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Organizadora Priscila Justina Música e movimento, “Morte e vida severina” traduções intersemióticas Belo Horizonte FALE/UFMG 2010

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  • Organizadora

    Priscila Justina

    Msica e movimento, Morte e vida severinatradues intersemiticas

    Belo Horizonte

    FALE/UFMG

    2010

  • Diretor da Faculdade de Letras

    Luiz Francisco Dias

    Vice-Diretora

    Sandra Bianchet

    Comisso editorial

    Eliana Loureno de Lima Reis Elisa Amorim Vieira Lucia Castello Branco Maria Cndida Trindade Costa de Seabra Maria Ins de Almeida Snia Queiroz

    Capa e projeto grfico

    Glria Campos Mang Ilustrao e Design Grfico

    Preparao de originais e diagramao

    Priscila Justina

    Reviso de provas

    Priscila Justina Tiago Garcias

    Endereo para correspondncia

    FALE/UFMG Setor de Publicaes Av. Antnio Carlos, 6627 sala 2015A 31270-901 Belo Horizonte/MG Telefax: (31) 3409-6007 e-mail: [email protected]

    Sumrio

    Apresentao . 5

    Msica e movimento, Morte e vida severina: tradues intersemiticas . 6

    Priscila Justina

    Anexo 1 Letras de Morte e vida severina,de Chico Buarque e Airton Barbosa . 17

    Referncias . 29

  • Apresentao

    Este texto foi pensado e construdo durante as aulas da disciplina Estudos temticos de Edio: edio de poesia traduzida, minis-trada pela Professora Snia Queiroz. Foi l que descobri o quo amplo pode ser o leque da traduo, que voa dos papeis e da fala e logra outros universos, outras linguagens. Em Msica e movimento, Morte e vida severina: tradues intersemiticas, apresento e comento a traduo do poema de Joo Cabral de Melo Neto feita por Chico Buarque e Airton Barbosa para a msica e a feita por Walter Avancini para um especial de TV. O texto acompanha as letras do disco de Buarque e Barbosa e tambm um DVD contendo o vdeo de Avancini. A todos, boas leituras.

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  • Msica e movimento, Morte e vida severina: tradues intersemiticas de Joo Cabral de Melo Neto

    Priscila Justina

    Morte e vida severina foi publicado pela primeira vez em 1955. O poema mais conhecido de Joo Cabral de Melo Neto um auto de natal pernambucano que remete aos autos da tradio medieval e em cuja histria Severino, um homem da zona rida do Nordeste, sai do seu serto em busca do litoral. Pelo caminho, se encontra com a morte e suas vrias faces, at chegar ltima pousada, onde toma conhecimento do nascimento de um menino. Esse nascimento se apresenta para Severino como uma prova de que se pode resistir negao da existncia. O poema engajado de Joo Cabral revela a dura vida de muitos moradores do serto e, ao mesmo tempo, glorifica a cultura de f e esperana to caracterstica do nordestino.

    Este texto tem por objetivo analisar Morte e vida severina em suas tradues para outros sistemas de signos. Comparamos o auto de Joo Cabral com duas obras homnimas: o disco de Chico Buarque e Airton Barbosa (1966) e o especial para TV roteirizado e dirigido por Walter Avancini (1981)1. A ideia partiu do desejo de es-tudar a traduo intersemitica, muitas vezes assimilada simples releitura, e sua relao com a literatura brasileira. Nas tradues escolhidas, a Morte e vida severina cinquentista de Joo Cabral resignificada musical e visualmente menos de meio sculo depois, um intervalo relativamente curto. Talvez a obra pedisse a traduo em toda a sua amplitude; talvez pedisse no somente a traduo de

    1 Para uma melhor leitura, este texto contm como anexos as letras do disco de Buarque e Barbosa e um DVD com o especial de Walter Avancini.

    uma lngua a outra, mas de uma linguagem a outra. Essa necessida-de , acredito, um dos elementos que torna Morte e vida severina uma obra simples porm complexa, singular e ao mesmo tempo mltipla, caractersticas que a tornaram um dos maiores smbolos da Literatura Brasileira.

    Os tradutoresChico Buarque Francisco Buarque de Hollanda, conhecido como Chico Buarque (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944), msico, dra-maturgo e escritor brasileiro. Filho do historiador Srgio Buarque de Holanda, iniciou sua carreira na dcada de 1960, destacando-se em 1966, quando venceu, com a cano A Banda, o Festival de Msica Popular Brasileira, da TV Record2. Em 1969, com a crescente repres-so da ditadura militar no Brasil, se auto-exilou na Itlia, tornando-se, ao retornar, um dos artistas mais ativos na crtica poltica e na luta pela democratizao do Brasil. Na carreira literria, foi ganhador do Prmio Jabuti, pelo livro Budapeste, lanado em 2004.

    A experincia de trabalho de Chico Buarque no teatro comeou justamente com a musicalizao de Morte e vida severina para uma montagem do Tuca (Teatro da Universidade Catlica de So Paulo), em 1965. Buarque foi chamado pelo grupo por sua sensibilidade mu-sical e afeio ao teatro. A pea foi aclamada pela crtica e ganhou o Festival Internacional de Teatro Universitrio ocorrido naquele mesmo ano. O trabalho recebeu elogios do prprio Joo Cabral, ento ainda vivo. Aps essa experincia, Buarque desenvolveu e participou de vrios outros projetos envolvendo Literatura e Teatro. Dentre eles destaca-se a musicalizao de Os Saltimbancos (baseado na fbu-la Os msicos de Bremen, dos irmos Grimm), a autoria das peas Roda Viva, Gota Dgua e Calabar e dos livros Budapeste e Leite derramado.3

    2 Dado retirado da Wikipdia. Disponvel em: .

    3 Adaptado de: .

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  • atravs de minissries e especiais como Grande serto: Veredas, A Morte e a Morte de Quincas Berro Dgua, Chapado do Bugre e Morte e vida severina.

    Estrutura do poema

    Morte e vida severina, por Joo Cabral de Melo NetoA seguir, temos um pequeno resumo de cada uma das 18 cenas componentes de Morte e vida severina de Joo Cabral. Essa expo-sio ser utilizada mais frente quando falarmos sobre a relao do texto de Joo Cabral com as transcriaes de Chico Buarque/Airton Barbosa e Walter Avancini.

    1. Severino se apresenta e diz a que vem. Nesta primeira par-te, as peregrinaes do protagonista servem para revelar seus di-ferentes encontros com a morte. No entanto, a morte no nica, diversificada, assumindo diferenas prprias em cada uma das cenas.6

    2. A primeira morte narrada. Severino trava um dilogo com dois homens que carregam um defunto embrulhado na rede. Na cena acontece a denncia daqueles que abusam do poder, matam para tomar posse da terra e jamais so discriminados. A cena des-perta a solidariedade do andarilho.7

    3. Severino encontra a segunda forma de morte, a prpria nature-za agreste do serto. O retirante v o seu rio-guia, o Capibaribe, seco.8

    4. Temeroso de perder o rumo, Severino segue a viagem, indo em direo ao som de uma cantoria. De repente, ele se depara com um velrio. No momento do ritual, dois homens comeam a imitar o som das vozes dos que rezam.9

    5. O retirante cansado interrompe a viagem e procura um tra-balho. Em solilquio, Severino retoma os motivos que o fizeram par-tir: est procura da vida. De certa maneira, tenta esconder sua

    6 MELO NETO. Morte e vida severinaMorte e vida severina, p. 203.7 MELO NETO. Morte e vida severinaMorte e vida severina, p. 205.8 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 208.9 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 210.

    Airton Lima Barbosa4 foi instrumentista, compositor e professor. Como tantos outros msicos de Pernambuco, onde o frevo impul-siona a tradio dos metais, Airton Barbosa foi atrado pelo saxofone e, em pouco tempo, j participava da banda da cidade.

    O Brasil vivia um tempo de efervescncia econmica e cultu-ral, com o governo de Juscelino Kubitschek. Uma das iniciativas do ento Ministrio da Educao e Cultura, chamada Jovens Talentos, tinha como objetivo formar e aperfeioar jovens instrumentistas que pudessem filiar-se s grandes orquestras sinfnicas do Sudeste e do Sul. Airton inscreveu-se, e foi o nico nordestino selecionado. Mudou-se ento para o Rio de Janeiro em 1960, e passou a estudar fagote com Noel Devos (grande msico francs radicado no Brasil desde 1952, primeiro fagote da Orquestra Sinfnica Brasileira, na qual atuou durante mais de 30 anos). Quanto sua musicalizao de Morte e vida severina, Roberto Moura comenta, no encarte do disco:

    A escolha do pernambucano Airton Barbosa para compor a trilha sonora tam-bm no um acidente e mantm perfeita coerncia com o sentido de orien-tao de todo o projeto. O fagotista do Quinteto Villa-Lobos, independente de uma formao musical acadmica, conserva o sotaque indispensvel para dei-tar no pentagrama as combinaes que passeiam nos fotogramas e, longe do barroco, tm caractersticas modais e apresentam signos tpicos do Nordeste (como fraseados de martelo agalopado) combinados a uma forma de execuo que lembra as ctaras da msica oriental.5

    Walter Nunciato Abreu Avancini (1935-2001) foi escritor, autor e diretor de telenovelas e minissries. Considerado um dos mais inovadores e criativos diretores da histria da televiso brasileira, Avancini foi o responsvel pela direo de clssicos da teledrama-turgia como A Deusa Vencida, As Minas de Prata, Selva de Pedra, O Semideus, O Rebu, Gabriela, Saramandaia, Nina, e Xica da Silva. A obra de Avancini revela uma grande afinidade com a literatura brasi-leira: ao longo de sua carreira conduziu tradues de obras literrias

    4 Adaptado de: .5 MOURA. Morte e vida severina.

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  • 11. O retirante se aproxima de um cais de rio, confessa no ter esperado muita coisa, pois tinha a conscincia de que a vida no se-ria diferente na cidade. No entanto esperava que melhorassem suas condies de vida, com gua, farinha e um pouco mais de expecta-tiva de vida. S que sem querer descobre, da conversa dos coveiros que seguia seu prprio enterro:

    adiantado de uns dias;o enterro espera na porta;o morto ainda est com vida.16

    12. A dcima segunda cena estabelece uma ruptura com a anterior e ao mesmo tempo anuncia a prxima parte. Trata-se do encontro de Severino com a primeira forma de otimismo exterior ao personagem, um otimismo contido, o nico possvel em tais cir-cunstncias da vida. O retirante trava um dilogo com Jos, mestre carpina. Enquanto vai dando forma s suas angstias atravs de perguntas, recebe uma resposta que ser dada na prxima cena.17

    13. A mulher de Jos anuncia a chegada do filho. O anncio do nascimento do filho do mestre carpina, que saltou para dentro da vida, mostra um jogo contnuo de antteses em que se opem as desesperanas severinas esperana da vida.18

    14. Aparecem para visitar o recm-nascido amigos, vizinhos e duas ciganas. Ao tomarem a palavra, os elementos de cada grupo (que forma uma espcie de coral), tecem loas, fazem predies, tra-zem presentes, em cena que reconstitui no lamaal ribeirinho (pre-spio) o milagre da vida. Severino colocado fora da cena, como mero observador em contato com a pequena alegria, que faz o povo esquecer, por um tempo, a dura realidade que carrega.19

    15. Presentes so levados ao recm-nascido. Reis magos da mis-ria repartem a pobreza dando ao menino um pouco do pouco que tm.20

    16 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 229.17 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 230.18 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 233.19 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 233.20 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 234.

    prpria vida, ultrapassar os trinta anos, catando as migalhas que lhe permitem a sobrevivncia.10

    6. Ainda procura de trabalho, Severino trava dilogo com uma mulher. Enquanto Severino expe o que sabe fazer, o leitor per-cebe que o conhecimento adquirido por ele como lavrador no pode ajud-lo, pois o que ele precisa saber para trabalhar com a mulher a morte ajudar.11

    7. A caminhada prossegue e Severino chega Zona da Mata. Em contato com a terra mais branda e macia, j prxima do litoral e com rios que no secam, Severino percebe que ali pode se estabelecer e v uma leve esperana surgir, decerto pela aparente beleza do lugar.12

    8. A oitava cena vem em resposta aos versos que finalizaram a anterior, que afirmava no haver gente no lugar. Mas por qu? Os trabalhadores levam um morto ao cemitrio, um trabalhador da lavoura. Severino, observador, ouve o que dizem os amigos do fi-nado. Uma raiva at ento contida vai crescendo, acompanhada do ritmo da poesia que salta em versos de redondilhas menores at versos eneasslabos, sofrendo cortes rpidos, o que d a impresso de tumulto.13

    9. O retirante apressa o passo a fim de chegar mais rapida-mente ao Recife. Nesta cena, ele reitera o motivo de sua retirada: no foi pela cobia, mas para defender sua prpria vida. No entanto, as esperanas vo se rareando, porque em qualquer lugar a morte sua sempre companheira.14

    10. Chegando ao Recife, Severino pra para descansar e ouve a conversa de dois coveiros. Ambos discutem a possibilidade de ar-rematar bens com a morte, com promoes e gorjetas. O lugar do morto no cemitrio depende de sua classe social quando era vivo. Os retirantes so a massa da morte e recebem o pior lugar.15

    10 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 211.11 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 212.12 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 217.13 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 218.14 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 222.15 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 223.

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  • Os msicos quer participam do disco so: Geraldo Azevedo (violo e viola), Ivson Wanderley (viola), Ronaldo Medeiros (flauta), Ktia de Frana (acordeo), Normando Pinheiro (bateria), Sidney Moreira (percusso) e Lourival Lemos (zabumba). As vozes so de Zelito Viana, Stnio Garcia e Jofre Soares (narrao). Tnia Alves, Elba ramalho e Jos Dumont fazem os solos de canto.

    Textualmente, o disco de Buarque e Barbosa utiliza os versos de Joo Cabral de Melo Neto. No entanto, o texto passa por um processo de desconstruo e reorganizao. Em As ciganas, por exemplo, Buarque e Barbosa intercalam as previses que, no texto de Cabral, eram consecutivas. O reajuste to eloquente que por si s j transmite o contraste entre as duas ciganas, o que ser ex-plicitado pelos versos. As escolhas rtmicas e os jogos de entonao tambm possuem relao intrnseca com o texto que est sendo cantado. Os ritmos alegres transmitem uma certa urgncia perante a vida, enquanto nas cenas mais dramticas a tristeza na voz do cantante contrabalanada pela sensao de unio de vrias vozes (como em Funeral de um lavrador). Todas essas escolhas fazem com que a Morte e vida severina de Joo Cabral seja apreendida satisfatoriamente em apenas 23 minutos. O disco recria sensaes trazidas do poema, mas tambm cria outras bem diferentes das in-duzidas pelo texto de Joo Cabral.

    Morte e vida severina, por Walter AvanciniA traduo de Avancini da obra de Joo Cabral tem trilha sonora composta por Chico Buarque e conta com um elenco bem diversifi-cado, contendo cantores e atores de teatro e novelas: Jos Dumont (Severino), Elba Ramalho (mulher na janela), Tnia Alves (coveira), Sebastio Vasconcelos (velho carpina), Cacilda Lanuza (cigana), entre outros. Parte do elenco tambm participou da pea do TUCA, como o prprio Jos Dumont. O especial venceu o Emmy de 1986.24

    A traduo de Avancini contm todas as 18 partes do texto de Joo Cabral, e os atores recitam o poema literalmente. Essa

    24 Adaptado de: .

    16. Ao tomarem a palavra, as duas ciganas tecem suas previ-ses. Num processo de perfeita identidade do homem ao meio em que ele vive, as videntes tiram lies de sobrevivncia. A primeira cigana toma a palavra e antecipa para a criana o mesmo destino de misria de seu pai; a segunda cigana, antepondo-se, prediz um des-tino que no ser totalmente ruim e levar o menino s mquinas e s paragens nos mangues melhores do Beberibe.21

    17. Chegam os vizinhos e cantam a beleza do recm-nascido. Os atributos que distinguem a criana so os mesmos que marcam toda a populao restante. Criana magra, franzina, plida, peque-na, mas criana que vai fazer minar um pouco de vida e contagiar os que j no acreditam mais nela.22

    18. No ltimo segmento da pea, aps a valorizao da vida, o mestre carpina toma a palavra, dialoga com Severino, que chama-do, mas permanece mudo. O mestre reitera a beleza do milagre da vida e convence Severino da vitria dela sobre a morte.23

    Morte e vida severina, por Chico Buarque e Airton Barbosa O disco de Chico Buarque e Airton Barbosa foi baseado nos poemas Morte e vida severina e O rio, de Joo Cabral, e dividido em 12 faixas:

    1. De Sua Formosura (Barbosa)2. Severino / O Rio / Notcias do Alto Serto (Barbosa) 3. Mulher na Janela (Buarque, Barbosa)4. Homens de Pedra (Barbosa)5. Todo o Cu e a Terra (Barbosa)6. Encontro com o Canavial (Barbosa)7. Funeral de um Lavrador (Buarque)8. Chegada ao Recife (Barbosa)9. As Ciganas (Barbosa)10. Despedida do Agreste (Barbosa)11. O Outro Recife (Barbosa)12. Fala do Mestre Carpina (Barbosa)

    21 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 236.22 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 238.23 MELO NETO. Morte e vida severina, p. 241.

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  • dificuldade em se desgarrar do texto original por vezes cria uma artificialidade um tanto desagradvel nos dilogos. Se no disco de Buarque e Barbosa percebemos um acrscimo de significados po-ticos ao poema de Cabral, no especial de Avancini constatamos apenas uma repetio desnecessria. J que o texto igual ao de Cabral, quando assistimos a Morte e vida severina passamos a buscar a transcriao em outros elementos, como nas imagens e nos sons. O cenrio do serto composto por vrios tons de amarelo, em oposio ao azul do litoral, no Recife. Esse contraste cria um sm-bolo da diviso do poema de Cabral, que entre a viagem e a chega-da. O outro trunfo do especial o longo alcance que ele possui. Se o poema de Cabral ou o disco de Chico e Airton nem sempre chegam a todos os olhos e ouvidos, a traduo de Avancini cumpre essa tarefa muito bem, j que veicula pelo meio de comunicao mais popular e abrangente do Brasil: televiso.

    Traduo X AdaptaoA traduo intersemitica foi definida por Roman Jakobson como a interpretao dos signos verbais por meio de sistemas de sig-nos no-verbais.25 Para Jakobson, a classificao desse tipo de traduo se justifica porque qualquer interpretao do signo lin-gustico pressupe uma traduo, o que inclui a transmutao do signo.

    Sendo a traduo uma interpretao, ela faz parte tambm de um processo de recriao da obra qual remete. Na traduo intersemitica onde fica mais evidente esse carter transforma-dor (embora ele exista em todas as outras formas de traduo). Podemos exemplificar esse carter, por exemplo, quando fazemos uma referncia verbal traduo intersemitica. Dizemos tratar-se de uma adaptao e, quando elaboramos a referncia bibliogrfi-ca, no citamos a obra original como fonte; negamos o fato de que essa adaptao , na verdade, uma traduo to desconstruto-ra e enriquecedora da obra original como qualquer outra. Negamos

    25 JAKOBSON. Lingstica e comunicao, p. 66.

    inconscientemente o fato de que toda traduo uma obra diferente da original, modificada pelo tradutor.

    Msica e poesiaJoo Cabral sempre foi um escritor inteirado do que acontecia a sua volta e sensvel a outras artes. Em entrevista, ele afirma:

    Meu engajamento com a realidade. Sou pernambucano e no posso deixar de ser. O nordestino mais telrico que o carioca ou paulista. Meu mundo outro, fui criado num engenho, minha famlia de senhores de engenho, a classe da casa grande, da zona da mata, longe da misria do serto, mas conheo bem os dois lados.26

    A obra de Joo Cabral sempre revelou a preocupao com o mal-estar de si e do outro, propulsor da crtica social. Em Morte e vida severina Joo Cabral faz crtica condio de vida do nordes-tino, em oposio riqueza do litoral. Chico Buarque tambm tem um histrico de afirmao poltica forte, sendo um dos principais expoentes artsticos da resistncia ditadura militar no Brasil, nos anos 1960-1980. Essa postura se traduziu em sua adaptao da obra de Joo Cabral. Canes como Irmos das almas, Mulher na jane-la e Homens de pedra revelam a aspereza da vida no serto e a tradio da msica nordestina atravs de um ritmo urgente e de um canto lamentoso, constituindo assim o paradoxo entre morte e vida presente na obra de Joo Cabral.

    Msica, poesia e movimentoA negao da adaptao como traduo de que falamos mais acima tem origem na qualidade particular da traduo intersemitica. Ela implica a modificao de estruturas e a utilizao de materiais muito diferentes daqueles usados no texto de partida, e devido a essa dife-rena, impossvel dizer objetivamente se a traduo foi fiel ou infiel. uma anlise mais subjetiva do que na traduo interlingual, em que podemos analisar correspondncias sintticas, fonticas e rtmicas. No texto Traduo intersemitica problemas, teoria e modelos,

    26 BRITO. Poltica: Joo Cabral de Melo Neto.

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  • Joo Queiroz e Daniela Aguiar apontam esse problema, dizendo que a traduo opera em diferentes nveis de descrio. Por exemplo, o ritmo, a semntica e a estrutura narrativa de um livro podem ser traduzidos na trilha sonora, no figurino e na cenografia de um filme. o que acontece nas adaptaes de Morte e vida severina de Chico Buarque, Airton Barbosa e Walter Avancini. Elas captam a essncia do poema (e essa essncia, claro, inteiramente subjetiva, como qualquer ponto de vista) e a mostram de uma forma diferente.

    Em Traduo: literatura e literalidade, Octavio Paz afirma que o tradutor tambm poeta, pois a traduo potica uma operao anloga criao potica. Se na traduo interlingual o conceito de traduo de Octavio Paz pode soar um pouco idealista, na traduo intersemitica ele assume total autoridade. Para se fazer uma tradu-o de uma linguagem a outra, no se pode procurar correspondn-cias literais, tal como ocorre na traduo exclusivamente literria. Assim, o conjunto de tradues de Morte e vida severina natu-ralmente plural em sentidos. O trabalho de Buarque e Barbosa e de Avancini consiste em perceber o texto de Joo Cabral, desmont-lo e reconstru-lo. Tal como uma fotografia tirada no mesmo local, com as mesmas caractersticas tcnicas e fsicas, porm em duas pocas diferentes, as tradues nunca so iguais ao texto; no so sequer semelhantes. Elas remetem a um processo de leitura e resignifica-o potica que sempre retorna quilo que o poema tem de nuclear, essencial. Em 50 minutos, Buarque e Barbosa e Avancini traduzem tudo o que de potico lhes pareceu haver em Morte e vida severina, cada um com sua concepo artstica. As obras acabam constituindo uma transcendncia da obra original que no tem vergonha de mos-trar que transcende, um recorte acrescido de elementos novos que (re)afirmam o carter transcriador do tradutor.

    Anexo 1 Letras de Morte e vida severina,de Chico Buarque e Airton Barbosa

    01 De sua formosura

    De sua formosuradeixai-me que diga: belo como o coqueiroque vence a areia marinha.

    Belo como a ltima ondaque o fim do mar sempre adia to belo como um simnuma sala negativa.

    Belo porque uma portaabrindo-se em mais sada.Belo como a coisa novana prateleira vazia.

    De sua formosuradeixai-me que diga:belo como a coisa novana prateleira vazia.

    Belo como a coisa novainaugurando o seu diaOu como o caderno novoquando a gente o principia.

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  • 02 Severino O rio Notcias do Alto Serto

    Severino fala:

    Meu nome Severino,no tenho outro de pia.Como h muitos Severinos,que santo de romaria,deram ento de me chamarSeverino de Mariacomo h muitos Severinoscom mes chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.

    Mais isso ainda diz pouco:h muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor dessa sesmaria.

    Uma segunda voz fala:

    Sempre pensar em ircaminho do marPara os bichos e riosnascer j caminharEu no sei o que os riostm de homem do marSei que se sente o mesmoe exigente chamar

    Eu j nasci descendo a serraque se diz do JacararEntre caraibeiras de ques sei por ouvir contarpois tambm como genteno consigo me lembrardessas primeiras lguasde meu caminhar

    Desde tudo o que lembrolembro-me bem de que baixavaentre terras de sedeque das margens me vigiavamRio menino, eu temiaaquela grande sede de palhaGrande sede sem fundoque guas meninas cobiavaPor isso que ao descercaminho de pedras eu buscavaque no o leito de areiacom suas bocas multiplicadas

    Por trs do que me lembroouvi de uma terra desertadaBaseada, no vaziamais que seca, calcinadaDe onde tudo fugiaonde s pedra que ficavaPedras e poucos homenscom razes de pedra ou de cabraL o cu perdia as nuvensderradeiras de suas avesAs rvores a sombraque nelas j no pousavaTudo o que no fugia,gavies, urubus, plantas bravasA terra devastadaainda mais fundo devastava

    03 Mulher na janela

    Trabalho aqui nunca faltaa quem sabe trabalharo que fazia o compadrena sua terra de l?

    Pois fui sempre lavrador,lavrador de terra mno h espcie de terraque eu no possa cultivar.

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  • Isso aqui de nada adianta,pouco existe o que lavrarmas diga-me, retirante,o que mais fazia por l?

    Tambm l na minha terrade terra mesmo pouco hmas at a calva da pedrasinto-me capaz de arar.

    Tambm de pouco adianta,nem pedra h aqui que amassardiga-me ainda, compadre,que mais fazias por l?

    Conheo todas as roasque nesta ch podem daro algodo, a mamona,a pita, o milho, o caro.

    Esses roados o bancoj no quer financiarmas diga-me, retirante,o que mais fazia l?

    Em qualquer das cinco tachasde um bang sei cozinharsei cuidar de uma moenda,de uma casa de purgar.

    Com a vinda das usinash poucos engenhos jnada mais o retiranteaprendeu a fazer l?

    Ali ningum aprendeuoutro ofcio, ou aprendermas o sol, de sol a sol,bem se aprende a suportar.

    Mas isso ento ser tudoem que sabe trabalhar?vamos, diga, retirante,outras coisas saber.

    Deseja mesmo sabero que que eu fazia por l?comer quando havia o que, havendo ou no, trabalhar.

    04 Homens de pedra

    Meu caminho divide de nomeas terras que desoEntretanto, a paisagemcom tantos nomes quase a mesma.A mesma dor caladao mesmo soluo secomesma morte de coisaque no apodrece, mas secaVou na mesma paisagemreduzida sua pedra.A vida veste aindasua mais dura pele.

    05 Todo o cu e a terra

    Todo o cu e a terralhe cantam louvor.Foi por ele que a maresta noite no baixou.

    Todo o cu e a terralhe cantam louvor.a lama ficou cobertae o mau-cheiro no voou.

    Todo o cu e a terralhe cantam louvor.

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  • E a alfazema do sargao,cida, desinfetante,veio varrer nossas ruasenviada do mar distante.

    Todo o cu e a terralhe cantam louvor.

    E a lngua seca de esponjaque tem o vento terralveio enxugar a umidadedo encharcado lamaal.

    Todo o cu e a terralhe cantam louvore cada casa se tornanum mocambo sedutor.

    Cada casebre se tornano mocambo modelar.

    06 Encontro com o canavial

    As coisas no so muitasque vou encontrando nesse caminhoTudo planta de cananos dois lados do caminhoE mais plantas de cananos dois lados do caminho,por onde os rios descemque vou encontrando neste caminho.

    E outras plantas de canaara as ribanceiras dos outros rios,que estes encontraramantes de se encontrarem comigoTudo planta de canae assim at o infinito.Tudo planta de canapara uma s boca dividido.

    07 Funeral de um lavrador

    Esta cova em que ests,com palmos medida a conta menor que tiraste em vida

    de bom tamanho,nem largo, nem fundo a parte que te cabe deste latifndio

    No cova grande, cova medida a terra que querias ver dividida

    uma cova grande para teu pouco defuntoMas estars mais ancho que estavas no mundo

    Mas estars mais ancho que estavas no mundo

    uma cova grande pra tua carne poucaMas terra dada no se abre a boca

    a parte que te cabe deste latifndio a terra que querias ver dividida

    Enquanto homens e mulheres repetem estrofe acima, os versos abai-xo so recitados por vrias vozes, masculinas e femininas:

    A ficars para sempre,livre do sol e da chuva,criando tuas savas

    Agora trabalharss para ti, no a meiascomo antes em terra alheia

    Trabalhando nessa terratu sozinho tudo empreitas:sers semente, adubo, colheita

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  • Trabalhars numa terraque tambm te abriga e te veste:embora com o brim do Nordeste.

    Ters de terracompleto agora o teu fato:e pela primeira vez, sapato.

    08 Chegada ao Recife

    Ao entrar no Recifeno penses que entro sEntra comigo a genteque comigo baixoupor essa velha estradaque tem no interior

    Entram comigo riosa quem o mar chamouEntra comigo a genteque com o mar sonhouE tambm retirantesde que s o suor no secou

    E entra essa gente triste,a mais triste que j baixouA gente que a usinadepois de mastigar, o largou

    09 As ciganas

    Ateno peo, senhores,para esta breve leitura:somos ciganas do Egito,lemos a sorte futura.

    Primeira cigana:

    Vou dizer todas as coisasque desde j posso verna vida desse meninoacabado de nascer:aprender a caminharna lama, como goiamuns,e a correr o ensinaroo anfbios caranguejos,pelo que ser anfbiocomo a gente daqui mesmo.

    Segunda cigana:

    Ateno peo, senhores,tambm pra minha leitura:tambm venho dos Egitos,vou completar a figura.Outras coisas que estou vendo necessrio que eu diga:no pensem que a vida deleh de ser sempre daninha.

    Primeira cigana:

    Cedo aprender a caar:primeiro, com as galinhas,que catando pelo chotudo o que cheira a comidae depois, aprendercom outras espcies de bichos:com os porcos nos monturos,com os cachorros no lixo.

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  • Segunda cigana:

    No ficar a pescarde jerer toda a vida.Minha amiga se esqueceude dizer todas as linhasEnxergo daqui a planuraque a vida do homem de ofcio,bem mais sadia que os mangues,tenha embora precipcios.

    Primeira cigana:

    Vejo-o, uns anos mais tarde,na ilha do Maruim,vestido negro de lama,voltar de pescar sirise vejo-o, ainda maior,pelo imenso lamarofazendo dos dedos iscaspara pescar camaro.

    Segunda cigana:

    No o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fbrica:se est negro no lama, graxa de sua mquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de marque vemos aqui vestidode lama da cara ao p.

    E mais: para que no pensemque em sua vida tudo triste,vejo coisa que o trabalhotalvez at lhe conquiste:que mudar-se destes manguesdaqui do Capibaribepara um mocambo melhornos mangues do Beberibe.

    10 Despedida do agreste

    Instrumental

    11 O outro recife

    Mas antes de ir ao maronde minha fala se perdeVou contar da cidade habitada por aquela genteque veio ao meu caminhoe de quem fui o confidente.

    L pelo Beberibeaquela cidade tambm se estendePois sempre junto aos riosprefere se fixar aquela gente

    Sempre perto dos rios,companheiros de antigamenteComo se no pudessempor um minuto somentedispensar a presenade seus conhecidos de sempre

    Tudo o que encontreina minha longa descidaMontanhas, povoados,caieiras, viveiros, olariasMesmo esses ps de canaque to iguais me pareciamTudo levava um nomecom que poder ser conhecido

    A no ser essa genteque pelos mangues habitaEles so gente apenassem nenhum nome que os destinaQue os destina na morteque aqui annima e seguida

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  • 12 Fala do mestre carpina

    Severino, retirante,deixe agora que lhe diga:eu no sei bem a respostada pergunta que fazia,se no vale mais saltarfora da ponte e da vidaNem conheo essa resposta,se quer mesmo que lhe diga

    difcil defender,s com palavras, a vida,ainda mais quando ela esta que v, severina.Mas se responder no pude pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom a sua presena viva.

    E no h melhor respostaque o espetculo da vida:ver a fbrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,v-la brotar como h poucoem nova vida explodida.Mesmo quando assim pequenaa exploso, como a ocorridamesmo quando assimcomo a de h pouco, franzinamesmo quando a explosode uma vida severina.

    Referncias

    AVANCINI, Walter. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: TV Globo, 1981. Minissrie de TV. Disponvel para cpia no-autorizada em: . Acesso em: 09 nov. 2009.

    BARBOSA, Airton; BUARQUE, Chico Buarque. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Discos Marcus Pereira, 1966. 1 Disco.

    BRITO, Joo Domingos de. Poltica: Joo Cabral de Melo Neto. Disponvel em: . Acesso em: 09 nov. 2009.

    CHICO Buarque. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2009.

    FESTIVAL de msica popular brasileira. Disponvel em: . Acesso em: 09 nov. 2009

    JAKOBSON, Roman. Aspectos lingsticos da traduo. In: _____. Lingstica e comunicao. Trad. Izidoro Blikstein e Jos Paulo Paes. So Paulo: Cultrix, 1971. p. 63-72.

    MELO NETO, Joo Cabral. Morte e vida severina. Poesias completas. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1975.

    MOURA, Roberto. In: BARBOSA, Airton; BUARQUE, Chico Buarque. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Discos Marcus Pereira, 1966. 1 Disco.

    PAZ, Octavio. Traduo: Literatura e literalidade. In: Traduo: literatura e literalidade Edio bilnge. Trad. Doralice Alvez de Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009.

    QUEIROZ, Joo; AGUIAR, Daniela. Traduo intersemitica problemas, teoria e modelos. Disponvel em: http://www.intersecoes.pro.br/teoria.htm. Acesso em: 20 out. 2009.

    WALTER Avancini. Disponvel em: . Acesso em: 10 out. 2009.

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  • Publicaes Viva Voz de interesse para a rea de traduo

    A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro tradues para o portugus

    Walter Benjamin

    Tradues de Fernando Camacho, Karlheinz Barck e outros,

    Susana Kampff Lages e Joo Barrento

    Potica do traduzir, no tradutologia

    Henry Meschonnic

    Tradues Mrcio Werberde Faria, Levi F. Arajo e Eduardo

    Domingues

    Traduo, literatura e literalidade

    Octavio Paz

    Trad. Doralice Alves de Queiroz

    Glossrio de termos de edio e traduo

    Snia Queiroz (Org).

    Da transcriao: potica e semitica da operao tradutora

    Haroldo de Campos

    Os Cadernos Viva Voz esto disponveis tambm em verso

    eletrnica no site: www.letras.ufmg.br/labed

    Esta publicao resul-tado de trabalho elabora-do por alunos da discipli-na Estudos Temticos de Edio, no segundo se-mestre de 2009.

  • ApresentaoMsica e movimento emMorte e vida severina: traduesintersemiticas de Joo Cabral de Melo NetoPriscila JustinaAnexo 1 Letras de Morte e vida severina,de Chico Buarque e Airton BarbosaReferncias