NA CASA DA VÓ PEQUENA E OUTROS CONTOS MÃE me resignar, a vida é 3 assim, mas é triste a vida ser...
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1
NA CASA DA VÓ PEQUENA E OUTROS CONTOS
MÃE
A lua transpassava o vidro da janela e iluminava o lençol que cobria Rafaela
salpicando-o de sombras. Sapos coaxavam. Do compartimento vizinho, vinha um ronco, um
roncar de velho que tinha qualquer coisa de relaxado no sentido de descuidado e de sujo.
Dispusera-se a dormir aquela noite na casa do Boé, em vez de no acampamento, em
uma atitude de boa vontade. Achava que deveria deixar de lado suas feridas e pensar nas
feridas dos outros. Laura, sua mãe, coitada, sempre deprimida, não soubera escolher seu
segundo marido.
Boé não era um bandido. Trabalhava na sua propriedade rural, cuidava da filha que
tivera em seu primeiro casamento e que agora tinha em sua mãe uma boa madrasta. Mas...
Boé não prestava atenção na fala dos outros. E não era só com ela. Com Laura também.
Resmungava. Não dizia uma frase inteira.
- Boé não é de todo ruim – murmurou, enquanto ajeitava a cabeça no travesseiro.
A despeito do tom amistoso que empregara ao falar com ele no jantar, não estivera a
vontade. Em inúmeras oportunidades, olhara disfarçadamente para seu rosto procurando
adivinhar quem era aquele homem velho com rosto de pescador, que não conseguia se manter
sentado por mais que cinco minutos. Que levantava e caminhava até o quarto, até a cozinha,
abria um armário, resmungava algo inaudível e voltava a sentar-se. Continuava indefinida:
tratá-lo por Boé ou por senhor Boé? “Maria Eduarda trata minha mãe por Laura. Portanto, vou
chamá-lo por Boé”.
Rafaela bocejou. Por que alguém que não era de todo ruim lhe provocava tanta
antipatia? Precisava parar de pensar e dormir, amanhã à tarde começaria a atender no
acampamento.
Mas, e a Maria Eduarda, o que pensar dela? Sempre a via usando os cabelos presos por
uma travessa e por uma fita vermelha. De nariz arrebitado, era tão inquieta que, ao sentar-se à
mesa, quebrara um copo. “Com dez anos já deveria ter se acalmado”, criticou. Laura, no papel
de madrasta, durante todo o jantar ia afastando dela ora um prato, ora o vidro do vinagre, ora a
farinha de mandioca.
Rafaela acabou pegando no sono.
2
Pela manhã, as vozes do campo a acordaram. Vestiu-se com a simplicidade de sempre:
calça e jaqueta jeans. Nunca usava vestido nem nada que pudesse realçar sua beleza de
mulher jovem, magra, de olhos verdes. Temia ser assediada por algum paciente. E recém-
formada, não tinha experiência para lidar com esses possíveis inconvenientes.
Antes do café, ajudou sua mãe a ordenhar as vacas. Depois, caminhou com ela até uma
pequena cachoeira que havia na propriedade. De volta à casa, enquanto sua mãe preparava o
almoço, brincou de pegar com Maria Eduarda.
À mesa, a cena repetiu-se: sua mãe afastou o prato do feijão da menina, a garrafa com
água... Lembrou-se de cena semelhante que deveria ter acontecido quando ela era pequena e
também inquieta. Teve vontade de perguntar para a mãe, mas achou melhor calar. A presença
do Boé a inibia, isso era certo, mas havia algo mais. A inquietude da menina dificultava
qualquer conversa, isso também era um fato. Havia algo pior... não sabia bem... o olhar da
mãe?
O Boé tinha parte nisso. Ah! Tinha sim. Quando começava a falar com sua mãe, Boé
resmungava ou até mesmo levantava da mesa e ia à cozinha onde abria e fechava
ruidosamente a porta de algum armário. E a mãe se calava e olhava para um talher, para a
janela, para outro talher, retirava a farinheira das mãos da Maria Eduarda... E Boé voltava à
mesa. E resmungava. E mastigava de boca aberta.
A mãe não era a mesma de antes. Não, não era. Estava envelhecida, ainda mais magra
do que sempre fora. Mas seus cabelos loiros pareciam bem tratados, seus olhos pareciam ter
um pouco mais de vida. Estava melhor da depressão. Aliás, enquanto estavam tirando leite
das vacas, sua mãe fez questão de mostrar-se disposta. Antigamente, acordava em um
desânimo aterrador que só passava pela tarde.
- Nunca estive tão bem da depressão. Boé paga para mim tratamento com médico
particular e compra remédios bem caros.
Rafaela pensou em dizer que, se fosse hoje, seu pai também teria alcançado o mesmo
sucesso com ela. Os tratamentos melhoraram. Mas não disse nada. Não se julgava mais no
direito de conversar coisas assim com ela. Há anos não se falavam intimamente. E de que
adiantava os olhos dela terem um pouco mais de vida? De que adiantava?
Que tristeza de perceber que... “passou, sim, a relação com minha mãe passou”.
Antigamente, contaria a ela o que estava a fazer no acampamento dos sem-terra. Que quando
um médico se forma tem de aceitar qualquer emprego, mesmo que temporário, mesmo que
atendendo pessoas que não escolhera atender. Não, não teria o menor sentido. “Nada de
minha vida atual pode ser contado com naturalidade para a mãe. Devo me resignar, a vida é
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assim, mas é triste a vida ser assim. Que pena...” suspirou, enquanto ajudava a lavar a louça
do almoço.
Por que sua mãe falava tanto e até ria com a menina inquieta, enquanto com ela, sua
filha legítima, era tão grave, tolhida, tão... tão constrangida? Vendo Boé a andar inquieto pela
cozinha, impulsivamente perguntou:
- Minha presença incomoda?
- Os sem-terra! Os sem-terra!
A mãe deu alguns passos apressados. Parou de repente. Rafaela percebeu que, de
soslaio, ela a espiava. Não entendeu se era olhar de recriminação ou olhar de medo.
Reconhecia ter errado em dizer “minha presença incomoda”. Fizera uma afirmação, não uma
pergunta. Mas e o Boé?! Sua propriedade era pequena para se incomodar com a proximidade
do acampamento. Se alguém devia estar aflita com os sem-terra era ela. Como seria recebida
por eles? Em que condições iria atendê-los?
- Mãe, eu já vou – disse sem olhar para ela.
Em passos rápidos, entrou no quarto. Alisou o lençol, deu umas batidas no travesseiro,
rapidamente colocou suas roupas na mochila e, ao sair do quarto, percebeu que o motor da
camioneta já estava ligado.
Boé dirigiu calado, como um motorista alheio às conversas. Laura, sentada na frente,
ao lado dele, virava a toda hora o rosto risonho para trás em direção à menina inquieta sentada
ao lado de Rafaela.
Quando já se encontravam próximos, Rafaela pediu para descer. Gostaria de caminhar
um pouco e sua mochila não pesava. Na verdade, não suportava mais o saltitar da menina
inquieta e a direção em que invariavelmente sua mãe voltava o rosto.
Quando desceu carregando sua mochila, o rosto de sua mãe, pela primeira vez, tomou
claramente sua direção. E quando a camioneta começava a mover-se, o olhar tímido,
preocupado, bondoso que aquela envelhecida mulher lhe lançou pela janela a fez ter a
sensação de que estava, sim, se despedindo de sua querida mãe. Teve vontade, imensa
vontade, de colocar-se de novo na direção do olhar da mãe. Mas a camioneta já ia longe.
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PROFESSOR
O vento entrava ziziando pelas frestas das janelas e o rumor do mar, dali de cima,
pouco se ouvia. Enquanto Professor completava os cálices com licor, Roberta observava. Da
sala onde estava se seguia a cozinha, sem divisão. Nas paredes, muita madeira. E havia uma
lareira. E alguns nós de pinho.
Com o cálice na mão, Roberta sentou-se no banquinho do piano e por sobre sua longa
cauda viu as luzes de um navio.
- Lembra desse texto da Leyla Perrone-Moisés? – Professor folheava um pequeno
livro. - “A lição de Barthes: ‘Eis o que eu fiz, isto não é para ser refeito pois já está feito; mas
o fato de que eu tenha feito prova que é fazível’”.
- Professor, tudo o que você construiu como psiquiatra me provoca um...
Roberta depositou o cálice sobre o piano.
- ...um tranquilo desafio.
Voltou a pegar o cálice. Bebeu o licor de um gole só e permaneceu mirando o fundo
vazio do copo.
- Nos anos que aqui passei sob sua orientação, duas vezes estive com Pierre.
Almoçamos os três, lembra?
- Roberta... além de Pierre, gostaria que você tivesse sido minha filha.
- Deveria ter vindo visitá-lo mais vezes. Muitas vezes.
Roberta contraiu a testa. O copo caiu de sua mão. Bateu no chão. Não quebrou.
- Sei bem Roberta o quanto a psiquiatria nos tira de tempo. Quando eu ainda
trabalhava, também não tinha tempo para visitar ninguém.
Roberta pegou o copo do chão e voltou a olhar seu fundo vazio. Professor seguiu em
silêncio sua leitura.
Era madrugada quando Roberta acordou. Vestiu calça jeans, blusa de linha, tênis e
saiu pela porta da frente. Ventava. Roberta distinguiu o vulto das árvores que subiam o morro
à sua direita e eram jogadas para um lado e para outro.
Debruçou-se no parapeito do viaduto. O ruído intermitente dos motores competia sem
vitória com seus pensamentos. Talvez fosse melhor não ter vindo. A presença do Professor,
comprovara hoje mais uma vez, aplacava sua recorrente sensação de solidão. Vir e ver com os
próprios olhos que a vida do Professor estava finalizando...
Uma buzina forte a fez voltar a perceber os carros passando sob o viaduto.
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Era dia quando retornou. Encontrando seus brincos na cômoda do banheiro, optou
pelos pequenos de pedras verdes. No café, o Professor tentou assobiar uma música. Riram.
O sol, atravessando a vidraça, aquecia as pernas de Roberta. Sobre a mesa, vários
livros. Do outro lado dela, um homem com rugas no rosto bem barbeado, fios brancos na
sobrancelha, camisa de mangas compridas branca, com listras de um azul bem clarinho.
Por três anos encontrara-o regularmente. Professor, que se reunia com seus
orientandos a cada mês, recebia-a semanalmente e até mais vezes. Algo os aproximava. Certa
vez descreveu-a enaltecendo seus olhos verdes, seu corpo com medidas certas, palavras dele,
seu rosto sério e suave, seu jeito de vestir quase sempre roupas folgadas. Mas foi só essa vez.
Aprendera com ele algo que não sabia nominar, algo vinculado ao silêncio entre duas
pessoas.
- Roberta, vamos caminhar.
A temperatura estava amena e havia pouco vento.
- Será mesmo flor de lótus? – duvidou Roberta.
- Não tenho certeza. O botão tem formato de coração. Buda, quando andava, deixava
atrás de si pegadas de lótus. É o que diz a lenda.
Contemplavam um recanto com flores, protegido dos ventos do mar pela parede da
casa e por um muro construído, provavelmente, para tal fim. “Mesmo assim”, pensou
Roberta, “creio ser difícil uma flor de lótus resistir por aqui. E estas pedras? Parecem pedra-
pau”.
Sentaram em um banco com a intenção de admirar o mar, mas ele refletia muita luz.
Roberta percebeu Professor jogar uma pedra de encontro a uma rocha.
- Som de sino! Experimente você – sugeriu ele.
Roberta percebeu a falta de força do Professor. Jogou uma pedra.
- Som de sino... – balbuciou.
Erguendo um pouco a voz, comentou:
- Após a morte de um filho... difícil seguir vivendo
- Quase impossível, Roberta, quase impossível.
- Essa noite, perdi o sono. Fiquei um bom tempo sobre o viaduto. Os carros que
passavam embaixo dele... me levaram para longe...
- Saudades?
- Me levaram para longe no tempo... Para o tempo em que uma ou mais vezes na
semana ficávamos juntos...
6
Desceram a passos lentos, muito lentos, o caminho que levava ao viaduto.
As árvores que subiam a montanha, bem pintadas de verde, pareceram, naquele
momento, alegres ao olhar de Roberta. Quando alcançaram o viaduto, debruçou-se no
parapeito. Algo naquele velho professor a atraía. Um afeto que não sabia definir. Um pai que
queria ter tido? Um avô? Um amigo íntimo? Alguém que a tirasse daquela sensação de
solidão existencial comum a quem reflete e percebe o quanto a vida é uma aventura única,
solitária e breve?
Mesmo sob o ruído intermitente dos motores que passavam por baixo do viaduto,
Roberta conseguia se concentrar no Professor e em seu silêncio.
Subiram lentamente o caminho em direção à casa.
Sentada em uma pedra junto ao abismo, Roberta olhava fixamente para além do
horizonte do mar. Por vezes, o oceano se transmudava em luz, apenas luz.
- O dia está bom de descer pelas pedras e de sentir a força das ondas vindo de encontro
às rochas – assegurou Professor.
Dia claro. Mar azul. Nenhum barco no horizonte. As ondas estavam pequenas, mesmo
assim havia alguma arrebentação lá embaixo, o que fazia o branco das espumas contrastar
com o escuro das rochas.
Roberta viu a cruz: ora aparecia inteira, ora desaparecia parcialmente sob as ondas.
Completaram a descida. Professor respirava com dificuldade. O dia estava muito claro, tudo
tinha muita cor, mas ali embaixo, próximo da cruz, Roberta enxergou as pedras muito pretas e
sentiu frio.
- Fixei-a em dia de maré baixa. Aliás, quando Pierre morreu a maré estava bem mais
baixa. Ficou exposto ao sol... Fixei a cruz sozinho.
- Depressão pela esquizofrenia? – perguntou Roberta.
- Acho que percebeu as perdas irrecuperáveis... nunca mais teria namorada, trabalho
regular, criatividade... perdeu a esperança, se jogou.
- Sem esperança...- suspirou Roberta.
- Sempre temi por Pierre. Mas quando aconteceu fiquei surpreso como se não soubesse
do risco que corria.
Professor apontou para uma pedra um pouco saliente.
- Pièrre ficou exatamente aqui. Estirado, quase sentado. Braços largamente abertos.
Rosto voltado para o céu. O tempo todo permaneceu fora da água e veja que só o encontrei na
madrugada da segunda noite.
- Segunda noite?! – espantou-se Roberta.
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- Já fugira de casa algumas vezes. Depois, retornava. Achei que era mais uma... Mas
naquela noite, um pesadelo me fez pular da cama. Desnecessariamente trouxe a lanterna. O
luar iluminava seu rosto.
- Havia estrelas? – perguntou por perguntar pois não sabia o que dizer.
- Sim, uma pequena luz no céu o acompanhava. Quis acreditar que... uma pequena luz
no céu...
- Pierre gostava das estrelas? – intrometeu-se Roberta cada vez mais sem saber o que
dizer.
- Assim como eu. Algumas vezes, nós as admirávamos juntos. E eu dizia que aquelas
pequenas luzes eram os meus olhos a zelar por ele.
Roberta percebia que suas perguntas eram superficiais, que estava cada vez mais
ansiosa e com vontade de sair logo dali.
- Em qual dessas pedras descansava sua cabeça? – perguntou de forma mecânica.
- Nesta pedra. Não parece um travesseiro?
- Parece sim.
- Seu corpo estava intacto, como se fosse um náufrago cansado, recuperando-se das
braçadas.
Roberta desviou o olhar para a direção do mar. As ondas lhe pareceram bem mais
agitadas. A cruz... não lhe estava fazendo bem a cruz...
- Consegui fixar essa cruz sozinho. Usei uma britadeira. Enterrei fundo. Bastante
cimento. Hoje, cansado como ando, não conseguiria. Inclusive não sei por quanto tempo vou
conseguir continuar morando sozinho. Cuidado! Você vai bater nas pedras! – gritou Professor
em direção a um barco que se aproximava.
- Afaste-se! Existem pedras encobertas! – gritou Roberta.
O barco se afastou.
Começaram a subir. Quase no alto, preocupou-se com o cansaço do Professor.
Entraram na casa, sentaram nos sofás da sala. Roberta esperou Professor recuperar o
fôlego e só então comentou.
- Professor... a descida, a cruz, senti um sentimento... uma mistura de tristeza com
angústia. Professor, não sei se senti ciúmes de ver o seu zelo por Pierre ou se foi a morte...
assim tão... tão...
– Pierre permaneceu por duas noites com o rosto voltado para a pequena luz... –
Professor pareceu não ouvi-la. - Talvez, além dela, outras estrelas, em um ou outro momento,
tenham lhe feito companhia.
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Ao perceber a mão dele sobre sua testa, a ansiedade e a tristeza que sentia diminuiram.
Um carinho de poucos segundos, logo Professor retirou-se para o quarto. E dele permaneceu
um perfume suave.
No lusco-fusco do fim de tarde, Roberta caminhou em volta da casa. Viu o mar sumir
com o escurecer e deixar como vestígio de sua existência o ruído duro e repetitivo do bater
das ondas nas pedras do abismo.
Naquela noite, custou-lhe dormir. De madrugada, acordou com um sonho ruim:
pregava um prego na parede para dependurar um quadro e, após uma batida um pouco mais
forte, a parede começou a desabar.
Vestiu o chambre e foi até a sala do piano. Escorada no vidro da grande janela que
dava para o abismo, viu no horizonte do mar uma luz solitária e titubeante.
Na sua infância, havia uma brincadeira que revelava a fragilidade de Roberta: a da
cadeira de menos. “Quando a música parava, a gente que rodava em torno das cadeiras
sentava-se na primeira que encontrasse. Uma boba, em pé, sobrando, riram de mim. Não era
só cadeira que eu não tinha... era família”.
Roberta esfregou as pálpebras com os dedos e deitou no sofá.
Um trinado longo a fez acordar. Entristeceu-se ao imaginar um pássaro voando
solitário por sobre o abismo.
Sentou no banquinho do piano e começou a movimentar as teclas com os dedos.
Depois, escorou o corpo no piano, deitou o rosto sobre ele, fechou os olhos. De vez em
quando, acionava uma tecla. Quando o fazia com vigor, sentia um leve tremor na face em
contato com a madeira, uma suave, gostosa massagem.
Roberta saiu da casa quando o dia principiava a vencer a noite. Levava sua pequena
bagagem. Deveria ir assim... sem se despedir? Antes de tomar a direção do viaduto, algo a fez
dar alguns passos no sentido do abismo. O zunir do vento por entre as pedras a fez lembrar do
som de sino. Jogou uma pedra e errou. Também, com os olhos daquele jeito cheios de
lágrimas... Roberta, em passos lentos, deixou para trás as árvores que subiam o morro. Nem
viu o quanto elas balançavam forçadas pelo vento.
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EM UM VAGÃO DE OSTRAS
- Tudo começou com um medo terrível. Durante um trabalho, entrei em pânico. Me
chamo Giovanni...
Fez sinal com a mão pedindo tempo. Milton aproveitou para observá-lo: rosto fino,
sobrancelhas retas, olhos castanho-escuros, um metro e oitenta talvez. Achou-o parecido
consigo. Ou melhor, com o Milton das fotos de quando tinha vinte anos.
- Ansiedade...ela vem... vai... eu sofro... está passando. Tenho ansiedades muito piores
que esta de agora, insuportáveis. Parece que vou morrer. Do General Practice que consultei
em Londres, omiti informações muito importantes. Ele deve ter errado o diagnóstico e o
tratamento.
- Omitiu informações?
- Sim... ele me denunciaria à polícia. Uma noite em um avião... aqui no Brasil posso
falar a verdade e, finalmente, me curar. Não suporto mais viver assim. Tudo começou na
minha primeira missão há pouco mais de meio ano: explodir uma estação de metrô.
- Como?!
Com o lenço, enxugou o suor das palmas das mãos.
- Os mesmos sintomas reaparecem sem motivo. Posso dormir a noite toda ou posso
acordar apavorado. Fazer explodir uma bomba, deixa qualquer um tenso, mas não ao ponto de
entrar em pânico.
- Você é... terrorista?!
- A palavra “terrorista” é inadequada. Mas não vou discutir. Preciso me recuperar
rápido, caso contrário a Organização vai me expelir ou, não duvido, me eliminar. Um
medicamento resolveria meu caso?
- Vou prescrever. Mas é possível tratar-se não de um problema da química cerebral e,
sim, de algo psicológico, uma fobia a certas situações reais ou imaginárias. Você fala em
realidades e, quem sabe, em fantasias também. Explodir o metrô, uma organização... Que
significado tem tudo isso e qual a relação com as crises de ansiedade? Temos de conversar a
respeito.
Milton molhou o rosto na pia do banheiro. Deveria ter prescrito dose maior do
remédio? Secou o rosto com a toalha. Podia ser um adulto jovem com necessidade de
autoafirmação que buscava a atenção através de imaginações de grandeza, de grandeza
maligna. O terrorismo estava na mídia. Alguns, inclusive, se juntavam ao Estado Islâmico.
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Naquela noite, no banho, voltou a preocupar-se com a possibilidade de Giovanni ser,
de fato, um terrorista. Confirmada essa possibilidade, Milton temeu tornar-se um arquivo
morto. Vestiu o chambre e dirigiu-se ao pequeno pátio dos fundos de sua casa.
No caminho, cruzou por Elisane que, jogada sobre o sofá assistindo tevê, nem
respondeu ao seu cumprimento.
Dificilmente uma organização terrorista deixaria um de seus membros consultar um
profissional que não fosse simpático a ela. Mas se essa organização não tivesse nenhum? Sob
ameaça, poderia obrigar... Pisando sobre pedriscos, Milton começou a embalar baldinhos
coloridos presos com pregadores no pequeno varal.
Desde o falecimento do pai, sentia-se sozinho, não mais encontrara alguém com quem
dividir certos temores. Alguns Milton poderia aliviá-los procurando outro colega, como já
fizera no passado. Mas há temores que os colegas não são continentes. No caso de um
paciente terrorista, ouviria: “Deixe de atendê-lo. E não me conte mais nada! Não quero ser um
arquivo morto!”
Milton lembrou-se que com a idade de Giovanni, ainda estudante de medicina, teve
medo de ser eliminado por uma organização política clandestina a qual pertencera. Discordou
frontalmente do método de enfrentar a ditadura da época através do emprego de assaltos a
bancos e de sequestros de embaixadores. Tornou-se inconfiável e, assim como Giovani, temeu
ser eliminado. Aconselhado pelo pai, afastou-se da organização. “E não fui eliminado. Meus
antigos companheiros nada fizeram contra mim”.
Milton parou de embalar os baldinhos. Elisane não mais assistia tevê. Encontrou-a já
na cama dormindo a sono solto. Deitou ao seu lado sem fazer barulho.
Pela madrugada acordou sentindo-se sufocado. Avisar a polícia ou mandar embora um
paciente por contar algo que podia ser apenas fantasia? Não, não faria isso. Quando em
situação semelhante a de Giovanni, procurou auxílio em um terapeuta que o rejeitou dizendo
que não atendia subversivos. “Ficou com medo”, bocejou Milton.
Como o sono não voltava, levantou e foi ao escritório. Máximo Gorki escrevendo à
mulher, foi o primeiro texto que encontrou. Julho de 1904: “Acabamos de enterrar Anton
Thekhov.... Os funerais me deprimiram de tal maneira que duvido possa te falar de maneira
sensata...” Gorki, na carta que Milton lia, reclamava do fato de um homem avesso à
banalidade e à vulgaridade que em tudo espargia, com dulçor e nostalgia, uma luz semelhante
à da lua, ter seu corpo transportado de Badenweiler para Moscou em um vagão carregado de
ostras frescas.
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No dia seguinte, Milton recebeu Giovanni no horário combinado e, observando a
palidez do seu rosto, os lábios secos, a respiração difícil, comentou:
- Infelizmente, a ansiedade ainda o faz sofrer.
- Minha vida é a Organização. Estou com medo de, pelo meu pânico, me tornar
perigoso a ela. E aí...
- Giovanni, você precisa de alguém que te cuide. E eu de alguém próximo de ti,
alguém que me ajude a discernir o quanto há de realidade e de fantasia quando você fala em
Organização, em morar em Londres...
- Fantasia?! Topa continuar a consulta falando em inglês? – perguntou irritado.
No restaurante, com Elisane olhando para a novela que passava na tevê, Milton
reconheceu um fato preocupante: o inglês de Giovanni era ótimo, não estava mentindo quanto
a Londres. Sabia que poderia romper o sigilo profissional em caso de haver risco do paciente
cometer homicídio. Mas Giovanni não revelava desejo de provocar algum ato violento.
Milton deu-se conta de que estava tentando com os dedos aumentar ainda mais a abertura dos
dentes de seu garfo. Elisane estava falando, e, pelo jeito, fazia elogios às peças de plástico
ovaladas sobre as quais descansavam os pratos e os talheres. Sousplats, foi a palavra que ela
empregou. Dentes de garfo, plásticos, Milton pensava em bomba caseira quando seu celular
chamou:
- Sou eu, Giovanni. Telefono de uma farmácia. Um membro da Organização apareceu
no meu quarto do hotel e me fez ameaças.
- Giovanni, o que está acontecendo?
- Perderam a confiança em mim.
Sinal de desligado. Sem se dar conta, havia caminhado com o telefone no ouvido até a
porta de saída do restaurante.
Principiara a chover. Noite escura. O mesmo acontecera com ele há... quantos anos
mesmo? “Parece um deja vù”, concluiu.
De volta à casa, já deitado, o sono não vinha. Elisane, a seu lado, dormia
profundamente. Todas as profissões apresentavam riscos em certos momentos. O piloto de um
avião, por exemplo, sabia o perigo de voar em tempo ruim. O policial tinha a noção da
possibilidade de ser morto no trabalho. “Nós, médicos, também. Tenho de fazer como todos,
ir em frente”, concluiu.
Deveria ocupar sua mente também com outros problemas. Elisane, por exemplo,
falava em engravidar. Mas... sem transar? Perderam o interesse um pelo outro, tinha de
12
admitir. Milton lembrou do desejo de Tcheckhov: ter uma mulher que, a exemplo da lua, não
aparecesse quotidianamente no seu horizonte. Ele, ao contrário, queria alguém presente
sempre.
Com Giovanni, só o desenrolar do tratamento iria desfazer as dúvidas. Por enquanto,
era apenas mais um paciente e não estava ameaçando matar ninguém. Se estivesse, Milton
insistiria na busca de contato com a família, pediria para o paciente telefonar sempre que lhe
voltassem ideias perigosas. Avisaria a possível vítima e também a polícia.
Ajeitou a cabeça no travesseiro e bocejou na tentativa de induzir o sono. Acordou com
o som de uma bomba! Havia dormido?! Sim. Um pesadelo, um simples pesadelo.
Pela manhã, ao entrar no automóvel, decidiu: “Vou atender Giovanni como alguém
com Síndrome do Pânico e com traços narcisistas e paranoides de personalidade. Vou avaliar
melhor se não está psicótico, confundindo imaginação com realidade. Não vou abandoná-lo”.
Em vez de ligar o rádio do carro, preferiu seguir pensando. Se estivesse atendendo
alguém que dissesse ser traficante de drogas, não avisaria a polícia. O mesmo se fosse um
paciente com fantasias pedófilas. A sociedade criou profissões diferentes porque assim a vida
anda melhor. O médico não é caçador de possíveis futuros deliquentes. Ao médico cabe tratar.
Ao descer do elevador no andar de seu consultório, a visão de um homem
desconhecido o tensionou. Sem refletir, apressou o passo em direção às escadas. Quando já
estava ofegante por tantos degraus terem sido vencidos em poucos segundos, exclamou:
- Fiquei paranóide!
Sim fora isso que acontecera. Precisava retornar à razão: “O paciente paranóide pode
provocar medos idênticos em quem o atende. Giovanni está assim...”
Ao retornar, observou não haver ninguém no corredor. Entrou no consultório e
recostou-se na sua poltrona. Fixando o olhar no quadro com a foto do pai, falou para si
mesmo:
-Você foi quem me ajudou quando eu estava em situação semelhante a desse rapaz.
Pai, você foi o único que não teve medo.
Na parede, além do quadro com a foto do pai e de outras gravuras, havia pendurado
outros só com a moldura. Milton dizia ao paciente: “Esses quadros são como o teu futuro:
você vai preenche-lo com o que mesmo?”
De repente, o som de uma bomba o acordou! Havia, sim, cochilado. “A bomba me
pegou. Grudou no meu cérebro. Um homem de cinquenta anos tem futuro suficiente para
preencher alguns quadros. Eu terei...?”
13
Começou a traçar um plano. Orientaria Giovanni a seguir usando a medicação e diria
que ele precisava se reaproximar de sua familia de origem.
Mais tarde, no carro, Milton antevia: ao chegar em casa encontraria Elisane no sofá,
trocariam cumprimentos a distância e nada mais. “Como se fôssemos solteiros vivendo no
mesmo teto”, lastimou.
Quanto a Giovanni, conseguira adotar uma saída que, mesmo condizendo com a
realidade, não lhe satisfez. Na hora, propôs um único foco, a ansiedade. Não era necessário
saber suas causas, importava era a solução e ela era medicamentosa. O homem que
acompanhava Giovanni, um gordo muito gordo, não abriu a boca. Ele não devia compreender
português, pois Giovanni exigira que falassem em inglês. Portanto, não deveria ser seu
parente. Provavelmente era alguém da Organização: “Fiz bem em não querer saber”.
Milton aumentara a dose da medicação indicada na consulta anterior e emitira várias
receitas sem data. “Vá comprando aos poucos, o balconista da farmácia colocará a data na
receita. Passados seis meses, você poderá experimentar suspender a medicação”.
Já na porta de saída, complementou: “Giovanni, basta tomar a medicação pelo período
combinado. Os outros problemas que você enfrenta não cabem a mim, como psiquiatra, te
ajudar. Não é meu papel. É o papel da tua família. Procure-a”.
Milton torcia para que a reação violenta por parte do acompanhante de Giovanni tenha
começado e acabado com a batida forte da porta do consultório.
Entrou com o carro na garagem de sua casa murmurando:
- Em um vagão de ostras frescas.
Fizera bem em não cobrar a consulta. Na saída, Giovanni dirigira a ele um olhar
arregalado, de medo, de pedido de ajuda. A lembrança incomodava Milton.
No banho, voltou a murmurar:
- Em um vagão de ostras frescas.
Desligou o chuveiro e recriminou-se. Fugira, sim, fugira de Giovanni. Justificou-se
alegando que se assim não agisse, seu corpo poderia agora estar sendo transportado num
vagão de carga para o mesmo cemitério da cidade onde jazia o corpo do pai. E,
provavelmente, não teria a companhia nem de ostras frescas.
Por outro lado, tinha a convicção de que a função do psiquiatra era o de aliviar o medo
que as pessoas têm. E de que para conseguir isso, precisava aliviar os próprios medos. E
nisso, havia fracassado.
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Vestiu o chambre por sobre o pijama e foi até o pequeno jardim situado nos fundos da
casa. Não sabia bem o que fazer. Os músculos estavam enrijecidos. Precisava pensar em
outros assuntos, mas não conseguia.
Vendo os baldinhos coloridos, Milton foi até eles. Embalou um. Embalou outro. E
deu-se conta: embalava a si mesmo.
NA CASA DA VÓ PEQUENA
Já era madrugada quando Marcela colocou a chave na porta e entrou, evitando fazer
barulho. A casa da Vó Pequena era em tudo semelhante às demais construídas na vila. Feita
de madeira e de tijolos, telhas remendadas, janelas com vidraças pequenas, nas quais se viam
colados variados adesivos – enfeites a gosto de diferentes moradores. Visitantes que ali
chegavam e iam ficando ou se revezando, alguns por dias, meses, e outros por anos. Uma
espécie de família mutante, na conclusão de Marcela.
Aceitavam, todos, o comando carinhoso daquela velha de cabelos brancos, pele
escura, de vestidos sempre compridos, desprovidos de enfeites, que agora está... está...
Marcela bate com a palma da mão na testa.
- Não adianta negar – murmura.
No momento, a família era pequena: apenas a menina Zê e ela.
Vó Pequena, recordou Marcela, costumava percorrer a vila com a vagareza de quem
para em cada janela, em cada porta, de quem entra em muitos pátios, nos armazéns, na
borracharia como se tivesse uma missão a cumprir. Não tinha. Marcela, reconhecia que por
vezes assumia um comportamento exageradamente ativo e percorria as ruas da vila em
velocidade, com a pressa de quem não tinha tempo para ouvir nem a si própria. Não era
conhecida e popular como Vó Pequena, mas tinha lá sua visibilidade e despertava alguma
admiração, seja pela beleza de menina, de adolescente e agora de jovem mulher de pele
morena e olhos grandes e escuros, mas também por momentos em que se revelava destemida.
Mesmo feminina no caminhar, no sentar-se, no mover os olhos ao sorrir, quem não sabia na
vila que ela era capaz de, em dadas circunstâncias, enfrentar disputas violentas e de brigar
como rapaz? A ponto de a Vó Pequena dizer: “Minha filha, existem duas dentro de você”.
Em uma das camas que se estendiam ao longo da parede, deitada sobre a colcha,
dormia Zê, uma garota de uns doze anos que vestia um pijama comprido Seu rosto estava
pálido, seus cabelos, loiros e compridos, estiravam-se para cima e tocavam a guarda da cama.
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A tira que lhe prendia o cabelo se soltara e estava quase a cair ao chão. Marcela colocou a tira
sobre o bidê e, antes de ir ao banho, beijou-a na testa.
No chuveiro, tentou pensar em maneiras de salvar a Vó Pequena. O médico que a
estava atendendo no hospital dissera que o caso era muito grave. “É a vontade de Deus”,
lembrou das palavras da Vó Pequena quando sabia que alguém estava no fim da vida. Qual
religião teria tanta força na oração a ponto de conseguir que a vontade de Deus mudasse? O
problema era que ela mesma não tinha fé. Sua mãe, no tempo em que com ela vivera, não a
estimulara a frequentar a igreja. E seu pai, amigo dos padres a ponto de ajudar nas festas da
igreja, nunca fora a uma missa. A Vó Pequena, por sua vez, frequentava variados cultos,
alguns terreiros e, na maioria das vezes, orava por conta e em pensamento apenas. Mas se
dizia discípula do Papa e retransmitia seus ensinamentos para os católicos que lhe pediam
conselhos. O padre Anselmo, até ele, pedia conselhos para a Vó Pequena. E o Seu Pinheiro, o
policial que morava na vila, vinha orgulhoso contar a ela o número de dias em que estava sem
beber. E era ele quem consertava o chuveiro e quem subia pela escada para tapar os furos do
telhado.
De banho tomado, Marcela passou um creme nas mãos e aprontou-se para dormir.
Enterrou a cabeça no travesseiro e renunciou por completo a continuar os seus raciocínios,
queria dormir. Mudou de posição na cama. Virou o travesseiro. Não houve jeito, o sono não
veio.
Levantou-se, vestiu o chambre, saiu do quarto sem acordar a Zê. Quando deu por si,
estava sentada na pequena escada de madeira que dava acesso à porta da frente! Na rua, cães
ladravam alto. Ouviu também um silvo e teve a impressão de que toda a indiferença do
mundo se lançava sobre ela.
Voltou para a cama. Deitou-se com um medo vazio. As batidas do coração
desaceleraram-se. Espreguiçou-se, espichando-se toda. Imaginou-se sobre as tábuas podres
de um trapiche. Recordou-se da vez em que vira seu pai trocar as tábuas de um. Ele fazia esse
e outros e, de fato, qualquer trabalho para sustentar a família. Depois, cada um foi para um
lado. Separados, ele foi para bem longe e a mãe, para longe, mas não tanto. Marcela não quis
ir com nenhum, quis ficar na vila com a Vó Pequena. Vó que não era vó, mas que era mais
que uma vó. E na vila tinha o colégio, tinha os amigos.
Marcela decidiu levantar-se e tomar mais um banho. Enquanto a água escorria,
lembrou-se de seu pai em pé, no trapiche, contando histórias engraçadas e sendo o centro das
atenções de alguns que seguravam caniços a seu lado, de alguns outros que, mais distantes,
balançavam sobre barcos.
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Deitou-se novamente. Desta vez, trouxe para a cama uma angústia menor.
De repente, foi acordada, já era dia. A notícia vinda do hospital de que a Vó Pequena
havia falecido deixou sua mente entorpecida. Só aos poucos pode perceber que era Zê quem a
abraçava.
As horas do velório passaram rápidas. Havia muita gente. Sua mente continuava
entorpecida, como se estivesse sedada. Acordou desse semi-sono quando o caixão foi
depositado no chão, junto a sepultara já aberta. Padre Anselmo, amigo da Vó Pequena, pediu
a todos mais uma oração. E depois da bênção, com voz firme, proferiu as últimas palavras:
- A alma da Vó Pequena está em paz. Digo isso com absoluta certeza. Digo como
padre que sou. E digo também como negro que sou, negro como ela era. Vó Pequena
descendia de escravos e me dizia: “Tenha paciência, meu filho, tenha um pouquinho da
paciência que os nossos tiveram, e você se libertará desse sofrimento. Os escravos não se
libertaram?...” E quando um branco a procurava pedindo conforto ela dizia: “Será mesmo que
você não teve nenhum, mas nenhum antepassado que sofreu? Tenha a paciência que ele teve e
você se libertará”. Vó Pequena não teve filhos biológicos, mas deixa muitos descendentes.
Teve a paciência para nos ouvir e todos somos seus filhos. Todos a temos como nossa mãe. Já
fomos pássaros feridos e a vida é assim, um dia teremos uma pata, um bico, uma asa
novamente ferida... e... todos lembraremos da Vó Pequena... da nossa querida e pacienciosa
mãe a nos dizer: “Paciência, meu negro...”. E lembraremos do calor do seu abraço...
Incapaz de conter os soluços, o padre olhou chorando para as pessoas a sua esquerda,
pessoas que iriam ler a Bíblia naquela cerimônia simples. Elas, entendendo seu pedido,
começaram a entoar um hino religioso, só começaram, não conseguiram continuar. Se seu pai
e se sua mãe estivessem ali... A mãe, ela sabia onde morava, mas o pai, há anos não tinha
notícias dele. Mas e agora? Sem a Vó Pequena?
Quando o caixão ganhou a sepultura, Marcela viu Seu Pinheiro, o policial, vestindo
roupas muito desalinhadas, aproximar-se cambaleante e gritar com voz que revelava sua
embriaguez:
- Um viva à Vó Pequena! Viva!
Gritou mais um viva! sozinho, ninguém o acompanhou. Passou, então, a aplaudir, no
que foi brevemente acompanhado por Marcela, pelo padre Anselmo e por mais dois ou três
dos presentes, os poucos que sabiam que era ele quem estava pagando as despesas com a
funerária.
Ao entrar na casa da Vó Pequena, agora vazia, o clima do velório ainda fazia-se
vivamente presente na sala humilde onde o caixão fora velado. Deitou-se no sofá, solitária.
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Dos oito aos vinte, doze anos vivera na casa. O que fazer? Não era hora para pensar. Mas
quem sabe, deveria voltar a estudar e fazer medicina como às vezes lhe sugerira Vó Pequena.
O sol estava prestes a se pôr no horizonte, alguns raios entravam quase
horizontalmente pela porta aberta, atravessavam o vazio da sala e faziam cintilar corpúsculos
microscópicos de poeira que flutuavam junto à porta que dava para o quarto da Vó Pequena.
Pôs-se, sem mover os lábios, a falar com aquela imagem etérea, com aquela alma que relutava
em deixar seu quarto e subir aos céus. Disse para ela que cuidaria direitinho da mesinha de
cabeceira, “minha relíquia” como a chamava Vó Pequena, única herança de seus sofridos
antepassados.
Sacudidas fortes a acordaram. Era Zê. Fizera chá. Sentada junto à mesa da cozinha,
com a xícara na mão, observou Zê a beber ruidosamente. Depois de cada gole, fazia aaahhh
com a boca bem aberta. Com o olhar absorto, Marcela passava os dedos abertos pelos seus
cabelos e tinha preguiça de pensar no amanhã. Uma preguiça que tomava conta de toda a sua
mente e de todo o seu corpo.
Já era bem tarde da noite quando um som a fez erguer a cabeça do travesseiro. Escutou
um pio e mais um trinado longo. Levantou-se, vestiu o chambre, saiu do quarto sem acordar a
Zê. Quando deu por si, estava sentada na pequena escada de madeira que dava acesso à porta
da frente. E Marcela não mais sentiu preguiça ao pensar no amanhã. O amanhã seria ali, na
casa da Vó Pequena.
AMIGO
Nem o verde em volta da rodovia abrandava o mau humor de Pedro. Ligou o rádio do
carro. Desligou.
- Só problemas... só problemas – murmurou.
Acabara de viajar, contra a sua vontade, até uma cidade vizinha. Agora, retornava
“discursando sozinho”, como ele definia.
- Cheguei atrasado – suspirou.
Naquele dia o filho de seu amigo Trolista o havia telefonado. Desesperado, implorava
por sua ajuda. Atendia uma mulher com risco de suicídio e não sabia mais o que fazer...
- Atendia?! Ele?! Um numerólogo?!
O amigo Trolista, recordava Pedro, falecera já fazia seis anos. E seu velório fora de
uma tristeza sincera - como costuma ser o velório de um viúvo pobre. Foi naquele dia que se
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deparou com a reprodução do retrato cubista de Picasso. Estava na parede de madeira da sala
humilde daquela casa de vila. Na gravura, tanto o rosto como o espaço ao redor dele estavam
decompostos em formas facetadas, em esferas, cones e triângulos. Não havia distinção entre o
rosto e o fundo. Feições humanas emergiam da aparente confusão de figuras geométricas. O
traçado daquele rosto era indefinido, mas sua personalidade era forte.
O quadro, para Pedro, passou a ser o retrato de seu amigo. Dele ficaram bons
sentimentos. Gostava de seu abraço, gostava de vê-lo classificar as pessoas de acordo com
aquela conhecida assertiva: “Quem muito rodeia, não carrega o caixão”.
Conhecera-o no confuso emaranhado de gentes que se misturam e se entredevoram na
luta interna pelo poder em um partido político. Assim como na obra de Picasso, daquele
ambiente indefinido vira se despregar não um rosto bem traçado, mas um caráter reto. Não
recordava a cor dos olhos do amigo, nem o perfil do nariz, mas a personalidade sabia esboçá-
la e tinha prazer em fazê-lo. Responsável, determinado, era ele, para Pedro, do grupo que
“carrega o caixão”.
Do filho, ao contrário, em vez da personalidade preferia descrever seu nariz
avantajado, sua boca larga, sua lentidão no caminhar.
Naquele dia do velório, Pedro retirou da parede a gravura de Picasso e levou-a consigo
sem pedir para ninguém. Pedir para quem? Para o filho? Para quem nunca se interessou pelas
coisas do pai?
Estacionado em um mirante, Pedro observava as coxilhas. Pareciam bolhas verdes
alargadas. Pela primeira vez, percebia a semelhança da paisagem da sua terra com aquela que
vira do trem Londres-Oxford. Na época, vinte anos mais jovem, o rosto não era enrugado, o
cabelo não era esbranquiçado, o corpo devia ser mais ereto e os sábados à tarde ainda o
empolgavam. Com algum esforço poderia rememorar aquela época e até mesmo transportar-
se para Oxford ou para qualquer outro lugar bem longe do filho do Trolista. Mas o
numerólogo charlatão, como decidira nominá-lo, teimava em impor sua presença em sua
mente.
Pedro lastimava: chegara atrasado! Ao descer do carro no local combinado, ouvira
vozes desesperadas: “Se jogou!”, “É a Geraldine!”, “Meu Deus!” Andara alguns passos e
parara junto ao corpo de uma mulher. Olhara para o alto tentando adivinhar de qual andar ela
havia pulado.
“Fiquei horrorizado. Continuo horrorizado. Pedro, obrigado, preciso mesmo muito de
um psiquiatra aqui. E você é em quem confio”, foram mais ou menos estas as palavras que
lembrava ter ouvido do filho de seu amigo no apartamento da tragédia. Assim que Geraldine o
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vira entrando no quarto, dissera o numerólogo charlatão, os olhos dela arregalaram-se. Em um
movimento só, levantou da cama, sentou no parapeito da janela e jogou-se para trás.
Pedro poucas vezes vira um filho ter caráter tão diferente do pai. E o pai sabia disso.
Percebera desde os tempos em que fora ferroviário. “Pedro, você lembra dos Troles? Aqueles
pequenos carros descobertos movidos pelos ocupantes por meio de varas ou paus ferrados?
Andei tanto neles verificando o estado dos trilhos que acabei recebendo o apelido. Haviam
espertos que só queriam pegar o pau ferrado nas descidas. Quando comecei a levar junto o
meu filho, ainda adolescente, percebi que ele era um desses”.
- Geraldine deve ter se jogado em um momento psicótico. Qualquer um que entrasse
no quarto seria sentido por ela como seu perseguidor. A paranoia havia tomado conta do seu
cérebro – repetiu Pedro o que dissera ao inspetor.
Voltando a dirigir pela rodovia estreita e cheia de curvas, sacudiu negativamente a
cabeça ao recordar das desculpas dadas pelo numerólogo charlatão: “Pedro, tenho muitas
almas desencontradas dentro de mim. Era o que meu pai dizia de mim”.
- Ora, ora... a definição que seu pai dava de ti era bem outra, era a de alguém que não
pega o pau ferrado na subida.
Já de volta a sua cidade, esperando o verde da sinaleira, Pedro sentia melancolia
semelhante à vivenciada no velório do seu amigo Trolista.
- Pobre Geraldine. Se eu tivesse chegado antes... Se um psiquiatra, e não um
numerólogo, a tivesse atendido... Além de sofrer, o que posso fazer?
Já na rua de sua casa, o celular chamou:
- Quero mais uma vez agradecer. Preciso dizer que... que eu não possuo as qualidades
do meu pai. Não possuo boas qualidades humanas. Gostaria que você soubesse que eu sei
disso. Sei que não tenho. Infelizmente... não tenho as boas qualidades humanas...
Pedro desligou sem nada responder. Não havia mais sol, a tarde de sábado se fora. Ao
descer do automóvel, teve uma lufada de alívio ao pensar que ao se reconhecer sem qualidade
uma pessoa revelava uma qualidade.
Em casa, foi direto para sua poltrona preferida. De couro, macia, a almofada afundava
aos poucos, suavemente. Em uma das almas desencontradas do filho, poderia haver uma
parecida, pelo menos parecida, com a digna alma do pai.
Levantou os olhos em direção a gravura com o retrato cubista de Picasso fixada na
parede principal da casa. Mais uma vez tentou ver seu amigo nela. E deixou-se afundar na
poltrona a ponto de sentir-se abraçado por ela.
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PAI
Às dez e trinta, Lara desembarcou com sua mochila de um táxi branco, em cuja porta
lia-se Jinjiang, no Porto de Waigaoqiao, bem próximo ao local combinado. Havia um fluxo
grande de pessoas entrando e saindo das dependências do porto. Misturou-se às que entravam
e, deparando-se com algo que parecia um banco de cimento, sentou-se.
Sua consciência lhe segredava que não deveria fazer o que provavelmente iria fazer.
Aquele pátio grande ora enchia-se de trabalhadores apressados, ora esvaziava-se. Lara, quieta,
sem se mover, esperava que algo a fizesse se inserir naquele contexto e se movimentar por
ele. Algo que não acontecia.
Não, não deveria explodir! Tentou ponderar sobre a importância de portar-se calma e
educada, sem espalhafato. Só encontrando desordem em sua cabeça, tentou voltar a atenção
para a movimentação do porto.
Percebeu que os chineses a olhavam. Mesmo continuando apressados em seu
caminhar, alguns até viravam a cabeça para trás para vê-la de novo. Lara nunca chamara a
atenção dos homens, tinha consciência disso. Quando com amigas, notava os olhares deles
para elas. Nem por isso, se descuidava. Agora, por exemplo, vestia uma saia curta, justa, uma
blusa que revelava o volume de seus seios. Não esquecera o batom vermelho nos lábios. E a
sandália estilo gladiador estava ali nos seus pés. Mesmo não sendo uma mulher atraente,
achava importante apresentar-se bem cuidada. Especialmente naquela manhã no encontro que
teria. Chamava a atenção dos chineses por estar ali sozinha, por ser ocidental. Mas a pessoa
que iria encontrar também era ocidental e para chamar sua atenção... “Chamar sua atenção? E
eu quero...?”
Lara levantou-se do banco e caminhou em torno dele. Claro que queria chamar a
atenção dele. “Meu Deus! Minha cabeça é uma confusão só. Não sei se o abraço ou se o
castigo com a minha indiferença. Vim de tão longe, pensei tanto nisso...”. Deveria procurá-lo
nos escritórios do porto em vez de ficar ali parada? Não, não. Isso seria demonstrar muita
necessidade dele. E chamando a atenção que chamava, ele acabaria sabendo de sua presença.
Voltou a sentar-se.
O desejo irresistível de ver o pai correndo em direção a ela começou a apoderar-se de
sua alma. Crescendo a cada minuto, o desejo acabou transformando-se em taquicardia e
ansiedade. Teve de levantar-se e caminhar alguns passos. Sentou-se em outro banco.
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Imaginou-o erguendo-a nos braços. Ela, retraída e fria, dispondo-se apenas a
cumprimentá-lo, melhor dizendo: a mal cumprimentá-lo. Desejo de vê-lo, paixão por ele,
talvez ódio, com certeza indignação!
Respirou fundo e deu-se conta de que seu pai não poderia correr em sua direção, pois
sempre usara muletas. Seu pai não poderia erguê-la em seus braços.
Retirou da mochila um espelho. As mãos trêmulas não firmavam sua imagem nele.
Desistiu de retocar o batom. “Melhor ir embora!” Levantou-se. Era óbvio que não iria
embora. Sentou-se. Do Brasil à China fora uma viagem e tanto!
Apitos lhe pareceram saudar aquela manhã no porto.
Erguendo a cabeça, viu ao longe e à esquerda um contêiner suspenso no ar por um
imenso guindaste, por um gigante. O contêiner suavemente foi descendo até ter sua visão
encoberta pelo fluxo, agora aumentado, de pedestres. Entre os caminhantes, um homem de
muletas. Esforçou-se para vê-lo melhor: que homem comum! Não se tratava de um gigante
chamativo como aquele poderoso aparelho de erguer contêiner. Se não fosse pelas muletas,
nem seria notado.
Em meio aos caminhantes apressados, destacou-se o homem que manejava apressado
duas muletas. Lara teve a impressão de que ele a vira, de que sorria e avançava em sua
direção.
Só teve tempo de pensar que iria fugir ao seu abraço, que ergueria bem o queixo para
lhe gritar sua indignação, para vociferar sua revolta, mas nem a indignação nem a revolta
explodiram de seu peito. Levantou-se, mas não conseguiu manter-se em pé nem pensar em
nada. Sentou-se e, olhando fixamente para aquele homem cada vez mais próximo e mais
sorridente, chorou. Com esforço, interrompeu o choro e girou a cabeça para manter o olhar
fixo naquele homem de muletas, de estatura mediana, de cabelos loiros e brancos, que antes
de se sentar ao seu lado retirou com dificuldade uma mochila presa às costas e, depois de se
sentar, escorou as duas muletas no canto do banco.
- Bem no horário que combinamos pelo whats-app. – disse ele.
O rosto, se comparado ao das fotos que examinara antes de viajar, perdera beleza.
Além das rugas, havia uma marca vermelha no nariz. Há quanto tempo estaria a usar óculos?
A cor dos olhos era a mesma dos seus.
Desviou o olhar. Viu, na frente de um grande armazém, o vulto de pessoas em torno
de uma fumaça que parecia sair de uma lata grande. Pessoas que não podiam ser distinguidas
ao primeiro olhar não só pela distância, mas também pela intermitência da fumaça, que ora os
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envolvia de todo, ora mudava de direção e permitia que se reconhecesse um boné, uma camisa
vermelha...
Voltou a olhar o rosto do homem das muletas. Suas sobrancelhas eram tão nítidas e tão
densas que pareciam pintadas por tinta amarela. Abriu a boca como se fosse falar algo para
ele. Fechou a boca e desviou o olhar para o grupo junto ao armazém. Um homem parado à
esquerda da lata grande de onde saía a fumaça, pôs-se a contar alguma coisa que devia ser
muito interessante porque os demais voltaram a cabeça em sua direção e puseram-se a escutar
a narrativa. Pelo menos foi o que deduziu. Pouco depois, pareceu-lhe que todos começaram a
cantar qualquer coisa muito melódica e triste.
- Quem são aqueles? – perguntou ela.
- Quem?
- Aqueles lá, junto à fumaça.
- São desempregados.
Sentiu o peso de um braço em seus ombros. Mirou com olhar firme, sem chorar, o
rosto bem barbeado do homem de muletas.
O braço tentava puxá-la com suavidade e firmeza.
- Minha filha, como é bom te reencontrar! Teus olhos são da mesma cor dos meus,
mas certamente não tristes como os meus. Doze anos se passaram...
- Doze anos e dois meses, e nenhum parabéns a você... nenhum parabéns a você por
meu aniversário de quinze anos... de dezoito anos... de vinte... – falou sussurrando. – Por ter
passado no vestibular... por ter me formado médica...
- Você tinha quatorze anos, já era alta, mas não tanto, já era bonita, mas não tanto.
– Não sou bonita!
- É sim!
- Doze anos! Me abraçar?! Você quer me abraçar?! – exclamou.
Desviando o olhar em direção à fumaça que saia da lata e aos homens que ainda
pareciam cantar, sacudiu lentamente a cabeça:
- Como se nada tivesse acontecido...
- Minha filha! Não dormi essa noite...
- Também não dormi.
- Minha filha... não sei o que dizer agora... mas tenho muito a te dizer...
- O que houve conosco? Pai... o que...