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MARVILA tem muito boa gente…

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Marvila tem muito boa gente…

Projecto Espiral2

Ficha TécnicaAna Cardoso, Ana Paula Silva, Vanda Neves

Moradores e Moradoras entrevistados/asCarlos Ventura, Isilda Jerónimo, Nara Miranda, Rui Fonseca

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introduçãoO Projecto Espiral promovido pelo CESIS e financiado ao abrigo do Programa Contrato Local de Desenvolvimento Social definiu como zona de interven-ção os bairros da Flamenga e dos Lóios, ambos localizados na freguesia de Marvila.

Dizem documentos produzidos pela Câmara Municipal de Lisboa que estes bairros realojaram, no final dos anos 70, famílias de bairros de barracas que se situavam nas proximidades, ou na própria freguesia, mas também em zonas dispersas da cidade de Lisboa.

Ainda que estes bairros se mantenham principalmente como áreas de “mer-cado” de habitação social, sendo a maioria das edificações da responsabili-dade de organismos do estado, a promoção de habitação pelo sector coope-rativo tem alguma presença, em particular no bairro dos Lóios, tendo sido um contributo importante para o processo de transformação da imagem urbana da zona.

Por outro lado, o regime de propriedade é actualmente bastante mais diversi-ficado do que a estrutura inicial, não só devido à construção privada mas tam-bém como consequência de uma política de alienação do património o que leva a um aumento progressivo da propriedade horizontal.

Com a Expo98, Marvila conhece uma nova fase e aquilo que era, até então, uma freguesia “cortada” liga-se, finalmente, à cidade. A construção da “Linha Vermelha” e respectivas estações de Metro, sendo uma delas a da “Bela Vista”, que serve, nomeadamente o Bairro da Flamenga; a abertura da Av. Marechal António Spínola que prolonga a Av.Estados Unidos da América até à Av. Infante D.Henrique, passaram a estabelecer ligações essenciais com o resto da cidade.

Apesar disso, Marvila e, muito em particular os seus “bairros sociais”, con-tinuam a ter uma imagem negativa que arrasta consigo a população que aí reside.

A alteração da toponímia, há quase 10 anos, permitiu abandonar a identifica-ção despersonalizada dos bairros como “zonas”, recuperando os nomes das antigas quintas que aí existiram, numa lógica de “humanização e dignifica-ção” da imagem desta área da cidade. Mas este é um processo que carece de aprofundamento, pois as próprias pessoas residentes ainda baralham as suas referências predominando, no entanto, a memória do zonamento.

É no Parque da Bela Vista que tem vindo a ter lugar o grande evento mediático que é o Rock in Rio, mas nem o facto de este parque se situar em pleno Bairro da Flamenga tem contribuído para desmistificar a suposta perigosidade da sua população e colocar o bairro, por razões positivas, no centro das aten-ções. A este nível, importa evidenciar as limitações que este evento coloca à vida dos/as residentes e a forma colaborante como estas pessoas as aceitam.

À semelhança de outras iniciativas do Projecto Espiral, o objectivo deste Livro Digital é precisamente valorizar as pessoas dos Lóios e da Flamenga.

Dar-lhes a palavra!

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A intenção é, pois, revelar estas pessoas como cidadãs e cidadãos que contri-buem de forma activa para a sociedade, em geral, e para a vida dos seus bair-ros, em particular. Estando conscientes de alguns dos problemas dos bairros onde vivem sabem ver neles o melhor, e isso desenvolve-lhes uma forte von-tade de participar, algo que o Espiral tem potenciando.

Foram quatro as pessoas com quem falámos e cujos testemunhos, na pri-meira pessoa, aqui são relatados. São dois homens e duas mulheres com ida-des compreendidas entre os 24 e os 52 anos e a palavra é delas…

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E estas pessoas dizem sobre si…Vejo-me empreendedor

Carlos “Vejo-me empreendedor, empreendo a cada dia (…) um empreende-dor cria o seu futuro a partir do seu presente”.

Sou uma pessoa com muita força

Isilda “Actualmente estou a atravessar uma situação difícil mas sou uma pes-soa com muita força, sou uma pessoa muito responsável, sou a trave da famí-lia… é um bocado isto”.

Sou uma pessoa em processo de crescimento

Nara “Sou uma pessoa em processo de crescimento e de aprendizagem; alguém que anseia por ser uma pessoa melhor (…).Tenho muito ainda que aceitar a meu respeito, de positivo e de menos positivo. Gostaria de aprender a ser mais amável e dócil comigo própria”.

Sonhador, bom pai e bom cozinheiro

Rui “Acho que posso dizer que já fui uma pessoa muito mais extrovertida. Agora acho que posso dizer que sou muito sonhador, estou sempre a sonhar (…). Acho que sou um bom pai, bom cozinheiro e gosto de ajudar.”

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O trabalho como aprendizagem e… serviço A actividade profissional não parece ser um elemento importante na sua iden-tidade. Definem-se, como se pode ler, mais pelo ser e não tanto pelo fazer.

Rui “Sou motorista de táxi profissional. Gosto de conduzir e o táxi dá-me uma espécie de independência, pois não tenho ninguém a dar-me ordens, nem colegas a fazerem coisas que não gosto, nem eu a fazer coisas que eles não gostem. E depois conheço muita gente… aprendo muito. Transporto pessoas de todas as classes, de todas as profissões, de todos os países e aprendo muito. Aprendo muito com as pessoas… eu gosto muito de falar com as pessoas”.

Nara “Actualmente trabalho no Projecto EIS, um projecto de 6 meses finan-ciado pela Câmara Municipal de Lisboa no âmbito do Programa Bip Zip e pro-movido pelo CESIS, no Bairro da Flamenga. Trabalho como Animadora Sócio-Cultural. Aquando do processo de candidatura a este posto de trabalho eu já me encontrava desempregada há mais de um ano. Para além disso, era um projecto que também me interessava, pois envolvia trabalhar de perto com as pessoas, com a comunidade: estar ao serviço das pessoas, trabalhar e desen-volver coisas com elas, no sentido de melhorar e valorizar as suas vidas e a vida do bairro. Era um projecto de serviço, contribuição e valorização, e isso atraiu-me”.

Carlos “Trabalho num restaurante italiano. Desde os 11 anos que me apai-xonei por esta área. Tendo uma grande amiga que me deixou este bichinho, desde a Expo 98, onde ajudava no seu restaurante. Nada de muito pesado, limpava talheres e cortava cebolas”.

É preciso fazer alguma coisa!

A ideia de acomodação ao desemprego e de dependência face a benefícios sociais não se coaduna com a realidade destas pessoas. E mesmo quando o desemprego, já sem protecção, acontece, manifesta-se uma capacidade para aproveitar saberes e recursos próprios: “Neste momento estou desempre-gada e estou a fazer uns salgadinhos, para ver se a coisa se compõe… O sub-sídio de desemprego já acabou e uma pessoa não vive do ar, nem a roubar! E como tenho actualmente grandes problemas familiares esta é uma forma de conciliar a vida familiar com a necessidade de ganhar algum dinheiro. É pre-ciso fazer alguma coisa!”.

Conversas e comidas – elementos de alguns sonhos profissionaisApesar de serem reconhecidas algumas dificuldades, sobretudo no que diz respeito ao acesso ao crédito, há sonhos profissionais que, em alguns casos, começam a ser concretizados: duas pessoas já fizeram uma forma-ção em empreendedorismo na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e estão a ser acompanhados pelo Espiral, no sentido da elaboração de um plano de negócios.

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Tanto os projectos em curso, como aqueles que ainda ficaram no domínio do sonho, revelam uma vontade de associar a comida ao convívio, tendo subjacente a noção de bem-estar comum – o meu e o dos outros. Nestes projectos, subentende-se um sonho de abundâncias (talvez como estratégia para ignorar privações passadas): abundância na mesa mas também abun-dância de relações, sorrisos e afectos.

Carlos “Estou a trabalhar, com a ajuda do João Silva, num projecto de res-taurante completamente diferente dos que há aqui. Inspirei-me em Espanha onde quando se vai tomar uma bebida se serve também os pinchos. Apaixonei-me pela restauração porque é uma área em que damos a cara ao público, falamos com as pessoas, divertimo-nos, tratamos as pessoas como se fossem praticamente da família. Com o meu projecto também conto mudar um pouco a mentalidade portuguesa, pelo menos a lisboeta: não devemos ser tão agarrados, ou seja, devemos ser mais dados”.

Nara “Gostaria de abrir um negócio próprio. Um negócio que não só contri-bua para um melhor bem-estar financeiro para mim mas que também tenha em conta a valorização das pessoas e da comunidade à minha volta. Pensei numa casa de pão onde acontecessem algumas iniciativas culturais. Já tomei alguns passos para isso; já fiz formação sobre empreendedorismo e agora terei outros patamares a alcançar, que incluem outras formações mais espe-cíficas na área de negócio que considero abrir; finalizar o plano de negócio, pedir financiamento e pôr a ideia a funcionar”.

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Rui “Gostava de ter um restaurantezinho, uma coisinha pequenina, uma sali-nha para 15, 20 pessoas, ter uns clientes certinhos… Gostava que gostassem da minha comida, sim, que eu gosto de inventar! Gostava de cozinhar e de estar a falar com eles (clientes). Ter uma casinha no Bairro Alto, uma coisi-nha? Mas pouco a pouco com ajuda talvez de familiares, ou isso, pode ser que o negócio se concretize. Não é impossível”.

Afinal, no sonho como na vida: “trabalhar para podermos ter o nosso luxo que é abrir o frigorífico; é abrir e não nos faltar nada e conseguirmos estar em família. É o nosso luxo. Quem sabe…”

Caminhos para MarvilaOs passados destas pessoas são distintos e diversas as razões que as levaram para a freguesia mas é, em geral, a vida em família que as faz estar aqui agora.

Nara “Vivo na Flamenga desde 1986. A minha família foi realojada de um bairro de barracas da zona de Miraflores/Algés mas a terra natal é Guiné-Bissau. Estive fora do bairro e do país de 2001 a 2010. Nessa altura morei em Inglaterra. Por motivos familiares, decidi regressar ao país e à casa da minha mãe, no Bairro da Flamenga. Agora vivo com ela e com o meu filho de 14 meses”.

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Rui “Vivo na Flamenga desde 2005. Eu não era de um bairro social, morava no Lumiar junto ao Centro Comercial Mouras, na Quinta das Conchas. Fui um bocado rebelde na minha adolescência, depois sai de casa, andei a salti-tar, andei para aí… até que conheci a minha mulher e mudei-me aqui para o bairro. Hoje vivo aqui com a minha mulher, a nossa filha e outro que é só da minha mulher”.

Carlos “Vivo no Bairro dos Lóios há sensivelmente ano e meio, pois estive a viver em Espanha. Entretanto, os meus pais que viviam nos Olivais, onde eu também morei até aos 16 anos, mudaram-se para cá. É que os meus pais viviam em casa dos meus avós, mas aos 40 anos quiseram autonomizar-se e vieram para os Lóios, acho que estão cá muito bem! Eu saí para Espanha porque queria mudar de ares. Ou seja, mudança de estratégia pois queria fazer a minha própria vida e como aqui o meio de subsistência é mais baixo que em Espanha… Lá fiz um curso de auxiliar administrativo. Regressei há ano e meio, com a intenção de trabalhar por cá e de estar com a minha famí-lia, até porque na altura os meus avós estavam doentes e a minha avó aca-bou por falecer. Agora vivo com os meus pais, o meu irmão, a mulher dele e meu sobrinho”.

Isilda “Vivo aqui, na Flamenga, vai para 15 anos. Até aos 18 anos vivi na “pro-víncia”, em Vila de Rei, depois vim para o Restelo, trabalhar como empre-gada doméstica – nessa altura também eram complicados os empregos. Depois ainda fui para Rio de Mouro, para a zona da Rinchoa, e em seguida para Santa Iria da Azóia mas eu e o meu marido trabalhávamos os dois em Lisboa e o trânsito era muito complicado e tínhamos o miúdo pequeno. Por isso, quando tivemos a oportunidade de comprar uma casa que tinha sido do irmão da minha cunhada, acabámos por vir para cá”.

a vida nos bairros podia ser melhor mas…As pessoas que nos falam têm a consciência clara de que a vida nos bairros podia ser melhor. Referem-se, sobretudo, à falta de civismo e à ausência de respeito pelo outro, dimensões que serão como que o reverso da medalha do “abandono” destes bairros, por parte de algumas entidades públicas. E esse “abandono” reflecte-se na degradação de algum do edificado; na persistência de terrenos geradores de rupturas e descontinuidades nas vivências dos espa-ços; na sucessiva não concretização de planos e projectos.

Isilda “O bairro está sub aproveitado. Lá em cima não há nada e até temos muito espaço que acho que deveria de ser aproveitado. E depois, há muita gente em casa, uns por uma razão, outros por outra e isso acaba por criar pouco desenvolvimento. Muita gente está em casa porque já são velhotes e que vivem sozinhos, uma série de situações…” .

Rui “A Flamenga poderia ser muito melhor, muito melhor. Infelizmente há certas pessoas que não conseguem mudar certos hábitos e tornam a vida no bairro complicada, a nível de higiene e de respeito uns pelos outros”.

Nara “Gosto das gentes do bairro, apesar de, às vezes, passar-me com alguns dos seus comportamentos pouco cívicos e de não respeito pelo outro!”

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Mas será que estes são problemas específicos desta zona da cidade? Ou são problemas talvez aqui sentidos com particular acuidade, pelos moti-vos já enunciados, mas que também se podem encontrar noutros locais de Lisboa e do País, onde se verifique a ausência de uma verdadeira “cultura de cidadania”?

… são bairros de gente boa e de céu amploOra, a ideia fundamental que estas pessoas parecem transmitir é a de que, apesar de tudo, apesar das adversidades que estão presentes na maior parte da vida dos seus residentes; apesar do já mencionado “abandono” por parte das instituições; apesar da imagem negativa que gozam no exterior, estes são bairros de gente boa!

Rui “(…) Mas no fundo o bairro tem muito, muito boa gente. (…) E estamos numa boa zona, estamos numa zona excelente”.

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Isilda “Efectivamente com a população que temos, até não temos grandes chatices, e não me parece que haja muita insegurança. Um sítio ou outro mais problemático mas não… na generalidade não…Depois é um bairro central, calmo, e se houvesse mais locais apropriados – espaço onde se fizesse um bocado de ginástica, onde se pudesse beber um café e conviver um bocado – se calhar as pessoas acabavam por conviver de forma diferente. E temos uma bela vista que, na minha opinião, está mal aproveitada”.

Carlos “Eu posso dizer que há uns anos atrás, 8 ou 9 anos, a zona de Marvila, Flamenga, Lóios era considerada uma zona de criminosos. Era um sítio com muitos problemas devido às pessoas que vinham das barracas, outros locais de Lisboa. Isto tinha bastante má fama, mas desde que estou aqui, vejo que é um bairro super tranquilo, dos melhores bairros em que se pode viver, porque não há problemas. Estou aqui há um ano e meio e nunca tive nenhum pro-blema dentro do bairro. (…) Há muito desemprego, isso é óbvio, mas grande maioria das pessoas daqui são pessoas trabalhadoras. (…). Outro aspecto positivo é ser um bairro bonito e, apesar de tudo, as pessoas são muito uni-das. Ou seja, se alguém tem algum problema há muitas pessoas dispostas a ajudar dentro do bairro. São pessoas dadas ao bairro: hoje ajudas-me tu a mim; amanhã ajudo-te eu a ti. Eu acho que se vive no bairro como se fosse-mos todos uma família”.

Nara “Para mim, o Bairro da Flamenga é um dos bairros mais bonitos de Marvila. Adoro o seu céu amplo, que se vê na sua plenitude, sem casas a tapar a sua vista ou casas umas em cima das outras. Adoro o espaço verde de que o bairro dispõe (o Parque da Belavista) e alguma vista do mar que se pode encontrar em certos pontos. Gosto da simplicidade da sua gente e da

Fotografia tirada no âmbito do Projecto Intervir “Mapas de Mim”

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mistura de casas sociais, casas da cooperativa e casas de custos mais ele-vados, pois isso ajuda a quebrar o estigma dos bairros sociais e valoriza o bairro”.

E a cidade?Há um positivo sentimento de pertença em relação à cidade, a uma cidade que se admira pela sua beleza mas onde se reconhece, também, a existên-cia de problemas, de degradação e de falta de investimento público o que, de certa forma, atenuará as diferenças entre Marvila e o resto da cidade.

Rui “A cidade de Lisboa é muito bonita e eu, com a minha profissão, passo praticamente todo o dia a deslocar-me e a ver a cidade. Temos uma luz única! E a baixa, que não tem edifícios muito altos, com o rio… aquilo dá ali uma janela! Cada vez que há o pôr-do-sol, ah! É pena a autarquia, também devido a verbas, não cuidar mais dos edifícios mais emblemáticos da cidade, dos azulejos que são únicos. Temos uma cidade linda”.

Carlos “Lisboa é uma cidade bastante bonita, o que mais chama a atenção na cidade é a luz. Mas também é uma cidade muito degradada e a pobreza é demasiada – cada vez se vê mais pessoas na rua ou no metro a pedirem. Há muitos estrangeiros mas isso também vem ajudar a Economia Portuguesa e há mais diversidade de seres humanos. Eu gosto muito de Lisboa”.

Nara “Vejo a cidade de Lisboa como uma cidade lindíssima, da qual muito gosto. Sinto, porém, que tinha a possibilidade de ser ainda mais atraente do que é, no entanto, a falta de verbas do município e do Estado fazem com que haja coisas que deixam muito a desejar”…

Isilda “A cidade de Lisboa tem muitos pontos de interesse. É uma cidade boa mas tem algumas zonas muito degradadas e era necessário fazer alguma coisa”.

a cidade não vê o bairro a cidade imagina o bairroA noção de que a população da cidade constrói uma imagem do bairro sem conhecer, de facto, a sua realidade está muito presente no discurso destas pessoas. É uma imagem assente em preconceitos que nem os/as actuais resi-dentes a eles escapa. E no discurso surge, também, a nítida consciência de que essa imagem lhes é prejudicial e que pode, inclusivamente, afectar as oportunidades de inserção social e profissional.

Carlos “Eu próprio achava que este bairro era uma coisa má. Mas desde que estou aqui vejo que não é nada assim. Isto deixa-me bastante contente. (…) Por isso eu sei que há uma tendência de achar que esta é uma zona crimi-nosa e conflituosa, as pessoas continuam a achar isso. Enquanto tivermos o nome de Chelas… acho que se tivesse um nome diferente, melhoraria muito mais. É o chavão da criminalidade. Quando vou a uma entrevista de emprego e me perguntam onde vivo digo Olivais, porque acho que se disser Chelas me olham com arrogância, me olham com desconfiança. Sinto sempre esta

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desconfiança. Estou em Portugal há um ano e meio e sinto bastante a dife-rença dizer que vivo em Chelas ou dizer que vivia nos Olivais”.

Rui “A cidade não vê o bairro, a cidade imagina o bairro porque infelizmente muitas vezes é falado nos noticiários sempre… e quase nunca por boas cau-sas… sempre por conflitos, problemas… então as pessoas têm uma visão disto muito, muito negativa. E não é só do bairro, o que mais me preocupa é que as pessoas têm uma imagem negativa das pessoas do bairro porque se fosse só do bairro era diferente mas também têm má ideia das pessoas do bairro. Eu, sinceramente muitas vezes, em certas situações, digo que moro ao pé das Olaias”.

Isilda “A cidade vê um bocadinho mal o bairro….e as pessoas que cá vivem de alguma forma também. Há pessoas daqui que, pura e simplesmente, tinham vergonha de dizer que moravam em Chelas. E isso quer dizer tudo. Eu cada vez que me perguntavam onde é que morava eu dizia: moro em Chelas. (…) Antigamente, Chelas, tinha um rótulo feio mas eu continuo a defender que não se deve por rótulos às coisas porque efectivamente nem todas as pessoas são conflituosas, nem todas as pessoas são agressivas. Eu acho que temos um espaço dentro da cidade onde se de facto se pode viver… Podíamos ter melhor, porque efectivamente há muita coisa para fazer aqui no bairro, mas é um sítio onde dá para viver sem grandes preocupações. Porque se me per-guntarem qual é o sítio totalmente seguro para viver eu digo – nenhum!”

Nara “Gostava que o bairro fosse visto de forma mais positiva pelas outras gentes da cidade. Dito isto, também é de se reconhecer que o bairro mudou muito desde que aqui cheguei para morar, pois tem-se investido em infraes-truturas em zonas próximas do bairro que, indirectamente, vão afectando o bairro pela positiva, como a requalificação da zona da Expo 98, hoje desig-nado Oriente/Parque das Nações, que trouxe melhorias das vias de acesso, o metropolitano, o Pingo-Doce, etc. O Bairro da Flamenga é um bairro com muito potencial!”.

Uma visão para o bairroA visão para os bairros (Flamenga e Lóios) aponta no sentido de uma maior integração dos mesmos na cidade, ou seja, implica a eliminação de alguns dos elementos que, de certo modo, contribuem para a tal identificação nega-tiva. Assim, são feitas propostas que passam pela limpeza; fachadas melhora-das; mais actividades ou equipamentos de lazer e recreio; mais comércio, em particular no Bairro da Flamenga; maior dinamismo e participação da popu-lação. Oiçamos as ideias:

Isilda “Para além do Parque da Bela Vista gostava de ver as coisas mais lim-pas. E de ver o comércio no bairro e não ser todo concentrado no Centro Comercial. (…). Penso que se as pessoas que estão mais em casa, em vez de estarem em conflito umas com as outras, podiam contribuir mais para a vida do bairro.”.

Nara “Era importante haver um maior interesse e uma maior participação da população nas iniciativas que se organizam no bairro, e para o bairro que, na sua maioria, são uma mais-valia. Para além disso, gostava que houvesse mais comércio e mais animação comercial; mais equipamentos para os jovens;

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mais consciência cívica por parte das pessoas, o que implicaria um maior cui-dado pelos espaços públicos e comuns”.

Rui “Uma das alterações que gostava de ver está relacionada com a Malha H. A concretização do projecto de que agora se fala seria positivo. Por outro lado, havia que tentar manter o bairro em condições, em termos de pintura, para não ficar com aquele aspecto degradado. É isso que leva, muitas vezes, as pessoas a não ter vontade: “vivemos num bairro feio…” e isso torna-se um espirito também negativo, enquanto que se o bairro estiver bonito, pintado, com espaços verdes ia alterar também o estado de espirito dos moradores. E estes eventos que as associações vão fazendo aqui, para nós está a fazer mexer um bocadinho, também ajudam muito.(…). Eu gostava de voltar a abrir o ginásio da parte da manhã: os adolescentes e os mais novos estão a traba-lhar e estão na escola, não podem nesse período e pensei nos mais velhos para se movimentarem, para terem algum exercício, porque eu vejo muita gente que não faz nada: senhoras que têm 50 anos e parecem que têm 80! Cheias de problemas de saúde, articulações, não conseguem andar… e era uma boa maneira de as pôr a fazer alguma coisa da parte da manhã – uma horinha, que fosse! Fazer dois grupos, dois turnos: das 10h às 11h e depois das 12h à 13h. Depois à tarde, para os jovens, como já houve ali o boxe que

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estava a ter sucesso e tínhamos bastantes crianças, já com os seus 8 anos a começar praticar boxe… mas já me disseram que é muito difícil! Que exige um seguro e umas autorizações muito complicadas e que, agora, em princí-pio, não vai ser possível. E depois outra coisa: era um quiosque para servir esta zona porque as pessoas ali daquela parte de cima têm que se deslocar ao Pingo Doce. Era giro fazer aqui um espaçozinho… não sei se já passaram na Av. da Liberdade – há uns quiosques! Aquilo é uma coisa espectacular, e não implicada grande obra. É praticamente assentar, fazer uma placa no chão, arranjar uns tubos de esgotos até aqui a baixo, fazer uma abertura no terreno. Também não implica uma verba muito alta e depois é uma coisa que dá rendi-mento… Fazer uma coisinha com umas cadeirinhas. Acho que poderia resul-tar, mas sabe como é…”.

Carlos “Gostaria que o bairro fosse visto como um bairro com classe. (…). Podia-se também criar um espaço mais dedicado às crianças, um parque de diversões.(…). Ter uma visão para o bairro, é a mesma que ter uma visão para a nossa casa: queremos vê-la limpa e bem estimada e é a mesma coisa que queremos do bairro. (…).Quem sabe criar um clube de futebol dentro do bairro, já se sabe que o futebol move milhões de pessoas e se move milhões de pessoas, essas pessoas têm uma visão. Era importante, se não mantive-rem o Projecto Espiral, criar outro projecto, não digo igual, mas parecido ao Projecto Espiral. (…). No fundo, todos os residentes do bairro querem ver o bairro mudado”.

É fundamental dar ideias, participar Para além das suas ideias e propostas, estas são pessoas que têm sido parti-cipantes activas naquilo que vai acontecendo nos bairros com o objectivo de melhorar condições e criar autonomias.

Carlos “Participei no Mercado de Natal, onde fiz animação sociocultural com crianças: malabarismo, swings, pinturas faciais. Também participei numa sessão sobre prevenção de incêndios e na organização de um evento de Carnaval, com um grupo de jovens do bairro, aqui no auditório Fernando Peça. Fizemos a limpeza do bairro e um pequeno Tour pela Flamenga! (…) Todas as pessoas que lidam com necessidades de empregabilidade têm o Projecto Espiral e eu estou aqui também para contribuir para o Projecto por-que a vida é curta demais.”

Rui “Normalmente as iniciativas têm sido entre o Espiral e o Grupo Comunitário. Participei na Festa Comunitária; participei no Mercado de Natal e tenho participado em algumas reuniões sobre os espaços verdes. Participei com a APDES, nas noites de cinema, ajudei mais dois vizinhos e pintámos um ecrã, uma televisão e foi uma experiência muito bonita e era porreiro que se voltasse a fazer.(…). Na Festa Comunitária, no Parque da Bela Vista, ajudei a montar; ajudei um bocadinho na apresentação e um bocadinho a organizar aquilo juntamente com outros moradores e as associações. No Mercadinho de Natal, ainda me disfarcei de Pai Natal e fiquei lá a ajudar os meninos a pin-tar e a fazer jogos. Nas reuniões tenho tentado dar algumas ideias, porque é importante ouvir as ideias de todos para depois, em conjunto, poder fazer nascer um projecto, e tem sido fundamentalmente isso, dar ideias, partici-par… “.

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Isilda “Participei no Mercadinho de Natal e tive lá um espaço para fazer as minhas vendas. Por outro lado, continuo a fazer o voluntariado; é uma coisa que gosto e tenho pena de não ter mais disponibilidade”.

Nara “Eu participei em acções de formação; na Pintura dos muretes; Visualização de um dos filmes do projecto ‘Filmenga’; na Festa comunitária da Flamenga e na aplicação de questionário na Malha H (relativo à interven-ção do Rock in Rio). Mais tarde integrei a equipa do projecto EIS, promovido pelo CESIS com financiamento do programa BIPZIP da Câmara Municipal de Lisboa”.

Quero continuar a querer transformar E desta participação surge uma vontade de crescimento; um gosto por ser útil aos outros e de transformação que, curiosamente, é pessoal para poder ser comunitária. E mesmo que se sinta o receio de outros possíveis envolvi-mentos, pois “a política não é o meu forte”, há o desejo de se ser um exem-plo, uma referência.

Nara “Preciso de continuar a ter o entusiamo que tenho pelo Bairro da Flamenga e suas gentes, isto é, não ceder à indiferença. Quero continuar a querer transformar o meu mundo, para um mundo melhor, começando pelo local onde habito. Continuar a acreditar que é possível as pessoas interes-sarem-se e envolverem-se. Pretendo aproveitar todos os recursos que tenha ao meu alcance, sendo um deles as entidades locais que formam o Grupo Comunitário da Flamenga. E muitas outras coisas, estou certa! Continuarei a pensar nisso…”.

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Isilda “Eu dou um contributo fazendo reciclagem, tendo as coisas todas direi-tinhas e não atirar nada para a rua”.

Carlos “(…) Já pensei em formar-me em Serviço Social, quem sabe um dia… “

Rui “Alguns moradores já falaram comigo para se fazer uma associação de moradores, uma coisa a sério. (…). Tínhamos que fazer um projecto, apresen-tar e ser aprovado. Mas o meu forte é entretenimento, paz, convívio… politica não é o meu forte (…).

(…) como tenho uma filha pequena, de 3 anos, é giro que ela veja esta par-ticipação… e ainda hoje ela diz que o pai é o Pai Natal. Participar para que a minha filha possa ficar com aquela lembrança”.

Os projectos ajudam a mudar o bairro, dão mais vontade de continuar aqui

Os projectos e actividades em que participam são vistas como iniciativas positivas que “ajudam a mudar o bairro onde vivemos”: criar animação; geram oportunidades e, acima de tudo, representam esperança; esperança de uma vida melhor.

Carlos “Eu acho que o Projecto Espiral ajuda tanto na entrada do primeiro emprego e na procura de emprego! Ajuda pessoas com necessidades que precisam de preencher alguns documentos, há bastantes apoios. E algumas pessoas são acompanhadas por psicólogos e é sempre bom, termos com quem falar. Se alguma pessoa pode ser ajudada é através do Projecto Espiral! (…) a Associação Tempo de Mudar, eu acho que fez bastante diferença aqui

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no bairro desde que iniciou a sua prática, mas a mudança que houve no Bairro dos Lóios, para além da Flamenga, foi graças ao Bip-Zip, do CESIS e ao Projecto Espiral. Estou a referir-me a uma mudança social e psicológica das pessoas aqui no bairro. Estes projectos ajudam a mudar o bairro onde vivemos.”

Rui “Para o bairro eu acho que (estas actividades) são bastante positivas, por-que isto quebra a rotina que temos ali…uma rotina no bairro que é passar ali os dias…as crianças muitas vezes estão ali com brincadeiras que nem são as mais adequadas para elas… Isto são projectos positivos para eles, como por exemplo, a Festa houve a passagem de modelos, os miúdos cantaram, os miúdos dançaram… e foram ali umas horinhas que eles passaram, que se distraíram; aprenderam até com a passagem de modelos da reciclagem, mui-tos deles não faziam a mínima ideia de que, com os copos de plástico, se poderia fazer um chapéu espectacular. E são coisas que, naquela tarde, um miúdo pode ter gostado daquilo e ter ideias e seguir o exemplo. O Mercado de Natal também foi uma coisa espectacular: as crianças pintaram-se e saí-ram da rotina. E, para mim, dá-me mais vontade de continuar aqui… muitas vezes nós queremos fugir daqui. E, isto aqui é uma esperança que nos dá, que pouco a pouco pode haver mudança. São estas pequenas coisas que, no fundo, se tornam grandes. Quando há estas iniciativas queremos que venham mais, ficamos sempre à espera: qual será a próxima? e que vai ser agora?… Em Outubro foi a Festa, depois o Natal, e depois veio o Carnaval… e ficamos sempre à espera de qual será a próxima. Isto é muito bom, princi-palmente para unir os moradores. E se não fossem estas iniciativas eu nunca teria entrado aqui, nunca me teria apercebido da existência do Espiral, nem da APDES, e nem daquilo que vocês tentam fazer aqui pelo bairro e só isso é positivo”.

Isilda “Eu acho que são iniciativas muito boas. É uma mais valia para o bairro, é uma mais valia para as pessoas que acabaram por ter conhecimento de coi-sas que lhe passavam um bocadinho ao lado. Acho que é por aí…

Em termos pessoais, é darmo-nos a conhecer mais o que podemos fazer… é dar a conhecer que pode ser sempre feito alguma coisa mais. E as pessoas acabarem por se conhecer melhor umas às outras. E a ter alguma tolerância umas com as outras”.

Nara “Valorizo as entidades/instituições que aqui trabalham para apoiar a população mais desfavorecida, no sentido de valorizar as pessoas e o bairro. (…) A minha apreciação das iniciativas é, e sempre foi, muito positiva, pois são acções que convidam à participação, a um sentimento de comunidade e de pertença. São acções que visam também a valorização do bairro e da sua população. Como moradora, todos estes aspectos são importantes para mim, pois quero viver num bairro melhor e mais bonito, onde os seus habi-tantes têm consciência cívica e de respeito uns para com os outros, e onde cada um contribui para o bem comum.

Em termos pessoais, as acções de formação contribuíram para o meu enri-quecimento pessoal e profissional e, com a minha participação nas outras acções, sinto que sou uma moradora activa, participativa e interessada no desenvolvimento do bairro e da sua população.

Ainda um outro aspecto também importante: este meu envolvimento com o Projecto Espiral, e a minha participação nas actividades proporcionadas,

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abriram portas a um emprego e a uma rede de contactos muito útil, não só a nível de outros moradores que não faziam parte do meu círculo pessoal, mas também a nível de outras entidades que trabalham no bairro. Uma conse-quência muito positiva da minha participação, como moradora, no Projecto Espiral. “

“Estes gajos a pensar em mim!… É porreiro, pá!”Talvez uma das consequências mais interessantes deste processo participa-tivo esteja contida nas palavras do Rui que revelam, de facto, como a parti-cipação e o envolvimento activo contribuem para uma valorização pessoal e para um reforço da auto-estima quando se sente que “gostam de nós”, que “gostam do contributo que podemos dar”.

Rui “Agradeço por terem pensado em mim, é sempre um privilégio saber que contam comigo para participar… sempre que precisarem, estou aqui. É muito

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bom, e positivo, quando me ligam e me dizem: Rui, olha estamos aqui a tratar de um projecto e gostávamos que participasses. E isso é porreiríssimo… estes gajos a pensar em mim!… É porreiro, pá! Uma pessoa fica a sentir-se bem e ajuda também a melhorar a auto-estima! Às vezes, sentimo-nos ali aban-donados no bairro… e, de vez em quando, aparecem estas coisinhas, sabe-mos que há ali alguém que pensa em nós, que gosta de nós e da nossa par-ticipação e da ajuda que podemos dar. Continuarei a ajudar dessa maneira, participando”.

Palavras ditas

E estas foram as palavras ditas por algumas das boas gentes de Marvila. Com elas revelam-se talentos, competências e, sobretudo, um carácter de gente solidária, de gente que investe nos seus bairros, que sabe identificar os traços positivos e que neles vê a plenitude de um céu estrelado.

É gente que se sente reconhecida quando é ouvida!

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Fotografia tirada no âmbito do Projecto Intervir “Mapas de Mim”

SEGURANÇA SOCIAL

CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção SocialProjecto Espiral (CLDS)Eixo 4 – Informação e Acessibilidades (Acção 8 – Valorização da Freguesia)