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A POLíTICA EXTERNA E A DIPLOMACIA NUMA ESTRATÉGIA NACIONAL G. Santa Clara Gomes

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  • A POLTICA EXTERNA E A DIPLOMACIA NUMA ESTRATGIA NACIONAL

    G. Santa Clara Gomes

  • A POLlTICA EXTERNA E A DIPLOMACIA NUMA ESTRATGIA NACIONAL

    O conceito de estratgia nasceu no domnio militar e referia-se aco dos generais (ou estrategos) na preparao e conduo das campanhas guer-reiras. Opunha-se-Ihe a noo de tctica que tinha a ver com a aco no campo de batalha propriamente dito. O que diferencia a estratgia . pois, esta ideia de planeamento e aco a longo ou mdio prazo, utilizando meios disponveis para obter detenninados fins e actuando segundo um certo nmero de regras ou princpios. Do campo puramente militar o conceito nauralmentc extravasou para os outros domnios, pois fcil ver que os pIa-nos e estratagemas militares necessariamente podem - e devem - ser com-pletados por aces polticas que os antecedem, ou com eles coincidem, ou que os completam. Fcil foi concluir que, para alm duma estratgia puramente de defesa ou militar, existe algo de muito semelhante em natu-reza - mas mais vasto no seu mbito - que a grande estratgia ou estra-tgia global dum pas. Respeita esta utilizao ptima dos meios de que dispe ou que pode conseguir o todo nacional para realizar os fins que se prope. Dentro deste conceito de estratgia entram aspectos eco-nmicos, demogrficos, culturais e educativos, todos eles essenciais, ao lado da aco externa do Estado e da preparao, equipamento e eventual utilizao das foras militares.

    Pode ser til considerar tambm um conceito menos lato, o de estra-tgia internacional dum pas, tendo em conta no todos os objectivos que esse pas se prope, mas apenas aqueles que dizem respeito insero do Estado na vida internacional. Nesse sentido, poderemos dizer que a fora e a riqueza dum pas so o suporte dessa estratgia, ao passo que cabe aco diplomtica a sua execuo. A poltica externa pode dizer-se que a actividade desenvolvida pelo Estado em relao a outros Estados e entidades com relevncia internacional, com vista a realizar objectivos que lhe so prprios. bvio que quanto mais fora poltica, econmica e militar tiver um Estado, mais eficaz poder ser a sua poltica externa.

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    Apurado este conceito de poltica externa como actividade desenvol-vida pelo Estado em relao a outros Estados, pode passar-se ao conceito de aco diplomtica que um dos meios - no o nico - da aco externa do Estado, ou seja da poltica externa. Com efeito, o Estado pode actuar em relao a outros Estados por vrias maneiras pacficas, mais ou menos formais, mais ou menos legtimas at, mas que no implicam o uso da fora militar. Como exemplos desses meios de aco externa que no so diplomacia sfricfo sensu esto, por exemplo, a espionagem ou recolha encoberta de informaes, a propaganda externa e a contra-informao. Dentro deste conjunto de modos de actuao internacional, cujas fronteiras, muitas vezes, impossvel precisar em termos prticos, a aco diplomtica caracteriza-se por ser uma actuao aberta, realizada por agentes acreditados do Estado, geralmente (e, pelo menos, em princpio) pacfica na sua execuo O mbito dessa aco diplom-tica amplo e vai desde a representao externa do Estado e das rela-es polticas at ao fomento do comrcio, desde a recolha de informao por meios legtimos at ao desenvolvimento dos laos culturais. O que verdadeiramente caracteriza a aco diplomtica e a distingue de outras formas de relacionamento externo do Estado o ser conduzida por repre-sentantes oficiais do Estado, devidamente acreditados por este ante outros Estados e organizaes internacionais. Na definio do Embaixador Calvct de Magalhes, a diplomacia um instrumento da poltica externa para o estabelecimento e desenvolvimento dos contactos pacficos entre os gover-nos de diferentes Estados, pelo emprego de intermedirios mutuamente reco-nhecidos pelas respectivas partes (,l.

    pois da poltica externa e tambm da aco diplomtica que vou tratar. A poltica externa enquanto campo de actuao dentro duma estra-tgia do Estado. A aco diplomtica como modo privilegiado de execu-o da poltica externa. Dentro do poltica externa irei referir trs aspec-tos principais: em primeiro lugar, o meio em que se desenvolve, isto , a comunidade internacional; em segundo lugar, os fins ou objectivos que persegue; por ltimo, os princpios ou regras que devem presidir sua definio e execuo.

    (I) Jos Galvet de Magalhes-A Diplomacia Pura (Associao Portuguesa para o Estudo das Relaes Internacionais, Lisboa, 1982), pgs. 88 e seguintes.

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    A poltica externa trata dos interesses do Estado em relao comu-nidade internacional. Nenhum Estado auto- suficiente; todos so, mesmo as super-potncias, interdependentes. Todos actuam num determinado meio de inter-relaes e influncias recprocas que o condicionam.

    Sobre o meio internacional em que a poltica externa se desenvolve h algumas consideraes teis a fazer.

    Desde a consti tuio dos Estados nacionais, estes tm predominado na vida internacional e sido nela os seus actores principais, seno exclusivos. Na verdade, at h bem pouco a sociedade internacional era basicamente uma constelao de Estados Justapostos, ligados entre si por relaes de interesse ou de fora, orientando-se apenas por vagas indicaes dum direito internacional embrionrio e desprovido de mecanismos sancionatrios. As nicas formas de organizao existentes eram rudimentares e consistiam em relaes de domnio ou de equilbrio de foras, em alianas temporrias contra inimigos comuns e em sistemas de representao mtua, atravs da acredilao de diplomatas.

    Ora, sobretudo desde a segunda guerra mundial, esta situao mudou rapidamente, passou a ser muito mais complexa. A teia dos laos que pren-dem os pases uns aos outros, a nvel regional ou mundial, hoje imensa e abrange todos os campos. Multiplicam-se os agrupamentos regionais, os organismos especializados, as organizaes internacionais, os acordos bilate-rais. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento das comunicaes, proli-feraram os contactos e movimentos de pessoas, nomeadamente atravs do turismo, desenvolveram-se o comrcio e as relaes econmicas e financeiras, apareceram novos actores na cena internacional, quantas vezes mais pode-rosos e influentes que muitos Estados juridicamente constitudos. Com tudo isto, h um sistema mundial que composto no s6 de Estados justapostos e inter-relacionados juridicamente em base de igualdade, mas tambm por outras camadas sobrepostas: sistemas de aliana, organizaes internacio-nais, servios pblicos intergovernamentais, organismos ideolgicos ou pro-fissionais, organizaes no governamentais, grandes empresas multinacio-nais, bancos e consrcios de bancos de alcance internacional, Igrejas, etc. Mesmo os indivduos e os pequenos grupos mantm relaes entre si e, em certos casos, passaram a ser sujeitos de direito internacional. Todos estes

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    elementos tendem a constituir uma sociedade internacional bastante comp-sita, j no dependente inteiramente dos Estados.

    Perante esta realidade substancialmente nova e em plena evoluo, surgem duas vises possveis da sociedade internacional. Uma, que poderiamos dizer optimista e voluntarista, parte ideologicamente dum preconceito de igualdade dos homens, dos povos e dos Estados. Baseando-se no reforo visvel dos laos inter-estatais e da rede de organizaes e acordos interna-cionais, e no correspondente desenvolvimento do direito internacional, chega concluso de que comea a ter verdadeira existncia e consistncia uma autntica comunidade internacional, com uma tica, um direito e uma org-nica poltica prprios, que tende a sobrepor-se lgica anterior dum con-junto de Estados regidos por jogos de poder e interesses egostas. Duma sociedade basicamente assente em relaes horizontais, ter-se-ia passado para uma sociedade j organizada verticalmente, uma autntica comunidade inter-nacional.

    Outra corrente, mais tradicional e que se pretende mais realista, sus-tenta que a sociedade internacional ainda embrionria, composta de Esta-dos justapostos e com um sistema jurdico ainda nos comeos, predomi-nando as relaes de fora e de potncia. Como diz Alain Plantey, a competio internacional d sociedade internacional um carcter temi-vel: nela reinam clculos, ambies, rivalidades, mais do que caridade e justia ('). O papel da poltica externa de cada Estado seria garantir nessa selva as melhores condies para a realizao dos seus fins prprios.

    Entre estas duas concepes extremas h, naturalmente, vrios pontos intermdios e vises possveis da sociedade internacional que tenham em conta as realidades que uma e outra invocam. Parece aceitvel dizer-se que a sociedade internacional dispe j de alguma estruturao orgnica e de objectivos e interesses que so globais e prprios duma concepo comum de defesa da humanidade e do planeta. Nem por isso, no entanto, se deve entender que a sociedade internacional se rege primordialmente por critrios filantrpicos ou puramente pacficos. A sociedade internacional, para alm dos elementos jurdicos e ticos e das instituies internacionais ou supra-

    e) Aloin 'Plantey, De la Politique entre les Etats (~ditions A. Pedone, Paris, 1987), pgs. 12,13.

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    nacionais que criou, continua a ser ainda, basicamente, uma relao de foras entre potncias - grandes, mdias ou pequenas ('). Cada uma destas potncias procura ocupar os espaos livres ou vcuos que vo surgindo ou que a incria de outros pases deixa abertos. J no se trata necessariamente de ocupao fsica de territrios mas, por exemplo, de controlo ou influn-cia sobre os meios de deciso, sobre os grandes sistemas de informao, de comunicao e de financiamento, perante o desmoronar das antigas barreiras jurdicas, militares, econmicas ou culturais.

    Esta constatao exige um conceito dinmico de relaes internacionais e de poltica externa. As vises estticas dos interesses nacionais limitadas defesa dos direitos adquiridos e do patrimnio herdado conduzem a resul-tados negativos. No vale a pena defender as portas se os outros podem entrar pela janela. A defesa de fronteiras, por exemplo, pouco significado tem quando a expanso dos Estados se faz no pela invaso fsica, militar, mas por outras invases que criam outras dependncias - a comercial, a cultural, o controlo da informao, a imposio da lngua e de modelos de pensamento e de comportamento. e isso que agora est em causa, quer seja feito brutalmente a coberto de guerras ideolgicas, quer subtilmente atravs de coisas aparentemente to incuas como programas de televiso ou meca-nismos de cooperao cultural, ou at de ajuda internacional. Se a guerra, que no dizer de Clausewitz a continuao da poltica por outros meios, nos parece agora. no mundo ocidental, mais remota, isso deve-se em parte, pelo menos, ao facto de a competio inter-estatal ter enveredado por outros caminhos.

    Alm desta interpretao genrica e quase abstracta da sociedade inter nacional e das suas estruturas e caractersticas, podem-se tentar outras apro-ximaes ao tema, a partir de outros ngulos, e que igualmente nos forne-cem elementos teis para a apreciao do meio internacional em que se desenvolve a poltica externa e a aco diplomtica dos Estados.

    Uma delas, consiste em distinguir, dentro da sociedade internacional, as diferentes formas de organizao regional e os modelos de convivncia

    (') Ver, por ex., Paul Reuter, lnstitutiom Internationales (PUF, Paris, 1963), pgs. 66 e segs., que considera ser a sociedade internacional essencialmente uma sociedade de justaposio, mas em que existem j certos interesses comuns e alguma organizao.

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    a existentes. Se adaptarmos este critrio, vemos que em certas partes do ~, globo se avanou muito mais do que noutras, quer na organizao da socie-

    dade regional, quer na definio de princpios e regras de cooperao pac-fica. o caso, por exemplo, da Europa, cuja arquitectura poltica hoje tanto se debate, em que j temos (ou estamos a adaptar) formas de organi-zao nos campos poltico, econmico e de segurana. Ainda que as estru-turas existentes ou a criar nos diferentes planos no coincidam entre si, no seu conjunto tendem a assegurar regras de convivncia pacfica, da coope-rao, de esbatimento de conflitos, que do uma dimenso totalmente nova aco diplomtica.

    Se prosseguirmos esta anlise, veremos que, por detrs deste progresso, est uma certa expanso em toda a Europa de alguns princpios bsicos que tm que ver com uma determinada concepo do homem e dos seus direitos e com a aceitao generalizada de formas de organizao estatal baseadas na democracia liberal. Esta constatao levou mesmo um estudioso americano

    ~ propr uma teoria do fim da histria, entendida como histria das ideias sobre a organizao poltica e social, j que triunfou a democracia liberal como nica ideologia legtima. Ele admite, no entanto, que na sociedade internacional, ao lado duma parte ps-histrica que cOiTesponde ao mundo ocidental, subsiste uma parte ainda histrica em que os conflitos ideol6gicos e militares permanecem ('). Independentemente da crtica que se pode fazer a esta teoria, a distino no deixa de ter alguma relevncia para a anlise que aqui estamos a fazer, at porque os modos de convivncia e a proble-mtica internacional variam consoante as reas geogrficas consideradas.

    Uma outra aproximao vida internacional que tem interesse mencio-nar neste contexto, respeita constatao da existncia de certos centros de poder - poltico, econ6mico ou militar - e percepo de uma tendncia para uma organizao mundial de facto baseada nesses centros. No vou entrar aqui na discusso do carcter bi ou multipolar da nossa sociedade internacional, ou sobre a existncia e caracterizao de palas regionais ao lado dos palas com capacidade de atraco mundial ('). Queria apenas notar

    (4) Francis Fukuyamll, Esqueam o fraque: a Histria est mesmo morta (transcrio duma palestra proferida em Londres. in Pblico, 27-9-90).

    (5) Jaeques Huntzinger, lntroduction QUX Relations lnternationales CE:dition du Seuil. Paris. 1987) pgs. 151 e segs. Apresenta em sntese alguns critrios de classificao dos Estados e as tipologias resultantes.

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    que esta perspectiva tambm pertinente para o estudo do ambiente em que se desenvolve a actividade internacional dos Estados e complementar das outras que atrs referi. De resto. os vrios pontos de vista que apresen-tei sobre a sociedade internacional demonstram a extrema complexidade desta no presente momento, a multiplicidade de foras e elementos contra-ditrios nela existentes e os desafios que uma tal situao coloca aco diplomtica dos Estados.

    Antes de abandonar esta j longa referncia s caracterizaes possveis da actual sociedade internacional, queria fazer uma meno a um dos seus aspectos mais salientes e que tem um reflexo substancial quanto poltica externa de qualquer pas. Trata-se do carcter aberto, pblico de que se revestem hoje em dia as aces polticas internacionais. Em contraste com o secretismo ou reserva do passado, as visitas J as reunies e as negociaes so hoje efectuadas sob a observao dos meios de comunicao social, trans-formando muitas vezes os agentes e representantes dos Estados em verda-deiros aetores na cena internacional. Isto, obviamente, traz uma nova dimen-so poltica externa j que torna pblicas deliberaes e negociaes antes discretas, submetendo-as ao julgamento imediato das opinies pblicas na-cionais. Alm de propiciar uma muito maior participao dos cidados na formulao e execuo das polticas externas dos seus Governos, esta publi-cidade permite tambm que os governantes dum pas se dirijam directamente aos centros institucionais e aos cidados de outros pases para lhes explicar directamente as suas motivaes e os seus pontos de vista. E um novo desen-volvimento cheio de potencialidades mas que, como natural, vem condi-cionar a aco internacional dos polticos e diplomatas.

    III

    Compete poltica externa a defesa dos interesses do Estado e da comu-nidade nacional perante esta realidade internacional. Quais so, portanto, os seus objecti vos?

    Obviamente que, quando falo de objectivos, quero referir-me a objec-tivos nacionais autnticos e no queles que so episdicos, ocasionais ou puramente circunstanciais. Trata-se sim dos objectivos nacionais permanen-tes, embora adaptados s circunstncias de cada momento histrico.

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    H certos objectivos generlCos que dizem respeito prpria sobrevi-vncia da espcie ou duma civilizao que so - ou deviam ser - comuns a todos. So os que se prendem, de resto, com a concepo de uma socie-dade internacional orgnica e juridicamente organizada que atrs referi. Se assumidos por um pas, esses objectivos tomam-se tambm seus objectivos nacionais. Entre estes objectivos esto a manuteno da paz, a defesa do direito internacional, a instaurao de uma ordem internacional- e tam-bm regional- justa, a salvaguarda do ambiente escala planetria, o com-bate fome e ao subdesenvolvimento. Trata-se de objectivos nacionais que diramos altrustas, ligados a uma estratgia mundial e no exclusivamente nacional, de preservao de um equilbrio planetrio ('l.

    Junto a estes objectivos perfeitamente vlidos e que resultam do esforo da comunidade internacional e do avano civilizacional e cultural, cada pas mantm objectivos nacionais prprios. Estes objectivos, embora sejam comuns a muitos pases, so formulados de modo prprio e exclusivo por cada um, de acordo com a sua dimenso, a sua histria, a sua situao geogrfica, a sua cultura, as suas preocupaes tradicionais, as ameaas que o rodeiam. etc. Destes, os principais, so a sobrevivncia da Nao e do Estado, a manuten-o da independncia e da integridade territorial, a defesa da identidade cul-tural, a preservao dum espao suficiente para a livre gesto dos assuntos da comunidade nacional, a integrao de modo adequado em estruturas comu-nitrias ou de cooperao regionais. Alguns desses objectivos tm um carc-ter interventivo, de afirmao nacional na cena internacional, como sejam o reforo da projeco internacional de cada pas no mundo atravs da lngua, da cultura, das artes, dos meios de comunicao, e a criao das con-dies ideais para manter a segurana, o bem estar e o poder de cada Estado.

    (6) Um antigo diplomata britnico, Humphrey Trcvelyan, em Diplomatic Channels (Macmillan, Londres. 1973), pg. 148, d a seguinte formulao a esta questo: um interesse britnico, por exemplo, que a paz esteja assegurada, que os fortes no devorem os fracos, que as disputas internacionais. mesmo se no puderem ser resolvidas, sejam pelo menos objccto de conversaes at que passe o ponto de perigo, que as armas at6-micas no cheguem s mos de qualquer pas que possa ser tentado a us-las e que o equilbrio nuclear seja mantido, que as relaes entre pases capitalistas e comunistas se tornem gradualmente mais fceis, que os pases em desenvolvimento se tornem capazes de elevar o nvel de vida dos lieus povos, que os Governos mantenham a palavra dada, em particular os tratados e outros compromissos internacionais ( ... ) e que respeitem em geral os princpios do direito internacional.

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    A determinao, em cada momento, dos objectivos e interesses dum Estado, influenciada por factores internos - histricos, culturais, o sis-tema poltico, a situao econmica, etc. - e externos - como sejam a con-juntura internacional, a situao geogrfica e as polticas dos vizinhos, as influncias de palas ou centros de poder, ainda que distantes, etc. Alguns destes factores, tanto internos como externos, so mais ou menos perma-nentes no condicionamento dum Estado, enquanto outros so mais episdicos ou contingentes, como os que se referem personalidade dos dirigentes pol-ticos, ao programa de um determinado partido ou s carncias da mquina administrativa (').

    Tendo em conta estes condicionamentos, geralmente possvel identi-ficar em relao a cada pas quais os seus interesses centrais ou vitais e quais os que so secundrios ou de menor prioridade. Esta percepo do maior interesse para os responsveis pela poltica externa, que devem saber sempre bem que orientao seguir e quais os interesses prioritrios do seu prprio pas e tambm os dos outros pases com que esto em relaes ou negociaes.

    Por outro lado, convm notar o cuidado que deve constantemente ser posto na actualizao dos grandes interesses nacionais em funo das alte-raes do enquadramento internacional. Isto particularmente visvel e im-portante na interpretao das ameaas sobre um pas, visto que, como atrs apontei, a sua alterao um dos aspectos mais caractersticos da actual situao mundial. Um excessivo apego s formulaes passadas dos interesses e objectivos nacionais pode ter efeitos muito negativos.

    Os grandes objectivos nacionais permanentes da poltica externa que acabo de referir fazem obviamente parte dum conceito alargado de defesa nacional e por aqui vemos, mais uma vez, como estreita a ligao entre poltica externa, poltica de defesa, poltica econmica, poltica educacional e cultural. Na verdade, atravs da poltica externa procura-se assegurar o mximo de influncia e projeco internacional do Estado, de modo a garan-tir as condies ideais de desenvolvimento e afirmao do todo nacional, mas isso, por sua vez, depende em larga medida do poder, da fora da coeso

    (1) Sobre os faetores condicionantes da poltica externa dum pas e da determinao dos seus objectivos, ver R. P. Barston, Modem Diplomac)' (Longman, Londres, 1988) pgs. 30 e segs.

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    civil e ideolgica da nao, da credibilidade dos poderes pblicos e da riqueza que o Estado e os seus nacionais souberem criar internamente atra-vs das restantes polticas ou estratgias sectoriais. Estamos aqui num sistema de vasos comunicantes em que cada poltica refora a outra e cria sinergias para o desenvolvimento do pas.

    Uma ltima observao cabe aqui sobre os objectivos a prosseguir na poltica externa. Esses objectivos no se esgotam na criao de condies externas favorveis ao bem-estar e progresso econmico dos povos. H fins que so prprios da comunidade nacional como um todo, como um sujeito de direito internacional dotado de existncia cultural e moral. Se assegurar o bem-estar fosse o objectivo predominante, isso poderia levar at a forma de suicdio nacional em troca de melhores condies econmicas. A exis-tncia independente num Estado soberano pode ter um preo que uma comu-nidade pode querer pagar. No creio necessrio elaborar muito mais este conceito. Mas a existncia de outros interesses de uma comunidade nacional, para alm dos econmicos, tem que ser tida em conta nas decises de pol-tica externa. No caso dos pases integrados em comunidades supranacionais, por exemplo, a deciso de transferir certas competncias do Estado - deci-so que tem bvias vantagens polticas e econmicas - obriga a um maior esforo na defesa de outros interesses nacionais e a uma maior interveno e afirmao internacional fora dos espaos cobertos pela comunidade e para alm da cooperao poltica que nela tenha lugar.

    Creio que, pelo simples enunciado dos objectivos, fica patente a im-portncia fulcral da aco externa do Estado numa estratgia nacional. S com grandes riscos um pas pode descurar as suas ligaes externas ou deix-Ias ao sabor dos acontecimentos ou das vontades individuais. Nas orgatzaes internacionais, como nas relaes bilaterais, tomam-se constan-temente decises que afectam os interesses de cada pas e que este deve procurar influenciar. Da que, nos pases ocidentais, cada vez mais, os Governos se preocupem, numa base quase diria, com a conduo da pol-tica externa, envolvendo nela directamente o prprio chefe do Governo ou do Estado. Na maior parte dos casos, este que conduz directamente a poltica externa, ainda que no faa o mesmo, por exemplo com a poltica econmica ou de defesa. Isto no se d por acaso, ou porque a poltica externa exera um fascnio invencvel sobre os polticos; isto d-se porque

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    os governos tm consclencia de que esto em jogo interesses nacionais fun-damentais ('). Num pas como o nosso, integrado numa comunidade supra-nacional, este primado de aco externa nas prioridades nacionais deve ser ainda mais visvel, pois que as normas comunitrias reduzem o espao nacional e fazem aumentar, por outro lado, a necessidade de afirmao na-cional fora da rea eurapeia.

    Esta importncia fundamental da poltica externa - e, portanto, da aco diplomtica e dos agentes que a executam - nem sempre so bem entendidas pelas opinies pblicas - e nalguns casos at pelos polticos. Isto resulta, por um lado, de vises redutoras e passadistas da actividade dos diplomatas e, por outro, da aplicao, por vezes absurda, de critrios de rentabilidade a tarefas que no produzem lucros imediatos, ou contabi-lizveis, ou que os produzem apenas indirectamente noutras reas. E esta l!ma matria da maior importncia porque pode levar reduo do inves-timento feito na poltica externa com custos imprevisveis para os inte-resses nacionais permanentes.

    IV

    Gostaria agora de falar, ainda que em termos generlcos, dos prin-cpios ou regras que devem presidir conduo da poltica externa.

    Na aeo externa existem, obviamente, normaS ticas e critrios de valorao moral que devem ser respeitados, como existem tambm na exe-cuo de todas as polticas nacionais por Estados que se querem considerar pessoas de bem. No irei desenvolv-los aqui mas convinha deixar feita esta observao preliminar.

    Ao falar das regras a ter em conta na definio da poltica externa, vou antes referir-me s normas de eficcia que devem reger a aco externa. Tal como na estratgia militar, tambm na poltica externa podem definirse alguns princpios ou regras bsicas que devem ser seguidos. No se trata

    (8) Sobre o incio deste processo de maior envolvimento na poltica externa dos chefes do Executivo no Reino Unido e nos Estados Unidos. desde a guerra de 1914 -1918. ver Manuel Fraga lribame e Rafael Rodriguez - Mofilrno, Los Fundamentos de Ia Diplo-macia (Editorinl Planeta. Barcelona. 1977) pgs. 42 e segs.

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    de regras imutveis ou eternas, antes de algumas orientaes flexveis que devem ser adoptadas a cada momento e a cada circunstncia, e que, de algum modo, tm sido objecto de reflexo no Ocidente, pelo menos desde a Renascena (').

    1. Em primeiro lugar, lembraria a importncia de uma boa definio dos interesses a prosseguir para que a poltica externa teoba um contedo e uma utilidade.

    2. Deve mencionar-se em seguida que, sendo os interesses nacionais permanentes, deve haver continuidade na sua defesa. No quer isto dizer que a poltica externa deva ser imutvel- pelo contrrio, tem que ser fle-xvel e adaptar-se s realidades, aos' perigos e s oportunidades de cada momento - mas deve obedecer a uma certa continuidade ditada pela His-tria e pelo bom senso. No se gaoba com rupturas e saltos bruscos, que a natureza acaba por corrigir mas que os povos pagam caro - veja-se a evoluo recente na URSS e na Europa de Leste.

    3. Para manter esta continuidade e firmeza na defesa dos interesses nacionais, convem procurar um consenso nacional volta dos objectivos e mtodos da poltica externa, de forma a que as mudanas de Governo no perturbem o desenrolar da aco diplomtica. ~ importante manter no s6 a coeso institucional dos orgos competentes nesta matria como tambm a adeso e apoio da opinio pblica, tendo em conta a publici-dade crescente das decises e actuaes em poltica externa.

    4. Convm ainda assegurar a coerncia e articulao entre poltica externa e as outras polticas nacionais, j que os objectivos finais so os mesmos, e que, se harmoniosamente desenvolvidas, estas polticas se poten-ciam reciprocamente. Na realidade, uma das tendncias recentes da evolu-o internacional para uma fuso crescente das polticas interna e externa, no se sabendo por vezes onde uma acaba e outra comea.

    5. Importa, por otro lado, garantir a unidade da representao e da aco externa do Estado, no s6 para evitar a disperso e a descoorde-

    (9) A reflexo sobre os critrios polticos da seo dos Estados no nasceu com Machia-velo embora ele marque uma ruptura com o pensamento medieval dominante na sua poca e seja geralmente visto como o iniciador da viso realista das relaes internacionais. Mas antes dele outros tiveram aproximaes semelhantes poltica internacional. a come-. ar por Tucidides e passando por 'Philippe de Commynes.

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    nao mas tambm para tomar possvel a mxima rentabilizao dos meios utilizados.

    Isto refere-se sobretudo necessidade de coordenar a aeo exterior dos diversos Ministrios. F. bvio que, em princpio, esta coordenao deve competir aos Ministrios dos Negcios Estrangeiros.

    6. Os objectivos escolhidos devem ser comensurados com a dimenso e a potncia dos Estados. Concepes megalmanas e excessivamente ambi-ciosas da poltica externa a seguir traduzem-se, tarde ou cedo, em dese-quilbrios e crises de difcil recuperao. No caso portugus lembre-se, por exemplo, a evacuao de algumas praas no Norte de Africa por D. Joo lU, por falta de meios para as defender, que implicitamente levava ao aban-dono progressivo da nossa interveno no Norte de Africa, e a desastrosa opo contrria feita por seu neto D. Sebastio que terminou ingloria-mente em Alccer-Kibir (10).

    7. Diga-se tambm que, se certo que na definio dos fins da pol-tica externa h que ter em conta os meios disponveis, igualmente ver-dade que se um determinado objectivo vlido se lhe devem consagrar todos os meios necessrios. Se vale a pena tentar fazer uma coisa, vale a pena faz-Ia bem. Muitas vezes a poltica externa se toma indecisa e hesi-tatnte por no lhe serem consagrados os meios indispensveis e essa falta de convico e deciso poltica paga-se cara.

    8. F. importante chamar a ateno para a necessidade da con-centrao dos recursos existentes. Critica-se, por vezes, o facto dos pases com limitados recursos financeiros e escasso pessoal diplomtico quererem, por razes de prestgio, manter vastas redes diplomticas, com misses mal equipadas e mal dotadas. Mas h outros campos em que a disperso de meios se pode verificar. A poltica cultural e de cooperao, por exem-plo, devem concentrar-se nos pases que realmente interessam.

    (11l) Ver Joaquim Verssimo Serro, Histria de Portugal. vaI. 111 (Editorial Verbo, 2,- ed., 1980) pgs. 39-42 e 7679. Jorge Borges de Macedo, Histria Diplomtica Portu-guesa - Constantes e Linhas de Fora (Instituto da Defesa Nacional, 1987) pgs. 110 e segs., salienta a necessidade de enfrentar o perigo turco sobre o Marrocos que motivou 3 deciso de Dom Sebastio. mas no diverge na anlise das consequncias. nomeadamente a perda da independncia. cuja reSPonsabilidade considera, porm. pertencer no directa-mente' ao rei mas ao corpo nacional dividido e inferior ao adversrio.

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    9. As questes de poltica externa no podem ser consideradas iso-ladamente. Tm que ser vistas dentro do conjunto das questes e rela-es internacionais do Estado, que se condicionam e influenciam reciproca-mente. Isto ainda verdadeiro dentro das relaes bilaterais dum Estado com outro - que tm que ser vistas globalmente - ou as relaes com conjuntos de Estados. ~ esta considerao global dos problemas que per-mite fazer valer ao mximo os interesses nacionais J sacrificando o acess-rio ao essencial. A poltica externa no conciste em escolher solues per-feitas para cada problema - que no existem - mas em conciliaes pos-sveis de vrios interesses contrapostos no conjunto das relaes do Estado com outro ou outros pases.

    10. H vantagem em organizar e manter uma programao das activi-dades, ainda que muito flexvel em relao aos temas e objectivos de maior interesse para o Estado. E isto porque a aco externa intensa e descon-tnua, misturando-se constantemente questes secundrias, ou apenas impor-tantes para outros, e decises e visitas de rotina, com o tratamento de ques-tes fundamentais para o Estado, tudo num calendrio absorvente, e h o perigo de a presso dos acontecimentos fazer esquecer as prioridades duma poltica externa. O objectivo aqui deve ser o no perder nunca de vista os verdadeiros objectivos da poltica do pas (").

    11. A firmeza e a coerncia dos objectivos no podem dispensar a demonstrao de flexibilidade quando necessrio. Qualquer linha estrat-gica parte do pressuposto duma determinada situao poltica e econffica internacional e determinados comportamentos dos outros actores na cena internacional que, eles tambm, definem e executam polticas externas pr-prias. H que ter sempre isto em conta e efectuar as necessrias correces na estratgia que se pretende desenvolver, visto que no se trabalha no vcuo mas, pelo contrrio, numa atmosfera saturada de presenas e influn-cias.

    (") Valery Giscard d'Estaing, em Le Pouvoir el lu Vie (Livre de Poche, Paris. 1989) pgs. 120 e 121 refere esta caracterstica na actividade tanto de De Gaulle como de Jean Monnet: fixavam-se um objectivo. geralmente colocado a uma certa distncia no tempo. Em seguida punham em aco os meios, todos meios, para o atingir. Nunca havia confuso, em qualquer deles. entre o fim da aeo e a anlise das suas modalidades. Quanto s circunstncias do momento. podiam complicar ou atrasar o processo, no limite podiam impr um desvio. mas nunca punham em causa o obiectivo finah~.

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    12. Pelo atrs dito, fica bem patente a importncia de conhecer bem e avaliar correctamente quais os objectivos fundamentais e quais as ques-tes mais importantes para os parceiros internacionais dum Estado. A vida internacional feita de acomodaes de interesses e para poder realizar as cedncias mnimas h que conhecer qual o valor que lhes atribuem os outros.

    13. Num momento em que tudo passa na comunicao social, o bom uso desta torna-se fundamental tanto par correcta informao da prpria opinio pblica e para prevenir a sua desinforrnao como para actuar junto das opinies pblicas de outros pases que, cada vez mais, tm voz e voto em matria de poltica externa.

    14. Finalmente, creio tambm importante ter uma correcta perspec-tiva temporal no planeamento e execuo da poltica externa. Uma ten-dncia profundamente humana, que todos partilhamos, para ver em cada momento da histria a sua culminao e em cada cristalizao epis-dica duma determinada relao de foras internacional uma frmula eterna, um arqutipo fixo das relaes internacionais. H um ano, o ento Ministro dos Negcios Estrangeiros britnico, Sir Geoffrey Howe, proferiu um discurso de cerca de 20 minutos em que chamou a ateno para o facto de se toda a histria do mundo estivesse comprimida na durao do seu discurso, as primeiras formas de viver teriam aparecido ao fim de sete minutos, a vida autnoma de plantas e animais ao fim de 15 mnutos e os nossos ante-passados humanos apenas apareceriam nos ltimos segundos (").

    grande a inconscincia que nos faz prever a permanncia das nossas formas de organizao social ou internacional. A diviso da Europa Oci-dental e Oriental, v-mo-Io agora, no foi eterna - durou pouco mais de 40 anos. Como sero a Europa e o Mundo dentro de outros 40 anos (")?

    No quis aqui esgotar a enunciao dos princpios ou regras a que deve obedecer a definio ou aplicao duma poltica externa ao servio dos interesse nacionais. Pretendi apenas tentar um esforo de arrumao

    (U) Down to Earth Diplomacy (Foreign and Cammon Welth Office, LondJ'es. IC)SB). discurso no banquete diplomtico em 15-6-88, pgs. 29-30.

    (13) Com agudo sentido da Histria Jean Monnet, em Mmoires (Fayard, Livre de Poche, aris, 1988), pg. 788, notava que as naes soberanas do passado j no so o quadro onde se podem resolver os proPblemas do presente. E a prpria Comunidade n:) mais que uma etapa em direco s formas de organizao do mundo de amanh.

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    de alguns dos principais critrios de eficcia que no devem ser esquecidos pelos polticos e diplomatas.

    Muitos outros destes princpios ou critrios seria ainda possvel elen-caro Apenas a ttulo indicativo, poderei, por exemplo, indicar alguns dos princpios especficos a ter em conta em relaes em que haja despropor-o de foras entre dois pases ou entidades na cena internacional. Numa relao desse tipo conveniente que a parte mais fraca tenha em ateno as seguintes orientaes:

    1. Reforar os seus pontos vulnerveis. 2. Procurar alianas e apoios que compensem a debilidade relativa. 3. No se isolar no relacionamento com o parceiro mais poderoso-

    procurar que formas de integrao ou associao com o pas mais forte se dm apenas em conjuntos mais vastos.

    4. No criar, em relao a esse parceiro, dependncias excessivas ou exclusivas.

    5. Conhecer os limites do relacionamento aconselhvel e, dentro destes limites, manter relaes cordiais, amigas, at ntimas.

    6. No irritar, desnecessariamente, o pas com mais fora nem pro-vocar a sua inveja ou cobias desnecessrias.

    7. Tirar partido do direito internacional e dos princpios das orga-nizaes internacionais em que se est integrado para dar cober-tura moral e jurdica aos interesses nacionais.

    8. Conhecer bem o adversrio e no tentar explorar as suas fraque-zas internas nem contar demasiado com a sua boa vontade ou res~ peito pela legalidade internacional.

    Trata-se apenas dum esboo genrico e exemplificativo dum quadro de princpios para um. relacionamento desigual, sem pretender dar-lhe agora aplicao directa ou imediata a qualquer situao especfica.

    v

    Voltemos ao conceito de diplomacia como o instrumento privilegiado ao servio da poltica externa. A diplomacia - isto a actuao dum Estado no exterior atravs de agentes seus como tal acreditados perante

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    outro Estado ou perante organizaes internacionais - no o nico meio de actuao pacfica ao servio da poltica externa.

    oportuno mencionar aqui quais os restantes instrumentos ao ser-vio duma poltica externa. O Embaixador Calvet de Magalhes C') divi-de-os em pacficos e violentos.

    Seriam instrumentos pacficos a negociao directa - entendida como negociao sem intermedirios, feita directamente pelos responsveis pol-ticos dos Estados - a diplomacia e a mediao - sendo esta ltima uma negociao entre dois Estados levada a cabo pelos representantes dum terceiro Estado. Seriam ainda instrumentos pacficos da poltica externa as actividades de propaganda, a espionagem, a interveno econmica unilateral e a interveno poltica unilateral.

    Como instrumentos violentos da poltica externa teriamos a dissua-so, a ameaa, a guerra econ6mica, a presso militar e, finalmente, a guerra.

    Como todas as classificaes, esta deixa tambm algo a desejar j que as fronteiras da realidade so sempre fluidas e pouco claras. Basta notar que a propaganda - ou seja a divulgao de idias favorveis poltica externa de um pas junto de outro - pode ter um elemento de agresso quer contra o pas objecto da propaganda, quer contra um terceiro pas. Por seu lado, a espionag~m utiliza agentes secretos e meios ocultos ou ilegtimos para colher informaes - o que sem ser um meio violento tam-bm no to pacfico como isso. Quanto interveno econmica e pol-tica, elas podem revestir-se de formas que as aproximem da ameaa ou da guerra econmica. A dissuaso, classificada como meio violento, pode ser antes vista como instrumento de paz e como tal foi utilizada com xito pelo Ocidente em relao ao Pacto de Varsvia. Observe-se, por ltimo, que os chamados meios violentos de poltica externa podem ser accionados, pelo menos em parte, por canais diplomticos. O Ultimato Ingls, sem dvida uma forma de ameaa, foi entregue pelo representante diplom-tico britnico em Lisboa e preparado pelo Foreign Office. As sanes eco-nmicas, que so o exemplo mais tpico da guerra econmica, so decididas pelos Governos com total interveno das suas mquinas diplomticas, seja bilateralmente, seja em rgos como a ONU ou em organizaes regionais.

    (14) Ob. cit., pgs. 2527.

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    A realidade to complexa que pode mesmo constatar-se a utilizao de meios pacficos ao ser,:io duma poltica agressiva, tal como h meios violentos ao servio de polticas pacficas.

    Quer isto dizer que no h classificaes perfeitas, mas apenas clas-sificaes teis. Desta classificao podemos retirar que a diplomacia o meio normal e essencialmente pacfico de executar uma poltica externa. O outro meio seria a negociao directa entre os Governos das matrias que lhes interessam. Num sentido lato e vulgar, porm, podemos tambm considerar como diplomacia estes contactos entre dirigentes polticos.

    Na verdade, h uma participao crescente dos membros do Governo na execuo da poltica externa, o que um facto novo na vida interna-cional e vem tornar difcil a distino entre o papel dos governantes e dos diplomatas na execuo da poltica externa. Com o desenvolvimento das comunicaes e transportes e com o prprio alargamento e intensificao das relaes internacionais, multiplicaram-se, sobretudo nos ltimos anos, os encontros entre Ministros dos Negcios Estrangeiros e tambm entre Ministros de outros sectores.

    Por outro lado, os prprios contactos entre Chefes de Governo passa-ram a ser um facto irrecusvel e corrente. Alm de cimeiras no mbito de organizaes internacionais - no nosso caso, h semestralmente um Con-selho Europeu - realizam-se com cada vez mais frequncia cimeiras bila-terais.

    impossvel. nesta situao, manter a distino entre uma diplomacia pura, que pertenceria aos diplomatas, e os contactos directos entre diri-gentes polticos. So realidades entre as quais no h fronteiras e nada permite definir onde acaba uma e comea outra. Na verdade, estes dois tipos de actuao so idnticos em essncia. Mesmo conceptualmente, a distino seria artificiosa - tanto os Ministros como os diplomatas so agen-tes do Estado e actuam como tal em relao a outros Estados. Qualquer negociao internacional iniciada e conduzida por diplomatas pode ter-minar com a assinatura de um acordo ou com negociaes suplementares entre polticos. Na realidade, tudo se passa como se, para alm das cate-gorias tradicionais de diplomatas, tivessem surgido novas categorias de agentes do Estado nas suas relaes exteriores: os Secretrios de Estado e os Ministros. Nas suas misses ao servio do Estado, estes novos actores seriam o que anteriormente se denominaria enviados extraordinrios.

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    Tm, sobretudo, interveno na concluso de negociaes e assinatura de acordos ou na iniciativa de medidas de aproximao entre pases. As fun-daes em que assentam esses acordos e o desenvolvimento dessas inicia-tivas so, geralmente, construdas pelos diplomatas ou tcnicos.

    Por outro lado, a distino entre o que poltico e o que diplom-tico tambm esbatida na parte que respeita definio e orientao da poltica externa. Se aos polticos compete decidir e orientar e aos diplo-matas executar, igualmente verdade que a deciso poltica se beseia em informaes prestadas pelos diplomatas e na avaliao destas feita nos Ministrios dos Estrangeiros por diplomatas profissionais. Os diplomatas devem tambm sugerir e aconselhar certos cursos de aco (sobretudo se a sua credibilidade for reconhecida pelo poder poltico). Da que a diplo-macia no tenha um cariz exclusivamente tcnico ou executivo mas tam-bm uma participao na formulao da poltica externa.

    Os inconvenientes da negociao directa entre chefes polticos so muitas vezes lembrados: a interveno de simpatias ou antipatias entre eles; a influncia de constrangimentos ambientais nessas negociaes; o fazer surgir expectativas internas que, depois, so desiludidas: a falta de margem de manobra ou de possibilidade de recuo em relao a compro-missos assumidos sob presso; o possvel crescimento da tenso internacional em consequncia de cimeiras falhadas; etc (15). Em contraste, apontam-se as vantagens da negociao por agentes diplomticos: discretas, entre profissio-nais, em que os Governos, no final, podem sempre renegar os resultados a que se chegou e fazer recomear a negociao.

    No til, no entanto, alargarmo-nos sobre estes possveis inconve-nientes dos contactos entre altos dirigentes polticos, no s porque eles passaram a ser um dado corrente, normal, da vida internacional, como tam-bm porque esses contactos tm bvias vantagens na resoluo de diferen-dos e na criao dum clima internacional mais estvel e distendido. Por outro lado, o acrscimo de cimeiras e encontros ministeriais conduziu

    ('~) Entre os autores crticos deste tipo de diplomacia veja-se, por ex., George F. Kennan, Russia and the West under Lenin and Stalin (Little, Brown and Company. Bostoo, 9," edio) pg. 129, que refere alguns dos defeitos inerentes ao que poderamos chamar diplomacia de cimeira. Uma sntese dos inconvenientes mais apontados aos contactos directos entre Chefes polfticos figura em J. Calvet de Magalhes, ob. cit., pgs. 81 e seguintes.

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    sua rotinizao e a uma sua melhor preparao, com agendas cuidadosa-mente elaboradas e temas estudados e negociados previamente.

    De resto, com o desenvolvimento das comunicaes e dos transportes, os contactos directos entre Administraes centrais multiplicaram-se nos ltimos anos, mesmo a nvel de funcionrios. Hoje em dia, so frequentes as visitas recprocas destes funcionrios, para consulta poltica ou para negociao, enquanto que em certos quadros regionais - como o da coope-rao poltico europeia - esto institucionalizadas reunies peridicas fre-quentes.

    Uma palavra ainda para referir aqui, ainda que muito brevemente, as funes asseguradas pelas Misses diplomticas permanentes no estran-geiro.

    Segundo a Conveno de Viena, em primeiro lugar, cabe-lhes assegu-rar a representao do Estado no estrangeiro, tanto formalmente, perante as Autoridades junto das quais esto acreditados, como, de um modo geral, perante a sociedade e entidades locais. O Embaixador deve ser o repre-sentante visvel do pas que o envia e o primeiro interlocutor do Governo e Administrao junto dos quais trabalha, bem como das entidades e per-sonalidades locais.

    Em segundo lugar, cabe s Misses diplomticas uma actividade de informao do seu Governo sobre os acontecimentos polticos, econmicos, militares, cientficos, culturais, etc, do pas em que est acreditado que tenham relevo e importncia para a poltica externa do seu Governo e para as relaes bilaterais. Dada a vastido das informaes disponveis, espe-ra-se do diplomata um trabalho de seleco e interpretao em que prime a qualidade sobre a quantidade.

    Em terceiro lugar, cabem aos diplomatas funes de negociao, ou seja de concertao dos interesses do seu pas com os de outros Estados. Este trabalho pode ser feito formalmente, com vista assinatura de trata-dos ou acordos internacionais, ou informalmente para conciliar interesses opostos ou divergentes.

    Em quarto lugar, cabem ao diplomata funes de promoo das rela-es econmicas, culturais e polticas entre o seu pas e o pas em que est acreditado, o que incIuui tambm a promoo da imagem do seu prprio pas.

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    Em quinto lugar, cabem ao diplomata funes de proteco dos inte-resses do seu pas e dos seus nacionais no estrangeiro. Pode-se incluir aqui a prtica de actos administrativos em favor dos cidados do seu pas, como extenso dos servios pblicos nacionais. Estas funes esto cometidas em especial aos Consulados.

    A rede de Misses diplomticas e consulares coordenada, orientada e complementada pelos servios centrais do Ministrio dos Negcios Estran-geiros, que podemos dizer funcionam como Estado Maior da actividade externa do pas.

    Como vimos, a sociedade internacional e as relaes internacionais so eminentemente dinmicas. Mas j Harold Nicolson, no seu estudo clssico sobre a diplomacia, criticava a tendncia para acentuar a oposio entre velha e nova diplomacia, defendendo que, mais que contrastes de princpio ou de mtodo, o que ocorreu foi que a arte de negociao se foi ajustando paulatinamente s mudanas registadas nas condies polti-cas ("). Na verdade, a diplomacia tem constantemente que se adaptar s novas circunstncias e o que era diplomacia moderna em 1920 era anti-qussima em 1950 e arqueolgica hoje em dia. O conceito de modernidade constantemente invocado mas, como vimos, no toca a essncia da aco diplomtica. bvio que os servios diplomticos e os diplomatas tm de manter-se actualizados em termos de conhecimentos e de utilizao de tecnologias e que lhes incumbem novas tarefas a desempenhar com outro estilo. Mas permanece a utilidade da diplomacia em si, se que no ganhou em importncia, embora com novas formas e novas competncias (17). Note-se que se multiplicou nas ltimas dcadas tanto o nmero de misses internacionais como de diplomatas, o que no indica nem uma funo, nem uma classe em vias de extino.

    (16) Harold Nicolson, La Diplomacia (Fundo de Cultura Econmica. Mxico). (17) Um bom resumo das diferenas mais salientes entre velha e nova diplomacia figura

    em R. P. 8a1's10n, oh. cit., pg. 3-8.

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    o diplomata tende, hoje em dia, a ganhar alguma especializao geo-grfica ou em certas matrias, em muitos servios diplomticos. Ele no nem deve ser, no entanto, um tcnico, como os de outros Ministrios e Servios Pblicos, mas um profissional da funo especfica que lhe foi confiada. Esta exige conhecimentos, experincia, formao tcnica e quali-dades pessoais aos profissionais da diplomacia que, no seu conjunto, iden-tificam e justificam a sua permanncia nos tempos actuais.

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    G. Santa Clara Gomes Representante Pennanente de Portugal

    junto do Conselho da Europa