Nacionalismos e iberismo - Justino Magalhães

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1 Nacionalismos e Iberismo na Formação dos Sistemas de Ensino Peninsulares Justino Magalhães Universidade de Lisboa  justinomagalhaes@ie.ul.pt 1. Quando aceitei participar neste Encontro denominado Exílios e Viagens: ideários de liberdade e discursos educativos Portugal-Espanha, século XVIII-XX , com uma comunicação sobre as relações ibéricas na 1ª metade do século XIX, vieram-me à mente os depoimentos de Victor de Sá 1 , que previne que só a partir dos primeiros anos da década de cinquenta do século XIX surgem sinais de interacção e de superação do longo silêncio subsequen te à Guerra da Restauração, e que, iniciada com a geração de 1852, essa circulação de ideias tendeu para uma federação ibérica republicana e socialista.  Não necessariamente no contraponto, mas abrindo um outro horizonte de observação, os registos da História de Portugal, relativos à luta contra os franceses e à Guerra Civil, reportam a uma factologia em que a animosidade contra os franceses levou os batalhões  portugueses (alguns de organização popular) a frequentes incursões em território espanhol,  perseguindo e dando curso a um anti-iberismo. Tal clima teria, em algumas circunstâncias, sido estimulado pelo catolicismo ibérico em ofensiva ao jacobinismo. No âmbito desta rivalidade, toma relevo a denúncia das tentativas de coalizão entre Madrid e as Potências da Santa Aliança (Áustria, Rússia, França) para instaurar o absolutismo e recuperar o domínio sobre Portugal. Teriam sido frequentes as tentativas de bilateralismo França/ Espanha para: combater a Inglaterra; recuperar o domínio sobre Portugal e o seu império, particularmente o Brasil recém-independente; assegurar o regime colonial na América do Sul. Desse mal-estar foram vítimas os exilados portugueses de 1828. Há um terceiro elemento que é o da Modernização Ibérica, no quadro da nova ordem económica e política, de que resultou manifesta a dificuldade portuguesa em proceder a reformas estruturais em tempo e na escala oportunas. Houve um vai-vém de nacionalismo e iberismo, mas foram as Nações-Estado que vingaram, sendo a formação dos sistemas escolares nacionais uma forma de o comprovar. Tudo aconteceu num quadro histórico mais amplo. As Invasões Napoleónicas  prolongaram na Península os ideais de Liberalismo e de Revolução, iniciados em 1789; estão na origem de um novo regime político assente na aliança Estado-Nação. Na sequência da derrota de Napoleão em Waterloo, as potências vencedoras estabeleceram uma Convenção como forma de conter o clima revolucionário e restaurar as monarquias absolutas na Europa. Foi a primeira confederação do Norte contra o Sul. Na Europa mediterrânica, a Revolução Liberal veio a ficar associada à independência política, à construção dos Estados-Nação, ao fomento económico e cultural, transformações que ocorreram na primeira metade do século XIX. Como adverte Joel Serrão:  É numa Europa conjunturalmente apaziguada, após o maremoto da  Revolução Francesa e suas prolongadas e ressurgentes sequelas, que a 1  Sá, V., Perspectivas do Século XIX  (2ª ed.). Porto: Limiar, 1976, p. 210-216. Sá, V., A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestações das Ideias Socialistas em Portugal (1820 -1852)  (3ª ed.). Lisboa: Livros Horizonte, 1978, p. 284-287.

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    Nacionalismos e Iberismo na Formao dos Sistemas de Ensino Peninsulares

    Justino Magalhes

    Universidade de Lisboa

    [email protected]

    1. Quando aceitei participar neste Encontro denominado Exlios e Viagens: iderios de liberdade e discursos educativos Portugal-Espanha, sculo XVIII-XX, com uma comunicao sobre as relaes ibricas na 1 metade do sculo XIX, vieram-me mente os

    depoimentos de Victor de S1, que previne que s a partir dos primeiros anos da dcada de

    cinquenta do sculo XIX surgem sinais de interaco e de superao do longo silncio

    subsequente Guerra da Restaurao, e que, iniciada com a gerao de 1852, essa circulao

    de ideias tendeu para uma federao ibrica republicana e socialista.

    No necessariamente no contraponto, mas abrindo um outro horizonte de observao,

    os registos da Histria de Portugal, relativos luta contra os franceses e Guerra Civil,

    reportam a uma factologia em que a animosidade contra os franceses levou os batalhes

    portugueses (alguns de organizao popular) a frequentes incurses em territrio espanhol,

    perseguindo e dando curso a um anti-iberismo. Tal clima teria, em algumas circunstncias,

    sido estimulado pelo catolicismo ibrico em ofensiva ao jacobinismo. No mbito desta

    rivalidade, toma relevo a denncia das tentativas de coalizo entre Madrid e as Potncias da

    Santa Aliana (ustria, Rssia, Frana) para instaurar o absolutismo e recuperar o domnio

    sobre Portugal. Teriam sido frequentes as tentativas de bilateralismo Frana/ Espanha para:

    combater a Inglaterra; recuperar o domnio sobre Portugal e o seu imprio, particularmente o

    Brasil recm-independente; assegurar o regime colonial na Amrica do Sul. Desse mal-estar

    foram vtimas os exilados portugueses de 1828.

    H um terceiro elemento que o da Modernizao Ibrica, no quadro da nova ordem

    econmica e poltica, de que resultou manifesta a dificuldade portuguesa em proceder a

    reformas estruturais em tempo e na escala oportunas. Houve um vai-vm de nacionalismo e

    iberismo, mas foram as Naes-Estado que vingaram, sendo a formao dos sistemas

    escolares nacionais uma forma de o comprovar.

    Tudo aconteceu num quadro histrico mais amplo. As Invases Napolenicas

    prolongaram na Pennsula os ideais de Liberalismo e de Revoluo, iniciados em 1789; esto

    na origem de um novo regime poltico assente na aliana Estado-Nao. Na sequncia da

    derrota de Napoleo em Waterloo, as potncias vencedoras estabeleceram uma Conveno

    como forma de conter o clima revolucionrio e restaurar as monarquias absolutas na Europa.

    Foi a primeira confederao do Norte contra o Sul. Na Europa mediterrnica, a Revoluo

    Liberal veio a ficar associada independncia poltica, construo dos Estados-Nao, ao

    fomento econmico e cultural, transformaes que ocorreram na primeira metade do sculo

    XIX. Como adverte Joel Serro:

    numa Europa conjunturalmente apaziguada, aps o maremoto da

    Revoluo Francesa e suas prolongadas e ressurgentes sequelas, que a

    1 S, V., Perspectivas do Sculo XIX (2 ed.). Porto: Limiar, 1976, p. 210-216.

    S, V., A Crise do Liberalismo e as Primeiras Manifestaes das Ideias Socialistas em Portugal (1820-1852) (3

    ed.). Lisboa: Livros Horizonte, 1978, p. 284-287.

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    Pennsula Ibrica (Espanha, em 1812 e 1820, Portugal, em 1820), a Itlia

    (Npoles, em 1820) e a Grcia (1821) despertam para a experincia poltica

    da liberdade, inseparvel, alis, da assuno revolucionria das

    virtualidades das respectivas naes como Estados ou a criar ou a renovar.

    Deste modo, ali, como alhures, liberalismo e nacionalismo deram-se as

    mos e fundiram-se numa generalizada esperana de autonomia, sentida e

    pensada como condio da ruptura com o passado imediato, ao qual eram

    atribudas as responsabilidades directas da mesquinhez do presente2.

    Eric Hobsbawm referiu-se ao longo ciclo 1789-1848, como A Era das Revolues ou a

    grande revoluo, designao que tambm admite para caracterizar a sublevao gmea

    ocorrida na Gr-Bretanha e em Frana e que se propagou ao mundo inteiro3. Foi um tempo

    assinalado por fenmenos de transversalidade e estrangeirismo, invases, guerras-civis,

    exlios e emigrao. Em Portugal, enquanto os estrangeirados, notveis na segunda metade do

    sculo XVIII e na primeira gerao Liberal, procuraram introduzir mudanas vindas do

    exterior, os exilados tenderam a interpretar e incorporar a mudana desejada, aproximando

    Portugal, como Estado-Nao, da Europa Romntica, Liberal e moderna. Senhores de capital

    financeiro, desejosos de investir e inscrever o seu nome no processo de modernizao, os

    emigrados, cujo peso foi mais notrio a partir da segunda metade do sculo XIX, tornaram

    efectivas algumas transformaes estruturantes, designadamente na rede viria, na

    urbanizao do mundo rural, na escolarizao, na filantropia, revitalizando o municipalismo.

    2. A historiografia tende a reconhecer aos exilados uma percepo antecipada e assertiva

    da evoluo em devir. Por contraste, os emigrados representam a nao pobre e madrasta,

    vida de ingressos financeiros, fertilizantes e rejuvenescedores. Aqueles prefiguram a negao

    do horizonte esperado; estes comportam o horizonte desejado, incorporam a crise, sofrem

    com a ausncia de oportunidade, mas so a esperana. Em tal quadro, os estrangeirados

    tendem a capitalizar o discurso da salvao, importando o modelo externo. Decorrente da

    Revoluo Liberal, a situao de guerra-civil foi recorrente. No campo da educao, estava

    em curso a construo da nao escolar. Neste clima de convulso, com perseguio e fuga,

    nas distintas conjunturas, pode perguntar-se se os exilados portugueses da primeira metade de

    Oitocentos tero tido conscincia do processo em curso e em que medida protagonizaram a

    mudana. Tero assumido as circunstncias do seu tempo e percebido o que estava em causa?

    Estrangeirismo/ exlio/ emigrao um dos eixos historiogrficos para conhecer e

    interpretar o desenvolvimento do sculo XIX. A cada um destes segmentos correspondeu um

    ciclo de transformao, um agenciamento, enfim, um projecto histrico.

    Ainda que a primeira metade do sculo XIX tenha resultado da interseco destes trs

    grupos, o primeiro Oitocentismo portugus ficou assinalado por um ciclo de estrangeirados e

    por um ciclo de exilados. A partir de meados do sculo, com o movimento da Regenerao, o

    ciclo de emigrados tornou-se mais notrio. Estes ciclos respeitam histria no seu todo, mas

    aqui interessam sobretudo na construo da nao escolar. Agregando, no essencial, o ncleo

    de exilados, o que mais releva e distingue a Gerao Romntica/ liberal a tomada de

    conscincia por parte dos seus membros de que podiam e deveriam intervir na sociedade; que

    2 Serro, J. Democratismo versus Iberalismo. In Pereira, M. H.; S, M. Ftima S e Melo Ferreira, M. F. S. M.;

    Serra, J. B. (org.)., O Liberalismo na Pennsula Ibrica na Primeira Metade do Sculo XIX (1 volume). Lisboa:

    S da Costa Editora, 1981, p. 3.

    3 Hobsbawm, E., A Era das Revolues 1789-1848 (2 ed.). Lisboa: Editorial Presena, 1982, p. 10

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    no s era possvel, como necessrio faz-lo, tendo em ateno uma nova racionalidade do

    tempo histrico e a inevitabilidade de um Contrato Social, de alcance nacional, que tornasse

    viveis a Revoluo Liberal e o progresso. A tradio poderia e deveria ser convertida em

    histria e iderio nacionalista, que, dando curso lngua nacional associada modernizao

    econmica e administrativa, constituam o fundamento do Estado-Nao. A sociedade poderia

    ser desejada/ imaginada, como sucedia com outras sociedades, em circunstncias anlogas4. O

    presente deveria ser tomado como tempo/ construo, reificando um projecto poltico atravs

    da(s) guerra(s) e da revoluo e firmando a mudanas por meio de leis fundadoras, ajustadas

    cultura fundamental e aos intentos patriticos, assentes nas lnguas nacionais.

    Nacionalismo ou iberismo? Havia questes referentes Revoluo poltica e ao

    Liberalismo/ constitucionalismo, e havia tambm questes de nacionalismo e de

    nacionalismos. A conjuntura poltica e a instabilidade econmica levaram homens, cultural e

    politicamente esclarecidos, como Almeida Garrett, ao dilema de ou admitirem um

    nacionalismo forte e promissor, ou declinarem num federalismo ibrico politicamente

    negociado, tomando a soluo menos indigna. A construo dos Estados-Nao Ibricos foi

    apoiada na Cultura Escrita e na Escola. As reformas educativas reflectiam as distintas

    conjunturas histricas; o sentido da instruo e da escolarizao beneficiou de uma evoluo

    semntica.

    3. A longa durao do Oitocentismo mediou entre a derrocada do Antigo Regime,

    imperialista e feudal, e a consolidao da Europa democrtica; entre uma instabilidade

    econmica e demogrfica dependente do sector primrio e uma economia aberta ao espao-

    mundo, fundada na mecanizao do sector secundrio e na escriturao e urbanizao

    tercirias, expansionista e hegemnica no plano financeiro; entre um humanismo de base

    Iluminista (neo-escolstico) e um racionalismo tcnico-cientfico. Diversas conjunturas

    cruzaram transversalidades e singularidade. Para a temtica que aqui nos prende, assinalem-se

    as seguintes:

    a) Das Invases peninsulares consolidao da independncia poltica e construo de uma base sociocultural, assente na cultura escrita, de apoio modernizao do Estado

    e diferenciao entre os campos do pblico e do privado.

    Esta conjuntura foi determinada pela primeira gerao romntica, a quem ficaram a

    dever-se a emergncia da nao lingustica, para retomarmos a acepo proposta

    por Herder; a nacionalizao da cultura escolar; a criao de uma estrutura pedaggica

    e didctica, de alcance universal para assegurar a alfabetizao em vernculo como

    base de comunicao, formao cvica, humanstica e tcnica; a cidadania como

    matriz do contrato Estado-Nao.

    b) A pacificao civil e o fomento de grandes investimentos, em transportes e circulao de produtos e pessoas, criando um mercado econmico nacional e fazendo emergir

    plos industriais, de que resultaram as primeiras concentraes proletrias e a

    emergncia de metrpoles urbanizadas.

    4 Retomo aqui a expresso comunidades imaginadas consagrada por Benedict Anderson. Com ela, Anderson,

    inventariando e documentando com um conjunto de casos e de circunstncias histricas, pretender significar que

    a combinao dos elementos lingustico-impresso com o econmico e o administrativo constituiu a origem da

    conscincia nacionalista (cf. Anderson, B., Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of

    Nationalism. London/ New York: Verso, pp. 37-46).

  • 4

    Com o urbanismo e a proletarizao ganharam alento as ideias socialistas e o

    programa republicano. A educao e a instruo pblica centraram-se na escola; ficou

    definido o perfil de um profissional docente normalizado e funcionrio pblico.

    Estruturada e assegurada uma instruo elementar, com sede escolar, o debate

    concentrou-se sobre a educao secundria humanstica, cientfica, tcnica,

    profissional.

    c) Contudo, na transio do terceiro quartel do sculo XIX, a ameaa de decadncia ibrica no esvanecia; a crise tardava em resolver-se.

    Progressistas e regeneradores, procuravam sustentar-se no poder, congregando os

    sectores pblico e privado; republicanos e socialistas disputavam a primazia no

    aparelho de Estado e na politizao dos pblicos neo-alfabetizados. A mquina

    educativa e escolar desafiou a uma estrutura orgnica, hierrquica e escriturada, de

    que resultou uma burocracia que inspirava os sectores econmico e poltico. A

    modernizao administrativa e orgnica dos aparelhos de Estado gerou alianas e a

    partidarizao da vida poltica. A interdependncia entre os quadros interno e externo

    deram origem a confederaes de Estados: econmicas, culturais, ideolgicas.

    As duas naes ibricas desenvolviam-se a ritmos diferentes, na economia, na

    alfabetizao, na conquista de lugar na economia-mundo. Palco de trusts econmicos, a

    Espanha aproximou-se do modelo alemo. A exploso econmica e demogrfica das

    periferias desenvolvidas forava ao compromisso poltico com o Centro (Madrid) como motor

    do nacionalismo e da coeso econmica e social, de que a alfabetizao em castelhano e a

    criao de um sistema escolar nacional, modernizado e de alcance obrigatrio, foram

    condio inadivel. Portugal distanciava-se. As taxas de alfabetizao, os investimentos

    pblicos nas ferrovias e na rede de estradas, a resoluo da questo fundiria, o equilbrio

    entre litoralizao e interioridade, apresentavam-se como desafios sistematicamente adiados.

    Com a Gerao de 70 e estando no horizonte a disputa entre socialismo e republicanismo, o

    iberismo ganhou novo significado.

    4. Entre os protagonistas de cada uma destas conjunturas cruzavam os partidrios da

    idealizao de naes progressistas e independentes, e os grupos mais receptivos ao iberismo,

    fosse por inevitabilidade poltica e econmica, fosse por idealizao de um modus vivendi

    confederado, convergindo num horizonte social e cultural de elevada qualidade, ou fosse to

    s para garantir um lugar digno e tranquilidade face concorrncia econmica das grandes

    metrpoles e ameaa geoestratgica dos imprios na hegemonia-mundo.

    Referindo-se Revoluo que teve incio no Porto, em 24 de Agosto de 1820, Julio

    Soares de Azevedo concluiu:

    no um movimento popular. No h nela uma participao activa e

    espontnea do elemento da populao, a que os nossos cronistas teimam em

    chamar arraia mida. No o povo, mesteirais e braceiros, homens das cidades e homens dos campos, que vai pelas ruas gritar a Liberdade e se

    coloca frente da manifestao.5

    E quando, no ms seguinte, a Junta do Porto chegou a Lisboa, prossegue este autor com a

    seguinte observao:

    5 Azevedo, J. S., Condies Econmicas da Revoluo Portuguesa de 1820 (2 ed.). Lisboa: Bsica Editora,

    1976, p. 167.

  • 5

    o povo no ia a S. Carlos entoar panegricos liberdade. Ocupava-se

    noutras manifestaes6. [Os governantes e os deputados eram]

    proprietrios, comerciantes, industriais, legistas: a burguesia () sobre a qual pesavam, principalmente, as consequncias da residncia real no

    Brasil e o desfalecimento da indstria e do comrcio.7

    A Revoluo de 1820, em Portugal, no teve um carcter social, mobilizando as

    camadas populares para a modernizao e o constitucionalismo. O desgnio poltico do

    constitucionalismo submergia na procura do retorno da prosperidade comercial e industrial e

    na reabsoro do Brasil. O jornal de Londres O Campeo Portugus, sado a 16 de Setembro

    de 1820, admitia que, dadas as circunstncias de momento, Portugal teria um de trs destinos:

    pas independente; unir-se ao Brasil; unir-se a Espanha8.

    Nas memrias e relatrios apresentados s Cortes Gerais, a necessidade e as

    virtualidades do progresso chegaram pela voz avisada de Borges Carneiro e de Fernandes

    Toms. Este ltimo advertia:

    Vs no ignorais, Senhores, que sem estradas os frutos e objectos de

    indstria so quase perdidos na massa geral dos interesses sociais, porque o

    transporte excede muitas vezes o valor das mercadorias.9

    A nacionalizao dos smbolos, da lngua e da tradio, a descrio da tradio e a

    construo da histria ptrias, replicando as iniciativas de outras naes, constituiu um

    desgnio para a primeira gerao romntica e liberal. Antes mesmo da Revoluo, o Morgado

    de Mateus tinha patrocinado a edio de Os Lusadas, sob argumento que no podia fazer

    cousa mais agradvel minha Patria, do que huma boa edio daquelle Poema, que he o

    maior monumento da gloria nacional10. Anos depois, Jernimo Soares Barbosa organizou uma edio anotada, destinada a fins escolares. Tinha assim lugar a reaco manifesta de

    nacionalizar a Epopeia e Cames, fazendo esquecer no tempo a edio monumental, de

    Manuel de Sousa, publicada em Madrid, no sculo anterior.

    No incio da segunda dcada do sculo XIX, haviam sado publicadas duas histrias

    literrias de Portugal, da autoria de Bouterwek e Sismondi, respectivamente. No entanto,

    quando, em 1826, Almeida Garrett desenvolvia um curso de Histria Literria de Portugal,

    advertiu que teve de encetar matria nova, porque aquelas histrias tinham erros. Referia-se

    sobretudo necessidade que sentiu de resgatar o elemento celta e contraditar a exclusividade

    da base latino-mediterrnica da Lngua Portuguesa.

    Em Espanha tinham lugar iniciativas semelhantes, tendentes determinao da raiz

    lingustica do Castelhano. Mas, relativamente a Portugal, quando, em 1870, Tefilo Braga

    redigia a Introduo a Histria da Literatura Portuguesa, de que era autor, no deixou de

    interrogar-se sobre como vencer a indiferena geral, numa terra aonde nada se estuda e nada

    se respeita11

    .

    6 Idem, p. 171.

    7 Ibidem, pp. 174-175.

    8 Apud Azevedo, op. cit., p. 186.

    9 Apud Azevedo, op. cit., p. 203.

    10 Apud Cunha, C., A Construo do Discurso da Histria Literria na Literatura Portuguesa do Sculo XIX.

    Braga: Centro de Estudos Humansticos/ Universidade do Minho, 2002, p. 168.

    11 Apud C. Cunha, idem, p. 169

  • 6

    5. urgncia de superar a indiferena, inclusive face ameaa externa, se referiu

    Almeida Garrett, em Portugal na Balana da Europa, obra publicada, em 1830, durante o

    exlio em Inglaterra e Frana. Abordando o que Portugal tem sido e o que lhe convm ser na

    nova ordem de coisas do Mundo Civilizado, proclamava:

    Assim estabelecida a liberdade, a liberdade verdadeira e real; e com esta

    condio no h que hesitar para os Portugueses na opo da proposta e

    forosa alternativa. Todos daremos o derradeiro sangue pela independncia

    nacional. Mas se a intriga estrangeira ajudada da traio domstica

    prevalecerem, e nos tirarem a condio sine qua non de nossa

    independncia, ou directamente destruindo a constituio, ou

    indirectamente anulando-a nos seus efeitos, como at aqui tm conseguido;

    ento relutantes e forados, mas deliberadamente resolutos, s nos resta

    lanar mo do segundo membro da alternativa, unir-nos para sempre a

    Espanha. (p. 320)

    Denunciava, deste modo, o temor das ameaas da Santa Aliana (ustria, Rssia,

    Frana), a que associava a inoperncia da oligarquia interna, pelo que no apenas expressava

    uma opinio muito positiva sobre o regime de repblica que os Estados Unidos da Amrica

    estavam a criar e de que o Brasil mais tarde ou mais cedo se aproximaria, como abria lugar

    ideia de federao.

    Aqui viria naturalmente o tratar o modo e condio com que a unio deve

    ser feita para que menos pesada e mais vantajosa nos seja. Mas a

    esperana, a querida esperana, que ainda nutrimos e afagamos de no

    serem constrangidos a essa extremidade, me arreda a pena do repugnante

    assunto. () Praza a Deus que no seja necessrio volver a ele! Mas se for, se a oligarquia nos obriga a queimar nos altares da liberdade o palcio da

    independncia nacional, faamo-lo com dignidade e prudncia; nem

    sacrifiquemos de nossa glria e nome antigo seno o que exactamente for

    indispensvel para evitar a servido. () Talvez uma Federao. () Mas suspendamos por ora todas as reflexes sobre este objecto

    12.

    Garrett sentia que a revoluo no tinha atingido a massa democrtica [o povo],

    pelo que esta no reconhecia o pendor ideolgico, nem estava em condies de avaliar o que

    defende. E, voltando-se para os responsveis da histria, proclamava: Para isso preciso

    ilustr-lo de palavra e obra. De palavra, por via de escritos prudentes e assisados, de escolas e

    instruo. De obra, fazendo-lhe ver e sentir em seus resultados a excelncia do sistema

    adoptado13

    .

    Nos anos imediatos, durante a Regncia, Mouzinho da Silveira converteu em lei a

    desamortizao e o novo quadro poltico e econmico. No perodo de Regncia, na Ilha

    Terceira, foram publicadas leis que integraram a alfabetizao na modernizao da

    administrao do Estado. Com o Setembrismo (iniciado em 1836), foi j o elemento pequeno

    burgus e popular que saiu rua, em defesa da Constituio de 1822 e da liberdade. Mas a

    ameaa de reposio do Absolutismo em Espanha e a instabilidade civil, entre partidrios da

    Carta e partidrios da Constituio, abriram lugar, em Espanha como em Portugal, ao poder

    moderado e consolidao do Estado, da sociedade burguesa e do governo centralizador.

    12

    Almeida Garrett, Portugal na Balana da Europa. Cartas ntimas. Do que tem sido e do que ora lhe convm

    ser na nova ordem de coisas do Mundo Civilizado (2 ed.). Lisboa: Crculo de Leitores, 1984, pp. 182-183.

    13 Serro, op. cit., p. 12

  • 7

    Com o afastamento do regente progressista, Baldomero Espartero (1840-1843), muitos

    liberais espanhis procuraram refgio em Portugal, onde encontraram eco nos manifestos

    contra Costa Cabral, que havia subido ao poder em 1842. Em 1844, quase em simultneo,

    houve sublevaes em Alicante (28 de Janeiro de 1844), em Cartagena (1 de Fevereiro de

    1844) e em Portugal (Torres Novas, 4 de Fevereiro de 1844). A Inglaterra estava apostada em

    retirar a hegemonia francesa na Pennsula Ibrica, instaurando o livre-cmbio, mas sempre

    que houve sublevaes em Portugal, acorreu a repor a ordem.

    As sublevaes e a revolta contra o governo Costa Cabral, culminando em 1846,

    levaram Costa Cabral ao exlio em Madrid, onde permaneceu a partir de Maio. Foi notria a

    sua simpatia pelo moderantismo espanhol, protagonizado por Gonzlez Bravo (1843) e

    Narvez (1844), e consignado na Constituio de 1845. De um e outro lado da fronteira, tinha

    lugar uma orientao poltica comum de fomento da economia atravs de obras pblicas,

    reforma dos municpios, reforma do ensino. Estava eminente uma aliana poltico-militar para

    conter o poderio ingls e tambm francs em Portugal.

    Os acontecimentos de 1848, em Frana, em Espanha e em Portugal, gerados em boa

    parte por exilados republicanos e progressistas, tiveram contudo desfechos distintos.

    Enquanto na Frana triunfava a revoluo, em Espanha e em Portugal, mantinham-se as

    monarquias e os governos centralizadores. Com a Reforma da Carta pelo Acto Adicional de

    1852, teve incio um perodo de acalmia poltica. S na dcada de setenta voltariam as

    alteraes da lei fundamental.

    6. Os trs perodos de agitao revolucionria europeia (1818-1825; 1830-1834; 1848-

    1851) envolveram Portugal e tiveram como resultado a consolidao dos ciclos de

    estatalizao e de nacionalizao na formao dos Estados-Nao. Abriram tambm a

    possibilidade de uma confederao dos Estados revolucionrios da Europa de Sul (Npoles,

    Piemonte, Espanha e Portugal). Por meados do sculo, estava em curso a generalizao do

    ecumenismo romntico e comeavam a alinhar-se as primeiras manifestaes de convergncia

    socialista no espao ibrico. Em 1812, fora proclamada a Constituio Liberal espanhola, em

    Cdiz. Reposto no poder, em 1814, D. Fernando comprometeu-se a cumprir a Constituio,

    mas acabou por destru-la. Em Agosto de 1820 formara-se a Junta Revolucionria do Porto,

    dando incio Revoluo Liberal, na sequncia da qual foi proclamada, em 1822, a

    Independncia do Brasil. Aps o Tratado de 25 de Novembro de 1825, ao contrrio da coroa

    espanhola, receosa da perda das suas colnias, D. Joo VI reconheceu o Brasil como Estado

    independente.

    Publicada no Brasil, em edio pstuma, a obra Memrias Historicas, polticas e

    filosficas da Revoluo do Porto em 1828 de Joaquim Jos da Silva Maia e, dos emigrados

    Portugueses pela Espanha, Inglaterra, Frana, Blgica, colocava Espanha do lado do poder

    absoluto. Editada por Emlio Joaquim da Silva Maia, a obra de Joaquim Jos da Silva Maia

    (que foi redactor de Imparcial) continha uma caracterizao detalhada da cidade do Porto e da

    influncia inglesa sobre as classes activas (comerciantes, capitalistas e homens de letras).

    Descrevia tambm o percurso dos exilados no interior de Espanha, particularmente os que

    seguiram pela Galiza at ao Ferrol de onde embarcaram para Inglaterra. Se bem que a opinio

    do autor sobre a posio de Espanha relativamente aos acontecimentos de 1828, no Porto,

    tenha sido formulada com base na convico de que a Corte de Madrid era partidria do

    absolutismo, denuncia alguns casos de perseguio aos contingentes de exilados em marcha

    pela Galiza.

  • 8

    A radicalizao entre absolutistas e liberais mantinha-se no ponto de ruptura. No incio

    da dcada de trinta ocorreu um movimento insurreccional contra o autoritarismo

    governamental.

    Um movimento insurreccional agitou, com efeito, a Espanha, nesta poca, e

    atingiu o ponto culminante a 12 de Agosto com a chamada revolta dos

    sargentos da Granja, no mesmo local em que se refugiara a Corte, revolta

    que obrigou a rainha a prestar juramento antiga Constituio de Cdis e a

    trocar por ela o estatuto real, em vigor desde 1834.14

    Em sentido contrrio, era convico que a rebelio de Lisboa (Vilafrancada), que

    ocorreu em 31 de Maio de 1831, viesse a pr cobro tambm revoluo liberal em Espanha,

    principalmente colaborando no cerco martimo praa de Cdis, primeiro foco e ltimo

    bastio do liberalismo na Pennsula, finalmente dominada, nos ltimos dias do ms de

    Agosto, aps encarniada resistncia15

    . Unidos pela ideia de federalismo ibrico, os exilados

    portugueses e espanhis fundaram em Paris o Club Democrtico Ibrico, tendo cerca de 400

    dos seus membros desfilado at ao Htel de Ville, aclamando a Revoluo de 184816

    .

    Os planos de conhecimento da realidade espanhola, federalismo ou unio eram

    simultneos. Em 1841, Antnio Feliciano de Castilho clamava em Revista Universal

    Lisbonense pela unio e conhecimento mtuo das literaturas peninsulares. Mais tarde, a

    Revista Popular fazia permuta com duas revistas publicadas em Madrid: o Semanrio

    Pitoresco e a Ilustracin. Em 1849 foi publicado, em Badajoz, El Frontero, revista literria de

    Espanha e Portugal. Seguiu-se-lhe Revista del Mediodia, em que escreveram Rebelo da Silva,

    Lopes de Mendona, Lobo de vila, Barbosa e Silva, etc.

    Desde o Outono de 1851 que a Sociedade de Instruo dos Operrios,

    criada em Coimbra pelo visconde de Ouguela e pelo Dr. Filipe de Quental,

    institura cursos de instruo primria e secundria; pois logo no 1 curso,

    alm da leitura e da escrita, se ensinavam os princpios gerais de geografia

    com especialidade a da Pennsula17.

    Segundo Victor de S, os partidrios do iberismo dividiam-se entre federalistas

    (socialistas que defendiam uma federao de preferncia republicana) e unionistas que

    defendiam a unio dos dois pases, sem qualquer condio poltica. Henriques Nogueira, na

    introduo a Estudos (1851), escreveu:

    Quisera que Portugal, como povo pequeno e oprimido, mas cnscio e zeloso

    da sua dignidade, procurasse na federao com os outros povos

    peninsulares a fora, a importncia e a verdadeira independncia que lhe

    falta na sua escarnecida nacionalidade.18

    Casal Ribeiro, em carta datada de 4 de Outubro de 1851, afirmava: a unio

    peninsular no possvel, no pode ser espontnea e pacfica, lgica e racional seno sob a

    forma de repblica federativa19

    . O socialista Pedro de Amorim Viana preferia a unio

    14

    S (1978, pp. 98-99).

    15 Idem, p. 68

    16 Idem, p. 286

    17 Carvalho, J. M., Apontamentos para a Histria Contempornea, Coimbra, 1888. Apud S (1976, p. 212).

    18 S (1978, p. 286).

    19 Idem, p. 286.

  • 9

    ibrica sujeio a Inglaterra: Prefiramos a unio ibrica transfuso da raa britnica20

    .

    Os meios de propagao de ideias, arbitrando entre iberismo e iberismos, ganhavam novo

    dinamismo. Em Dezembro de 1851, foi publicada em Lisboa a memria espanhola A Ibria,

    proclamando fraternidade, igualdade, unio, entre Portugueses e Espanhis e propondo a criao da nao ibrica.

    Em Portugal no circulavam livros espanhis, e em Espanha no estava venda um

    nico livro portugus. Foi com a Gerao de 1852 que passou a ser regular o intercmbio com

    Espanha e teve lugar uma aproximao cultural, consubstanciada na Revista A Pennsula, cujo

    nmero 1 foi publicado no Porto, em Janeiro de 1852. Publicado regularmente entre 1852/53,

    o peridico A Pennsula abriu uma nova fase no conhecimento sobre Espanha em Portugal,

    informando sobre a literatura espanhola e o grau de desenvolvimento que alguns ramos da

    cincia social ali tinham atingido. No n 21 (8 de Junho de 1852), Ribeiro da Costa, autor de

    um artigo Sobre as Relaes Literrias de Portugal com a Espanha lamentava: Em Portugal no h um s livro moderno espanhol impresso em alguma tipografia espanhola. O

    que sabemos e o que podemos haver da literatura e cincia modernas de Espanha devemo-lo

    s edies francesas21

    . Tambm segundo um relatrio apresentado ao governo por um

    professor universitrio de Coimbra no mesmo ano de 1852, nas lojas de livros de Espanha

    no se encontra venda um s livro portugus, nem os homens lidos tm conhecimento das

    obras modernas de Portugal, e mesmo das antigas apenas conhecem poucas22

    .

    Foi a partir da gerao de 1852 que comearam os contactos regulares na aproximao

    cultural dos dois povos peninsulares. A Gerao de 70 abriu ao positivismo e encetou um

    discurso contra o Krausismo. Enquanto os espanhis se abriram ao krausismo e ao

    proudouninismo, os socialistas portugueses revelaram-se mais sensveis aos falanstrios de

    Fourier. Por contraponto, os republicanos deram novo alento ao entendimento ibrico. A

    partir de ento, o federalismo ibrico passou a estar intrinsecamente ligado ao republicanismo.

    7. Na primeira metade do sculo XIX, os acontecimentos polticos de Portugal e de

    Espanha tiveram lugar nos mesmos perodos e orientados em sentidos idnticos. No entanto,

    transversalidade das datas e dos eventos, contrape-se a singularidade dos contextos e dos

    efeitos. Uma vez assegurada a superintendncia da Universidade de Coimbra sobre a cultura e

    a instruo, a legislao promulgada por D. Joo VI foi no sentido de valorizao das

    Provncias. Tambm em Espanha o Provincialismo surgia como alternativa oposio entre

    centralizao e federao.

    Na primeira metade do sculo XIX, o quadro ibrico manteve-se indefinido entre

    provincialismo e federalismo, ainda que a primeira viso tivesse sido mais bem acolhida pelos

    independentistas portugueses e pelos integralistas espanhis. De um e outro lado da fronteira,

    a legislao sobre a instruo pblica foi orientada no mesmo sentido: submeter a Escola a

    uma normalizao, que em Portugal foi mais dependente do Estado e ficou associada

    estatalizao e, em Espanha foi mais dependente da Igreja Catlica e ficou associada

    nacionalizao; criar condies para a universalizao da alfabetizao em lngua nacional;

    modelar o exerccio da aco docente; fomentar a criao e edio de livros didcticos. A

    instruo elementar mantinha-se distinta do ensino liceal e do ensino tcnico-profissional. Na

    20

    Idem, p. 287.

    21 Apud S (1978, p. 214).

    22 Idem, p. 215

  • 10

    instituio de um currculo escolar nacional, a histria ptria narrada em lngua verncula e a

    gramtica passaram a ter um lugar de relevo.

    Em Espanha, onde a escolaridade obrigatria tinha sido decretada pela constituio de

    1824, por meados do sculo, era intenso o processo de alfabetizao em lngua castelhana.

    Em Portugal, Almeida Garrett, liberal e principal figura do romantismo portugus,

    pronunciando-se sobre a orientao do sistema escolar, proclamou que a educao ou

    nacional ou despe-se de sentido. Ficou a dever-se ao poeta Antnio Feliciano de Castilho, a

    criao de um Mtodo de Alfabetizao em Lngua Portuguesa, o Mtodo Portuguez, bem

    como a sua organizao didctica sob a modalidade de compndio.

    As duas principais reformas para a Instruo Elementar em Portugal, foram a de 1835,

    assinada por Rodrigo da Fonseca Magalhes e a de 1844, assinada por Costa Cabral.

    Consistiram, fundamentalmente, na instituio da escola como sede de alfabetizao em

    lngua portuguesa; na paroquializao da rede escolar; na fixao de um programa e de uma

    pragmtica estruturada pela escrita caligrfica; na municipalizao do agenciamento escolar;

    na normalizao do perfil do professor primrio. A Reforma de 1844, alis, foi j uma

    reforma integrada dos vrios segmentos de ensino e tornou obrigatria a frequncia escolar. A

    reforma de 1836, assinada por Passos Manuel, estruturou e nacionalizou o ensino liceal. A

    escolarizao do ensino profissional, tcnico, agrcola, comercial, e sua insero no plano

    geral da instruo pblica, foram objecto do normativo legal de 1852, assinado por Fontes

    Pereira de Melo.

    Com a transferncia do Conselho Superior de Instruo Pblica para Lisboa, passando

    a funcionar junto da Secretaria do Reino, no s a Universidade de Coimbra perdeu a

    prerrogativa de coordenao do ensino nacional, como teve lugar uma nacionalizao do

    sistema escolar, em estruturao. Correlativamente, estava em organizao uma inspeco de

    mbito nacional. A legislao de 1866, fixando as normas sobre programas, desempenho

    profissional, construo e aprovao de edifcios escolares e abrindo lugar iniciativa de

    privados e cooperao com o Estado e com a esfera pblica, em matria de alfabetizao e

    de escolarizao, consagrou a nacionalizao do sistema escolar. Nesse quadro legislativo de

    abertura ao capital privado, gerido e aplicado em conformidade com os regulamentos do

    pblico, se integra o legado do Conde Ferreira, benemrito pblico, falecido naquele mesmo

    ano e que deixou uma verba destinada construo de escolas pelo todo nacional.

    A escola pblica em Espanha, que, no que se refere instruo primria, foi

    normalizada por dois Regulamentos de aplicao nacional (Plan y Reglamento de las escuelas

    de primeras letras, de 1825, e Reglamento de escuelas, de 26 de Novembro de 1838, ainda

    em vigor no incio do sculo XX), foi um elemento estruturante da modernizao23

    . A gnese

    e a primeira configurao do sistema educativo foram as manifestaes mais notrias do

    impulso reformador do primeiro liberalismo, entre 1834 e 1857-5824

    . A partir de 1834 foram 23

    Es evidente que la implantacin de la escolaridad comporto el take off de una nueva cultura, la escolar, en la

    que la definicin de los tiempos en los planos emprico, acadmico y normativo constituy un aspecto esencial que afectaba a la redefinicin de la infancia y a la invencin de nuevas reglas de gobernabilidad del

    orden institucional de la educacin formal con amplias repercusiones en las relaciones de los sujetos sometidos a

    las nuevas disciplinas con los contextos sociales en que construyeron sus propias identidades narrativas

    (Escolano Benito, A., La Invencion del Tiempo Escolar. In Fernandes, R. & Mignot, A. C. V., O Tempo na

    Escola. Porto: Profedies, 2008, p. 52-53).

    24 A colectnea Historia de la Educacin en Espaa: Textos y Documentos apresenta a seguinte periodizao:

    Tomo I, Del Despotismo Ilustrado a las Cortes de Cdiz; Tomo II, De las Cortes de Cdiz a la Revolucin de

    1868. Cf. Historia de la Educacin en Espaa: textos y documentos. 2 Tomos (2 ed.). Madrid: Servicio de

    Publicaciones del Ministerio de Educacion y Cincia.

  • 11

    criadas comisses de instruo primria provinciais, de partido e locais; a partir de 1835,

    institutos de ensino secundrio; a partir de 1838, escolas de meninos; a partir de 1839, escolas

    normais para mestres. Em 1846, foi criada a Direco Geral de Instruo Pblica; em 1849, o

    corpo de inspectores do ensino primrio; em 1858, escolas normais para mestras. A

    Universidade Complutense foi transferida de Alcal de Henares para Madrid, em 1836,

    passando a assumir o estatuto de Universidade Central. Em 17 de Setembro de 1845, foi

    apresentado o plano Pidal que articulava o sistema educativo. Com base nesse Plano, em 9 de

    Setembro de 1857, foi apresentada a Ley de Instruccin Pblica, tambm conhecida por Ley

    Moyano. O impulso reformador de teor centralista, uniformizador e que foi interrompido no

    perodo subsequente, reflectiu um progressivo recuo do laicismo face Igreja. Em 1851, foi

    assinada a Concordata, pela qual a Igreja Catlica poderia inspeccionar o ensino pblico e

    privado25

    . Entre 1868 e 1874, houve um esforo reformador, assinalado, entre outros

    aspectos, pela proliferao de institutos livres criados pelos municpios. O impulso de

    inovao prolongou-se pela fundao, em 1876, da Institucin Libre de Enseanza e criao

    dos primeiros jardins-de-infncia; pela criao do Museo de Instruccin Primaria, em 1882;

    pela introduo das colnias escolares (1887). No obstante este movimento, as taxas de

    analfabetismo mantinham-se elevadas. Num e noutro dos pases ibricos, na sequncia da

    estatalizao que assinalou a ruptura do Antigo Regime, foram desencadeadas movimentaes

    polticas e sociais de constituio da escola nacional e de uma cultura escolar nacionalista. Por

    meados do sculo, estava em curso uma alfabetizao escolar nas lnguas nacionais,

    organizada por cartilhas maternais e estavam em aprovao leis gerais integradoras dos

    distintos segmentos de ensino.

    8. As reformas sobre a educao, visando a formao de sistemas escolares integrados e

    de alcance nacional, sucederam-se no decurso da primeira metade do sculo XIX. Em

    Portugal e em Espanha, houve aspectos estruturais comuns e a alfabetizao escolar tornou-se

    uma prioridade. Por meados do sculo, as taxas de alfabetizao eram muito semelhantes nos

    dois pases. Num e noutro, estavam aliceradas as bases e as estruturas dos sistemas escolares

    nacionais; todavia, nas dcadas seguintes, o avano em Espanha foi notvel. Nacionalismos e

    Iberismo, reconfigurando-se, sofrendo avanos e recuos, indexados a diferentes grupos e

    obedecendo a orientaes poltico-ideolgicas elas prprias variveis, foram dois movimentos

    presentes na primeira metade de Oitocentos.

    A formao dos sistemas escolares foi, no entanto, determinante no abono dos

    nacionalismos, no apenas na consagrao das distintas lnguas maternas, como criando e

    aplicando um currculo escolar de progressiva diferenciao. Nesse sentido, a histria e o

    patrimnio etnogrfico e literrio foram fortalecidos como factores de identidade. Os

    Lusadas, que, com Manuel de Sousa Faria, tinham sido elevados a Epopeia Ibrica, foram

    adequados didctica escolar, no mbito da nacionalizao do currculo em portugus.

    Viao Frago que sistematiza a parte mais significativa da informao histrica, abordando La Educacin en la

    Espaa del siglo XX. Un anlisis diacrnico, estabelece a seguinte periodizao: La situacin heredada (1800-

    1900), em que salienta o movimento reformador liberal de meados do sculo XIX e as transformaes das

    dcadas de setenta e oitenta; Los incios de la renovacin y modernizacin educativa (1900-1931); La II

    Republica (1931-1939) y el exlio republicano; La dictadura franquista y los aos de la transicin (1936-

    1977); La restauracin democrtica (1977-2000) (Viao Frago, Escuela para Todos. Educacin y

    Modernidade n la Espaa del Siglo XX. Madrid: Marcial Pons Historia, 2004: 15-130).

    25 Cf. Fernndez Soria, Educar en Valores. Formar Ciudadanos. Vieja e Nueva Educacin. Madrid: Biblioteca

    Nueva, 2007, p. 61.

  • 12

    O binmio soberania-nacionalismo sobreps-se ao iberismo, frequentes vezes negado

    pelas rivalidades ou comprometido pela poltica de alianas, internas e externas ao espao

    peninsular. No s, face intruso absolutista em nome da uniformidade do regime, foram

    organizados movimentos poltico-ideolgicos de tendncia socialista e federativa, como, face

    inoperncia das transformaes polticas e debilidade econmica, os sectores mais

    esclarecidos se viram forados a admitir a possibilidade de uma federao ibrica, tendo

    alguns outros chegado a antever o regresso unio ibrica. At Revoluo Liberal, tinha

    permanecido um grande desconhecimento das culturas, das tradies e das polticas de um e

    outro lado da fronteira entre Portugal e Espanha. O silncio instaurado com a Restaurao da

    Independncia veio a ser quebrado com a dominao napolenica e posteriormente com a

    Revoluo Liberal, cuja consolidao ficou intrinsecamente associada nacionalizao da

    cultura escolar e constituio de sistemas escolares nacionais.

    A abordagem da primeira metade de Oitocentos foi assim o pretexto para revisitar de

    forma breve os conceitos de romantismo, liberalismo, republicanismo, iberismo, socialismo.

    Foi de igual modo o motivo para ordenar, no binmio modernizao/ sistema escolar, trs

    geraes assinaladas pela mobilidade, mas distintas pela tnica de afectao: estrangeirados,

    exilados, emigrados. A cada uma ficou a dever-se uma orientao distinta: herdeiros da

    estatalizao, os primeiros, entre os quais se distinguiu Mouzinho da Silveira, procuraram

    aplicar ao Portugal Liberal uma soluo importada (anglfona ou francfona); os segundos,

    liberais e romnticos, entre os quais se distinguiu Almeida Garrett, ficaram responsveis pela

    nacionalizao cultural e escolar, apostados que estavam em encontrar um lugar e um

    caminho para Portugal no quadro das naes liberais e progressistas; os terceiros, entre os

    quais pode referir-se o Conde Ferreira, aplicaram os seus capitais por forma a viabilizar as

    principais reformas regeneradoras, que se mantinham adiadas.