Mutacoes Do Olhar - As Vias de Dialogo Entre o Campo e o Arquivo

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41 Mutações de Olhar: as vias de diálogo entre o campo e o arquivo Marcelo Moura Mello Mestrando em Antropologia Social na Unicamp. Bolsista Fapesp [email protected] Resumo O objetivo deste artigo é refletir sobre o uso de fontes arquivísticas na pes- quisa antropológica e sua relação com a produção etnográfica, bem como a implicação das experiências de campo sobre a descrição, manejo e leitura dessas fontes. O artigo expõe os diferentes contextos das pesquisas de campo e em arquivos históricos envolvendo a comunidade negra rural de Cambará, que fica localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul (Rio Grande do Sul). Considera-se que somente tomando a oralidade em seus próprios termos – por meio da descrição das formas de lembrar e do trabalho da memória – é possível diminuir a assimetria entre oral e escrito. Argumen- ta-se também que os relatos orais coletados em campo podem exercer efeitos de conhecimento na leitura das fontes escritas e colocar novas questões para a reconstituição histórica do passado. Palavras-chave: oralidade; relatos orais; arquivos; história; memória. T omando em consideração os diferentes contextos em que reali- zei, e venho realizando, pesquisas sobre a comunidade negra rural de Cambará – localizada entre os municípios de Cachoeira do Sul e Caçapava do Sul (RS) – o artigo discute o tratamento teórico e meto- dológico que pode ser dado à oralidade em sua interface com o escrito. Mais especificamente, pergunta-se pelos efeitos de conhecimento das experiências e encontros etnográficos da pesquisa de campo na relação estabelecida com o arquivo. A referência a encontros e experiências não é fortuita. Ao iniciar uma pesquisa na comunidade acerca de cinco anos, tornava-se impe- rativo retornar ao passado. O grupo estava às voltas com o processo de reconhecimento para comunidade remanescente de quilombo, e a universidade desenvolvia ações para reforçar essa identidade (então) em irrompimento. O primeiro encontro com o arquivo resultou das situ- ações práticas nas quais tal grupo se achava envolvido, direcionando o olhar ao pensar a conjugação dito/escrito. À medida do tempo, outras questões foram se impondo, e os encontros deslocavam-se para patamares conformados pelas relações de conhecimento entretidas no correr da investigação. Relações de conhecimento estabelecidas por meio de distintas experiências et- nográficas. Diferentes encontros com o passado transformam aquilo que pode se apresentar, aos nossos olhos, de forma acabada, em algo aberto, sujeito a novas leituras e possibilidades de entendimento. O olhar sobre a relação dito/escrito foi se modificando ao longo de mi- nha pesquisa de mestrado. São essas mutações de olhar que pretendo reconstituir aqui. Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008. pg 41 a 49 Mutações de olhar: as vias de diálogo entre o campo e o arquivo Marcelo Moura Mello (UNICAMP)

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Texto discutindo a metodologia etnográfica em arquivos.

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    Mutaes de Olhar:as vias de dilogo entre o campo e o arquivo

    Marcelo Moura MelloMestrando em Antropologia Social na Unicamp. Bolsista Fapesp

    [email protected]

    Resumo O objetivo deste artigo refletir sobre o uso de fontes arquivsticas na pes-quisa antropolgica e sua relao com a produo etnogrfica, bem como a implicao das experincias de campo sobre a descrio, manejo e leitura dessas fontes. O artigo expe os diferentes contextos das pesquisas de campo e em arquivos histricos envolvendo a comunidade negra rural de Cambar, que fica localizada entre os municpios de Cachoeira do Sul e Caapava do Sul (Rio Grande do Sul). Considera-se que somente tomando a oralidade em seus prprios termos por meio da descrio das formas de lembrar e do trabalho da memria possvel diminuir a assimetria entre oral e escrito. Argumen-ta-se tambm que os relatos orais coletados em campo podem exercer efeitos de conhecimento na leitura das fontes escritas e colocar novas questes para a reconstituio histrica do passado.

    Palavras-chave: oralidade; relatos orais; arquivos; histria; memria.

    Tomando em considerao os diferentes contextos em que reali-zei, e venho realizando, pesquisas sobre a comunidade negra rural de Cambar localizada entre os municpios de Cachoeira do Sul e Caapava do Sul (RS) o artigo discute o tratamento terico e meto-dolgico que pode ser dado oralidade em sua interface com o escrito. Mais especificamente, pergunta-se pelos efeitos de conhecimento das experincias e encontros etnogrficos da pesquisa de campo na relao estabelecida com o arquivo.

    A referncia a encontros e experincias no fortuita. Ao iniciar uma pesquisa na comunidade acerca de cinco anos, tornava-se impe-rativo retornar ao passado. O grupo estava s voltas com o processo de reconhecimento para comunidade remanescente de quilombo, e a universidade desenvolvia aes para reforar essa identidade (ento) em irrompimento. O primeiro encontro com o arquivo resultou das situ-aes prticas nas quais tal grupo se achava envolvido, direcionando o olhar ao pensar a conjugao dito/escrito.

    medida do tempo, outras questes foram se impondo, e os encontros deslocavam-se para patamares conformados pelas relaes de conhecimento entretidas no correr da investigao. Relaes de conhecimento estabelecidas por meio de distintas experincias et-nogrficas. Diferentes encontros com o passado transformam aquilo que pode se apresentar, aos nossos olhos, de forma acabada, em algo aberto, sujeito a novas leituras e possibilidades de entendimento. O olhar sobre a relao dito/escrito foi se modificando ao longo de mi-nha pesquisa de mestrado. So essas mutaes de olhar que pretendo reconstituir aqui.

    Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008. pg 41 a 49

    Mutaes de olhar: as vias de dilogo entre o campo e o arquivo Marcelo Moura Mello (UNICAMP)

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    Para realizar esta proposta o artigo percorre o se-guinte caminho: a primeira seo expe o contexto das pesquisas em arquivos sobre a histria da comunidade de Cambar. Esse primeiro encontro com o arquivo direcionou olhares sobre o material proveniente do campo e resultou em dilemas conceituais, tericos e metodolgicos. Na segunda seo relaciono os relatos orais dos integrantes do grupo s formas de lembrar e ao trabalho da memria (Godoi, 1999) existentes no local. Argumenta-se que somente pensando a ora-lidade em seus prprios termos possvel diminuir a assimetria entre oral e escrito. Por fim, retomo a problemtica campo/arquivo perguntando pelos efei-tos de conhecimento dos encontros e experincias de campo na relao estabelecida com o arquivo.

    Confirmao recproca

    Nesse primeiro momento trago ao leitor (a) o con-texto em que se deram as pesquisas em arquivos sobre a histria de Cambar. Farei isso por meio de uma breve exposio dos projetos de pesquisa que ali tiveram lu-gar. Como veremos a seguir, a assuno identitria do grupo como comunidade remanescente de quilombo foi determinante para o carter que as pesquisas e os procedimentos investigatrios assumiram.

    Trs projetos de extenso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foram desenvolvidos em Cambar nos anos de 2002 e 2003. Os dois pri-meiros ambos realizados no ano de 2002 tiveram curta durao. A participao no ltimo deles que se desenvolveu em dez finais de semana entre os meses de setembro e dezembro de 2003 permitiu minha insero no grupo. J nessa poca os estudantes que participavam desses projetos tinham por incumbncia, entre outras coisas, realizar entrevistas com os mora-dores e coletar dados que pudessem servir de base para a possvel elaborao de uma percia antropolgica, doravante denominada laudo.

    De fato, o trabalho da UFRGS no local inseria-se em um contexto mais amplo, em que a discusso de polticas pblicas para os territrios negros no Rio Grande do Sul gradualmente ia assentando suas bases. J em 2001, uma poltica do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, madiante a Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e Ao Social (STCAS), em convnio com a Fundao Cultural Palmares (FCP), aplicou recursos para a elaborao de relatrios tc-nicos (laudos) objetivando identificao, reconheci-mento, delimitao territorial, levantamento cartorial

    e a demarcao das terras que possibilitassem titula-o e o registro em cartrio de registro de imveis de comunidades remanescentes de quilombo.

    Foram realizados laudos de cinco comunidades que reivindicavam a titulao de suas terras com base no artigo 68 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias1. Inicialmente, previa-se que Cambar seria contemplada pelo convnio. Limitaes ora-mentrias impediram a consecuo do plano. Somen-te em 2005 a UFRGS, em convnio firmado com a Superintendncia Regional do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (Incra), comeou a elaborar um laudo antropolgico, com vistas a instruir o Incra nos procedimentos administrativos referentes a Cambar, que tambm reivindicava a titulao de suas terras com base no referido artigo 68. A UFRGS formou uma equipe que contou com professores e es-tudantes provenientes da Geografia, Histria e Cin-cias Sociais (equipe da qual eu fiz parte).

    Foi nesse contexto de produo de um laudo que as pesquisas em arquivos se iniciaram. O fato de eu possuir um contato prvio com boa parte do gru-po detendo um conhecimento razovel dos eventos tidos por marcantes para os moradores do local fez com que me envolvesse diretamente com as incur-ses aos arquivos desde o princpio. Supunha-se que seria possvel localizar documentos que reportassem a esses eventos, o que ulteriormente se confirmou. Foi possvel localizar em diversos arquivos farta do-cumentao que reportava a muitos fatos narrados por homens e mulheres de Cambar. O dito e o es-crito confirmavam-se, at mesmo em pormenores.

    Ao longo do laudo, insistimos na tese da confir-mao recproca2. Foram trs as principais razes que concorreram para o uso desta noo: a j aludida lo-calizao de diversos documentos que reportavam aos eventos tidos por marcantes e fundantes da histria do grupo, o gnero especfico de saber que estvamos produzindo e a valorizao da oralidade como fonte.

    O uso de relatos orais e documentos escritos am-pliou o leque de possibilidades na reconstituio dos eventos pretritos. Entretanto no se tratava apenas de um fato fortuito (embora riqussimo) ou de um in-cremento de material emprico. Evidentemente que a interface entre oral e escrito alargava o conhecimento sobre o passado que estvamos reconstruindo. Con-tudo, o investimento nos arquivos estava diretamente condicionado ao gnero de saber que estvamos pro-duzindo.

    Ora, a pea que elaborvamos visava reconhe-cer direitos. Embora haja uma flexibilizao crescen-te da legislao, sabe-se que h de percorrer caminhos tortuosos at que os direitos previstos na Constituio

    1 Que estabelece que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reconhecida a propriedade

    definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulos respectivos.

    2 Noo utilizada e problematizada em Anjos e Silva (2004, p.54-62).

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    tenham plena efetividade. As narrativas dos morado-res de Cambar por si s no eram uma garantia da validade do pleito. Passa-se algo diferente quando os relatos sobre o roubo de terras encontram equivaln-cia no escrito. O estatuto das provas mortas incide poderosamente sobre os vivos.

    Como notou Oliveira (2002, p.258), a interven-o de antroplogos em processos judiciais e admi-nistrativos deve ser tomada como exerccio de uma competncia tcnico-cientfica em meio a um com-plexo jogo de presses e negociaes que envolvem diferentes agentes. Destarte, a busca e a localizao de documentos esteve diretamente condicionada por essa situao prtica. A confirmao recproca necessitou ser construda e legitimada como conceito analtico. Estamos diante da constituio de um campo emi-nentemente poltico onde representaes autorizadas sobre o presente e seus significados para diferentes atores esto particularmente sinalizadas e visveis nos arquivos (Cunha, 2005). Se o passado um campo de disputas, as mediaes com os arquivos podiam ofere-cer ferramentas para autorizar os discursos e verses do passado.

    E aqui as coisas comeam a ficar interessantes. At que ponto nosso objetivo de valorizar a oralidade no era minado por nossas prprias descries, escolhas tericas e opes metodolgicas? Em que medida no tomvamos um atalho que desembocava nos mesmos labirintos? realmente possvel tomar a oralidade si-metricamente quando ela nos interessa somente em face de sua correspondncia com esse lugar da me-mria (Nora, 1984) que o Arquivo? Ser que uma descrio atenta aos jogos de poder no acaba por pa-cificar a memria (Fabian, 2007)? Ou, dito de outra forma, tomar essas memrias a partir de uma varivel privilegiada no empobrece o mosaico que constitui o trabalho da memria?

    Na situao de percia, o papel e a competncia que antroplogos so chamados a cumprir esto imer-sos em um campo de disputas. Os quesitos a serem respondidos so elaborados num contexto em que di-versos agentes, investindo seus interesses e pr-con-cepes, dialogam (porventura pressionam) com o perito: a situao de percia interfere na formulao e formatao das comunidades cientficas e no-cient-ficas (Anjos, 2005, p.111). Por maior que seja o rigor conceitual, analtico e tico investido neste tipo de interveno, caberia perguntar se os efeitos de auto-ridade dos laudos no resultam na institucionalizao de um estado do cenrio das lutas sociais.

    Destarte, ao enfatizar as confirmaes recpro-cas dos relatos em relao aos documentos escritos, no se estaria reforando vozes fragilizadas ao custo da simplificao das formas de lembrar e do trabalho

    da memria em que esses relatos emergem? Ou seria possvel explorar a oralidade em seus prprios termos, de modo a abrir outro espao de interrogao aos sa-beres locais? Trabalho duplo este da percia: explicitar as condies de possibilidade do fazer cientfico e faci-litar a emergncia de outras vozes e narrativas.

    Formas narrativas

    No prprio laudo investimos numa argumentao que visava corrigir a assimetria entre oral e escrito. Na confrontao entre ambas, chamamos ateno para as diferenas entre as verses dos fatos; fizemos um exer-ccio inverso, perguntando no pela carncia dos relatos, mas sim dos documentos; descrevemos os contextos e as formas de lembrar; em suma, tentamos tomar a oralida-de em seus prprios termos. Como mencionei na seo anterior, esse exerccio esteve preso a algumas amarras. Proponho nesse momento retomar os postulados da an-lise, antes de esboar algumas idias que no foram ex-ploradas devidamente na percia.

    O primeiro postulado na confrontao entre dito e escrito consistiu em rechaar a falcia que consiste em atribuir s fontes escritas veracidade histrica em de-trimento da oralidade, marcada pela suposta impreciso e vacuidade. Mesmo autores que tomaram esse cuidado incorrem em atitudes dbias na avaliao das fontes, como no caso de Vansina (1985), por exemplo. Em que pese sua inegvel contribuio para o estudo das tra-dies orais3, Vansina pende para uma avaliao delas ora segundo suas limitaes ora para seu possvel uso como fonte histrica:

    Chronology and lack of independence are real problems for oral traditions. They can be overcome or alleviated in some cases by outside evidence, but because the con-tents of outside evidence tend no to be congruent with the contents of oral tradition such cases will remain the exception rather than the rule. One should still not give up hoping that outside sources will eventually be of assistance (Vansina, 1985, p.190).

    As tradies orais podem desempenhar impor-tante papel na reconstituio do passado, refinando e ampliando as possibilidades de reconstituio da histria. Comparando o caso de Palmares com os es-tudos que realizou entre os Saramaka, no Suriname, Price (1996) aponta que ficar restrito s documenta-es escritas sobre povos historicamente vistos como ameaas restringe por demais a anlise, podendo at mesmo incorrer em postulados parciais que limitam

    3 As tradies orais esto referidas a um duplo aspecto, segundo Vansina: produtos, que so mensagens orais baseadas em mensagens orais

    prvias e a um processo, a transmisso de mensagens, boca a boca, por mais de uma gerao (Vansina, 1985).

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    por demais a experincia histrico-social desses po-vos. O uso de evidncias externas s tradies orais vlido e acresce substncia na leitura e interpretao das mesmas4; o problema consiste no tipo de interface que proposto.

    Por essa razo argumentamos que a oralidade no deve ser avaliada em face ou em funo do escrito, tampouco em razo de suas carncias face ao escrito. A projeo um dos mecanismos que causa a confuso entre juzo de relao e atributo do objeto (Goldman; Lima, 1999). A transposio para outro domnio de discriminaes que operamos no nosso dia-a-dia e que tm suas razes em nossos sistemas de valores alimenta a partilha entre oral e escrito, implicando assimetrias expressas em termos como ausncia e presena (ausn-cia e presena de cronologia, profundidade histrica, criatividade etc.). Este o caso dos empreendimentos de Vansina (1985), Ong (1998) e Goody (1985; 1987). Sem negar a contribuio desses autores, no creio que preocupaes que giram em torno da diferena entre ns e eles sejam o melhor caminho a ser segui-do, especialmente quando avaliamos outros domnios a partir de uma antropologia das ausncias5.

    Como nota Fabian (2007, p.72), esquecer que ou-tros povos lembram um mecanismo para deix-los es-quecidos. Ironicamente, continua Fabian, esquecer que outros povos lembram um risco premente justamente nos estudos de tradies orais, pois tais tradies s so levadas em conta enquanto correspondam ao mesmo tratamento metodolgico dado s fontes escritas. Alm do mais, nossa preocupao no deveria ser com o con-tedo esquecido, e sim com a lembrana e o esque-cimento como aspectos concomitantes do trabalho da memria como prxis cultural (Fabian, 2007, p.82).

    A constatao de Fabian fundamental no s por expor o (recorrente) etnocentrismo, mas especial-mente por apontar para um problema metodolgico que consiste no pouco preparo em identificar (ou seria melhor dizer levar realmente a srio?) distintas formas de lembrar. De acordo com Finnegan (1992), os estu-dos das formas orais no se caracterizam por uma ter-minologia comum ou claramente delimitada, mas pelo conjunto de questes que atraem o foco investigativo dos pesquisadores. O interesse deve recair, portanto, nas formas de lembrar que no se limitam apenas verbalizao, incluindo msicas e cantos, imagens visuais, prticas corporais, performances, rituais etc. A maneira de escapar avaliao da oralidade em funo do escrito parece-me ser inserir os relatos orais no in-terior das formas de lembrar e do trabalho da memria especficos (no exclusivos, note-se bem) a Cambar.

    Um primeiro ponto a chamar ateno que

    lembrana e esquecimento so aspectos concomitan-tes do trabalho da memria. Esquecer no remete necessariamente a uma carncia. Num famoso conto, Borges recorda a histria de um personagem dota-do de uma rara capacidade de memorizao, Funes. Recordaes que sozinho teve-as mais que todos os homens, a memria de Funes um despejadouro de lixos, pois incapaz de esquecer diferenas, generali-zar e abstrair. Os rastros do passado respondem antes a um trabalho de seleo e fixao de relevncia do que a uma incapacidade. Com o tempo foi ficando evidente para mim que minha pergunta devia ser por que lembrar determinado evento, e no outro, im-portante para os membros do grupo, e no pelas suas limitaes mnemnicas.

    Acresce que calar no significa esquecer. Ns no esquecemos, apenas no lembramos, diz outro personagem da fico dessa vez de um romance de Mia Couto a um antroplogo que o inquiria sobre determinados assuntos. O dito s vezes to impor-tante quanto o no dito, como nos ensinou Pollak (1989). Em Cambar, as histrias sobre o tempo do cativeiro ilustram particularmente isso. Habitando zonas de silncio, h um permanente cuidado com as palavras que se reflete na sua forma e capacidade de re-cuperar, de forma mais extensa e detalhada, histrias e personagens. Admitir que um antigo ou parente foi escravo pode ser no s indesejado, mas tambm evitado, especialmente quando se trata dos terrores indizveis vividos, sofridos e infligidos durante a es-cravido (Gilroy, 2001) ou das histrias para no se passar adiante, admiravelmente retratadas no romance Amada, de Toni Morrison6.

    Essa dinmica entre contar e no-contar pre-sente em outra esfera. Em Cambar, certas pessoas so apontadas como sabedoras do tempo dos antigos. A idade importante fator na definio de algum como sabedor, mas no s. Os eventos marcantes na histria do grupo so de conhecimento geral, mas apenas algumas pessoas sabem contar. Ou seja, no basta conhecer ou ser velho, necessrio dominar tc-nicas que permitam transmitir o contedo narrado. Como nota Gallois (1993, p.26), a transmisso oral no precisa ser completa, nem a descrio exaustiva. Ela depende de uma forma de transmisso partici-pante. O interesse do narrador, na relao com o ou-vinte, conservar o que foi narrado. Ao retirar da sua experincia o que ele conta, o narrador incorpo-ra as coisas narradas experincia de seus ouvintes (Benjamin, 1996). Essa incorporao da coisa narrada depende, sobremodo, da incorporao da histria no corpo do narrador.

    4 Um bom exemplo disto so os instigantes livros de Price (1983; 1990).

    5 A oralidade especfica no pelo fato de no ser escrita, e sim por possuir formas de registro e transmisso do passado prprias. A ausncia

    de escrita no pode justificar o estabelecimento de um grande divisor (Goldman; Lima, 1999).

    6 Sobre memria de descendentes de escravos, ver o excelente trabalho de Mattos e Rios (2005).

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    Ao narrar um causo que envolve um antigo, reproduz-se suas falas, seus gestos, seus atos, suas ex-presses. Na narrao, os hbitos de contar no so somente competncias tcnicas, mas atividades ad-quiridas, como nota Connerton (1993, p.112). Saber contar exige habilidades na maneira de contar, supe o domnio de envolver os ouvintes nas coisas narradas. Os gestos, a entonao, as pausas e digresses do for-mato ao contedo narrado. A reencenao dos even-tos protagonizados pelos antigos uma forma de transmitir o vivido do grupo e de estabelecer padres de relevncia do passado.

    Ao enfocar as prticas corporais chamei ateno para a relao entre narrador e ouvinte. H outro as-pecto a explorar nesse ltimo tocante e que pode ser exemplificado pelo momento que Cambar vive atu-almente. A nfase na relao do narrador com a platia permitiu a alguns pesquisadores dissipar as abordagens que enxergavam as tradies orais como fixas (Fin-negan, 1992). As artes verbais devem ser estudadas em seu contexto de produo, e no como manifestao de uma tradio acabada (Bauman e Sherzer, 1975; Tedlock, 1983). Assim, o contedo narrado depende de quem fala e para quem se fala.

    No caso de Cambar fundamental reter este ponto. O reconhecimento como comunidade rema-nescente de quilombo fez com que o grupo intera-gisse cada vez mais com agentes de diversos campos do mundo social. Na luta pela terra e por direitos tnicos, os moradores de Cambar se vem constan-temente s voltas com a necessidade de justificar seu status de grupo etnicamente diferenciado. Se o que caracteriza a identidade tnica face outras identida-des sociais o fato dela estar voltada para o passado (Streiff-Fenart; Poutignat, 1997), a viagem da volta (Oliveira, 1998; 1999) no um exerccio nostlgico de retorno ao passado e desconectado do presente (por esse motivo no uma viagem de volta).

    Isso fica particularmente sinalizado pela atuao da liderana do grupo, Mrcio Lopes. No incio da pes-quisa com vistas elaborao do laudo, ele j dispunha de pginas e pginas de seus cadernos preenchidos com genealogias, nomes de antigos moradores e informaes histricas sobre a sucesso territorial na regio. Certa fei-ta elaborou, em um papel pardo, um croqui da regio. O croqui primava pelo detalhamento. Constava o territrio ocupado no pretrito pelos bem antigos. Os lotes e o campo de cada famlia que ali habitava hoje estavam discriminados. Ao lado do nome dos atuais ocupantes, trazia informaes sobre a transmisso das terras, enu-merava o nome dos antigos habitantes, estabelecia nexos genealgicos, pontuava a chegada dos brancos, apontava as taperas. Mrcio j dispunha de tamanho volume de anotaes que pensava em fazer uma espcie de arquivo da histria da comunidade em sua casa.

    Noutra ocasio, realizou um trabalho similar com base num mapa feito pelos gegrafos que compunham

    a equipe do laudo. Dizia que se havia acostumado a fazer esse tipo de pesquisa com os antigos. Disse-me que aprendera a desenvolver uma tcnica antropol-gica para entrevistar os mais velhos. Era necessrio ir com calma, respeitar as caractersticas pessoais de cada um, saber como e quando perguntar. Relatou as admoestaes de seu pai, Geraldo, grande conhe-cedor dos antigos, pela insistncia do filho em saber coisas que j haviam sido ditas. Foi entrevistando os mais velhos que Mrcio Lopes coletou o material para suas genealogias e a elaborao do croqui.

    Pode-se argumentar que a mobilizao e a dedi-cao de Mrcio atestam a formao de novas dispo-sies em funo da situao de reivindicao tni-ca do grupo. pouco provvel que manifestasse esse crescente interesse pela histria de Cambar se no fosse o contexto atual. Talvez no empregasse suas foras e despendesse seu tempo em tal empreitada se a mobilizao pela titulao das terras no tivesse lugar. Ademais, Mrcio estava e est acionando novos meios de transmisso do passado. Ou seja, se os mais velhos transmitem lembranas oralmente e no fixam o ter-ritrio em documentos, Mrcio est organizando um arquivo escrito sobre Cambar e fixando e visualizan-do em um mapa o territrio do grupo.

    Esse quadro, contanto, demasiado simplista, pois negligencia trs aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, no reduzo as narrativas dos membros de Cam-bar a uma mera adequao ao presente. Se a situao histrica do grupo certamente influi na dinmica e re-configuraes do passado, necessrio tomar o cuidado de no redundar num circunstancialismo. Cabe pensar se nossa nsia em decretar a inexistncia das coisas no acaba por menosprezar as determinaes do passado no presente (Santos, 2003). Afastemos mal-entendidos. Ao falar em determinaes do passado no quero reme-ter ao acabado. Quero abrir um espao de interrogao que no subordina o passado vivido exclusivamente ao reconstrudo nas interaes no presente.

    O modelo da inveno das tradies (Hobs-bawm; Ranger, 1997) parece-me insuficiente justa-mente por conta disso. O passado nunca permanece idntico a si mesmo, mas ele criado com base numa experincia vivida. As pessoas no se recordam a partir do nada; elas criam com base em um repertrio. Ao enfatizar somente a dimenso poltica da etnicidade e as reelaboraes da memria com vistas a legitimar a luta por direitos, corre-se o risco de tomar o tem-po como mximo rendimento, ou seja, mero instru-mento de realizao de um ulterior distante (Tedesco, 2004, p.107-8).

    Em segundo lugar, a documentao de uma his-tria transmitida oralmente no um ato de inaugu-rao da escrita no interior do grupo. Embora pratica-mente todas as pessoas da comunidade nascidas entre 1910-1950 sejam analfabetas, elas j possuam um con-tato com a escrita, mesmo que de forma espordica.

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    A relao entre oralidade e letramento no consiste na sobreposio de uma forma de registro por outra, mas sim no complexo entrelaamento entre ambas (Street, 2003; Rappaport, 1990; 1994).

    Em terceiro lugar, croquis e arquivos escritos tor-nam-se novos suportes da memria pari passu aos suportes territoriais da memria. Recentemente perguntei a Mr-cio se havia tido muita dificuldade em fazer seu mapa. Respondeu que no, que faria outro naquele mesmo instante, se preciso. O que fez foi estacar em um ponto prximo sua casa e esboar o mapa da comunidade. Disse-me que conhecia bem o lugar, por isso no tivera dificuldades. Essa histria incrustada na paisagem foi o que possibilitou inscrever lembranas em um croqui.

    Em sua j clssica obra, Rosaldo (1980) chama ateno para diferentes formas de evidncias factuais intimamente relacionadas s percepes do espao e do tempo. No grupo estudado por Rosaldo, os as-pectos da natureza so como fontes documentais. As rvores, por elas mesmas, testemunham a verdade das histrias de residncia passada. De igual modo, em Cambar, as regresses ao passado esto meticulosa-mente mapeadas nas paisagens. As paisagens, incorpo-radas nas histrias, conformam o que Rosaldo chama de espacializao do tempo. O tempo pensado em termos de sua configurao espacial.

    A escolha dos lugares no fortuita; corresponde aos itinerrios do grupo. Os lugares so tempo de mar-cao de um tempo vivido, como nota Godoi (1999). O croqui de Mrcio apenas uma faceta dessa memria territorializada. Como diz Mia Couto em um de seus belos livros, a terra tem suas pginas: os caminhos. Isso fica particularmente sinalizado nos passeios que reali-zamos com os membros do grupo. A visualizao da morada dos antigos, dos arvoredos e matos, das divisas, das sangas, lagos e crregos, do salo de bailes e outros tantos lugares so os pontos de apoio da me-mria. Apontar onde um parente ou antigo viveu, plantou e trabalhou uma forma de inscrever as rela-es familiares na histria do grupo. Esse tempo gene-algico estruturante da continuidade do grupo (Godoi, 1999) mapeado meticulosamente na paisagem. Ao definir o que seu territrio, os moradores de Cambar mobilizam e so mobilizados por sua histria.

    Histrias obliteradas

    Iniciei este artigo perguntando pelos efeitos de conhecimento gerados pelas experincias e encontros etnogrficos com o campo na relao estabelecida com o arquivo. Fiz meno, num primeiro momento, si-

    tuao prtica em que essa relao se deu. A pesquisa que resultou no laudo antropolgico intentou valo-rizar a oralidade, mas esse exerccio teve limitaes impostas pelo gnero de saber que estvamos produ-zindo. Em seguida, ao expor de forma muito sumria alguns aspectos das formas de lembrar e do trabalho da memria existentes em Cambar, tentei lembrar que se lembra, independentemente da correspondn-cia com o escrito. Argumentei que s possvel redu-zir a assimetria entre oral/escrito tomando a oralidade em seus prprios termos.

    No se trata tanto de um relativismo complacente. O caso da oralidade exemplifica bem a tendncia da antropologia em deslizar entre o culturalmente razo-vel e o conforme a razo sem muitas problematizaes. Para ser mais preciso, supe-se diferentes princpios cognitivos em funcionamento, passando-se sem me-diao das representaes culturais aos processos de pensamento (Fausto, 2001, p.492). Ao invs de propor uma interpretao sobre o modo de pensar indgena, talvez fosse interessante realizar uma experimentao com ele e, portanto, com o nosso (Viveiros de Castro, 2002, p.123-4).

    A assimetria entre oral e escrito mantida, sus-tentada e erigida no s pelo esquecer que se lembra, mas sobretudo pela reduo da criatividade de outras culturas nossa realidade (Wagner, 1981). Enquanto avaliarmos os relatos orais como formas imperfeitas e inacabadas de registro do passado, continuaremos a re-duzir novas potencialidades e possibilidades de viver a vida aos termos de nossas ideologias. Ao invs de esta-belecermos uma relao de conhecimento que permita a emergncia de mundos possveis, procedemos a uma alegoria das discriminaes que operamos no nosso dia-a-dia. Nas sociedades ocidentais, a histria encarnada e vivida em lugares da memria como o arquivo.

    Como nota Nora (1984), vivemos numa era ansiosa por conservar. A distino entre memria e histria proposta pelo autor refere constituio gi-gantesca e vertiginosa de suportes materiais do pas-sado. Menos a memria vivida do interior, mais ela necessita de suportes exteriores. Da a obsesso pela preservao integral do passado. H lugares da me-mria porque no h mais meios de memria, diz o autor francs (Nora, 1984, p.23). Rede que mobiliza uma enorme amplitude de humanos e no-huma-nos, os lugares da memria definem o trabalho de instrumentao que oferece os padres de medida e comensurabilidade entre sociedades (Latour, 1994). Os artefatos do arquivo so pensados menos como suportes mnemnicos e mais como repositrios de um passado pronto a ser desvendado pela autoridade do documento7. Ser que a ausncia de repositrios gigantescos de conservao do passado manifesta ca-

    7 Neste ponto Foucault (2003 [1969]) um interessante ponto de amparo para pensar o arquivo no s como espao repositrio de conheci-

    mento, mas tambm de produo.

  • 47

    rncias mnemnicas ou revela formas diferenciadas de viver, conviver e interpret-lo?

    Como faz notar Cunha (2005), o Arquivo um campo igualmente marcado pelos encontros e relaes diversas de conhecimento. Se h uma historicidade prpria aos artefatos (como o documento, por exem-plo) capturados por etngrafos e historiadores eles tambm possuem a sua histria necessrio mover a ateno para o estatuto desses artefatos e sua (suposta) capacidade de remeter-nos a um passado:

    O valor do documento reside em que se mantenha intacto na sua suposta capacidade de nos deslocar para o passado. Para tanto, quase sempre, serve de atestado, prova mate-rial de que o que o tempo, pelo menos naquele objeto, foi preservado. Em diversos encontros aprendi ser poss-vel 'ver' outras coisas: o tempo que permanece transfor-mado (Cunha, 2005, p.26 [grifos no original]).

    A antropologia simtrica proposta por Latour (1994) e antropologia reversa de Wagner (1981) constituem aportes inovadores ao deslocarem o foco de ateno para os efeitos reflexivos que as experin-cias e experimentaes com o pensamento nativo podem exercer nas nossas prticas de conhecimento. Os relatos e lembranas dos moradores de Cambar permitiram-me estabelecer uma relao em outros termos com o arquivo. Os eventos que emergiam dos documentos eram especialmente enriquecidos pela forma que eu confrontava o passado e a forma pela qual o passado me confrontava. O documento reme-tia-me a um passado. A diferena que o mosaico que o compunha estava povoado por vozes: as vozes dos narradores e narradoras de Cambar.

    O registro de transmisso de terras revelava pa-dres de acesso a terra, estatsticas fundirias, a cor-relao entre capital fundirio e ocupao territo-rial, mas tambm uma dramaticidade da existncia. Os locais apontados em mapas, medies e registros fundirios eram menos uma localizao geogrfica, e mais um palco onde pessoas construram suas casas, freqentaram festas, trabalharam sua lavoura, criaram seus filhos, plantaram rvores. A escritura de compra e venda estava circundada por outras verses, outras vises do fato. Por trs de termos regimentais, afigu-ravam-se meandros ausentes na memria oficial, mas que estavam presentes hoje, no presente cotidiano do grupo. Uma alforria remetia para as polticas de li-berdade de certo perodo. Mas remetia tambm a um causo protagonizado pelo beneficirio dela. Muitos documentos tratavam de eventos protagonizados por pessoas que eu conhecia por meio de relatos. Nesses encontros com o arquivo, visualizava os gestos, as ex-presses, as reaes e falas dessas pessoas filtradas pelos narradores do presente.

    A produo de um texto descritivo sobre esses encontros tornou-se o registro de vrias historicida-

    des: a dos artefatos que capturam o tempo, a das me-mrias e lembranas compartilhadas em um momento especfico e quela produzida pela narrativa antropo-lgica. So esses diferentes encontros e relaes de co-nhecimento que descortinam outras possibilidades na produo de uma narrativa sobre o passado. O passado compartilhado entre homens e mulheres de Cambar com pesquisadores traz a possibilidade de trazer lem-brana memrias e narrativas que esto ausentes justa-mente nos espaos e lugares repositrios do passado.

    No estou supondo que os relatos remetam aquilo que de fato aconteceu. Tampouco que se-jam verses estticas e intactas o exemplo de Mr-cio demonstra o contrrio. O que est em jogo no um essencialismo, mas um pluralismo. Um dos po-tenciais da chamada histria oral consiste justamen-te em oferecer novos temas e problemas histria, no desconhec-la. H uma tendncia nos trabalhos antropolgicos dedicados realizao de laudos em tomar a histria oral como substituta dos documentos, reclamando para si uma materialidade, validade e ex-clusividade que o universo escrito e histrico sempre reservou para si. O problema consiste na substituio de um substancialismo por outro, como nota Arruti (2005, p.124-5).

    Esse perigo s se apresenta se tomarmos a oralida-de exclusivamente como fonte ou metodologia. Pensar a oralidade alm da metodologia (Amado; Ferreira, 1996) e da fonte histrica (Vansina, 1985; Thomp-son, 1992; Prins, 1992) permite perguntar por outras coisas, estabelecer novas relaes de conhecimento. As mediaes com os arquivos, permeadas por relatos orais podem descentrar o estatuto do documento (ar-tefato) e localiz-lo no como um simples retorno ao pretrito. Antes, um retorno que tambm mediado, que segue padres de relevncia de fixao e no-fi-xao dos eventos. Ao eleger o documento como locus privilegiado de reconstituio do passado, outras his-trias e outras memrias restam obliteradas. Os efeitos de conhecimento podem ter grande valia no tanto por apresentar uma verso mais verdadeira do que a oferecida pelo Arquivo, mas por apresentar outras possibilidades de apreender o passado.

    A conjugao campo-arquivo traz efeitos reflexi-vos sobre as avaliaes e concepes que fazemos dos nossos dados e das concepes que balizam nossas re-construes histricas. Se o acervo documental nos auxilia na compreenso de determinados aspectos de Cambar, por outro lado as concepes dos membros de Cambar sobre a histria permitem pensar em outro patamar os documentos, exercendo efeitos de conheci-mento na leitura e reconstruo do passado. Como nota Trouillot (1995), o silenciamento do passado inerente produo histrica no anulado pelo aumento do es-copo de fontes, simplesmente. A grande questo parece ser que tipo de pergunta se faz s fontes. Talvez puds-semos procurar o no-dito do dito. Pensar os diferentes

    Mutaes de olhar: as vias de dilogo entre o campo e o arquivo Marcelo Moura Mello (UNICAMP)

  • 48 Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008

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  • 49

    Abstract

    The goal of this paper is to reflect on the use of written sources in anthropological research and its relationship with the ethnographic production, as well as the involvement of field experiences in the description, management and reading of these sources. This paper discloses the different contexts of the field and file researches involving the black rural commu-nity of Cambar, which is located between the towns of Cachoeira do Sul and Caapava do Sul (Rio Grande do Sul). It is considered that only taking the orality in their own terms - through the description of the ways of remembering and the work of memory - it is possible to reduce the asymmetry between oral and written languages. It is argued that the oral reports collected in the field may have effects of knowledge in reading from written sources and putting new issues for the reconstruction of the historical past.

    Key-words: Africa; immigrant; narrative; culture; itinerary.

    Data de recebimento do artigo: 15 de fevereiro de 2008 Data de aprovao do artigo: 22 de abril de 2008

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