Dialogo s Cinema Escola
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2PROPOSTA PEDAGGICA
DILOGOS CINEMA E ESCOLALAURA MARIACOUTINHO1
APRESENTAO
Antes do cinema, voc olhava para a sua vida da mesma forma
que um despreparado ouvinte de um concerto ouve a orquestra
executando uma sinfonia. O que ele ouve apenas a melodia
principal, enquanto que todo o resto se confunde num rudo
geral. Somente os que conseguem distinguir a arquitetura dos
contrapontos de cada trecho da partitura que podem real-
mente entender e apreciar a msica. E assim que vemos a
vida: s a melodia principal chega aos olhos. Mas um bom filme,com seus close-ups, revela as partes mais recnditas de nossa
vida polifnica, alm de nos ensinar a ver os intrincados deta-
lhes visuais da vida, da mesma forma que uma pessoa l uma
partitura orquestral.2
Voc entra numa sala de cinema, apagam-se as luzes, ilumina-se a
tela. Uma sucesso de imagens, cores, luzes, sombras e sonoridades
preenche o espao e voc, junto aos personagens que compem a histria
que se desenrola sua frente, reconstri aquela narrativa cinematogrfica.
Um filme sempre visto como se fosse a primeira vez, mesmo que voc o
tenha visto antes, ou ainda que o veja depois. A linguagem cinematogrfica
conduz o espectador a um tempo inaugural, sempre no presente. Primeiro
1 Professora da Faculdade de Educao da Universidade de Braslia, Doutora em Educao na rea Educao, Conhe-cimento, Linguagem e Arte pela UNICAMP. Consultora desta srie.
2 Balzs, Bela. A face das coisas. Em: Xavier, Ismail. (org.)A experincia do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme,1983, p. 90.
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a escurido, minutos depois a luz se faz. Tudo se passa, ento, como se o
filme, ao apreender determinado tempo, pudesse transform-lo em um
eterno presente. E para esse presente que o espectador transportado a
cada nova projeo. As pessoas vo ao cinema em busca do tempo, do tempoperdido da histria, do tempo das muitas histrias que os filmes contam.
Este, talvez, seja o maior poder do cinema: o de enriquecer a experincia
viva e presente de uma pessoa3.
Por isso, posso dizer que o filme est sempre no presente, mesmo
quando procura retratar histrias acontecidas em tempos remotos. Assim,
o cinema inaugura uma maneira nova de estar e de olhar para o mundo e,
mais ainda, estabelece uma nova forma de inteligibilidade. Depois do cinema,
as pessoas passaram a contar com um instrumento poderoso de
conhecimento do mundo, de si prprias, do comportamento humano, de
lugares, de situaes, da histria. Jamais o homem esteve to exposto com
todas as suas virtudes e mazelas como no cinema.
Pela fora que a imagem visual adquiriu, as narrativas do cinema so
aquelas que, em quantidade e intensidade, povoam a imaginao de um
nmero significativo de pessoas; personagens de filmes passam a compor
certo imaginrio coletivo, de tal forma que transcendem o universo ficcionale, como figuras exemplares de virtudes ou de vcios, transitam pela vida de
quem anda pela cidade, pela escola, pela academia e institutos de pesquisa,
de quem v televiso.
, sobretudo, por meio do aparato televisivo emissoras com canais
abertos e por assinatura e, ainda, com o videocassete que o cinema, os
filmes e seus personagens expandiram as possibilidades de exposio,
alcanando nveis antes inimaginveis. Se por um lado o cinema perdeu o
requinte da projeo em tela branca na sala escura, com acstica apropriada,
com um nmero reduzido de lugares, por outro ganhou a rua, a escola, a
casa, o ambiente de trabalho, a sala de espera.
Depois dessa pequena digresso, retomo a reflexo que fazia sobre a
linguagem do cinema, que tem como elemento essencial a realidade, ainda
que esta seja, quase sempre, criada em estdios. Algumas cenas de filme so
rodadas em ambientes naturais que no foram criados originalmente para o
3 Ver o livro de Andrei Tarkoviski.Esculpir o tempo.So Paulo: Martins Fontes, 1998.
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cinema, mas servem como locais onde a narrativa se desenrola. So as
filmagens feitas em locaes que podem estar a quilmetros dos locais onde
se passa a histria que o filme quer contar. As locaes e os cenrios artificiais
dos estdios cinematogrficos procuram reproduzir a realidade com toda averossimilhana possvel. Mais do que uma realidade composta de elementos
reconhecidos, identificados, verdadeiros, o cinema cria imagens e sons que
possam construir para o espectador uma sensao de realidade. Assim, o
cinema cria uma linguagem que expressa o real, com toda a multiplicidade
de aspectos que o compem. Muitos destes aspectos no so vistos ou ouvidos
objetivamente, so apenas sugeridos. Alguns podem ser encontrados no
espao que Gilles Deleuze chamou de extra-campo ou espao-of f4.
Para Pier Paolo Pasolini, o cinema no evoca a realidade como a lngua
da literatura; no copia a realidade como a pintura; no mima a realidade
como o teatro. O cinema reproduza realidade: imagem e som! E reproduzindo
a realidade, que faz o cinema ento? Expressa a realidade pela realidade.5 E
ainda a Pasolini, j em outro texto, que recorro para falar desse novo olhar que
o cinema cria: Nada como fazer um filme obriga a olhar as coisas. O olhar de
um literato sobre uma paisagem, campestre ou urbana, pode excluir uma
infinidade de coisas, recortando do conjunto s as que o emocionam ou lhe
servem. O olhar de um cineasta sobre a mesma paisagem no pode deixar,
pelo contrrio, de tomar conscincia de todas as coisas que ali se encontram,
quase as enumerando. De fato, enquanto para o literato as coisas esto
destinadas a se tornar palavras, isto , smbolos, na expresso de um cineasta
as coisas continuam sendo coisas: os signosdo sistema verbal so portanto
simblicos e convencionais, ao passo que os signos do sistema cinematogrfico
so efetivamente as prprias coisas, na sua materialidade e na sua realidade.6
O cinema feito de imagens e sons em seqncia e, embora seexpressando por meio da realidade, convencionou uma linguagem que revela
um modo de ver completamente artificial, criado atravs do olhar ciclpico
4 O extra-campo pode ter duas naturezas distintas: umaspecto relativo, atravs do qual um sistema fechado remete noespao a um conjunto que no se v e que pode, por sua vez, ser visto, com o risco de suscitar um novo conjunto visto,ao infinito; umaspecto absoluto, atravs do que o sistema fechado se abre para uma durao imanente ao todo douniverso, que no mais um conjunto e no pertence ordem do visvel. Deleuze, Gilles. Cinema: a imagem-
movimento.So Paulo: Brasiliense, 1985, p.29.5 Pasolini, Pier Paolo.Empirismo Hereje.Lisboa: Assrio e Alvim, 1982, p. 107.6 Pasolini, Pier Paolo. Gennariello: a linguagem pedaggica das coisas. In:Os jovens infelizes: antologia de ensaios
corsrios.So Paulo: Brasiliense, 1990.
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das cmeras e de todo o aparato tecnolgico que est presente desde o
momento da captao das imagens at o instante em que surgem,
iluminando as telas e contando todos os tipos de dramas, comdias,
tragdias, reais ou fictcias. As inmeras possibilidades do olhar que cmeracriou, as mltiplas formas de aproximao e distanciamento que vo dos
enormes planos gerais ao close-up7, os enquadramentos e movimentos que
as novas tecnologias de captao de imagens permitem, quando percorrem
grandes distncias indo de um ponto de vista a outro na mesma tomada,
deram origem linguagem cinematogrfica atual e, ao mesmo tempo
alteraram irreversivelmente a prpria percepo visual das pessoas e por
isso a prpria realidade em que vivem.
Tudo isso aconteceno mesmo espao 4x3 das telas, que permanece
inalterado enquanto coisas, pessoas, detalhes aumentam ou diminuem
frente do espectador, que est acostumado com a forma de expressar que o
cinema inventou, pois j nasceu mergulhado nesse universo de imagens
criadas pela linguagem cinematogrfica. As cabeas decepa das do incio
do cinema j no surpreendem mais8. Porque o espectador aprendeu, cedo,
como todas as pessoas com as quais convive, a decifrar os cdigos do cinema
que perpassam as relaes da sociedade contempornea.
Todo espectador capaz de perceber, identificar e reconstituir, por
inteiro, a imagem que se apresenta fragmentada na tela, um big close
hoje to natural quanto qualquer figura que aparece inteira na tela. Posso
dizer que natural apenas no cinema, pois essa no uma experincia que
as pessoas possam ter sem contar com os aparatos de captao e tratamento
de imagem cmera, lentes, gravadores, editores. A linguagem
cinematogrfica o resultado de um processo de elaborao que envolveu
muitas escolhas e precisou de certo tempo para tornar-se a linguagem globalque hoje. Jean-Claude Carrire9conta que, no incio do cinema, para que
7 Plano para a linguagem cinematogrfica pode significar duas coisas: primeiro a composio de cada imagem que, deacordo com enquadramento e distncia do assunto, pode ser classificada em: plano geral, plano de conjunto, planoamericano, primeiro plano, plano detalhe; e, ainda, o espao-tempo contido em uma nica tomada.
8 Massimo Canevacci, citando Bla Balzs diz que este usa palavras cheias e comoo para descrever a descoberta doprimeiro plano, por ele atribuda a D.W. Griffith, que inventou tambm a montagem alternada. Graas fisionmica, ocinema exalta a correspondncia entre os sentimentos interiores at os mais escondidos do homem e os traos do rosto:
os movimentos da alma impressos, marcados no cdigo facial que, de tal modo, se torna a mscara da tela. (...) Noprimeiro plano freqentemente est a dramtica revelao daquelo querealmentese esconde na aparnciado ho-mem. Antropologia da comunicao visual.So Paulo: Brasiliense, 1990.
9 Carrire, Jean-Claude.A linguagem secreta do cinema.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
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espectadores entendessem a narrativa, havia a figura do explicador, uma
pessoa que, postada ao lado da tela, ia fazendo a relao entre as imagens e
contando a histria.
Ningum v enquadrado, ou mesmo se aproxima de tal maneira decoisas e pessoas para captar determinados detalhes que compem muitas
narrativas flmicas. So lentes especiais que realizam esse trabalho. Essa
naturalizao da linguagem faz que no haja uma maior preocupao com
ela. Ver um filme algo trivial para algum que nasceu no sculo passado.
O olhar enquadrado parte essencial e corriqueira do viver contemporneo,
mas requer uma infinidade de tcnicos e profissionais e movimenta uma
indstria poderosa que lana, no mercado dos consumidores de histrias,
uma profuso cada vez maior de narrativas, procurando atender a todos os
gneros e gostos.
Um filme feito de tudo o que vemos estampado na tela e ouvimos
pelas caixas de som, mas tambm por tudo o que os cortes que conduzem o
olhar do espectador de uma para outra cena evocam. Os vazios entre os
planos supem uma supresso temporal e abrem o espao para a imaginao
do espectador. Por isso, talvez, o procedimento da montagem do filme
chamado de especfico flm ico, ou seja, aquilo que faz do cinema, cinema.Traduz a essncia da linguagem cinematogrfica e diferencia o cinema da
realidade da qual se destaca e se separa.
A realidade, diz Pasolini, seria um plano-seqncia infinito e o filme,
ao contrrio, um plano-seqncia finito; comea, desenvolve e termina10. O
filme feito de tudo o que se oferece viso e, igualmente, do que no ser
visto. Algumas coisas sero apenas sugeridas e iro compor os vazios, os
intervalos que, no cinema, so to significativos quanto o que as imagens e
sons explicitam. nesse intervalo que os sentidos conversam: o sentido do
filme que o diretor quis expressar e o sentido acrescido de quem v. Assim,
posso dizer tambm que o filme sempre uma obra aberta. No se presta a
uma nica interpretao. Pode ser visto e revisto de vrias maneiras, tudo
fica a depender do contexto, da capacidade, do interesse, das expectativas
de quem v.
O cinema cria uma linguagem especfica, portanto, uma
inteligibilidade peculiar. Assim, ao pensar o cinema, a escola pode tambm
1 0 Pasolini, Pier Paolo.Empirismo Hereje.op.cit.
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refletir sobre a educao que realiza, os mtodos, o programa e at mesmo
a sua organizao. Como os filmes e com eles a linguagem cinematogrfica
, chegam escola, sala de aula, aos ambientes educacionais? Esta a
questo bsica que permeia esta srie de programas em que vamos discutiras possveis relaes do cinema com a educao. Nesta srie, vamos nos
dedicar, prioritariamente, aos filmes produtos da cultura, manifestaes
esttico-culturais, obras abertas e que, portanto, no foram pensadas para
a escola ou para a educao. Filmes dessa natureza so realizados para um
pblico muito amplo, para a massa heterognea de pessoas que vo ao
cinema, vem televiso e assim consomem os produtos da indstria cultural.
Como produtos dessa indstria, os filmes no foram pensados para
atender a determinados requisitos que a educao realizada pela escola
exige: a adequao a um contedo predeterminado, seriao, s
especialidades, s disciplinas, aos horrios. A educao escolar ainda est,
em grande parte, centrada na escrita e na oralidade das aulas expositivas
que os professores ministram. Assim o filme imagem e som chega ao
ambiente escolar como ilustrao, anexo, acessrio do texto que, ainda, o
mais forte referencial para a escola, mesmo com todo o vigor que a linguagem
audiovisual adquiriu na sociedade contempornea.
O cinema j nasceu com certa vocao cientfico-educacional para alm
dos espetculos e curiosidades dos vaudevi l les do incio do sculo XX11.O
cinema documentrio e a tradio dos filmes etnogrficos confirmam essa
tendncia. No Brasil, o dilogo cinema e escola tem o seu mito de origem:
Humberto Mauro e o Instituto Nacional do Cinema Educativo INCE, criado
em 1936 por Roquette Pinto. Nada como um filme que se leve para a sala de
aula nos obriga a olhar para a escola. Posso dizer que era essa a preocupao
dos criadores do INCE: que educao essa que estamos promovendo, nocinema, na televiso, na sala de aula? Como o cinema pode, em realidade e
magia, penetrar o universo educacional da sala de aula? Como seria uma
escola que tambm pudesse se expressar na lngua do cinema e no somente
na lngua dos livros? Essas questes parecem persistir depois de tanto tempo
e de tantas experincias. A TV Escola no tem fugido a essas questes, pelo
contrrio, as vem recolocando de novas maneiras, buscando sempre sob
novos enfoques que esse dilogo se concretize.
1 1 Ver Costa, Flvia Cesarino. O primeiro cinema: espetculo, narrao, domesticao. So Paulo: Scritta, 1995.
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O cinema, com o seu aparato tecnolgico apropriado para
documentar, encenar e narrar histrias, construiu uma nova maneira de
olhar para o mundo e, com isso, estabeleceu uma forma peculiar de
inteligibilidade e conhecimento. Esta srie, que ser apresentada de 3 a 7de junho, no programa Salto para o Futuro, da TV Escola, constitui-se de
cinco programas dedicados a refletir as relaes possveis entre o cinema e
a escola, entre a linguagem cinematogrfica e a educao.
Esta reflexo dever acontecer, prioritariamente, em salas de aula.
Sobretudo aps a apresentao dos filmes. Pouqussimas escolas podem
contar com salas apropriadas para sesses de cinema. Tampouco as escolas
tm se organizado para a recepo de novas linguagens. O tempo recortado
das aulas quase sempre no permite que os filmes sejam vistos na sua
integralidade. H uma incompatibilidade temporal entre o cinema e a escola
que talvez pudesse ser superada com um pouco de boa vontade e
determinao.
Os filmes, na escola, chegam, em geral, por meio do videocassete e da
televiso, sendo vistos em telas menores. Mas, se perde em tamanho e
concorre com as imagens da prpria sala, pois os ambientes nem sempre
podem ser escurecidos, ganha em pblico que se amplia a cada novaprojeo. Muitas pessoas somente tero acesso a certos filmes se eles
estiverem presentes nas salas de aula. Ademais, o videocassete permite,
para o bem ou para o mal, que o filme seja decupado a critrio de quem o
assiste. As imagens podem ser facilmente vistas e revistas. Ver filmes e as
imagens que eles propem deve ser um exerccio de liberdade, uma fruio.
Sem isso o cinema estar reduzido mera ilustrao de contedos
curriculares e pouco dir ao aluno. Cinema a arte da vida e talvez possa se
constituir em um grito que desperte professores e alunos para uma novaviso educativa, na qual os tradicionais e os modernos mtodos de ensinar
e aprender possam fundir-se em novas possibilidades expressivas.
ESTES SO OS TEMAS A SEREM DEBATIDOS DOS PROGRAMAS:
PGM 1 CINEMA E REALIDADE
Apresentar o cinema documentrio como construo esttica de uma viso
sobre o real. As mltiplas possibilidades educacionais deste gnero. Esta-
belecer algumas conexes entre os inmeros filmes documentrios que a
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TV Escola veicula e as diferentes formas e abordagens pedaggicas que
permitem.
PGM 2 CINEMA E HISTRIA
Apresentar as potencialidades do cinema como revelao e ocultao da his-
tria. A fora da imagem como formadora de um entendimento do mundo. A
fico e a realidade dos filmes histricos, sejam ficcionais ou documentrios.
Como os filmes baseados em fatos histricos chegam na escola.
PGM 3 CINEMA E LITERATURA
O objetivo deste programa o de apresentar uma reflexo que permita
estabelecer relaes entre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual,enfocando, sobretudo, o potencial pedaggico de cada uma dessas lingua-
gens. Discutir a traduo de uma linguagem para outra, com exemplos de
filmes que foram baseados em obras literrias. Indicar algumas possibilida-
des educativas que possam auxiliar o trabalho do professor em sala de aula.
PGM 4 CINEMA NA ESCOLA
Apresentar a histria do cinema educativo brasileiro com a criao do Insti-
tuto Nacional do Cinema Educativo- INCE. A importncia de Humberto Mauro
para o cinema brasileiro.
PGM 5 ESCOLA NO CINEMA
Discutir, a partir de alguns filmes comerciais, a viso que o cinema apre-
senta da escola, e de que forma esta viso pode concorrer para conformar
uma percepo e uma memria das relaes ocorrentes no interior desta
instituio educacional.
BIBLIOGRAFIA
Almeida, Milton Jos de. Imagens e sons: a nova cultura oral.So Paulo: Cortez, 1994.
O livro trata as linguagens audiovisuais do cinema e da televiso como
produtos de uma nova cultura e suas relaes com a educao. Em um
primeiro momento, aborda a linguagem audiovisual do ponto de vista da
sua constituio na moderna sociedade oral e, depois, a sua traduo em
alguns filmes contemporneos.
Canevacci, Massimo. Antropologia da comun icao visual . So Paulo: Brasiliense, 1990.
Aborda a sociedade contempornea com o estranhamento prprio dos an-
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troplogos. Busca mostrar, de maneira singular, as imbricadas relaes
entre a linguagem audiovisual, a cultura e a sociedade moderna.
Carrire, Jean-Claude. A l ingua gem secreta d o cinema . Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995.Desvela com muita propriedade a linguagem do cinema da perspectiva do
roteirista, ou seja, de quem escreve o que ser filmado. Constri uma
narrativa que leva o leitor a uma compreenso profunda da linguagem
cinematogrfica.
Costa, Flvia Cesarino. O p rimeir o cin ema : espetcu lo, n a rr ao, d omest icao.
So Paulo: Scritta, 1995.
Focaliza os primrdios do cinema, um perodo muito pouco conhecido.
Procura desvelar as suas origens, situando os processos que constituram
a linguagem cinematogrfica.
Pasolini, Pier Paolo. Empir ismo Hereje. Lisboa: Assrio e Alvim, 1981.
O livro no qual Pasolini constri as suas teorias sobre linguagem, mais
especificamente a linguagem cinematogrfica.
Tarkoviski, Andrei. Esculpir o tempo. So Paulo: Martins Fontes, 1998.
O livro uma reflexo potica do cineasta sobre o cinema, o ato de filmar,
as imagens, os sons, o tempo, o espao. A realizao cinematogrfica e os
elementos que a constituem.
Viany, Alex. Humberto Mauro: sua vida , sua a rte, sua tr ajetria no cinema . Rio de
Janeiro: Artenova/Embrafilme, 1978.
Trata-se de uma coletnea de textos e imagens da vida do cineasta
Humberto Mauro.
Xavier, Ismail. (org.) A experincia do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme,
1983.
Trata-se de uma antologia que rene os principais estudiosos da lingua-
gem cinematogrfica. Introduz o leitor a diferentes concepes de cinema.
SITES
www.cineduc.org.br Site com rica produo na rea do cinema e educao,
abrangendo aspectos da histria do cinema e de atualidades. Instituio que
se dedica a ensinar linguagens audiovisuais para crianas e adolescentes.
www.kinedia.hpg.ig.com.br Divulga informaes gerais sobre cinema.
www.cenaporcena.com.br - Apresenta links de entrada para vrias institui-
es e assuntos relativos a cinema.
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www.revbravo.com.br Site da Revista Bravo que trata dos mltiplos aspectos
do audiovisual, com nfase no cinema e na televiso.
www.classicvideo.com.br - Site onde possvel encontrar para encomenda
filmes que no existem em muitas locadoras.
www.casacinepoa.com.br Site que divulga as atividades da Casa de Cinema
de Porto Alegre e, ainda, artigos e sinopses de filmes.
www.studium.iar.unicamp.br Site do Instituto de Artes da Unicamp. Divulga
atividades e artigos sobre arte, incluindo audiovisual, cinema e televiso.
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12BOLETIM
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CINEMA E ESCOLA
PGM 1 CINEMA E REALIDADEOMUNDO ATRAVS DAS LENTES
MARCOS DE SOUZA MENDES1
Para o documen tarista , na da ad quirid o par a sempre. A realid ad e
sem pr e ma is for te, ela impe su a ord em e com ela que necess-
rio se medir . Posso dizer que no existiu um fi lme d ura nte o qua l eu
no tivesse aprend ido alguma coisa, de uma maneira ou de outra . At
hoje, aps cinqenta an os de prtica, a ind a no cheguei a d efinir , de
uma vez por toda s, um mtodo de me aproxima r d os homens e de os
fi lmar. por que esse mtod o no exis te: a cada vez diferen te.
Joris Ivens
Ao longo do sculo XIX, foram in-
meras as experincias humanas para
registrar e captar as imagens da vida
real. Em paralelo ao desenvolvimentotcnico e industrial da fotografia, cien-
tistas e fotgrafos se interessaram, par-
ticularmente, pela anlise do movimen-
to em sua progresso no tempo. Esta
anlise seria possvel pela obteno de
imagens sucessivas do mesmo corpo, o
que realizaria o to sonhado desejo hu-
mano de reproduzir o movimento, de re-
ter a vida em sua passagem, de perdu-
rar as aes dos seres animais em suasvrias manifestaes no mundo: corrida
de cavalos, caminhadas, danas, banhos
de mar e gestos banais como os da ali-
mentao de um beb.
Em 1879, o fotgrafo ingls Eadweard
James Muybridge, radicado nos Estados
1 Cineasta. Professor de cinema da Universidade de Braslia. Doutorando em Multimeios no Instituto de Artes da UNICAMP.
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13BOLETIM PGM 1 - CINEMA E REALIDADE
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
Unidos, disps 24 cmeras fotogrficas
que, ao serem disparadas sucessivamen-
te, possibilitaram imagens fixas do galo-
pe de um cavalo, fotografias que foramdeterminantes das diferentes posies
de suas patas durante o movimento. O
tempo, no entanto, ainda no chegara a
ser restitudo.
Contemporneo de Muybridge, o
fisiologista francs Etienne Jules Marey
que j estudara a locomoo animal
em 1873 com um grfico de tempo emovimento, a cronograf ia criou, em
1882, um aparelho capaz de reter os v-
rios movimentos do vo de um pssaro:
o fuzil fotogrfico. Esta cmera cinema-
togrfica ancestral deu origem, pouco
tempo depois, ao Cronofotgraf o em pe-
lcu la ( em filme de celulide, inventado
em1887). O aprimoramento do Cronofo-tgrafo de Marey deu origem ao Kinetos-
cpio, dos inventores Thomas Edison e
Laurie Dickson, que permitia o visio-
namento de imagens em movimento. Em
1895, finalmente, com a criao do
Cinematgra fo dos irmos Lumire
Louis e Auguste, industriais franceses
o cinema veio luz. A vida real em seu
tempo e movimento se projetou nas te-
las. Trens chegando estao, operri-
os saindo da fbrica, pedestres e ciclis-
tas nas ruas, crianas brincando na neve
e saltando sobre o mar. O movimento e
o tempo real eram o espetculo; os se-
res humanos em suas vidas cotidianas a
essncia desses primeiros filmes2
.Nascido como registro da vida, logo
o cinema tornou-se documento e teste-
munho da histria. Os cinegrafistas de
Lumire percorreram vrios pases e re-
gistraram acontecimentos sociais e pol-
ticos, trgicos acidentes, paisagens ex-
ticas, o que deu origem aos filmes de atu-
alidades, de explorao e de reportagem.No incio do sculo XX, inmeros
pioneiros percorreram terras distantes
e inspitas para filmar guerras, batalhas,
expedies e povos desconhecidos. En-
tre ns, por exemplo, o fotgrafo e
cinegrafista Lus Toms Reis (1878-
1940) do Servio de Proteo aos ndios,
percorreu entre 1914 e 1916 centenasde quilmetros do Brasil Central e da
Amaznia para documentar as viagens
da comisso Rondon e aspectos da cul-
tura dos povos indgenas contactados3.
De curtos registros para filmes de
longa metragem, estas imagens de no
fico se constituram em memria dos
povos e sociedades. Seus realizadores
cinegrafistas, diretores, montadores
transformaram-se em cineastas do real
reprteres, historiadores, socilogos,
pintores, etnlogos, poetas, enfim, ho-
2 A Chegada do Trem na estao( L arrive dun train la gare de la Ciotat ) , de Louis Lumire, 1895. A sada dosoperrios da fbrica ( La sortie des usines Lumire), Louis Lumire, 1895. Referncias: Filmoteca do consulado daFrana, Rio de Janeiro, Cinemateca do Museu de Arte Moderna, R.J., Sr. Hernani Hefner; UNB-Filmoteca da Faculdadede Comunicao; Filmoteca da Embaixada da Frana, Braslia.
3 Ao redor do Brasil, Lus Toms Reis, 1938. (FUNARTE, Decine, CTAV: Renato Costa e Vanda Ribeiro 21.25803631).
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14BOLETIM PGM 1 - CINEMA E REALIDADE
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CINEMA E ESCOLA
mens comprometidos com seu tempo e
com a vida, uma presena no mundo
(parafraseando o educador Paulo Freire),
presena que se pensa a si mesma, quese sabe presena, que intervm, que
transforma, que fala do que faz mas tam-
bm do que sonha, que constata, com-
para, avalia, que decide, que rompe (...)
a tica se torna inevitvel e sua trans-
gresso possvel um desvalor, jamais
uma virtude.
O Cin ema Documentrio, que teveseu nome cunhado na dcada de 20 do
sculo passado, foi definido por John
Grierson, grande produtor e documen-
tarista britnico, como o tratamento cri-
ativo da realidade; j para o cineasta
francs Jean Vigo, documentrio era um
ponto de vista documentado. Podera-
mos acrescentar tambm o conhecimen-to do outro, pensamento do realizador
brasileiro Eduardo Coutinho o outro e
seu patrimnio de cultura vivida (seus
valores espirituais, ticos e sua tradio
oral, no apenas sua cultura material).
Todas essas definies apontam o
documentarista como um artista
revelador da vida, vida j to rica em gran-
des e pequenos assuntos, em dramas hu-
manos e sociais, to rica em cinema. Este
Cinema se oferece em luz de naturezas,
direes e intensidades diferentes; se
oferece em lentes que abrem espaos de
paisagens, campos, cidades e ruas; len-
tes que descobrem o espao do prprio
corpo do homem em toda plasticidade
de seus movimentos, em toda nobrezade suas aes de trabalho e em suas lu-
tas trgicas nesse mundo.
Essas lentes, essas cmeras, que tra-
zem em si um corao e uma moral, ora
so fixas e contemplativas; ora so m-
veis e participativas e correm leves e qua-
se voam para seguir os seres e as coisas
na totalidade de seu percurso, para di-alogar com outros pensamentos e olhar
e ver o mundo mais em profundidade.
Sem a objetividade excessiva e o oportu-
nismo do reprter, o documentarista
deixa o mundo se apresentar.
Alguns documentaristas, como Dziga
Vertov (1896-1954), principal cineasta
sovitico dos anos 20, no negociaramseu cinema engajado no caso de Vertov,
compromissado com os ideais da revolu-
o bolchevique de outubro no nego-
ciaram o cinema do real, do homem vivo,
sem encenao, nem o cinema da cria-
o e da experimentao (principalmen-
te em som e montagem)4.
(...) De uma monta gem d e fa tos vi sveis e
fixa dos na pelcula (Kin o-Glaz), cinema -
olho, a uma mon tagem de fatos visveis-
audveis pelo rd io (Rd io-Glaz). A uma
4 Kino Glaz.Dziga Vertov, URSS, 1929. O homem da cmera.Dziga Vertov, URSS, 1924.
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CINEMA E ESCOLA
mon tagem de fatos simulta neamen te vis-
veis-audveis-pa lpveis-res pi rveis,etc...
A uma filmagem de improviso dos pen-
samentos humanos e, finalmente a
uma grandiosa tentativa de organiza-
o direta do pensamento por conse-
qncia, das aes) de toda a huma-
nidade (...) Dziga Vertov,Kiev, 06/ 11/
1928 .
Cada vez mais lrico e potico em seus
documentrios de longa metragem Cine-Poemas, como ele chamou alguns filmes,
entre os quais, Trs Cantos sob re Lnin e
Ca no d e Em ba la r (Kolibelnaya),
Vertov sofreu com a burocracia e a cen-
sura artstica dos produtores e crticos.
Outros cineastas abraaram o mun-
do com a alma. Conviveram com a reali-
dade sem a (pr)-concepo de roteiros
e narrativas fceis de sucesso comercial.
Sentiram o mundo como poetas maio-
res, com o nico compromisso de res-
peitar o cotidiano das pessoas que parti-
ciparam das filmagens e tambm de res-
peitar seu prprio sentimento. Robert
Joseph Flaherty (1884-1951) foi, talvez,
o mais romntico, o mais sensvel des-
ses documentaristas. Pai do filme antro-
polgico, este fotgrafo, diretor e
montador norte-americano trouxe hu-
manidade trs testemunhos inesquec-
veis sobre o ser humano em luta contra
a natureza ou em harmonia com o mun-
do: Nan ook of the North(1920-1921), fil-
me sobre o cotidiano de uma famlia es-quim do nordeste da Baa de Hudson,
no rtico5; Moana - a roma nce of the
Golden Age (1923-1926), rodado no Pa-
cfico Sul, Polinsia, com os habitantes
de Samoa em suas vidas dirias de ale-
grias e danas; Man of Aran(1932-1934),
sobre a pesca, o preparo da terra vegetal
e a luta contra o selvagem mar das ilhasde Aran, na costa oeste da Irlanda.
O cinema de Flaherty foi, antes de
tudo, um cinema de amor ao prximo.
Um cinema generoso para com o huma-
no das relaes da famlia, trabalho e
amizade. Talvez at um cinema utpico,
pea de resistncia do potico em uma
cinematografia mundial cada vez maisvoltada ao consumo.
(...) Hoje, ma is que nu nca, testemunh ou
Rober t Flaher ty, o mu nd o precisa p ro-
mover a mtua compreenso entre os p o-
vos. A via mais rpid a, a mais segu ra
pa ra achegar oferecer a o homem emgeral, ao homem da ru a, como se diz, a
ocas io de se tom ar conscincia d os pro-
blemas que a fligem seus semelhan tes (...).
O drama est na vida real e especialmen-
te na vida p rimit iva. O homem, nas lutas
5 Nanook, o esquim (Nanook of the North), Robert Flaherty, USA, 1920-22.. O homem de Aran.(Man of Aran), RobertFlaherty, EUA, 1932-34. (Cinemateca Brasileira; Embaixada dos EUA; Cinemateca do MAM; UNICAMP/Instituto de
Artes.)
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contra a ameaa natu ral, forma o mais po-
deroso confl i to do mund o. Nos meus fi l-
mes eu ten to evocar este confl ito(...).
Flaherty, sem abrir mo de seu es-
prito humanista e de seus mtodos de
realizao, sofreu com os poderes finan-
ceiros: Moana foi mal distribudo pela
Paramount e teve seus negativos perdi-
dos; Wh ite Sha dow s of the South Seas
(1927-1928) foi abandonado por Flahertyno incio das filmagens, pelo fato de o
mesmo no aceitar as interferncias da
Metro Goldwyn Mayer; The Land (1939-
1942), produzido pelo Departamento de
Agricultura dos EUA, foi interditado pela
censura poltica.
Outro grande documentarista do s-
culo XX, trabalhador da luz, constru-tor do tempo, foi Joris Ivens, o holands
voador. Ubquo, documentarista da liber-
dade, Ivens atravessou o sculo docu-
mentando a luta de emancipao dos
povos. Filmou na Espanha em 1936 (Ter-
ra d e Espanha , sobre a Guerra Civil Es-
panhola)6; filmou nos Estados Unidos, na
Indonsia, na Tchecoslovquia e na
Polnia nos anos 40; filmou na Frana,
na China (Before Sprin g e 60 0 milh es
com vocs) e na Itlia, nos anos 50; fil-
mou em Cuba, no Chile e no Vietn
onde, de corpo fechado, aos 67 anos de
idade, realizou O 17 - Para lelo, sob os
atrozes bombardeios norte-americanos.
Entre 1971 e 1976 retornou Chi-
na e pintou com Marceline Loridan,sua companheira, o mural cinematogr-
fico Como Yuk ong des locou as monta -
nhas, doze horas de filme sobre diver-
sos aspectos da vida cotidiana durante a
Revoluo Cultural.
Nonagenrio, novamente voltou
China para, com sua cmera de jovem
poeta, filmar o vento. Quando a terrarespira, isto chama-se o vento ..., (se-
gundo um provrbio chins). Penso,
como cineasta, que preciso ousar no
no man s l and entre a rea l ida de e o
imaginrio disse Ivens, em entrevista
a Jean Pierre Sergent, durante lana-
mento do filme , entre o documentrio
e a fico. (...) A poesia, alm da reali-dade, eu j havia encontrado rodando
meus filmes de guerra. Desta vez, eu a
quis filmar. Enquanto artista, senti a
necessidade de ir mais longe. Uma his-
tria do Vento (1988) foi o ltimo filme
de Joris Ivens.
E assim como Ivens, Flaherty e
Vertov, foram tantos que se arriscaram e
permaneceram fiis sua arte: Jean
Vigo, Alberto Cavalcanti, Basil Wright,
Humberto Mauro, Jean Rouch, Roman
Karmen...
Ao acompanhar a dialtica do tem-
6 Terra de Espanha.Joris Ivens, EUA, 1936. (UnB/Faculdade de Comunicao; Cinemateca do MAM; Cinemateca Brasi-leira; cineasta Guido Arajo 71.347,5489, filmes de Joris Ivens).
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po, o documentarista resgata a histria,
a memria, e registra identidades cultu-
rais em extino no mundo moderno7.
Flexvel, curioso, vigilante, ele acompa-nha a vida em seu processo e por ela
roteirizado e dirigido. Pesquisa muito, faz
e refaz estruturas narrativas, intui his-
trias do prprio lugar da filmagem. Fil-
ma, aparentemente, ao lu, mas respei-
tando caminhos nascentes para a des-
coberta de seu filme e como difcil
explicar aos burocratas de planto queo roteiro (ou no-roteiro) do documen-
trio dinmico, que seu oramento
flexvel, que segue urgncias que s o
impondervel do processo criativo sabe
explicar. Depois, na montagem, ainda se
atendo espinha dorsal do roteiro ou
estrutura do guia de filmagem, o do-
cumentarista lida com tempos e espa-os impensveis, o que o leva a uma mon-
tagem criativa, independente de de-
cupagens preestabelecidas to distan-
te, no entanto, da montagem irrespon-
svel, to comum nos trabalhos que pre-
conizam: a gente filma e na montagem
a gente resolve.
O auge da montagem e do ritmo vi-
sual como expresso mxima do filme
ocorreu no final dos anos 20 (do sculo
passado), no final do perodo silencioso.
Com o advento do cinema sonoro, o
Documentrio se enriqueceu com as ex-
perincias da vanguarda sovitica e as
inovaes tcnicas da escola britnicados anos 308. Rudos, msicas, poemas
foram incorporados narrativa, o que
ampliou os horizontes artsticos do g-
nero.
Nos anos 60, as cmeras leves de
16mm em sincronia com gravadores
portteis de captao do som direto da
realidade revolucionaram, ainda mais,a dramaturgia documentria9. O tempo
real, em toda sua plenitude e durao,
reapareceu e trouxe, desta vez, a voz
humana, viva, de um ator natural, per-
sonagem do real, sem maquiagem, sem
texto decorado e comportamento este-
reotipado. Trouxe a oralidade, com a be-
leza de seus timbres, seus sotaques, suascadncias e seu vocabulrio10. O sonho
antigo de Vertov se realizava: o cinema
do som e imagem da vida e desvelador
da verdade.
Nessa nova dimenso, na qual o
Documentrio ganhou novos nomes e
horizontes Cinema Verdad e, Cinema
Direto a montagem tambm se modifi-
cou. Tornou-se mais fluida ao privilegiar
o tempo do nascimento de pensamen-
tos e aes; tornou-se menos expressiva
7 Jango.Slvio Tendler, 1984. (Caliban, 21.254.35645/5086871)Memria do cangao. Paulo Gil Soares, 1965.8 The song of Ceylon.Basil Wright, Inglaterra, 1934-35.Night mail,Basil Wright e Harry Watt, Inglaterra, GPO, 1936.
Coal Face,Alberto Cavalcanti. Inglaterra, 1936. British Council (RJ); UNICAMP/Instituto de Arte.9
Crnica de um vero. (Chronique dun t)Jean Rouch e Edgar Morin, Frana, 1960. (Consulado/Filmoteca daEmbaixada da Frana, UNICAMP/Instituto de Arte).1 0 Nelson Cavaquinho,Leon Hirszman, Brasil, 1966. Cabra marcado para morrer, Eduardo Coutinho, Brasil, 1984.
Conterrneos Velhos de Guerra, Vladimir Carvalho, Brasil, 19.Uma questo de terra, Manfredo Caldas, Brasil, 19.
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e mais interna, ao respeitar a conjuga-
o das movimentaes de cmera dian-
te de improvisos e imprevistos sem,
contudo, perder a noo de sntese, ob-jetividade, ritmo, experimentao e cri-
ao artstica11.
H vinte anos atrs, j octogenrio,
o mestre Joris Ivens abordou a questo
da criao artstica no Documentrio com
tamanha lucidez e bom senso que, ain-
da hoje, em plena era das novas
tecnologias digitais, seu pensamentocontinua atual.
(...) Exis te uma fa lsa idia que pr eci-
so comb at er, esta velh a idia d e que
documentrio reporta gem, que nada tem
a ver com a ar te, qu e o filme d e fico
a nica ma neira ar tstica d e se fa zer ci-nema (. .. ). Em a lguns casos, o docum en-
tr io e a fi co se en tr ecor ta m , se en r i-
quecem mu tuamente. Eu acredi to que o
documentrio um a boa ba se pa ra um a
evoluo auten ticamente cin ematogrfica
do film e. No documentrio, a in fluncia
d o teatr o e da l itera tu ra menor; a
ima gem flmica qu e comand a bem mais
que em um a na rra tiva d ialogada (...). Lutei
du ran te cinqenta a nos para que se re-
conh ecesse ao f i lm e d ocumentrio a
mesma importncia e a mesma n ecessi-
dad e para a a rte cinema togrfica que o
fi lm e d e f ico... Par a m im , no ex is te
con tr ad io nem opos io en tre o cin e-
ma docum en trio e o cinema de fi co.
Nos docum entrios ond e se uti l iza me-
nos o d ilogo, a liberd ad e e os recurs os
de mon ta gem so bem mai s cons id er-
veis. Em um segun do, pode-se passa r
d o microcosmo ao macrocosmo. Pode-se
fazer ma laba rismos com o tempo e o es-
pao. Es te gnero de fi lm e mais pr xi -
mo da poesia, enqua nto que o f i lme de
fi co se a paren ta prosa .
Os aparatos tecnolgicos de capta-
o e edio de imagens e sons esto
cada vez mais prticos e sofisticados. Im-
budos dessa modernidade, muitos cr-
ticos e cineastas discutem a ausncia de
novas linguagens nos Documentrios. O
novo, entretanto, no ser proporciona-do por uma cmera de ponta. O novo vir
da prpria vida vida que muda e se
transforma a cada momento e da tica
que todo cineasta trar em si. A tica
que definir a to ansiada forma. Um fil-
me novo no nasce de uma moldagem,
de um verniz tecnolgico que se aplica
sobre um tema ou que coloca uma obraa seu servio. Um filme novo nasce de
dentro para fora, como um todo. Da alma
da prpria vida e da responsabilidade
que todo cineasta deve ter.
1 1 Futebol,Joo Moreira Salles e Arthur Fontes.Santo Forte, Eduardo Coutinho.(Vdeo Filmes, RJ; CTAV-FUNARTE, RJ).
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19BOLETIM PGM 1 - CINEMA E REALIDADE
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CINEMA E ESCOLA
PGM 2 : CINEMA E HISTRIAAREALIDADE FICCIONADA
S LVIO TENDLER1L AURAMARIACOUTINHO2 (DILOGOS)
Para d iscut i r c i n em a e h i s t r i a , nest a srie, p roponh o pr imeiro
que ad otemos o l ivro A h i s t r i a v a i a o c i n ema , de Mar iza de
Car va lho Soares e Jorge Ferreira , um a p ub licao da Ed itora Record
de 2001 .
E, d epois, que esta beleam os um d ilogo com o livro, toman do como
ref erncia o pr efcio d e Slv io Tend ler . mais ou menos is so qu e
professores e alunos fazem quand o levam para a sa la d e aula tex-
tos, l ivros, f i lmes. Ou, pelo menos deveriam fazer. Os textos e os
f i lmes so fei tos para tr ata r d e assun tos objet ivos, mas apresentam
semp re um ponto d e vista cons trudo tam bm pelas subjetivid ad e
dos au tores e, igualm ente, de leitores e especta dores. Talvez no
seja dema is lembrar que os produ tos cul tu rais d essa na tureza so
d inm icos: s se rea lizam n a in terao entr e pessoa s. O film e preci-
sa ser visto. O livro precisa ser lido. E jus tam ente neste aspecto
que, acred ito, est a gr an de riqu eza d a p rod uo int electua l e cultu -
ra l. Alm d o que, o mesm o fato mostr a-se de va ria das m an eiras . E a
viso de um a pessoa traz sempre a possibi l ida de d e enriquecer a
viso de tod os e a d e cad a um.
Ass im inicio o nosso d ilogo com este texto p recioso chama nd o a
a teno pa ra al gun s a spectos que Slvio Ten d ler coloca n o fin a l, ou
seja, o papel do professor dian te da s ima gens. claro que as ima -
1 Cineasta. Professor de cinema da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.2 Professora da Faculdade da Educao da Universidade de Braslia. Doutora em Educao na rea Educao, Conhe-
cimento, Linguagem e Arte pela UNICAMP.
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gens nos fascinam a todos. justamente esta a gran de fora da
lin gua gem cin ema togrfica qu e, em esttica , reali dade e magia , cria
e recr ia un iversos f iccionais d e toda s as ord ens, sejam eles ba sea-
dos em fa tos reais ou fictcios. Ma s nos ambient es educaciona is, na
escola, n a sa la de au la , possvel ir a lm do film e e das imagens e,
pr in cipa lmente, estabelecer uma relao hist rico-tempora l entr e pas -
sado e presen te. Repito aqu i o qu e vocs vo ler mais ad ian te: uma
abord agem do passa do mu itas vezes ma is rica qua nd o an al isad a
sob a lu z do conhecimento e d as a ngst ias d o tempo presente.
Ouamos, ento, Slvio Tendler:
Nos idos dos anos 60, estudante quese prezasse e quisesse jogar pedras na
ditadura deveria buscar fundamentos
tericos em Histor ia da r iqueza d o ho-
mem, e Leo Huberman. Logo na abertu-
ra, o autor para falar de dinheiro, usa
uma cena de cinema como exemplo;
Georges Duby, um dos mais importan-
tes medievalistas, abre um de seus en-
saios sobre a Idade Mdia escrevendo:
Imaginemos. Desde sempre, imagem e
imaginao fazem parte do conhecimento
da histria.
Quando, em 1974, Jacques Le Goff
e Pierre Nora coordenaram a publicao
de Faire de lHistoire3, estavam eviden-
ciando novos horizontes para a histria,
que saa ento da dicotomia factual
versus interpretativa para buscar novas
relaes com seu objeto de estudo. Nos
rescaldos ps-maio de 1968, uma srie
de histriadores franceses discutiam
novos problemas, novas abordagens, no-
vos mtodos. Marc Ferro participa destacoletnea com seu artigo O filme: uma
contra-anlise da sociedade, no qual
aborda a questo do cinema como fonte
da histria. Mais do que introduzir, esse
artigo servir para legitimar uma rela-
o que j vinha se desenvolvendo havia
muitos anos e que Ferro transforma em
seminrio, com o nome de Cinema e His-
tria.
Por outro lado, desde o nascimento
do cinema, a histria sua fonte. O nas-
cimento de uma nao, de David Griffith,
nos Estados Unidos e O en cour aad o
Potemkin, de Sergei Eisenstein, na Unio
Sovitica, so alguns dos muitos filmes
em que, atravs de cowboys, carruagens,
reis e rainhas, a histria est presente.
Em 1937, o documentarista holan-
ds Joris Ivens, ao filmar a Guerra Civil
Espanhola em parceria com Ernest
Hemingway, registra nos crditos do fil-
3 Jacques Le Goff e Pierre Nora.Histria: novos objetos.Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1976.
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22BOLETIM PGM 2 - CINEMA E HISTRIA
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me Ter r a es ponh o l a a produo da
Contemporary Historians Inc. Neste caso,
o cineasta define-se como historiador e,
mais do que um documentrio de de-nncia da ascenso do fascismo ao po-
der na Europa, sente-se fazendo hist-
ria.
A essa a l tura abr o um parntese para
relata r br evement e uma experincia r e-
cente que, de alguma forma , se insere
na situ ao em qu e, penso, o cinea sta e
sua obra podem ser d ef in idos como his-
toriad or e his tria . Silvio Tend ler inicia
seu texto falan do d os anos 60. Talvez
os ma is pu lsa nt es d os ltim os sculos.
Ainda ontem, num a l ivrar ia, folheando a
biograf ia de Pau l MacCar tney Many
year f rom now , uma fra se me cham ou
a a teno. Pau l d izia mai s ou m enos a s-
sim : no vejo os a nos 6 0 como pas sa -
do, ma s como fut uro, como algum a coisa
que a ind a no se realizou . Acho qu e
ma is ou menos esse sen t imen to que
af lorou d uran te a sema na em que a Fa-
culd ad e de Ed ucao da Univ ersid ad e
de B ra slia pr omoveu a exi bio d o fi l-
me B a r r a 6 8 de Vlad imi r Carva lho eque mon ta perfeit am ent e com a idia
de que a hi stria mai s ri ca lu z do
presen te. Foram 18 exibies segu id as
de d ebates emocionad os com o cineas-
ta, professores, alun os e personagens
do fi lme e d a h istria que no estavam
no f i lm e. No Ba r r a 6 8 esto presen tes
as pr in cipais personal idad es da hist-r ia d a Un B epoca, Dar cy Rib eiro, o
rei tor JosCar los Azeved o, alu nos. . .
Quase todos em imagens passad as e
presentes. E o que gostar ia d e ressal tar
aqu i a s ensao de incompl etu de que
o fi lme su scita, no do fi lm e em si, mas
da prpr ia histr ia. Assim quero dizer
vend o Slvio, Vla d imir , Paul, que t alv ez
o mais importan te da h istria que vai ao
cinema seja no o resgate d os fa tos, ma s
da s possibi l ida des que os fatos susci -
tam e que ain da esto por se realiza r.
Voltemos ao texto.A coletnea de artigos que compe
este livro segue na trilha original apon-
tada por Marc Ferro: o estudo de filmes
como fonte de conhecimento e o que
Ferro chama de contra-anlise da socie-
dade. Em seu artigo, considera que o
estudo da imagem pode fornecer elemen-
tos de anlise que ultrapassem os limi-tes das intenes do autor ou de quem
as captou. A leitura dos filmes no se
restringe a uma interpretao colada
na obra.
No caso deste livro, os autores fize-
ram uma releitura da obra cinematogr-
fica, relacionando com uma abordagem
histrica, confrontando filme e histria.
Esta coletnea de ensaios chega em
boa hora. A histria do sculo XX ser
contada com recursos audiovisuais e a
partir da produo audiovisual do scu-
lo XX. O conjunto de artigos de alto
nvel, merecedor de leitura, exercendo
importante funo didtica que aponta
mais um territrio a ser explorado pelo
historiador.
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23BOLETIM PGM 2 - CINEMA E HISTRIA
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Alguns limites foram estabelecidos
nos critrios de seleo dos filmes: ape-
nas filmes nacionais, e o corte temporal
foi determinado pelo perodo de produ-o dos filmes, que foi de meados dos
anos 70 ao final dos anos 90. Os temas
so os mais diversos, nem sempre tra-
balhando a histria de forma direta, mas
refletindo a formao brasileira ao longo
dos sculos. Diversos historiadores divi-
diram entre si a misso de esmiuar a
produo cinematogrfica, o que trans-forma este livro num raro painel que re-
trata a pluralidade e a diversidade de
nossa produo.
Por no ser obra de um autor, mas
uma coletnea de textos com enfoques
diferenciados, torna-se mais rico ainda
devido variedade de olhares que se pro-
jetam sobre a diversidade das obras.Tem, alm disso, o mrito de registrar a
fecundidade do cinema brasileiro nes-
ses anos 70/80/90 e, sobretudo, sua
importncia cultural, tornando-se o me-
lhor arrazoado em defesa do cinema bra-
sileiro, de sua pluralidade, diversidade
e criatividade.
Em sua maioria, os estudos aqui de-
senvolvidos servem tambm como uma
aula de histria, uma vez que so acom-
panhados de citaes que transcendem
a obra abordada para situ-la em seu
tempo, descrevendo suas fontes, influ-
ncias ou precedncias. Esse universo
que circunscreve a obra faz com que este
livro se torne objeto de consulta essen-
cial para quem estuda ou quer conhecer
mais profundamente as obras e o tempo
abordados dentro do trinmio cinema/
Brasil/histria.
Aqui esto sendo analisados filmesque retratam a migrantes e imigrantes,
a mulher, o negro, as circunstncias
histricas, os acontecimentos e as per-
sonalidades. Filmes de Joo Batista de
Andrade (O homem qu e v i rou suco, o
migrante massacrado), Tizuca Yamasaki
(Gaij in, a imigrao japonesa), Eduardo
Coutinho (Cabra m arcado para morrer),o meu (Jango,a reconstruo da hist-
ria ), Norma Bengell (Pagu, a mulher
libertria que foi contra a corrente de
seu tempo mas a favor da histria). O
Brasil dissecado pela literatura e o in-
crvel desafio de transformar letras em
imagens: Mrio de Andrade, Jorge Ama-
do, Graciliano Ramos imaginados pelocinema, livros que se tornaram filmes
pelos olhos de Nelson Pereira do San-
tos, Joaquim Pedro, Eduardo Escorel,
Bruno Barreto.
Quero ressa ltar aqu i outra temtica des-
ta sri e Dilogos C in ema e escol a , ex-pressa n o texto Li teratura e Cinema :
uma sinta xe transit iva. A au tora, Rosalia
d e ngelo Scorsi , tra ba lha seu escri to
bu scand o desvelar no o un iverso his-
trico em qu e os fi lmes a contecem, como
abord a Si lv io Tend ler , ma s o universo
express ivo das lingu agens cinema togr-
f ica e l i terria . Lemb remos que ess esdois pontos de vista complementam -se
na perspect iva da s mul t ip licidad es da s
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24BOLETIM PGM 2 - CINEMA E HISTRIA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
vises que as l ingua gens au d iovisuais
podem su sci tar .
A pluralidade registrada pelos filmese os estudos correspondentes aos anos
de chumbo, observados no apenas pelo
vis da poltica, mas com ampla viso da
poca do seja marginal, seja heri, gri-
to de rebeldia do artista plstico Hlio
Oiticica sobre a imagem do bandido Cara
de Cavalo, marca dos anos 70: o cinema
mostra, com Lcio Flvio, o passageiroda agonia, o marginal necessrio para
apontar as mazelas da polcia (Polcia
polcia, bandido bandido), transpas-
sado das reportagens literrias de Jos
Louzeiro para as imagens de Hector
Babenco; o mito registrado em Xica d a
Silvaou o pas trocando de pele em By e
bye Bras i l ,filmados por Carlos Diegues.
Em Eles no us am bla ck-t ie, de Leon
Hirszmann, a classe operria vai ao ci-
nema e o Brasil caipira em A marvada
carne,de Andr Klotzel.
Este livro tambm supre uma lacu-
na: como a crtica cinematogrfica prati-
camente desapareceu, e a cada dia tor-
nam-se mais raras as publicaes
especializadas, e por conseguinte a an-
lise e o debate em torno da produo
cinematogrfica , transferiu-se para o
historiador a tarefa da crtica, o que va-
loriza ainda mais o presente livro. A abor-
dagem diferenciada do historiador pro-
funda e analtica foge da superficiali-
dade da informao jornalstica, neces-
sria para divulgar a existncia da obra
mas insuficiente para inform-lo sobre
a obra.
Mesmo quando a anlise favorvel
ao filme, ainda assim melhor a publi-cao, que abre o caminho para a dis-
cusso e a polmica, do que conden-lo
ao silncio e ao esquecimento. Nos anos
50, poca de nacionalismo na poltica (O
petrleo nosso) e das chanchadas no
cinema, em sua defesa foi cunhada a fra-
se: Falem mal, mas falem do cinema
nacional, logo sintetizada no bordo Oabacaxi nosso. Avacalhar (expresso
prpria da poca) era a forma de prote-
ger e divulgar. Logo, este livro ajuda a
resgatar nossos filmes, rompendo o cer-
co do silncio e do esquecimento.
O filme torna-se matria de sala de
aula, servindo como objeto de estudo e
conhecimento. Em hiptese alguma o fil-me substitui o professor. Sua leitura
correta est condicionada a um conhe-
cimento prvio, sujeita orientao do
professor. Confrontar veracidade com ve-
rossimilhana real versus aparncia do
real uma das responsabilidades do
professor, que evitar a trilha de um ca-
minho equivocado e cuja ausncia po-
der induzir a erros de abordagem di-
ante do fascnio e da facilidade da hist-
ria recriada em imagens. Quanto a pas-
sado versus presente, bom dizer que o
filme de tema histrico geralmente tem
mais a ver com a poca em que produ-
zido do que com a poca abordada. As-
sim, por exemplo, uma abordagem do
passado muitas vezes, mais rica quan-
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25BOLETIM PGM 2 - CINEMA E HISTRIA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
do analisada sob a luz do conhecimento
e das angstias do tempo presente.
Um grito de alerta: querem apagar
a histria. Jovens de 20 anos no sa-bem o que foi a Guerra do Vietn, como
foi a descolonizao da frica, as lutas
populares por liberdade, contra a dita-
dura, a tortura. E o mais grave: livros,
filmes, peas de teatro, pensamentos e
personalidades que escreveram um pro-
jeto de Brasil so apagados da histria.
Em tempos que privilegiam o efmero,o voltil e o descartvel, este livro pea
essencial na guerra santa que trava-
mos contra a amnsia histrica que que-
rem nos impor.
Bibliografia
Soares, Mariza de Carvalho. A histria va i
ao c inem a. Rio de Janeiro: Record,
2001.Ramos, Ferno Pessoa. Es tudos d e ci ne -
ma. Porto Alegre: Sulina, 2001.
Bernadet, Jean-Claude. Bras i l em tempo
de cinema: ensaio sobre o cinema bra -
si le i ro. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.
Gerber, Raquel. O mito da civi li zao at ln-
tica : Glau ber Rocha , cinema, poltica e
esttica do incons cien te. Petrpolis: Vo-
zes, 1982.
Gomes, Paulo Emlio Salles. Cinema: traje-
tr ia n o subd esenvo lv imento . Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980.
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26BOLETIM
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
PGM 3 CINEMA E LITERATURAUMA SINTAXE TRANSITIVA
ROSALIA DENGELOSCORSI*
* Dra. em Educao pela Universidade Estadual de Campinas Unicamp. Pesquisadora do Lab. de Estudos AudiovisuaisOLHO Faculdade de Educao - Unicamp.
1 EmA Experincia do Cinema(org. Ismail Xavier) O Cinema e as Letras Modernas, p. 269.2 Extrado de publicao feita pela Embrafilme,Lio de Amor, p. 5.
A literatu ra moderna est satu rad a
de cinema . Reciprocamente, esta arte m is-
ter iosa mui to ass imi lou da l i teratura1.
Com estas palavras, Jean Epstein inicia
seu ensaio, de 1921, sobre o intercm-
bio entre as estticas do cinema e da li-
teratura moderna, mostrando-nos a for-te influncia de uma arte sobre a outra.
Podemos confirmar essa declarao
de Epstein em Ama r, Verbo Intran si t ivo,
romance moderno de Mrio de Andrade,
que se constri com perceptvel dilogo
com o cinema, tanto nas referncias que
faz a este, como nas tcnicas utiliza-
das que lembram aquelas utilizadas pelocinema. O livro foi escrito em 1923 e
publicado em 1927. O prprio Mrio de
Andrade escreve a Srgio Milliet sobre o
romance, em 1923, chamando-o de ci-
nematogrfico: A t ua lm en t e escrevo
Fru lein - rom ance. possvel que fi que
no meio, como todas as grand es emp rei-
ta das que tomo. Cinemat ogrfico. Ma n-
do-te d o pr efcio (cu r to) as duas idia s
que con tm2 .
Ama r , Ver bo In t r an s i t i vono pos-
su i captu los, conforme a norm a a ceita ,numerao de seqncias ou ttu los para
ela s. um tex to de fi co const rudo pela s
cenas que fixam d iretamente momentos,
f lashs, resgatand o o passa do, ou cenas
que so apresentadas pelo Nar rador. s
cena s, cont ra pem-se as d igresses d o
Narra dor que comp ete f reqentemente,
dan do gran des demonst raes de conhe-cimento terico, com a viso que a herona
tem do mun do e do amor. As d igresses
so, de fa to, su a in terpr etao. A sepa ra -
o d os episd ios , a mudana de cen-
rio, de espao, a passagem do tempo, os
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27BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
cortes desv ia ndo a a teno do leit or, so
ma rcados apena s pelo espacejam ento
padr onizad o que, graficamente, acentua
a idia de seqncia solt a e d iv iso danarra t iva em f lagrantes3 . J nesse tre-
cho do prefcio ao romance, de Tel Porto
Ancona Lopez, percebe-se o uso de uma
terminologia prpria gramtica do cine-
ma: fla sh , cena, seqncia, corte. Seguin-
do o prefcio mais frente, l-se: O
Narr ad or, que cap ta a cena no que ela
tem de essencial, freqentemente nos fazlembrar a rep resentao cinematogrfica :
a cmera que segue os passos, foco isen-
to, olhand o por d etrs, ou foco comprome-
tid o que faz s vezes dos olhos d a perso-
nagem. Narr ar cinematogrfico de roman-
ce modern o, combin ad o com a reflexo
lit erria , ma chad iana , meta lin gsti ca, e
com a capacidade do Narrador d e se fun-
d ir s man ifestaes do mun do in terior de
suas personagens4 .
Na forma que o romance toma, muito
desse narrar cinematogrfico produzi-
do com a oralidade da prosa que o texto
escrito reproduz; com a tcnica das cenas
que substituem os convencionais captu-
los, como j foi dito; e por muitos outros
recursos formais, dos quais cito alguns:
F r a s e s t e l e g r f i c a s . N o m e a o
abundante. Enumerao : Procedimen-
to, na prosa, equivalente ao processo
descritivo-narrativo da linguagem cine-
matogrfica expresso atravs da contigi-
dade de planos. (...) O quart in ho escu -
ro . Ma r ia emb ala no bercinh o pobre of i lh o recm -na sc id o. Ja n elas ab erta s,
dan do para a grande noite azulada, fa-
cilm ente mst ica . Nascem do cho, sa em
pelas jan e las a s d uas co luna s inc lina-
d as d o lu a r. Vero. Silncio. Mu rm ri o
em ba ixo, longe, das guas sagrad as d o
Reno.(Amar, verbo intran sit ivo - AVI5 , p.
65.) (Esse trecho refere-se a uma diva-gao de Frulein, cuja representao
sugere as tomadas e movimentos de
cmera, um certo tipo de luz, de som e
at o silncio significativo.)
M a i s c u l a s d e s t a c a n d o a l g u n s
enunciados : O uso das maisculas aqui
corresponde, se pensarmos na lingua-
gem cinematogrfica, tcnica do Close-
up e/ou Detalhe,que vo alm da su-
perfcie das aparncias para tocar em
revelaes dramticas:A cid ade uma
inva so d e avent ure i ra s a gora! Como
nu nca teve! COMO NUNCA TEVE, Laur a
(...) Por isso! Frul ein p repa ra o rap az. E
evitam os quem sabe? atumdesastre!.. .
UM DESASTRE! (AVI, p. 77).
NO EXISTE MAIS UMA NICA PES-
SOA INTEIRA NESTE MUNDO E NADA
3 Em Uma Difcil Conjugao, prefcio aAmar, Verbo Intransitivo,escrito por Tel Porto Ancona Lopez, p.13.4 idem, p.15.5 AVI abreviatura de Amar, Verbo Intransitivo.
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28BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
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CINEMA E ESCOLA
MAIS SOMOS QUE DISCRDIA E
COMPLICAO(AVI, p. 80 )
Meu D eus! UM FILH O. (. . .) . . . um
FILHO...(AVI, p.135)
FIM(AVI, p. 14 0)
Uso de Onomatopias e Neologis-
m o s : Espcie de dimenso auditiva que
complementa significativamente as ce-
nas textuais:
A bulha dos passarinhos arranhava
o corredor. De repente fogefugia as-
sustado sem motivo colibri: Pleque-
leque, pleque... pleque... pleque...
(AVI, p. 51)
Carlos abaixou o rosto, brincabrin-
cando com a pgina.(AVI, p. 56)
Pum! Tarat! Clarins gritando, baio-
netas cintilando, desvairado matar,
hecatombes, trincheiras, pestes, ce-
mitrios...(AVI, p .61)
Chiuiiii... ventinho apreensivo. Gran-
des olhos espantados de Aldinha e
Laurita. Porta bate. Mau agouro?...
No... Plaa... Brancos mantos... E
iluso. No deixe essa porta bater!Que sombras grande no hol... Por
ques? Tocainado nos espelhos, nas
janelas. Janelas com vidros fecha-
dos... que vazias! Chiuiii... Olhe o si-
lncio. Grave.(AVI, p . 88)
O murmulho das guas gargalhou um
brekekekex fanhoso.(AVI, p . 120 )
O cinema est presente no roman-
ce, no s pelos recursos lingsticos
utilizados que o mimetizam, mas tam-
bm atravs de citaes ao cinema, afir-
mando o hbito j entranhado no con-texto urbano onde o romance se passa
de freqent-lo e sua influncia no ima-
ginrio dos freqentadores:
Dona Laura ficava ali, mazonza, numa
quebreira gostosa quase deitada na
poltrona de vime, balanceando manso
uma perna sobre a outra. Isso quando
no tinham frisa, segundas e quintas,
no Cine Repblica. (AVI, p. 59)
Depois do almoo as crianas foram
na matin do Royal. (...) E como so
juntinhas as cadeiras do Royal! (...)
O certo que o corpo dela ultrapassa
as bordas da cadeira todo mundo se
queixa das cadeiras do Royal. (AVI,
p . 69)
De primeiro era o dia inteirinho na
rua, futebol, lies de ingls, de geo-
grafia, de no-sei-que-mais e nata-
o, tarde com os camaradas e inda
por cima, depois da janta, cinema.
(AVI, p.71 )
Quando ele sentiu sobre os cabelos
uma respirao quente de noroeste,
principiou a imaginar e criticar. Cri-
ticar comparar. Que gosto que teri-
am esses beijos de cinema? (AVI,
p . 91 )
Laurita pensava que havia uma his-
tria triste. Frulein com Carlos.Talqual na fita de Glria Swanson.
(AVI, p.137 )
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29BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
E se no quer gastar os cem, o cine-
ma AVENIDA cerra aos poucos os olhos
eltricos, gente que sai, gente na por-
ta, bulha de empregados apressados.
(AVI, p.143 )
Na avenida Higienpolis o telefone-
ma avisou que ele almoava com o
Roberto. Mais um companheiro se
juntava a eles. Passaram a tarde no
cinema. (AVI, p .145 )
L io d e Amor a adaptao de
Eduardo Escorel, para o cinema (1976),
do livro de Mrio de Andrade.
Podemos averiguar, a partir das ce-
nas iniciais do filme, como a linguagem
do cinema, na conduo de Eduardo
Escorel, traduz esse romance que j em
sua raiz cinema.
Quero me fixar no que estou cha-
mando de a potica de Frulein (perso-
nagem essencial do livro e filme, vivida
pela atriz Llian Lemertz), em grande
parte nascida do discurso indireto livre
presente no romance, e indagar de que
modo e com que recursos tcnicos/
estilsticos o cinema a traduz, j que o
cinema optou por prescindir da podero-
sa voz narrativa literria e, conseqen-
temente, de todos seus malabarismos
discursivos.
Algumas cen a s 6 iniciais marcam a
apresentao e chegada de Frulein namanso. Tomando a parte inicial em que
Souza Costa contrata o trabalho de
Frulein e sua chegada de txi man-
so, quero buscar nesses acontecimen-
tos a soluo esttica encontrada para
sua traduo ao cinema. E ainda inda-
gar que densidade ontolgica de
Frulein o cinema, com as solues es-tticas assumidas, torna visvel.
Eduardo Escorel optou por ficar
rente aos fatos e imagens narrados no
texto, na produo do filme Lio d e
Amor. O filme mantm-se obediente ao
texto. difcil fugir de um texto em que
fatos e imagens esto l, ntidos, ofere-
cendo-se a serem reproduzidos. A mai-or parte das falas das personagens es-
to no filme, tal qual esto no texto. Po-
rm, o filme ter de lidar com a ausn-
cia do narrador, figura expressiva e atu-
ante no romance que garante a densi-
dade dramtico-potica da narrativa.
Uma opo do filme foi no sair das cer-
canias da manso de Souza Costa, es-
pao fundamental da ao dramtica,
6 V.Pudovkin distingue Cena de Seqncia: O roteiro de filmagem completo dividido em seqncias, cada seqnciadividida em cenas e, finalmente, as cenas mesmas so construdas a partir de sries de planos, filmados de diversosngulos (...) esses pedaos ou planos, so trabalhados de maneira a dotar as cenas de uma ao que as interligue, ascenas separadas so agrupadas de forma a criar seqncias inteiras. A seqncia construda (montada) a partir dascenas. Suponhamos que temos a tarefa de construir a seguinte seqncia: dois espies se arrastam sorrateiramente emdireo a um paiol de plvora, no intuito de explodi-lo; no caminho, um deles perde um papel com as instrues.
Algum acha o papel e avisa o guarda que chega a tempo de prender os espies e evitar a exploso. Neste caso, oroteirista tem que lidar com a simultaneidade das vrias aes acontecendo em lugares diferentes. , emA Experinciado Cinema (org. Ismail Xavier) - Mtodos de Tratamento do Material (Montagem estrutural), p.57/65.
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30BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
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CINEMA E ESCOLA
diferente do livro que fotografa cenas e
costumes do centro urbano paulistano.
Logo no incio do filme, deparamo-
nos com uma cmera ou um foco com-prometido, como se fizesse s vezes dos
olhos da personagem. O ponto de vista
assumido logo no incio conduzir o es-
pectador pelo resto do filme. Vejamos
como isso ocorre.
O filme abre-se com os primeiros
crditos, em fundo vermelho. Nessa tela
vermelha vemos o esboo, em linhas on-duladas brancas, de um livro onde se l:
Lio d e Amor
A da p t a d o d o r oma n c e Amar,Verbo
Intransitivo
d e Mrio de A nd rad e
Rote iro : Edu ard o Cout inh o e Eduard o
Escorel
A im agem mostr ad a em s ilncio e d ur a
l5 segu nd os ap roxim adam ent e. A lio
de amor ter somad a a o seu aprend iza-
do uma cor quent e a cor vermelha .
CORTE
7
A primeira cena passa-se no quar-
to de penso de Frulein, com apenas
uma tomada de cmera. Iluminao dis-
creta, acentuando a modstia das aco-
modaes. So utilizados plano ameri-
cano e plano mdio e a cmera movi-
menta-se seguindo o movimento dos
personagens. Souza Costa e Frulein
dialogam sobre os acertos finais do con-trato de trabalho de Frulein. O quar-
to, embora pequeno, est muito bem
organizado. Frulein veste um conjun-
to simples, blusa de manga longa, saia
e colete. O cabelo est preso. Seu ar
profissional e suas falas so seguras e
decididas, revelando uma mulher que
no se intimida diante do homem e quetem clareza quanto aos seus desejos, no
plano profissional. O dilogo muito
prximo ao dilogo do livro e a cena dura
aproximadamente l minuto e 20 segun-
dos.
Os dois esto sentados junto mesa,
finalizando o ch:
SC:Ento, estamos entendidos, srta. Elga. So
oito contos pelo servio. Pagos no final, quando
tudo estiver concludo.
F:Perfeitamente, Sr. Souza Costa.
Levantam-se e dirigem-se porta e
no trajeto:
SC:Est frio!
FFFFF: Estes fins de inverno so perigosos em So
Paulo.
7 Corte=> passagem direta de uma cena para outra. Ver Doc Comparato,Da Criao ao Roteiro,p.276.
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31BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
Frulein abre a porta do quarto. Sou-
za Costa estende a mo em despedida.
Antes de oferecer sua mo:
F:E... Senhor, sua esposa est avisada?
SC: No, a srta. compreende... ela me.
Esta nossa educao brasileira... Alm do mais,
com trs meninas em casa...
FFFFF: Peo-lhe que avise sua esposa, senhor. No
posso compreender tantos mistrios.
SC:Mas, senhorita...F: Desculpe insistir. No me agradaria ser tomada
por uma aventureira. Certamente no irei, se sua
esposa no souber o que vou fazer l.
SC:Muito bem. Se assim que a srta. deseja,
pode ficar tranqila. Estaremos sua espera,
senhorita.
Souza Costa sai, Frulein fecha a
porta, encosta-se nela, com olhar alon-
gado e perdido, ouve-se, ento, sua voz,
numa espcie de monlogo interior:
F: Mais oito contos. Se a situao na Alemanha
melhorasse... Mais um ou dois servios e possopartir. E casar. Ter uma casa sossegada. Um
rendimento certo.
Ao mesmo tempo em que se ouve o
pensamento de Frulein, comea a cres-
cer um som musical que se funde ao seu
pensamento. A msica tem uma estru-
tura meldica que aflora sentimentos
nostlgico-melanclicos. somente or-
questrada com destaque ao som do pia-
no. Essa composio de Francis Hime
tornar-se- uma espcie de tema de
Frulein e ser um centro de fora nacriao da subjetividade da personagem,
construda pelo cinema. A msica atra-
vessar as duas cenas seguintes, de for-
ma que o final da segunda cena coinci-
de com o final da msica. Como se subs-
titusse a voz narrativa, a msica, alm
de ligar as cenas, introduz com sua car-
ga dramtica a personagem Frulein.(Quero chamar ateno para a atmosfe-
ra romntico-sentimental que a msica
sugere, pois ela se fixar imagem de
Frulein.) Frulein no apenas uma
imagem visual, mas a imagem visual so-
mada a uma imagem auditiva.
CORTE
A prxima imagem retoma aquela
primeira livro sobre fundo vermelho
continuando a apresentao da equipe
de atores, de produo, de direo etc.
uma imagem longa com 2 minutos e
10 segundos de durao. Durante essa
apresentao, a msica que havia come-
ado baixa, na seqncia do quarto, jun-
to com o pensamento de Frulein, as-
cende e atravessa toda essa tomada, con-
tinuando na cena seguinte, abrandan-
do, agora, sua altura de som. O especta-
dor, enquanto l os crditos vai sendo
enredado nessa narrativa musical muda
de palavras.
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32BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
CORTE
A cena que se segue focaliza, em giro
de travelling-panormico lentoascensional, o amplo espao onde se lo-
caliza a grande casa branca dos Souza
Costa, plantada em meio a uma extensa
rea verde, com grades e jardins. A cena
externa e a luminosidade do dia ope-
se quela interna do quarto. Os olhos
do espectador movimentam-se nesse giro
panormico, so levados a apreciar a ma-
jestosa residncia. Se o espectador tiver
retido na memria a fala de Souza Cos-
ta: estaremos sua espera senhorita,
logo ligar a casa figura masculina da
cena inicial. Se retomarmos as falas e
imagens da cena do quarto, veremos
como rica em informaes de apresen-
tao do quadro scio-cultural-brasilei-
ro, no qual Frulein far interveno. A
msica, que tivera incio h duas cenas
anteriores, invade tambm toda essa
cena, que dura aproximadamente 50
segundos.
CORTE
A cena seguinte mostra, em close-
up8 , uma outra Frulein, agora elegan-
te, de chapu negro, blusa branca de
gola alta, broche na gola, luvas, colete e
casaco negros, olhando obliquamente.
Uma luz suave e impressionista acentua
a atmosfera criada pelo olhar e trajes de
Frulein. Diferente daquela do quarto de
penso, vemos uma mulher que olhacom uma curiosidade suspensa no olhar.
Os ltimos acordes da msica encerram-
se sobre sua figura.
CORTE
Em plano geral e cmera alta, vemosum carro parado em frente ao porto de
ferro, ouvimos o rudo do motor, indi-
cando o carro ligado, malas sobre o cap,
um empregado vindo apressado abrir o
porto. Sem que soubssemos vimos
todo o giro em torno da manso da cena
anterior, da perspectiva de Frulein que,
de dentro do carro, observava o lugarpara onde estava indo. Ser o seu olhar,
o seu ponto de vista, a sua subjetividade
que nos guiar at o final do filme. Sua
presena ativa orientar o desvenda-
mento dos outros personagens e o
surgimento da atmosfera scio-cultural
em que vivem. E se a primeira cena em
que Frulein faz o acordo de trabalho
com Souza Costa nos mostra a mulher
dividida entre o homem-da-vida e o ho-
mem-do-sonho alemo como faz o
romance, essa Frulein de chapu ne-
gro ir, no decorrer do filme, muito por
causa da msica que a tematiza, recor-
8 A figura humana enquadrada de meio busto para cima. Em A . Costa, Compreender o Cinema, p. 181.
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33BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
tando-se aos nossos olhos mais como
mulher-do-sonho, j delineada pelo
olhar da mulher que se encosta na por-
ta, quando Souza Costa sai, pela esco-lha de seus trajes e seu jeito de olhar,
quando se apresenta na casa.
Uma mulher-imagem, mulher-som,
mulher-luz, ir se recortando ao espec-
tador. Quase uma realidade onrica. Ci-
nema. Mais audiovisual do que escrita.
Justa aos movimentos da criao cine-
matogrfica. Fato revelador de que, em-bora literatura e cinema construam sin-
taxes transitivas, cada linguagem sem-
pre traar suas especficas rotas de cria-
o artstica.
Se o cinema est impregnado da li-
teratura, a literatura moderna sorve os
ritmos e modos do fazer cinematogrfi-
co. Linguagens convergentes, cinema e
literatura so linguagens do nosso viver
urbano, contemporneo, que se fixam em
nossa memria e nos educam cotidiana-
mente.
Obviamente, a arte literria narrati-
va com sculos de elaborao estilstica,
constitui-se em uma referncia ao ci-
nema. Interessante notar o caminho
inverso: a esttica do cinema, aos pou-cos, invadindo e interagindo com a est-
tica literria. Pasolini, autor de obras li-
terrias e cinematogrficas, reconhece
em sua literatura, o modo de criao do
cinema: Min ha pa ixo pelo cinema est
in timamen te liga d a m in ha f orm ao,
a ta l ponto que, quan do releio hoje cer-
tas obra s l i terrias min ha s, produzid asbem an tes de meu pr im eiro f i lme, elas
me pa recem ter sid o escritas com a des-
crio dos t ra vel li ngs , seqncia s et c.
preciso repetir que essas duas lin-
guagens da arte influenciam-se mutua-
mente e participam da educao do ho-
mem contemporneo. Educao que se
processa de forma espontnea, naturalou formalizada nas instituies educa-
cionais.
Educao espontnea, pois a litera-
tura e o cinema esto ao alcance de quem
estiver interessado em ler um livro ou
assistir a um filme dentro de casa ou nos
lugares que se freqentam diariamente.
Um garoto de sete anos sabe ler um fi lme
a t ra vs d e su a m on t a gem, nos diz
Marguerite. Duras. E se o livro supe um
acessoa ele para que nos tornemos lei-
tores, o cinema requer uma prticapara
que nos tornemos espectadores.
Educao formal, quando essas lin-
guagens, migradas para as instituies
educacionais, passam pelo crivo de uma
equipe ou de um professor que planeja
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34BOLETIM PGM 3 - CINEMA E LITERATURA
D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
uma metodologia de abordagem tanto a
um livro programado para leitura, quan-
to a um filme.
Walter Benjamin, j em 1931, dizem sua Pequena H istria d a Fotogra fia
que o an a l fa beto d o fu tu ro no ser
aqu ele que no sabe escrever, e sim quem
no sabe fotogra fa r, pois sejamos de di-
rei ta ou de esquerd a, temos de nos habi-
tuar a ser vistos.Temos de nos educar a
ver os outros, em close-up, em plan o ge-
ra l, em cmera lentae em tantas outrastcnicas de captao das imagens. Te-
mos de nos educara ver a realidade
construda e mediada pelas tecnologias
de reproduo das imagens e dos sons.
Uma realidade montada de forma nada
inocente dentro dos estdios do cinema
e da televiso.
Se a Escola j carrega uma tradiode alfabetizao da linguagem literria,
tem, agora, o desafio de alfabetizar-se e
alfabetizar na linguagem das imagens e
sons em movimento. Aprender a v-las
demoradamente, quadro a quadro,
interagindo com sua sintaxe. Se ns
olhamos as imagens, elas tambm nos
observam e nos perguntam: Trouxeste
a cha ve?.
E, quando a Escola realiza um tra-
balho, conjugando harmoniosamente
a linguagem literria com as imagens
e sons em movimento do cinema, oaluno/leitor/espectador quem ganha.
Tanto o leitor-espectador de literatu-
ra poder ver iluminadas e animadas
as cenas e imagens descritas no texto
escrito, quanto o espectador-leitor de
cinema poder imaginar em palavras
as imagens e sons materializados na
tela.
Referncias biblio-filmogrficas:
Andrade , Mrio de. Ama r, Verbo Intransi t ivo,
BH/RJ, Villa Rica, 1995.
C o s t a, Antonio. Compreend er o C inema,
coleo dirigida por Umberto Eco, 2
ed., SP , Globo, 1989.
Comparato , Doc. Da Cr iao ao Roteir o, Lis-
boa, Editora Pergaminho, 1993.
L i o d e A m or, direo de Eduardo
Escorel, baseado na obra de
Mrio de Andrade,Ama r , Verbo
Intransi t ivo, Brasil, 1976.
Xavier, Ismail (org.). A Exper incia d o Ci-nema, Rio de Janeiro, Edies Graal:
Embrafilme, 1983.
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D I L O G O S
CINEMA E ESCOLA
PGM 4 CINEMA NA ESCOLACINEMA NAESCOLA: A VOCAO EDUCATIVA DOS FILMES
MARIALVAMONTEIRO1
O ideal que o cinema e o rdio fossem, no Brasil, escolas
dos que no tm escolas.
(Roquette Pinto, 1936)
A nossa televiso tem 50 anos de existncia. Nesse tempo,
ela poderia ter alfabetizado todo o nosso povo, contado a nossa
histria, criando um sentimento de nacionalidade.
(Fernan do Barbosa Lima , 2002)
Para se esboar a histria do Cinema
Educativo entre ns, importante
remetermo-nos Lei n 378, que cria o
Instituto Nacional de Cinema Educativo,
que refere, na Seo III Dos servios re-
lativos educao item 2) Instituies
de educao escolar - Art. 40: Fica creadoo Instituto Nacional de Cinema Educativo,
destinado a promover e orientar a utili-
zao da cinematographia, especialmen-
te como processo auxiliar do ensino, e
ainda como meio de educao popular em
geral. Assinavam a lei o ento Presiden-
te Getlio Vargas e o Ministro da Educa-
o e Sade Gustavo Capanema, na data
de 13 de janeiro de 1937.
Neste mesmo ato, ficou o Poder Exe-
cutivo autorizado a despender, no exer-
ccio de 1937, com despesas de material
necessrio ao Instituto Nacional de Ci-
nema Educativo a importncia de qua-trocentos mil reis (400:000$). curioso
observar que, neste mesmo ano, a mes-
ma lei destinava s despesas necessri-
as ao desenvolvimento do theatro