para o inglêsdo livro de Clausewitz é relevante, também o é otema da tradução do livro de Strachan para oportuguês, repleta de equívocos típicos de quemnão possui o conhecimento especializado do

sistema conceitual clausewitziano. A título deexemplificação, mencione-se o conceito de fricção,que nomina toda sorte de obstáculos e imprevistosno desenrolar da guerra. No livro aqui resenhado, oconceito em questão é traduzido como atrito.A própria referência ao título do livro de Clausewitz,como “Sobre a guerra” (STRACHAN, 2008), revelatal falta de familiaridade com uma obra que ésempre referida em português como “Da guerra”

ReferênciasARON, R. Pensar a guerra, Clausewitz: a era européia.Brasília: UnB, 1986a.ARON, R. Pensar a guerra, Clausewitz: a era planetária.Brasília: UnB, 1986b.CLAUSEWITZ, C. On war. Princeton: Princeton UniversityPress, 1984.PARET, P. Clausewitz and the state: the man, his theories andhis times. Princeton: Princeton University Press, 1985.STRACHAN, H. Sobre a guerra de Clausewitz. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2008.STRACHAN, H.; HERBERG-ROTHE A. (Ed.). Clausewitz in theTwenty-First Century. New York: Oxford University Press,2007.

* Professor Assistente Doutor I da UniversidadeEstadual Paulista (Unesp), campus de Marília;coordenador do grupo interinstitucional de pesquisa“Marxismo e Pensamento Político” do Centro deEstudos Marxistas (CEMARX-UNICAMP); e professorcolaborador do Programa de Pós-Graduação emCiência Política da Universidade Estadual deCampinas (Unicamp).

DICA DE LIVROS da profa. Juliana Portela*

Os livros indicados são resultado do projetointerinstitucional “Desenvolvimento territorialsustentável: investigação e avaliação daspolíticas públicas brasileiras nos anos 2000”,concretizado por pesquisadores do Programa dePós-graduação em Desenvolvimento Econômico doIE/Unicamp e do Programa de Pós-graduação emEconomia do IE/UFU. As obras se mostram comoinspirações teórico-metodológicas para estudosterritoriais, na medida em que esmiúçam conceitose definições relevantes, assim como mostram aanálise de políticas já existentes e propostas paranovos estudos e práticas.

Livro 1 - ORTEGA, A. J.; ALMEIDA FILHO,N. (Org.). Desenvolvimento territorial, segurançaalimentar e economia solidária. Campinas, SP:Alínea, 2007.

Observa-se que a dimensão territorial dodesenvolvimento vem ganhando relevo naconcepção das políticas públicas, especialmenteno meio rural. Assim, esta obra objetiva, na suaprimeira parte, conceituar, contextualizar e discutiro desenvolvimento territorial com enfoque nosinteresses diversos que configuram o território.Destaca-se o texto “Para uma teoria dos estudosterritoriais”, de Ricardo Abramovay, no qual é feitauma discussão das teorias de fundo dodesenvolvimento territorial, assim como umaanálise crítica de diversas metodologiasempregadas atualmente para o delineamento e aavaliação de políticas públicas. A segunda parte dolivro traz uma avaliação da política de segurançaalimentar no Brasil, com enfoque no ProgramaFome Zero, dentro da perspectiva da agriculturafamiliar, no âmbito territorial. Por fim, na última

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parte, os artigos discutem a importância daeconomia solidária articulada ao desenvolvimentoterritorial para o desenvolvimento de políticas quepropiciem emancipação dos indivíduos.

Livro 2 - ALMEIDA FILHO, N.; RAMOS, P. (orgs.).Segurança alimentar: produção agrícola edesenvolvimento territorial. Campinas,SP: Alínea,2010.

A segurança alimentar é um tema que encerramuitos aspectos, como econômico, social,nutricional, jurídicos. Neste sentido, semináriostemáticos que precederam esta obra foramfundamentais para uma maior interação entre osautores e suas ideias, em especial para aelaboração de textos que requeriam umaabordagem interdisciplinar. A obra se confirma,pois, como uma “ousadia” teórico-metodológica, aocolocar em conversação dois campos deconhecimento ainda pouco explorados,especialmente pela teoria econômica: segurançaalimentar e desenvolvimento territorial. Na primeiraparte do livro os capítulos versam sobre as políticasde segurança alimentar e combate à fome,abordando o caminho percorrido até a consolidaçãodos conceitos de segurança e soberania alimentar,assim como experiências no Brasil e nos demais

países latino-americanos. Na parte 2 sãoapresentados estudos sobre desenvolvimentoterritorial, pobreza e segurança alimentar, comenfoque na visão institucional sobre o território(representados pelos territórios dodesenvolvimento). Destaca-se o texto“Desenvolvimento territorial e soberania alimentar”,de Walter Belik, no qual o referido autor desenvolveo conceito de desenvolvimento territorial rural (DRT)como base para a efetivação das políticas desegurança alimentar e nutricional nas regiõesrurais. Além disso, expõe a problemática da fome eda crise econômica como contexto para aproliferação de reuniões internacionais e para oavanço na consolidação dos conceitos desegurança e soberania alimentar, levando em contasuas multidimensões. Na terceira e ultima parte, olivro trata da produção de alimentos,biocombustíveis e segurança alimentar. Os trêscapítulos desta etapa abordam discussões relativasao preço dos alimentos, estrutura fundiária esustentabilidade nos territórios

Números anteriores das publicações do Curso deEconomia - Informe Econômico e Texto de Discussão -, bem como informaçõessobre o referido Curso, encontram-se no site da UFPI, na página do DECON: www.ufpi.br/economia.

Os artigos foram revisados, respeitando-se o estilo individual da linguagem literária dos autores, conforme a 5.ª edição do VocabulárioOrtográfico da Língua Portuguesa (VOLP, 2009), aprovado pela Academia Brasileira de Letras.

Esta publicação possui classificação Qualis, sistema de avaliação CAPES, nas áreas: Economia, Interdisciplinar, História, Serviço Social,Filosofia, Ciência Política e Relações Internacionais, Ciências Ambientais, Sociologia e Geografia. Mais informações: WebQualis.

ExpedienteINFORME ECONÔMICOAno 14 - n. 30 - ago. 2013Reitor UFPI: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas LopesVice-Reitora: Prof. Dra. Nadir do Nascimento NogueiraDiretor CCHL: Prof. Dr. Nelson Juliano Cardoso MatosChefe DECON: Profa. Ms. Janaina Martins VasconcelosCoord.CursoEconomia: Prof. Dr. Antônio Carlos de AndradeRevisão: Zilneide O. Ferreira e João Paulo Santos MourãoProjeto gráfico: Profa. Ms. Neulza Bangoim(CEUT)Jornalista responsável: Prof. Dr. Laerte Magalhães(UFPI)Endereço para correspondência: Campus IningaTeresina-PI - CEP: 64.049-550Fone: (86)3215-5788/5789/5790-Fax: (86)3215-5697Tiragem: 2.000 exemplaresImpressão: Gráfica-UFPIParceria: Conselho Regional de Economia 22ª Região-PISite DECON: http://www.ufpi.br/economia.

Editor-chefe: Prof. Dr. Solimar Oliveira LimaEditor-assistente: Economista Esp. Enoisa VerasConselho Editorial: Prof. Dr. Aécio Alves de Oliveira(UFC),Prof. Dr. Alvaro Bianchi(Unicamp),Profa. Dra. Anna Maria D’Ottavi(Università degli Studi RomaTER-Itália),Prof. Dr. André Turmel(Université Laval-Canadá),Prof. Dr. Antônio Carlos de Andrade (UFPI),Prof. Dr. Leandro de Oliveira Galastri(Unicamp),Prof. Esp. Luis Carlos Rodrigues Cruz Puscas(UFPI),Prof. Dr. Marcos Del Roio(Unesp),Prof. Dr. Marcos Cordeiro Pires(Unesp),Prof. Dr. Mário José Maestri Filho(UPF),Prof. Dr. Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos(Unesp),Prof. doutorando Samuel Costa Filho(UFPI),Profª Drª Socorro Lira(UFPI),Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima(UFPI),Prof. Dr. Vitor de Athayde Couto(UFBA),Prof. Dr. Wilson Cano(Unicamp),Econ. Ms. Zilneide O. Ferreira.

* Professora do Departamento de CiênciasEcômicas/UFPI, Doutoranda em Desenvolvimento eMeio Ambiente pela Rede Prodema/UFPI.

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